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Organização Editorial:

Sonia Virgínia Moreira


Daniela Cristiane Ota

Comunicação,
Mídia e Cultura •
Estudos Brasil Estados Unidos

EDITORA
UFMS
2018
Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação - INTERCOM

Conselho Curador
José Marques Melo
Anamaria Fadul
Antonio Carlos Hohlfeldt
Cicilia Maria Krohling Peruzzo
Gaudêncio Torquato
Margarida Maria Krohling Kunsch
Maria Immacolata Vassallo de Lopes
Manuel Carlos Chaparro
Sonia Virgínia Moreira

Diretoria Executiva (2015-2017)


Presidente
Marialva Carlos Barbosa

Vice-Presidente
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Diretor Financeiro
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Diretor Administrativo
Sonia Maria Ribeiro Jaconi

Diretora Científica
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Diretora Cultural
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Diretor Editorial
Felipe Pena de Oliveira

Diretora de Documentação
Ana Paula Goulart Ribeiro

Diretor de Projetos
Tassiara Baldissera Camatti

Diretora de Relações Internacionais


Giovandro Marcus Ferreira

Diretora Regional Norte


Allan Soljenitsin Barreto Rodrigues

Diretor Regional Nordeste


Aline Maria Grego Lins

Diretora Regional Centro-Oeste


Daniela Cristiane Ota

Diretora Regional Sudeste


Nair Prata Moreira Martins

Diretora Regional Sul


Marcio Ronaldo Santos Fernandes
*Comunicação, mídia e cultura: Estudos Brasil-Estados Unidos*

Copyright © 2018 dos autores dos textos cedidos para esta edição à Sociedade Brasileira
de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (INTERCOM) e à Editora da Universidade
Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS).

Reitor
Marcelo Augusto Santos Turine

Vice-Reitora
Camila Celeste Brandão Ferreira ÍtavoOrganização editorial
Sonia Virgínia Moreira e Daniela Cristiane Ota

Tradução para o português


Beatriz Cavenaghi, Cristiane Fontinha, Gisely Hime, Isabel Colucci,
Lairtes Rodrigeus Chaves, Lyanny Ferreira Yrigoyen, Pedro Aguiar, Sonia Virgínia Moreira

Versão para o inglês


Samantha Joyce

Revisão
Sonia V. Moreira e Daniela C. Ota

Capa e projeto gráfico


Marina Arakaki

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Coordenadoria de Bibliotecas – UFMS, Campo Grande, MS, Brasil)

Comunicação, mídia e cultura : estudos Brasil - Estados Unidos = Communication,


media and culture : Brazil - US studies / organização editorial: Sonia Virgínia
Moreira, Daniela Cristiane Ota ; [tradução para o português: Beatriz Cavenaghi... [et
al.] ; versão para o inglês: Samantha Joyce]. -- São Paulo, SP : Intercom, Campo
Grande, MS : Ed. UFMS, 2018. 188, 176 p. : il. (algumas color.)

Inclui bibliografía.
e-ISBN 978-85-8208-112-9 (e-book/pdf)

1. Comunicação de massa. 2. Comunicação de massa e cultura. I. Moreira, Sonia


Virgínia. II. Ota, Daniela Cristiane. III. Título: Communication, media and culture.

CDD (23) 302.23

Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação - INTERCOM


Rua Joaquim Antunes, 705 - Pinheiros
CEP 05415-012 - São Paulo/SP - Brasil
www.intercom.org.br - email: intercom@usp.br

Editora da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul - EDITORA UFMS


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CEP 79070-900 - Campo Grande/MS - Brasil
www.ufms.br - email: diedu.secom@ufms.br
Sumário

7 Apresentação

11 Evolução das leis para radiodifusão, o caso brasileiro


Sonia Virgínia Moreira

17 Radiodifusão e cultura do consumo


Mark Goodman

25 O jornalismo como território: hiperlocalismo e o pertencimento comunitário


Maria José Baldessar, Pedro Vieira Dellagnello, Giovanni Letti

33 Telenovelas no Brasil: de roteiros viajantes a um gênero e protoformato


nacional e transnacional
Joseph D. Straubhaar

57 A pequena imprensa de Mato Grosso do Sul


Daniela Cristiane Ota e Mario Luiz Fernandes

65 Reconstrução: MediaNOLA em chamas


Mike F. Griffith e Vicki A.Mayer

81 Ensino de jornalismo Brasil-EUA: o legado de Pulitzer nos tempos do


capitalismo financeiro
Alice Mitika Koshiyama

93 Reconsiderando cultura, contracultura e nação por meio das lentes da Tropicália


John R. Baldwin

109 A propagação da cultura norte-americana no jornalismo brasileiros dos anos 1930


Gisely Valentim Vaz Coelho Hime

119 Brasileiros do horário nobre – ou o que a CBS me ensinou sobre o Brasil


Samantha Joyce

129 A Cartógrafa, a Escrita e os Jovens: Marcas de Subjetividades e das Mídias


Maria Luiza Cardinale Baptista

139 Sofrendo longe e perto. Cosmopolitismo como trabalho de identidade


Laura Robinson
149 Fronteiras da globalização: polifonia, identidade, Estado-Nação
Ada Cristina Machado da Silveira

159 A vida em 700 palavras: os obituários do The New York Times e da


Folha de S. Paulo
Monica Martinez

173 Comunicação comunitária: transformação social e metodologias de avaliação


Fernando Oliveira Paulino, Marcelo X.A. Bizerril, Juliana Soares Mendes,
Leyberson Pedrosa, Mel Bleil Gallo

181 A digitalização das transmissões e o futuro do rádio como mídia publicitária no Brasil
Clóvis Reis
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos

Apresentação
Uma década de estudos
Brasil-Estados Unidos no campo da comunicação
Sonia V. Moreira (UERJ/Intercom) e Daniela Ota (UFMS)

A
história dos colóquios binacionais da Sociedade Brasileira de Estudos Interdisci-
plinares da Comunicação tem raízes no projeto pioneiro Estudo Comparado dos
Sistemas de Comunicação Social no Brasil e no México, idealizado e coordenado
por José Marques de Melo, que reuniu dez pesquisadores brasileiros e dez pesquisadores
mexicanos com investigação em campos específicos da Comunicação, em encontros no
Brasil (São Paulo) e no México (Guadalajara). A estrutura atual, que reúne a cada dois anos
pesquisadores selecionados em torno de temas comuns, teve início em 1992, com o I Coló-
quio Brasil-França, uma promoção conjunta Intercom-SFSIC (Societé Francaise des Sciences
de l’Information et de la Communication). Desde então, e ao longo dos anos, 11 países
compartilharam com o Brasil o formato que hoje é uma marca institucional da Intercom.
Os colóquios binacionais constituem espaços diferenciados para o debate científico, pois
seleciona um número constante de participantes (no máximo dez em cada país) com
contribuições relevantes para a pesquisa em Comunicação e campos conexos. O forma-
to do diálogo internacional entre pares permite apresentações mais longas e debates
aprofundados, nem sempre possível em eventos acadêmicos. A periodicidade bienal é
outra característica dos colóquios binacionais, sediados de modo alternado em cada um
dos dois países. No Brasil, os colóquios estão entre as atividades que antecedem o con-
gresso nacional anual da Intercom. Cada colóquio conta com dois coordenadores, um
pesquisador brasileiro e um pesquisador do país copromotor. São eles que respondem
pela seleção e organização da delegação de investigadores.
O Colóquio Brasil-Estados Unidos de Estudos da Comunicação se reúne regularmente des-
de a primeira edição em 2004. Para este primeiro volume do grupo Brasil-EUA foram se-
lecionados trabalhos de autores que participaram pelo menos duas vezes dos encontros
binacionais assim distribuídos ao longo do período de dez anos e seis colóquios: em 2004
na Universidade do Texas em Austin; em 2005 na Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(RJ); em 2008 na Universidade Tulane em Nova Orleans; em 2010 na Universidade de Caxias
do Sul (RS); em 2012 na Universidade de Paul em Chicago; e em 2014 em Foz do Iguaçu (PR).
O artigo que abre este volume foi apresentado em 2004 por Sonia V. Moreira, no 1º
Colóquio Brasil-Estados Unidos de Ciências da Comunicação, na Universidade do Texas
em Austin. Dos 40 papers foram selecionados para debater o tema Brazil and the USA:
Reviews and Perspectives on 50 Years of Academic Cooperation in the Field of Commu-
nication, 38 foram efetivamente apresentados naquele que foi o primeiro encontro do
Colóquio (13 pesquisadores brasileiros e 25 investigadores dos Estados Unidos). O texto
“Evolução das leis para radiodifusão, o caso brasileiro”, recupera alguns dados de con-
texto das leis que normatizam rádio e TV no Brasil, tal como se apresentavam em janeiro
de 2004, com ênfase no rádio. A pesquisa mostra que até aquele momento, no período
de 40 anos compreendido entre 1963 e 2003, assim como ainda hoje, a legislação para o
rádio e a televisão estava construída em expedientes capengas, incompletos ou parciais,

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Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos

visando manter minimamente atualizados regras e limites legais para a atuação desses
meios no período de vigência das concessões.
Em seguida, Mark Goodman, da Universidade do Estado do Mississipi, analisa como a
cultura de consumo contribuiu para que a economia dos Estados Unidos se tornasse a
maior do mundo. Para o autor, o preço tem sido alto considerando o senso de justiça do
século XXI: aquecimento global e gases de efeito estufa, economia baseada na impor-
tação de petróleo e trilhões de dólares em dívida nacional estão entre as consequências
colaterais de uma economia direcionada ao consumo e abastecida pelo consumo de
mídia. O artigo revê a história da rede de rádio e TV NBC e sua hegemonia cultural. Ao
comparar e contrastar a história da NBC com o papel da TV Globo no Brasil e no mundo,
ele observa que o impacto da TV Globo extrapola a sociedade brasileira ao desempenhar
papel relevante na criação de uma cultura hegemônica mundial.
Maria José Baldessar, Pedro Vieira Dellagnello e Giovanni Letti, da Universidade Federal de
Santa Catarina, discutem no seu artigo conjunto a busca de alternativas pelas empresas
de comunicação para vencer a crise de audiência/de confiança que se estabelece a partir
da década de 1990 e se acentua com a ascensão da internet e seu ferramental a partir dos
anos 2000. Ao entender o jornalismo como território, espaço simbólico institucionaliza-
do, no qual existem regras, costumes e senso de ética que regem a convivência interna,
estabelece que as bases históricas desse território estão nos métodos de produção e
de transmissão de informação, que evoluem conforme e/ou apesar do desenvolvimento
tecnológico. Discutem também como essas experiências resgataram o sentido de perten-
cimento comunitário ao desafiar os limites editoriais impostos pelas redes globalizadas.
Joseph D. Straubhaar, da Universidade do Texas em Austin, argumenta em seu artigo
que há diversas camadas de comercialização de gênero e proto-formatos de elementos
de programas de televisão, agora formatos franqueados comercialmente. Concorda que
algumas tradições na TV, como o melodrama, tendem a ser categorias amplas e abran-
gentes com longa história, anterior à televisão, como diz Martín Barbero (1993). Assim,
gêneros específicos da produção de TV, como a soap opera norte-americana e a teleno-
vela latino-americana, puderam se desenvolver dentro dessa tradição maior.
O artigo de Daniela Cristiane Ota e Mario Luiz Fernandes divulga os resultados da primei-
ra fase do projeto de pesquisa intitulado “Perfil da pequena imprensa de Mato Grosso
do Sul”. Disponível na internet desde 2011, o Portal de Mídia (www.portaldemidia.ufms.
br) agrega dados de 126 jornais localizados e catalogados em 44 municípios do estado.
Os autores analisam características como periodicidade, tiragem, nº de páginas, nº de
cidades onde os jornais circulam, período de surgimento dos jornais, formato e tipo de
impressão, entre outras particularidades.
Mike Griffith e Vicki Mayer, da Universidade Tulane em Nova Orleans, discorrem sobre o
projeto MediaNOLA, cujo objetivo era educar estudantes sobre as tradições locais, capa-
citando-os para serem produtores e mantenedores do conhecimento cultural. A preserva-
ção da cultura da cidade se tornou importante tópico de discussão após a passagem do
furacão Katrina em 2005. O projeto começou em 2009 com a intenção de fazer os estu-
dantes capturarem informações geográficas e históricas em websites diretamente relacio-
nados com a produção de mídia (editores, espaços musicais, estúdios de gravação etc.).
O texto de Alice Mitika Koshiyama, da Universidade de São Paulo, retrata o ensino de jorna-
lismo nos Estados Unidos e no Brasil a partir das histórias de Joseph Pulitzer e Cásper Libero,
sugerindo os dois proprietários de organizações jornalísticas como figuras representativas

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Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos

para a avaliação do campo de formação dos jornalistas nos dois países. Assim, a história
do empresário e jornalista Joseph Pulitzer mostra a sua importância para o jornalismo na
construção do capitalismo industrial dos EUA e como o seu legado permanece no ensino de
jornalismo ainda no início do século XXI. No Brasil, Alice Mitika identifica em Cásper Líbero,
o jornalista e empresário da imprensa paulistana que morreu em 1943 e deixou sua herança
em testamento para a Fundação da Escola Superior de Jornalismo Cásper Líbero.
O estudo de caso apresentado por John R. Baldwin aborda a cultura de modo amplo e
aplica definições da Tropicália, movimento musical com início no final dos anos 1960
no Brasil. O movimento foi, no princípio, vaiado pelo público e reprimido pelo regime
militar, mas eventualmente cresceu para representar as forças da globalização na cena
musical brasileira. Sua reflexão sobre temas e tensões culturais, bem como sobre o papel
da economia de mercado e o envolvimento do Estado na Cultura, o transformaram em
um estudo de caso privilegiado para a compreensão do conceito.
O objetivo do artigo de Gisely Valentim Vaz Coelho Hime é realizar uma breve reflexão
sobre a propagação da cultura norte-americana na imprensa brasileira no período Vargas,
com base em estudo sobre o vespertino paulistano A Gazeta, o jornal mais moderno do
Brasil no final dos anos 1930. Verifica como a publicação responde à Política de Boa Vizi-
nhança e ao Panamericanismo do governo de Franklin D. Roosevelt; o registro das visitas
de personalidades da sociedade dos Estados Unidos à Gazeta a partir de 1940; a realização
das conferências e filmes no auditório de A Gazeta; as missões de jornalistas brasileiros e as
viagens de Cásper Líbero, proprietário e editor do vespertino, aos Estados Unidos; e, final-
mente, o registro da propaganda da cultura norte-americana nas páginas do vespertino.
Samantha Joyce, do Saint Mary’s College na Califórnia, examina a série de televisão CSI:
Miami, que em 2006 recebeu o título de “programa de TV mais popular do mundo”. Um
estudo de audiência em 20 países estimou que 50 milhões de pessoas assistissem ao pro-
grama. No mesmo ano, um dos episódios teve como cenário o Rio de Janeiro. O objetivo da
pesquisa era o de revelar como o Brasil, tradicionalmente representado por meio de este-
reótipos, foi retratado na série. Samantha destaca que a preocupação com os estereótipos
na TV tem a ver com o resultado das apresentações, que pode incluir atitudes negativas do
público em relação a determinados grupos, dando força a estereótipos raciais e sexuais.
O artigo de Maria Luiza Cardinale Baptista, da Universidade de Caxias do Sul, adota um
conjunto de estratégias da cartografia para captar o sensível do real, o princípio da pai-
xão-pesquisa em Comunicação, a busca de ‘costura’ da trama entre os fenômenos ana-
lisados e o roteiro. Ela deixa claro que, longe de significar uma visão pueril ou um termo
carregado de ingenuidade, sem maior amadurecimento, para ela o ‘objeto paixão-pes-
quisa’ representa uma convicção: o sujeito só produz se deseja, se algo o mobiliza, o que
faz assim com que a paixão seja plena de dispositivos de mobilização.
Laura Robinson, da Universidade Santa Clara, na Califórnia, observa a construção de
categorias de identidade cosmopolita utilizadas para dar sentido às identidades das
vítimas do 11 de setembro. Sua referência são os estudos que mostram a importância
da internet como espaço de coleta de dados sobre narrativas de sofrimento (como em
Anderson, 2014). O capítulo segue essa tradição ao analisar as contribuições postadas
em fóruns oganizados por jornais emblemáticos no Brasil, na França e nos Estados
Unidos – O Estado de S. Paulo, Le Monde e The New York Times – na semana seguinte
aos ataques do atentado de 11 de setembro de 2001. Explora assim como os indivíduos
processaram uma identificação que criou categorias abrangentes de identidade a fim
de expressar solidariedade. A identidade cosmopolita apresentada no trabalho aponta

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Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos

para o potencial do trabalho inclusivo de identificação, no qual o sofrimento dos ou-


tros é sempre compartilhado.
O texto de Ada Machado da Silveira, da Universidade de Santa Maria (RS), sintetiza os re-
sultados de estudo maior sobre a discursividade na região denominada terras de frontei-
ra do Brasil Meridional. Ela demonstra que o território enquadrado historicamente como
faixa de fronteira e área de segurança nacional exibe uma riqueza discursiva que, em vez
de ter seu desenvolvimento comunicacional constrangido, estruturou-se em uma malha
de comunicação local-internacional cujas características permitem defini-la a partir da
característica de concerto polifônico.
O estudo desenvolvido por Monica Martinez, da Universidade de Sorocaba (SP), utiliza o
contexto das narrativas biográficas em jornalismo literário na análise de um mesmo perí-
odo da seção de obituários do jornal Folha de S. Paulo em comparação com os obituários
publicados no jornal The New York Times. A partir do perfil biográfico do morto, a au-
tora procura compreender o imaginário brasileiro e o americano e suas representações
sobre a morte a partir da ótica dos dois jornais de circulação nacional. O resultado suge-
re diferenças significativas nos obituários em cada diário, revelando visões diferenciadas
sobre a percepção e o relato de brasileiros e norte-americanos sobre a morte.
Fernando Oliveira Paulino, da Universidade de Brasília, assina com um grupo de orien-
tandos texto sobre a implantação da disciplina Comunicação Comunitária, em 2002 na
UnB, a fim de promover o desenvolvimento das comunidades em parceria com reedito-
res sociais. O grupo avaliado acredita que o desenvolvimento corresponde a liberdade,
pois indica um alargamento da possibilidade de as pessoas escolherem o estilo de vida
que lhes pareça válido. As ações do projeto foram avaliadas em encontros, em diários de
campo e em oficinas com participantes em sala de aula.
Finalmente, Clóvis Reis, da Universidade Regional de Blumenau, localiza no início das
transmissões digitais uma forma de revitalização do meio rádio no Brasil, que assim pode
ampliar sua perspectiva como mídia publicitária. Para o autor, o sistema digital aumenta
a área de cobertura, melhora a qualidade do áudio e propicia a oferta de produtos com
valor agregado. Com isso incorpora outros elementos à linguagem radiofônica e possi-
bilita o surgimento de formatos de anúncio derivados do telefone celular, da televisão e
da internet, criando espaços diferenciados para a inserção de publicidade e aumentando
oportunidades de negócios para emissoras, agências de publicidade e anunciantes.

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Evolução das Leis para
Radiodifusão, o Caso Brasileiro1
Sonia Virgínia Moreira
Universidade do Estado do Rio de Janeiro / INTERCOM

E
sta apresentação recupera alguns dados sobre o contexto das leis para a radio-
difusão no Brasil, tal como se apresentavam em janeiro de 2004, com ênfase no
rádio. É, em parte, resultado de estudos realizados para pesquisa de doutorado na
Universidade de São Paulo, que teve entre os objetivos identificar e registrar o estabele-
cimento e o avanço das leis e das tecnologias do rádio no Brasil e nos Estados Unidos e,
assim, fazer uma análise comparada do meio de comunicação nos dois países.
A apuração complementar empreendida para este texto mostra que no período de 40 anos,
entre 1963 e 2003, a legislação para o rádio e a televisão foi construída com base em expe-
dientes capengas, incompletos ou parciais, visando manter minimamente atualizados regras
e limites legais para a atuação desses meios no período de vigência das concessões. Uma lei
geral para o conjunto da mídia continua como projeto a ser executado. Antes, precisa antes
ser debatido pela sociedade e aprovado pelo Legislativo para então se transformar em Lei
com a sanção do Executivo, representado pela figura do Presidente da República.
No âmbito parlamentar, a Câmara Federal registra desde a década de 1980 o crescimento re-
gular da parcela de deputados proprietários ou controladores efetivos de emissoras de rádio e
de televisão. Destacam-se nesse grupo que tem participação na mídia regional os deputados
evangélicos. A maioria deles chegou ao Congresso pela exposição pessoal em programas de
rádio em emissoras controladas por denominações religiosas e em canais de televisão pró-
prios ou com horário arrendado. Independente de tendência ideológica ou crença religiosa,
esses parlamentares encontram-se na mesma situação explícita de conflito de interesses. Ain-
da assim, seguem aptos a participar da formulação de leis para a mídia nacional.
No domínio do Executivo, a bandeira defendida pelos atuais gestores federais durante
a campanha presidencial, de mudanças inéditas na espinha dorsal da gestão pública
do País, não corresponde à concepção governamental demonstrada no campo da co-
municação eletrônica durante o primeiro ano de governo de Luiz Inácio Lula da Silva.
O Ministério das Comunicações, por exemplo, manteve-se na quota dos arranjos polí-
tico-partidários com a indicação para o cargo do deputado federal Miro Teixeira, sem
partido na época. A característica do Ministério como um posto partidário foi reforçada
em 2004 com a substituição de Teixeira por outro deputado federal da base aliada do
governo: Eunício Oliveira, do PMDB. Próspero empresário do Nordeste, o ministro em-
possado no dia 23 de janeiro era oficialmente dono de três emissoras de rádio: duas
no estado do Ceará e uma em Goiás. Não foi o primeiro ministro a ter entre as suas
propriedades canais radiofônicos fiscalizados por órgãos do Ministério que passou a
coordenar, uma situação bizarra garantida em lei.

1 Artigo apresentado no I Colóquio Brasil-EUA de Ciências da Comunicação. Universidade do Texas em Austin, 2004.
Sonia Virgínia Moreira

Ainda em relação ao Executivo, em dezembro de 2003 o presidente da Agência Nacional


das Telecomunicações (Anatel), Luiz Guilherme Schymura, cujo mandado terminaria em
2005, foi substituído no cargo por Pedro Ziller Araújo. Este, por sua vez, foi transferido
da função de secretário de telecomunicações do Ministério para a Anatel com a tarefa de
adaptar o perfil da agência reguladora à ótica de gestão pretendida pelo Executivo para
o setor das telecomunicações. Materializou-se assim um precedente para a intervenção
federal nas funções da agência, apesar dela ter sido criada em 1997, no bojo da Lei Geral
das Telecomunicações, como órgão independente e de apoio ao Ministério das Comuni-
cações. Na concepção original, a Anatel foi constituída para ser responsável por estudos
de viabilidade, supervisão de operação dos canais de telecomunicações e execução das
políticas do Estado para o setor. E, no campo particular da radiodifusão, responder pela
fiscalização das concessões de rádio e de televisão.
Para entender 40 anos de desenvolvimento e o status, em dezembro de 2003, do quadro
legal existente para a radiodifusão brasileira é oportuno destacar o conjunto de eventos
que ajudam a contextualizar episódios que afetaram as leis para rádio e TV no Brasil. A
partir dessa espécie de “arco situacional” no tempo apresentamos algumas perspectivas
que se delineiam para o setor.

Breve Cronologia
Entre 1963 (utilizando como marco a instituição do Regulamento dos Serviços de Ra-
diodifusão) e 2003, com o anúncio pelo governo federal da adoção como critério para
distribuição de canais comunitários a localização das emissoras em um dos 600 muni-
cípios brasileiros atendidos pelo programa social Fome Zero, podem ser apontados os
seguintes elementos de uma linha do tempo que mostra a progressiva, e claudicante,
evolução das leis para a radiodifusão brasileira.

• A criação do ministério das Comunicações em 1967, que altera o Código Brasileiro de


Telecomunicações.
• Os textos legais do período militar (1964-1980), que adequaram a mídia eletrônica ao
projeto de segurança nacional. Ao mesmo tempo em que restringia direitos, como o
da livre informação, o regime militar incentivou o desenvolvimento da indústria do rá-
dio e da TV. Em 1973, o Plano Básico de Canais em FM abre espaço para as concessões
em freqüência modulada. Simultaneamente à distribuição dos canais em FM amplia-se
a capacidade industrial de produção de receptores e dissemina-se o uso da freqüência
modulada, com maior qualidade sonora mas de alcance restrito em relação ao AM.
• O lançamento em 1985 dos dois primeiros satélites brasileiros, Brasilsat A1 e A2, ini-
cia o movimento tecnológico que no campo da radiodifusão se materializa em dois
tipos de transmissão a partir de 1989: a instituição da primeira rede de rádio comer-
cial via satélite – BandSat AM, e a distribuição pela Radiobrás do programa oficial
Voz do Brasil, também por satélite. Alteram-se artigos do Regulamento dos Serviços
de Radiodifusão e do Código Brasileiro de Telecomunicações.
• A distribuição a políticos no governo José Sarney, entre 1987 e 1988, de 1.028 con-
cessões de canais de rádio de televisão, cerca de 35% dos canais em operação na
época. Nesse ponto, altera-se por completo a constituição da propriedade dos meios
eletrônicos. O desequilíbrio permanece desde então na área radiofônica, com es-
timativas indicando que, entre as emissoras AM e FM em operação – excluídas as

12
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos

educativas e culturais, 40% pertençam a políticos, 25% a seitas evangélicas, 20% à


Igreja Católica e 15% à iniciativa privada.
• A promulgação da Constituição Federal em 1988.
• O estabelecimento, em 1996, da licitação pública como instrumento para a obten-
ção de licenças para exploração de canais comerciais de rádio e TV.
• A aprovação pelo Congresso, em 1997, da Lei Geral das Telecomunicações, criando a
Anatel como a agência reguladora do setor.
• O lançamento em 1998 das primeiras emissoras “100%” Internet.
• A aprovação em 1999 da Lei de Radiodifusão Comunitária – o primeiro texto legal
completo e específico para o setor em quase quatro décadas.
• A aprovação em 2002 da emenda ao Artigo 222 da Constituição, que permite a par-
ticipação de capital estrangeiro na mídia.
• A instalação, também em 2002, do Conselho de Comunicação Social como órgão auxiliar
do Congresso e sem poder deliberativo formado por 13 membros representando empre-
sários, técnicos, jornalistas, radialistas, profissionais de cinema e vídeo e a sociedade civil.
• A introdução pelo Ministério das Comunicações, em 2003, de processo inédito para
a concessão de rádios comunitárias: prioridade nas autorizações para os municípios
incluídos no programa social Fome Zero. A intenção manifesta do Ministério foi que,
assim, haveria condições de universalizar a comunicação e contemplar regiões dis-
tantes sem acesso à informação. No mesmo ano em Guaribas, estado do Piauí, pro-
gramadores da única rádio FM da cidade (equipada pelo governo local e operando
sem autorização oficial), atuavam também como agentes do Fome Zero.

O Meio Rádio entre 2002 e 2003


Em 2003, o rádio se mantinha como o meio de comunicação mais acessível aos brasilei-
ros. Em pouco mais de 60 anos, o Brasil evoluiu de uma população essencialmente rural
em 1940 (64%) para predominantemente urbana em 2002 (81%), com as classes econô-
micas concentrando-se nas faixas C (38%) e D (23%) em 2002, ano em que o País atingiu
a marca de 176 milhões e 900 mil habitantes.
Em 2002, aparelhos de rádio estavam presentes em 41 milhões dos cerca de 49 milhões
de domicílios; 3.421 emissoras estavam no ar – das quais 1.649 AM, 1.529 FM comerciais
e 243 canais educativos, com 64% das emissoras concentrando-se nas regiões Sul e Su-
deste. Os dados mostram, ainda, que mais da metade (53%) dos ouvintes são do sexo
masculino, têm entre 20 e 39 anos (44%) e 37% pertencem à classe C (renda média de
4,9 salários mínimos por mês, equivalente a US$ 400.00), seguidos de 24% da classe D
(renda média de 2,8 salários mínimos por mês, cerca de US$ 240.00)2. Um arquétipo do
perfil do ouvinte brasileiro médio seria, então, o de um homem com cerca de 30 anos,
da classe C, morador de cidade da região Sudeste.
Os números relativos à renda média do ouvinte brasileiro explicam em boa medida a
baixa participação do rádio no total das verbas destinadas à publicidade nos meios de
comunicação, situada entre 4,5% e 5% dos US$ 3.6 bilhões investidos em 2002. Um
fosso expressivo se comparado com a televisão, que arrecadou no mesmo ano 58,7%
2 Números reunidos pelos anuários Midia Dados 2002 (São Paulo: Grupo de Midia) e Marplan 2002 (São Paulo: Instituto
Marplan de Pesquisas).

13
Sonia Virgínia Moreira

dos investimentos em publicidade. Para estimular a mudança no perfil do ouvinte pa-


drão, e em conseqüência incentivar o aumento no número de anunciantes, as emis-
soras de rádio comerciais passaram a investir, a partir de 2003, na ampliação de dois
tipos de redes: regionais e nacionais.
Para além do comercial, o rádio brasileiro apresenta hoje os seguintes tipos de uso, ainda
que não necessariamente nessa ordem: educativo, cultural, comunitário, religioso e políti-
co. Trata-se de um meio democrático, envolvente, rápido, barato, naturalmente interativo
e que desperta confiança. Por essas qualidades, interessa a qualquer segmento que tenha
como objetivo divulgar nomes, idéias, projetos, produtos e lugares. Reside aqui o significa-
do maior da avaliação contínua das regras que regem as transmissões, já que a evolução do
rádio depende de como as normas se estabelecem, a quem, para que e como podem servir.
Um exemplo: durante muitos anos, Presidentes têm usado programas de rádio como um
dos canais de comunicação direta com a população. A prática tem origem nos Estados
Unidos dos anos 1930, quando Franklin Roosevelt, com os seus Fireside Chats, conseguiu
atravessar os piores anos da recessão econômica iniciada em 1929 em estreito contato
com os ouvintes. Em tempos e lugares diferentes, o ritual se manteve também entre
chefes de estado brasileiros da segunda metade do século XX, como José Sarney, com
Conversa ao pé do rádio, e Fernando Henrique Cardoso, com Palavra do Presidente.
Seguindo esse modelo, em novembro de 2003 entrou no ar outra versão, o Café com o
Presidente, produção da Radiobrás retransmitida por 176 emissoras do sistema estatal
de rádio e de televisão. Nessa produção, o Presidente Lula é entrevistado pelo locutor
Luis Monteiro (que também é Lula no apelido).
A fé religiosa é outro exemplo de como o rádio transformou-se em canal privilegiado
para ampliar o alcance a multidões com aquele perfil do arquétipo do ouvinte brasileiro
desenhado pelas pesquisas de audiência. No dial das emissoras AM de capitais como
Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília, Belo Horizonte, Porto Alegre e Recife, predomina a
programação religiosa evangélica. O processo não é ilegal, está previsto na legislação
das telecomunicações em vigor, que permite que concessões públicas sejam negociadas
como propriedades particulares.
A iniciativa de moralizar o sistema de concessões de AM e FM por meio de licitações pú-
blicas, nas quais deveriam vencer os concorrentes mais capacitados técnica e financeira-
mente, dava sinais de estar ameaçada em 2003. Em junho, o Ministro das Comunicações
Miro Teixeira pediu ao Ministério Público para investigar grupos que poderiam estar
fraudando o procedimento, com empresas conseguindo ganhar licitação e, em seguida,
repassar a outorga com pelo menos 50% de lucro sobre o valor pago ao governo federal
ao vencer o processo de seleção. Em 2003, segundo o Ministério das Comunicações,
eram os seguintes os totais de canais vagos de rádio e TV no País: 4.741 FM, 472 AM,
3.159 de televisão e 2.672 canais de retransmissoras de TV.

A Conjuntura Exige Mudança


Apesar de prevista desde a metade da década de 1990, uma lei abrangente que con-
temple os meios digitais/eletrônicos não consegue avançar além da apresentação dos
textos-base, oficial ou oficiosa, e da etapa de consulta pública que se tornou comum no
endereço virtual do Ministério das Comunicações nos últimos sete anos. Assim aconte-
ceu com as propostas da Lei de Comunicação Eletrônica de Massa (1998) e da Lei dos
Serviços de Radiodifusão (2001). Ambas não avançaram além dos projetos.

14
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos

Quarenta anos depois da entrada em vigor do último texto exclusivo para o setor, a atu-
alização e adaptação das regras existentes traduzidas em capítulos de uma lei geral para
a radiodifusão, apesar de imprescindíveis mantêm-se indefinidas.
Entre os inúmeros e frequentes casos que confirmam a urgência para o aperfeiçoamento
legal são consideradas a seguir três circunstâncias distintas. Todas servem para definir
com exatidão em que pontos a existência de uma lei geral pode fazer diferença – se não
pela oportunidade, pelas consequências que podem gerar.

• Caso 1
A previsão: setores do empresariado da radiodifusão acreditam que a tecnologia do
rádio digital não deve demorar a ser implantada no Brasil. Existe interesse em melhorar
a qualidade da transmissão das emissoras, em especial as AM, maiores favorecidas com
a migração do padrão analógico. No caso da TV, a escolha de um padrão digital parece
mais próximo de um desfecho. A situação: caso aconteça em um futuro próximo, a
implantação do rádio digital poderá ocorrer no momento em que se define no Brasil
a participação estrangeira nos meios de comunicação. Os empresários estão abertos
tanto para a tecnologia quanto para os recursos externos, que aportam no Brasil no
momento em que as emissoras estão necessitando de implementos técnicos e finan-
ceiros. A questão: sem a disposição em lei da maneira como se dará a inauguração do
sistema digital, como ficarão a propriedade e o controle dos meios eletrônicos no Brasil?

• Caso 2
A previsão: projeto para regulamentar a regionalização da programação cultural, ar-
tística e jornalística nas emissoras de rádio e TV, uma proposta de emenda ao Artigo
221 da Constituição, tramita desde 1991 no Congresso. A pressão para que seja apro-
vada nova redação para o Artigo constitucional se intensificou em 2003, com apoio
inclusive do Ministério da Cultura. A situação: o processo de desconcentração da
economia brasileira torna cada vez mais forte o mercado regional. O Brasil passa por
um período de fortalecimento das unidades federativas, com os estados descobrindo
fontes de recursos naturais ou encontrando caminhos de consolidação regional. As
identidades dos “vários Brasis” apresentam-se renovadas, revigoradas e valorizadas.
A tendência da programação na mídia eletrônica é a de se adaptar ao novo cenário.
A questão: sem a disposição em lei das orientações a serem seguidas em relação à
produção e distribuição regional, como garantir que os canais de rádio e televisão
possam cumprir efetivamente a carga horária e a variação de conteúdo desejada?

• Caso 3
A previsão: em janeiro de 2004, o Ministério das Comunicações concedeu à Universi-
dade Federal de Minas Gerais o direito de ter a sua própria rádio. A portaria ministerial
autorizou um canal FM para uso exclusivamente educativo. A concessão só foi possível
porque a Universidade firmou um convênio com a Radiobrás, concessionária original,
para operar o canal. A situação: até então havia sido impossível à Universidade admi-
nistrar a sua própria rádio porque um artigo de lei promulgada em 1975 impede que
órgãos federais sejam concessionários diretos de serviços de radiodifusão. A questão:
durante quanto tempo ainda textos defasados de leis superadas continuarão a ser obs-
táculo para a evolução do rádio como instrumento socializador de informação, cultura e
educação? Ao impedir o acesso de instituições públicas de ensino superior às vantagens

15
Sonia Virgínia Moreira

de um meio simples, fácil, barato e com retorno certo, perdem a universidade e o públi-
co ao qual deveria ser devolvido o investimento pago na forma de impostos.

Esses são alguns dados recentes coletados na cobertura jornalística ocasional sobre te-
mas relativos às telecomunicações. O modo aleatório como o assunto chega ao público
é derivado do próprio tratamento dispensado à necessidade de revisão das leis no Brasil.
As considerações apresentadas neste texto levam à conclusão de que, no caso brasileiro,
a evolução das leis compreende desde a baixa consciência do eleitor sobre os atributos
essenciais a um bom legislador – que conduz ao Congresso representantes no mínimo
equivocados quanto ao significado do que seja assunto de interesse público – até a di-
ficuldade de acesso à informação pública. Em relação a este segundo ponto, apesar da
divulgação na site oficial do Ministério das Comunicações de um documento com cerca
de 500 páginas contendo a relação dos proprietários de emissoras de rádio e TV no Brasil
disponível no segundo semestre de 2003, ainda é muito difícil saber quem controla de
verdade a maioria dos canais em operação.

Referências
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ting, 29 de abril de 2003.
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Assessoria de Imprensa. Belo Horizonte, 20 de janeiro de 2004.
“GOVERNO oficializa concessão de 380 rádios ao Fome Zero”. Folha de S. Paulo, 8 de
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JUNGBLUT, Cristiane. “Estréia no rádio ‘Café com o presidente’”. O Globo, 15 de novem-
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sília: Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), outubro de 2003.
MATTOS, Laura. “Governo usa Fome Zero como critério para distribuir rádios”. Folha de
S. Paulo, 6 de outubro de 2003, p. A4.
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“MERCADO & Demografia”. Mídia Dados 2003. São Paulo: Grupo de Mídia, dezembro
de 2004.
“MIRO investiga fraude nas concessões de rádio”. Sintonia Total, Ano 1, nº 3, julho de
2003, p. 3.
MOREIRA, Sonia V. Rádio em Transição – tecnologias e leis nos Estados Unidos e no Bra-
sil. Rio de Janeiro: Mil Palavras, 2002.

16
Radiodifusão e Cultura do Consumo1
Mark Goodman
Universidade Estadual do Mississippi

A
NBC (National Broadcasting System, ou Sistema Nacional de Radiodifusão) domi-
nou a mídia norte-americana durante os primeiros 25 anos do rádio. Esta domi-
nação levou à criação de uma cultura do consumo, que promoveu os interesses
econômicos da NBC e ajudou a indústria radiofônica a se tornar uma indústria de milhões
de dólares. A cultura do consumo contribuiu para que a economia dos EUA se tornasse a
maior do mundo. O preço tem sido alto, pelo menos no senso de justiça do século XXI.
Aquecimento global e gases de efeito estufa, uma economia baseada na importação de
petróleo, e trilhões de dólares em dívida nacional são alguns dos efeitos colaterais de uma
economia direcionada ao consumo, abastecida pelo consumo de mídia. No Brasil de hoje,
o Império da TV Globo ainda tem uma influência mais forte sobre a sociedade brasileira do
que a NBC teve no passado nos Estados Unidos. O alcance da TV Globo é mundial.
Uma revisão na história da NBC mostra a relação entre a dominação midiática e a hegemo-
nia cultural, pelo menos no caso norte-americano. Uma avaliação do alcance cultural e eco-
nômico da TV Globo pode revelar domínio semelhante sobre a cultura brasileira hoje. Este
artigo irá rever a história da NBC e como ela ganhou hegemonia cultural. Ao comparar e
contrastar a história da NBC para o papel da TV Globo hoje no Brasil e no mundo, é possível
observar que, em relação à TV Globo, o impacto da corporação vai muito além da socieda-
de brasileira, desempenhando um papel na criação de uma cultura hegemônica mundial.

A História do Rádio e a Cultura do Consumo


O papel da radiodifusão na evolução da cultura do consumo em 1920 é tão evidente
que poucos estudiosos questionam a existência de uma relação. Na década de 1920, o
mercado do consumo adicionou uma vasta gama de novos produtos. Os anunciantes
nacionais e comerciantes utilizaram o rádio para atingir uma audiência massiva interes-
sada em máquinas de lavar, automóveis e cereais de flocos de milho. Há um pequeno
argumento de que o papel da radiodifusão no desenvolvimento da cultura de consumo
teria sido muito limitado se o Congresso norte-americano não tivesse aprovado a Lei
do Rádio de 1927. A Lei do Rádio deu à nova Comissão Federal do Radio (FRC) o poder
de impedir a interferência de sinal, e eventualmente, acabar com o caos nas ondas, re-
sultando em estações de radiodifusão com frequências específicas e potências determi-
nadas. Como resultado, anunciantes podiam comprar tempo na recém-criada rede de
rádios da NBC, sabendo que pessoas de costa a costa podiam ouvir os spots comerciais.
Os três principais arquitetos do rádio -- Herbert Hoover, Clarence Dill e Wallace White - apoia-
ram o modelo de rede da NBC. Hoover não queria que a Lei do Rádio tocasse na questão do
monopólio; ou seja, no poder da RCA, a empresa-mãe da NBC, que foi descrita por seus crí-

1 Artigo apresentado no III Colóquio Brasil-EUA de Ciências da Comunicação. New Orleans, 2008.
Mark Goodman

ticos como “The Radio Monopoly”, algo como a máfia do rádio. Em janeiro de 1926, Hoover
enviou uma carta ao presidente Calvin Coolidge firmando sua oposição à linguagem anti-
-monopólio contida no projeto de lei de Wallace White. Hoover advertiu Coolidge que a dis-
posição anti-monopólio provavelmente “devastaria” a RCA, se esta viesse a ser condenada
pela Justiça como um monopólio de rádio. Ao invés de o secretário do comércio lidar com as
questões de monopólio, Hoover aconselhou Coolidge, que tais questões deveriam ser deixa-
das nas mãos dos tribunais de justiça. [1] Dill acreditava que a publicidade e as redes criaram
o melhor entretenimento do mundo. [2] White disse ao congressista William R. Green que
ele areditava que a regulamentação da publicidade seria um tipo de censura. [3] Durante o
período em que White negociava com Dill sobre uma versão de discussão do projeto de lei,
White permaneceu em contato com líderes da indústria. William Brown, vice-presidente e
procurador-geral da RCA, marcou uma reunião em outubro entre David Sarnoff, presidente
da NBC, e White. [4] White também solicitou uma reunião com Lloyd Espenschied, do setor
de Desenvolvimento e Pesquisa da American Telephone and Telegraph Co. (AT&T), a Com-
panhia Americana de Telefones e Telégrafos, para discutir o impasse entre White e Dill sobre
a criação da comissão de rádio no comitê de discussão. [5] White explicou sua filosofia em
um discurso de campanha, “Estamos vivendo em uma época de grandes complexidades
na qual o Governo toca os negócios e o indivíduo de mil maneiras inimagináveis nos dias
antes de ontem”. Estas mudanças sociais, continuou White, exigiam regulação governamen-
tal. [6] Em última análise, o presidente Calvin Coolidge assinou uma lei da que ele não gosta-
va. [7] O clamor público em 1926 pela regulação quase não tocou no papel da publicidade.
A linguagem da Lei do Rádio não parece ter uma relação causa-efeito na condução a uma
cultura do consumo. No entanto, McChesney apontou que na década de 1930, a base eco-
nômica da radiodifusão foi construída em torno de dólares da publicidade e as outras esta-
ções de rádio foram tiradas do ar. [8] Smulyan argumenta que quando o rádio aceitou a pu-
blicidade, também aceitou certas suposições sobre a publicidade, estabelecendo, assim, um
movimento na forma e no conteúdo da radiodifusão. “A publicidade forçou o rádio a apelar
para a audiência de massa, ao invés do público (ainda que bastante grande) especializa-
do”, explica Smulyan. O papel da programação era conectar o conjunto de anúncios. [9] En-
tão, o quanto crucial foi a Lei do Rádio de 1927 no desenvolvimento da cultura do consumo?
O sociólogo Christopher Lasch, autor de A Cultura do Narcisismo, acredita que os anos 1920
foram uma década de mudança cultural importante. [10] A cultura americana no século 19 es-
tava baseada em uma sociedade cristã, rural e agrícola. Durante os anos 1920, a cultura ame-
ricana evoluiu para uma cultura urbana midiática centrada na ideologia do consumo. Estas
mudanças culturais eram, obviamente, econômico, sociais e políticas. No entanto, as mudan-
ças mais importantes foram ideológicas. Os valores do consumo tornaram-se a ideologia do-
minante da sociedade americana, substituindo os valores do individualismo e independência.
Além esclarecer o registro histórico, determinar o papel do rádio na cultura do consumo
tem duas reflexões contemporâneas. Primeiro, grande parte da Lei do Rádio foi incorpo-
rada à linguagem da Lei das Comunicações de 1934, e muito dessa lei foi incorporada
na Lei das Telecomunicações de 1996. Simplificando, os pressupostos escritos na Lei do
Rádio permanecem como a pedra angular da regulação da radiodifusão hoje. Segundo,
o modelo econômico do rádio primitivo, tal como adaptado em 1960 para a televi-
são, continua a ser a pedra angular da economia de radiodifusão, apesar desse modelo
estar submetido a um desafio significativo. As pessoas estão optando em não ouvir ou
assistir anúncios e preferindo pagar taxas de assinatura para a televisão a cabo, iPhones,
iTunes e Netflix. Quanto melhor entendermos as origens do modelo de publicidade,
melhor podemos compreender a presente evolução/revolução digital na comunicação.

18
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos

A Lei do Rádio de 1927


Na primavera de 1926, Wallace White introduziu uma lei que regulou a radiodifusão sono-
ra; [11] White havia apresenta o seu primeiro projeto de lei sobre rádio em 1919. [12] No ou-
tono de 1926, a rede de rádio NBC começou. O presidente da NBC, David Sarnoff precisava
que o projeto de White se tornasse lei para que o conceito de rede de rádio fosse viável. A
radiodifusão havia se tornado a Torre de Babel do ar. [13] Estações de rádio que tentavam
pagar as contas e amadores, que usavam do meio para se divertir, competiam pelas mes-
mas frequências e potência no espectro limitado de rádio AM. [14] Bensman estima que
eram 14.000 operadores de rádio amador em 1922. [15] Sarnoff queria transmitir um pro-
gramação que atraísse ouvintes. Ele forneceria aos anunciantes acesso a esses ouvintes por
uma taxa. Ao conectar estações de rádio pelas linhas telefônica da AT & T, Sarnoff poderia
fornecer aos anunciantes nacionais milhões de ouvintes. Nenhum dos planos da Sarnoff
funcionariam a menos que as pessoas pudessem encontrar e ouvir a programação. Por
isso, a RCA e David Sarnoff trabalharam de perto com Wallace White na elaboração do tex-
to para a Lei do Rádio, o que daria ao governo federal a autoridade para regular potência
e freqüência. [16] Na quarta discussão do rádio realizada em 1925, Sarnoff impressionou o
presidente Herbert Hoover com suas ideias, relata Lyons. “A alta estima que Hoover sem-
pre alimentou por Sarnoff data deste momento”, escreve Lyons. [17] É uma suposição justa
que White, secretário de comércio de Herbert Hoover, e Sarnoff colaboraram na redação
da Lei do Rádio. Clarence Dill interrompeu seus planos legais, mas não seus planos econô-
micos, ao propor que a atividade radiofônica fosse regulada pela Comissão Federal de Rá-
dio (FRC) e não pelo secretário de comércio, tal como proposto no projeto de lei de White.
O conceito de rede de rádio da NBC expandiu o alcance de anunciantes, mas a publici-
dade já fazia parte das finanças da maioria das estações de rádio em 1927. Bensman cita
um relatório do governo que indica 70% das estações tinha alguma publicidade. [18]

A Cultura do Consumo e a Lei do Rádio de 1927


A Lei do Rádio de 1927 não criou a cultura do consumo, mas seções da Lei do Rádio in-
fluenciaram como a cultura do consumo evoluiu. Meu argumento é que os conceitos de
“liberdade de expressão” na Lei do Rádio, o critério de interesse público, conveniência, e
a necessidade, criaram um quadro para que a cultura do consumo florescesse.
A seção 29 (p. 1123) [19] garantiu às emissoras liberdade de expressão. A frase seguinte proíbe
especificamente emissoras de usarem linguagem indecente. As seções 4 (p. 1163), seção 9 (p.
1166), seção 11 (p. 1167), e seção 21 (p. 1170) exigiam que todos os radiodifusores, operas-
sem tanto para o interesse público quanto conforme o interesse, conveniência e necessidade
pública. Os termos não são definidos, mas o debate dos congressistas deixa claro que o
Congresso não queria transformar licenças de rádio em uma plataforma para o poder políti-
co [20] ou como um fórum controlado pela RCA – a Máfia do Rádio. [21] O termo liberdade de
expressão realmente significava liberdade da programação governamental. O governo fede-
ral não iria ditar a programação para as empresas de radiodifusão, exceto em uma emergên-
cia nacional. No entanto, o governo, através do FRC iria monitorar e regular radiodifusão. [22]
O efeito do termo interesse público foi para mobilizar as empresas de radiodifusão para
um formato de entretenimento e publicidade. Entretenimento se encaixa na definição de
interesse público se uma estação inclui notícias suficientes e programação religiosa para
servir os valores da comunidade da época. No entanto, fornecer programação criou um pro-
blema. Como Barnouw argumentou, as emissoras independentes levantaram rapidamente

19
Mark Goodman

a problemática sobre como gerar programação o suficiente para ficar no ar 24 horas por
dia, sete dias por semana, 365 dias por ano. [23] A NBC ofereceu uma solução por meio
da oferta de programas de alta qualidade. A FRC apoiou o modelo NBC. O FRC licenciou
emissoras que poderiam fornecer uma gama completa de programação e queria tirar as li-
cenças dos amadores e das pequenas empresas de radiodifusão. [24] A maneira mais fácil de
resolver as demandas de programação era se tornar um afiliado ou da NBC ou CBS, fundada
em 1928. As redes forneciam toda ou a maior parte da programação diária e pagava as difu-
soras pela execução de seus programas. Além disso, as redes dividiam o tempo de publicida-
de com as estações locais. Uma afiliada poderia ser paga pela rede pela execução da sua pro-
gramação, e gerar receita com a venda de publicidade. Em suma, um proprietário de estação
poderia deixar os dólares entrarem na estação. Ou, a estação independente poderia criar
seus próprios e dispendiosos programas e vender anúncios locais por menos dinheiro, visto
que poucas estariam ouvindo. A maioria dos donos de rádio seguiram os dólares das redes.
Como McChesney argumenta de forma eficaz, o FRC determinou que o interesse público era
melhor atendido pelas principais corporações de rádio. [25] Messere alega que a RCA estava
no comando do rádio após a aprovação da Lei do Rádio, e usou sua influência para promover
os seus objetivos econômicos. “[Os] membros do trust de rádio mantinham as estações de
rádio mais potentes, desenvolveram a cadeira da radiodifusão, e tinham o conhecimento de
engenharia para melhorar estas estações rápida e dramaticamente. A RCA se opôs às polí-
ticas de constituição e redistribuição que desfavoreciam as grandes estações e sua rede de
rádios.” [26] Como efeito, o critério do interesse público deixou as decisões da programação
para as redes, que revogaram essa responsabilidade para os anunciantes. Os anunciantes
não queriam associar seus nomes e seus produtos com a programação controversa. Em vez
disso, preferiram associar os seus nomes e produtos com a ideologia da classe média branca.
A ideologia apresentada pelas redes e até mesmo pelas estações independentes dependia
de receitas de publicidade que apresentassem valores coerentes com a cultura do con-
sumidor. Produtos poderiam ser comprados para resolver qualquer problema enfrentado
por um indivíduo. O entretenimento apresentava o problema como uma oposição biná-
ria, e os anúncios ofereceram as soluções ideologicamente corretas.
Finalmente, o papel do FRC contribuiu para o desenvolvimento de uma cultura do consu-
mo. O FRC foi designado para determinar o interesse público, conveniência e necessidade, um
conceito que Congresso deixou para o FRC definir. O primeiro conjunto de comissários do FRC
foram nomeados por Hoover e comissários posteriores pelo Congresso. O FRC era a comissão
de irmãos mais velhos a quem as emissoras tinham que responder.
O Congresso esperava que o FRC mantivesse vozes políticas radicais fora do ar. [27] O
Congresso não queria que evolução fosse discutida. [28] Obscenidade não deveria ser
permitida. [29] O Congresso não queria que rádio fosse usado como uma base de poder
para uma figura política. [30] O Congresso espera que o FRC usasse seu poder para servir
as necessidades de defesa da nação, para governar o rádio em momentos de emergên-
cia, e para educar o público sobre questões de interesse nacional. Em todas as situações,
sob o olhar vigilante do FRC, o rádio poderia ser usado para o entretenimento e para fins
publicitários, como já era utilizado.

A Cultura do Consumo
A década de definição da cultura do consumo foi a década de 1920. Vários fatores se
uniram para criar uma nova ordem social.

20
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos

1. Durante a Primeira Guerra Mundial, a capacidade industrial americana cresceu


de forma significativa para atender às demandas militares. Após a guerra, o au-
mento da capacidade de produção foi reorientada para a produção de produtos
de consumo.
2. A eletrificação das cidades americanas significava que os novos produtos de
consumo utilizavam energia elétrica, em vez de força muscular.
3. Pela primeira vez na história, mais americanos viviam em cidades do que em
áreas rurais.
4. Pela primeira vez na história, mais americanos trabalhavam em fábricas ou no
comércio do que na agricultura.
5. Milhões de imigrantes vieram para os Estados Unidos entre 1880 e 1930. Esses
imigrantes já não eram da Inglaterra e da França. Muitos eram católicos ou judeus
da Europa Oriental. Muitos escaparam de conflitos políticos na Europa, introdu-
zindo socialismo, comunismo e ideologias políticas radicais na cultura americana.
6. O estilo do cinema de Hollywood surgiu na década de 1920. Filmes apresenta-
vam o estilo de vida da classe média e dos ricos, gerando uma demanda entre os
cinéfilos por um melhor estilo de vida.
7. O rádio tornou possível criar campanhas de publicidade e marketing nacionais,
que poderiam atingir a maioria dos americanos quase simultaneamente.
8. Em termos simples, jazz, automóveis e Prohibition criaram um novo conjunto
de práticas culturais. Mais liberdade sexual, novos papéis econômicos e sociais
para as mulheres, e aumento de oportunidades para os afro-americanos amea-
çaram os valores tradicionais da América branca, anglófona e puritana.

Assim como a cultura do consumo tornou-se dominante em 1920, foi atrasada pela
Grande Depressão e depois da Segunda Guerra Mundial. A mudança cultural se tornou
uma revolução cultural de direito-pleno depois de 1945. A capacidade industrial criada
durante a Segunda Guerra Mundial despejava automóveis, geladeiras, máquinas de la-
var, e novas casas para veteranos voltando para os Estados Unidos com sua remuneração
militar. Suas novas esposas tinham salários significativos na economia de guerra, boa
parte disso devido ao racionamento em tempo de guerra. A televisão se tornou o princi-
pal meio na cultura americana em 1960, apresentando o estilo de vida de classe média
para milhões da noite para o dia. Para Lasch, o impacto cultural foi devastador. Lasch
descreve a cultura americana de 1970 da seguinte forma: “Desde que ‘a sociedade’ não
tenha futuro, faz sentido viver apenas para o momento e fixar nossos olhos no nosso
próprio ‘desempenho privado’, a fim de nos tornarmos conhecedores da nossa decadên-
cia, rumo à cultura da ‘auto-atenção transcendental’”. [31]
A cultura do narcisismo está baseada sobre a premissa de que todos os problemas pes-
soais podem ser resolvidos com a compra do produto correto. No entanto, quando o
creme para o rosto deixa de fazê-lo, o indivíduo tem que passar para o próximo produto,
e o próximo, e o próximo. Períodos momentâneos de satisfação do produto e felicidade
são seguidos por decepção, iniciando uma outra seqüência de procura-e-compra. Citan-
do Lasch: “O consumo promete preencher o vazio doloroso; daí a tentativa de cercar os
produtos com uma aura de romance, com alusões aos lugares exóticos e experiências vívi-
das; e com imagens de seios femininos a partir da qual todas as bênçãos fluem”(p. 72). “A

21
Mark Goodman

vida se apresenta como uma sucessão de imagens ou sinais eletrônicos, de impressões re-
gistradas e reproduzidas por meio de fotografia, filmes, televisão e dispositivos de grava-
ção sofisticados . A vida moderna é tão completamente mediada por imagens eletrônicas
que não podemos ajudar a responder aos outros como e se suas ações - e nossas próprias
- foram sendo gravadas e transmitidas simultaneamente para uma audiência invisível ou
guardados para um exame minucioso em algum momento futuro “(p. 47).
A sociedade está organizada em torno do consumo direcionado ao id (p. 177-178), expli-
ca Lasch. “À primeira vista, uma sociedade baseada no consumo de massa parece enco-
rajar a auto-indulgência em suas formas mais flagrantes. Considerada estritamente, no
entanto, a propaganda moderna busca promover nem tanto auto-indulgência quanto
auto- dúvida. Procura criar necessidades, para não preenche-las; gerar novas ansiedades
ao invés de dissipar as antigas” (p. 180). Em conclusão, “... nossa sociedade torna mais
e mais difícil encontrar satisfação no amor e trabalho, envolvendo o indivíduo com fan-
tasias manufaturadas de total gratificação” (p. 231).

Discussão
A Lei do Rádio de 1927 pôs fim ao caos técnico. Em seu lugar, a nova lei criou uma ma-
neira ideal para a publicidade de massa de produtos de consumo, tudo o que a nova
rede de rádio NBC precisava para ser bem sucedida. Usando o interesse público, conve-
niência e critério de necessidade, o FRC forneceu as licenças de rádio para as grandes
corporações para lucrassem, na melhor posição, com uma economia do consumo. Estas
corporações utilizaram seu acesso aos meios de comunicação para ensinar uma nova
ideologia dominante com base no consumo. A cultura de consumo ofereceu felicidade
às pessoas e refletiu glorificação por meio da compra de seu caminho como o novo estilo
de vida. Nós poderíamos nos tornar importantes com base no que nós possuímos e no
quanto parecemos ricos e glamurosos.
O que os meios de comunicação oferecem para suas audiências? American Idol é o nú-
mero um nos índices de público. As redes nos inundam com reality shows. As redes de
notícias são construídas a partir do entretenimento: Entertainment Tonight, Nancy Grace,
Larry King, Sean Hannity e Bill O’Reilly. Um programa a cabo e canal após o outro ofe-
recem o estilo de vida do consumidor: Travel Channel, QVC,Extreme Makeover, Food Ne-
twork, HGTV. Nós podemos assistir durante todo o dia golfe, futebol, esportes; podemos
sintonizar todos os dias história, animais, ou filmes. Toda essa programação está disponível
para nós porque alguém acredita que esses programas podem nos vender alguma coisa.

Notas
1. Herbert Hoover, Secretary of Commerce, to Everett Sanders, Secretary to the Pre-
sident, 1 February 1926. Box 490; Folder--Radio: Radio Correspondence, Press Re-
leases, Misc., 1926 Jan-April. Herbert Hoover papers, Herbert Hoover Library, West
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Law Book Co, p. 116. Dill went on to argue that the networks did more to control
programming than the FCC, p. 117.
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22
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos

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9. Susan Smulyan, 1994. Selling Radio: The Commercialization of American Broadcas-
ting, 1920-1934. Washington: Smithsonian Institution Press. P. 8-9.
10. Christopher Lasch, 1979. The Culture of Narcissism: American Life in An Age of Dimi-
nishing Expectations. New York: W.W. Norton & Company.
11. Congressional Record, 69th Congress, Session II, p. 1162.
12. Wallace White Papers, File 50, Radio Legislation folder, Library of Congress.
13. In the words of the New York Times, the radio signal almost anywhere on the dial
sounded like “the whistle of the peanut stand.” New York Times, 7 November 1926,
sec. xx, 18:1.
14. See Clifford J. Doerksen, 2005. American Babel: Rogue Radio Broadcasters of the
Jazz Age. Philadelphia: Penn State University Press.
15. Marvin R. Bensman, 2000. The Beginning of Broadcast Regulation in the Twentieth
Century. Jefferson, NC: McFarland & Co., p. 40.
16. Mark Goodman and Mark Gring, 2000. “The Ideological Fight Over the Creation of
the Federal Radio Commission in 1927.” Journalism History, 26(3): 120.
17. Eugene Lyons, 1966. David Sarnoff. New York: Harper & Row, p. 118.
18. Bensman, p. 153.
19. All page numbers in this section refer to Congressional Record, 69th Congress, Session II.
20. Congressional Record, 69th Congress, Session II, p. 4155, 12356, 12358, 12502-3,
5557.
21. Congressional Record, 69th Congress, Session II, p. 5480-5502, 5558, 5484, 2575.
22. For more on this point, see these articles. Donald G. Godfrey, “Senator Dill and the
1927 Radio Act,” Journal of Broadcasting, 23 (4 1979): 478. Louise Benjamin, “Working
It Out Together: Radio Policy From Hoover to the Radio Act of 1927,” Journal of Bro-
adcasting & Electronic Media, 42(2), (Spring 1998): 233. Donald G. Godfrey, “A Rhe-
torical Analysis of the Congressional Debates on Broadcast Regulation in the United
States, 1927” (Ph.D. Diss, University of Washington, 1975), 33. Frederick W. Ford, “The
Meaning of Public Interest, Convenience, or Necessity,” Journal of Broadcasting, 5
(Summer 1961): 207.
23. Erik Barnouw, 1966. A Tower of Babel: A History of Broadcasting in the United States,
Volume 1--to 1933, p. 126-128.

23
Mark Goodman

24. See McChesney for a full discussion of this point.


25. McChesney, p. 26-29.
26. Fritz Messere, 2005. “External Pressures in Policy Making,” in Transmitting the Past:
Historical and Cultural Perspectives on Broadcasting, Emmett Winn and Susan L.
Brinson (Eds.). Tuscaloosa: University of Alabama Press, p. 55.
27. Congressional Record, 69th Congress, Session II, p.12502.
28. Congressional Record, 69th Congress, Session II, p. 12508-9.
29. Congressional Record, 69th Congress, Session II, p. 2567.
30. Congressional Record, 69th Congress, Session II, p.12502, 12358, 5483.
31. Christopher Lasch, p. 6.

24
O Jornalismo como Território:
Hiperlocalismo e o Pertencimento
Comunitário1
Maria José Baldessar, Pedro Vieira Dellagnelo e Giovanni Letti
Universidade Federal de Santa Catarina

C
omo a internet e, nela o jornalismo on-line e todas as suas possibilidades, podem con-
tribuir para o estreitamento de laços comunitários e o estabelecimento de uma nova
agenda pública comunicacional, baseada na oferta de informações hiperlocais e de
interesse de públicos específicos? Essa talvez seja uma das grandes questões a serem enfren-
tadas por pesquisadores da área de comunicação. As experiências de jornalismo hiperlocal –
seja via redes sociais como o twitter, ou através de sites que privilegiam determinado espaço
geográfico – bairro, região e mesmo uma rua, são exitosas e estão tendo a capacidade de
desafiar os filtros editorias e econômicos das corporações de comunicação – a comprovação
dessa capilaridade está na criação de espaços idênticos dentro dessas corporações.
Apontada por muitos como a causadora da crise de audiência dos jornais impressos, a
internet tem demonstrado que não causou tal crise, e se apresenta como uma das alterna-
tivas viáveis para a recuperação da confiança do público. Ninguém discute o poder da rede
como repositório e disseminadora de informações, no entanto, muitos ainda se surpreen-
dem com a capacidade dela em resolver velhas questões, como o contato e as possibilida-
des de empatia com as audiências. Global e sem limites geográficos – tal como preconizou
McLuhan, a rede mostra que o localismo, e mesmo o hiperlocalismo, tem ressonância
no mundo informativo. A velha máxima “minha casa é o meu mundo” se materializa em
experiências exitosas como a do Texas Tribune e Patch.com, discutidas mais adiante, e se
apresenta como alternativa para o jornalismo recuperar sua audiência e a confiança.
A participação dos usuários é um componente fundamental da internet desde sua cria-
ção. A interação entre militares na ARPANET-5 dos anos 1960 evoluiu para trocas de
informações acadêmicas nos anos 1980 e na metade da década seguinte se difundiu
entre o público civil com a criação de interfaces gráficas e a popularização de fóruns e
do uso do e-mail e, mais tarde com a criação das redes sociais (Facebook, Orkut, Twitter
e outras) e todo o ferramental agregado às mesmas.
Contudo, quando tratamos da participação do público na cadeia de produção jornalística,
não se trata apenas da adoção de novas tecnologias ou dos desafios de promover a in-
clusão digital. É preciso observar esse processo como um fenômeno mais amplo, no qual
as massas de audiência passivas da televisão e do jornal se propõem a produzir e mediar
o conteúdo que recebem. Lemos (2006) observa que essas mudanças tecnológicas, assim
como as outras tantas pelas quais o jornalismo já passou, podem ser vistas como um sis-
tema cíclico de reorganização das relações entre as forças atuantes do mercado. De fato,
Bowman e Willis (2008), argumentam que o surgimento do telégrafo já foi considerado
1 Artigo apresentado no V Colóquio Brasil-EUA de Ciências da Comunicação. Chicago, 2012.
Maria José Baldessar, Pedro Vieira Dellagnello, Giovanni Letti

um concorrente que determinaria o fim do jornalismo há mais de cem anos. Mais recen-
temente, Ashford (1991) recorda que na metade do século passado, a televisão, com som
e imagem associados, também foi apontada como precursora do fim do jornal diário im-
presso. Apesar do alarmismo da época, os jornais sobreviveram a essas mortes anunciadas.
Mas não saíram ilesos, ou pelo menos iguais ao que eram antes, ao final desses processos.
Podemos pensar o jornalismo como um território, um espaço simbólico institucionalizado,
onde existe um conjunto de regras, costumes e um senso de ética que regem a convivência
dentro dele. As bases históricas desse território estão nos métodos de produção e transmis-
são de informações que evoluíram conforme e/ou apesar do desenvolvimento tecnológico.
Esse espaço é, também, um palco onde diferentes agentes compartilham interesses e deter-
minam suas condutas a partir do que percebem como suas funções e objetivos. Com o tempo
e o desenvolvimento de relações de poder, cria-se certo equilíbrio entre as forças atuantes ali.
A estabilidade desse território, porém, pode ser abalada com a entrada de novos fatores
(ou forças), tais como a concentração de poder ou a evolução de tecnologias da infor-
mação. Nesses momentos, novas possibilidades de atuação se materializam para insti-
tuições e indivíduos, criando oportunidades de revisão e re-mediação das relações de
poder. Quando essa situação ocorre, as novas circunstâncias tecnológicas impulsionam a
renovação de processos, hábitos e praticas dentro de contextos estabelecidos, podendo
alterar a função, os objetivos e a atuação em certos campos. A mudança acaba tendo
reflexo, ultimamente, nos produtos desse território, no caso os jornalísticos.
Para Belochio (2009) as alterações nos campos são rupturas nas relações estabelecidas
que, uma vez consolidadas, dão espaço a uma reorganização das relações entre os agentes
desse território. Ao fenômeno cíclico de quebras e reparações em um determinado campo,
Lemos (2006) dá o nome de des-re-territorialização. A ideia de uma audiência que aceita
o poder e os sentidos enviados pelo emissor passivamente, como no modelo clássico de
Shannon e Weaver (1963), já está ultrapassada na área dos estudos de comunicação. Hall,
como principal expoente dos estudos culturais da década de 1980, percebia a importância
do processo de recepção na comunicação e a complexidade de sua configuração. No caso
do jornalismo on-line, devemos ponderar o que leva então essa audiência complexa, que
se coloca como receptora e ao mesmo tempo produtora de conteúdo e significados, a
buscar um papel ativo na construção das informações na internet.
A estrutura social on-line se configurou de maneira diferente da relação polarizada emis-
sor-receptor, onde relações de poder eram muitos presentes. De fato, Brambilla (2005)
observa uma rede de conexões em espiral, onde cada usuário é um nó, atuando tanto
como receptor e emissor. Diversos fatores possibilitaram essa organização, entre eles o
barateamento e difusão dos sistemas de produção de conteúdo e de “pólos de edição”
seja pelo acesso mais comum à banda larga ou pelo uso de dispositivos móveis (BELO-
CHIO, 2009). Para Brambilla (2005), é o desenvolvimento dessas tecnologias da informa-
ção (TI) que interligam, e possibilitam novas conexões, entre esses nós da rede.
Nessa nova configuração social, talvez mais igualitária, o usuário pode se sentir mais
confortável e incentivado a participar ativamente da confecção e transmissão de infor-
mações. Existem, também, outras motivações que levam à interação na rede, alem da
mera possibilidade de agir e, uma delas, é o foco dessas redes e suas relações com o
local – preocupação primeira da audiência.
A definição desse local, porém, pode variar. Sobre o fenômeno chamado de glocalização,
autores como Robertson (1992) argumentam que as possibilidades de comunicação aber-

26
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos

tas pela internet permitem que pessoas com interesses específicos se conectem em escala
global e construam laços comunitários tão fortes quanto os locais, de vizinhança. Esses inte-
resses podem ser diversos. Mitchell (2009) dá o exemplo de grupos de imigrantes ligados ao
noticiário de seu país, onde os valores e informações compartilhados são definidos pelo local
nacional, mesmo que a quilômetros de distância. Existem ainda locais definidos, por exem-
plo, por uma torcida de futebol que, apesar de espalhada pelo mundo, cria um senso de
comunidade e consome as mesmas informações e questionamentos de quem mora ao lado
do estádio. Também há comunidades que requerem conhecimento prévio, como as cientí-
ficas, limitando sua difusão e estreitando seus laços (BURNS, SAUNDERS e WILSON, 2008).
Podemos, ainda, pensar os locais como os territórios descritos anteriormente por Belo-
chio (2009), ou seja, espaços institucionalizados onde se estabelecem laços e relações de
poder entre os participantes e existe um compartilhamento de ética, regras e costumes.
Quando um jornal foca esforços de cobertura em uma determinada comunidade local,
seja ela geográfica ou não, assume uma posição de relevância dentro desse território.
A partir do conhecimento prévio da área em que quer se especializar, o foco em deter-
minados locais nada mais é que a segmentação dos veículos, conclamada como uma
possível alternativa para o jornalismo em rede.
Para que se insira na comunidade é necessário contar com o apoio dela, isto é, da acei-
tação e participação dos seus membros. A utilização da força da massa (ou crowdsour-
cing) é não só um recurso estratégico, mas também uma necessidade para cobrir todas
as nuances das relações estabelecidas naquele local. Essa configuração de organização
jornalística, com foco estreito e participação do usuário, tem sido classificada sob a de-
finição vaga de hiperlocal. A categoria é atualmente utilizada para descrever qualquer
forma híbrida de jornalismo cidadão, comunitário ou alternativo, quando combinados
com recursos interativos, da Web 2.06, e/ou alguma orientação comunitária. Muito do
suposto potencial das mídias hiperlocais e sua projeção como o futuro da mídia deve-se
ao fato de que o termo representa muitos conceitos, adequados a muitas situações.
Um estudo de Metzgar, Kurpius e Rowley (2009), preparado para a divisão de jornalismo
no congresso de 2010 da International Communication Association, busca exatamente
definir um ponto de partida para a análise da hiperlocalidade. São mídias que promovem
o engajamento comunitário – seja pela participação na geração de conteúdo ou pelo
ativismo subsidiado pelas matérias – e também buscam a “energia” e suporte financeiro
necessários na própria comunidade. Na tentativa de estabelecer fronteiras, enumeram-
-se seis premissas: 1) as mídias hiperlocais têm bases geográficas, 2) orientação para a
comunidade, 3) produzem notícias originais, 4) são nativas da internet, 5) pretendem
preencher lacunas percebidas na cobertura de um assunto ou região ou, ainda, 6) pro-
mover o engajamento cidadão. Mesmo situadas dentre essas categorias, muitas organi-
zações podem ser enquadradas em diferentes níveis dessas seis categorias, dependendo
da estratégia adotada pelos seus gestores. O estudo conclui que o hiperlocalismo não
existe como um ponto fixo em nenhuma escala. É um composto de medidas em diferen-
tes parâmetros como a geografia e o engajamento cívico.
O desafio é determinar o papel, o escopo, e a missão desses portais. O papel se refere a
preencher a lacuna deixada pelas mudanças na mídia tradicional e na organização comu-
nitária. O escopo pode ser definido pelas necessidades da comunidade local e pelo desen-
volvimento das tecnologias que as tornam possíveis. A missão deve estar conectada com o
desenvolvimento de ferramentas que promovam a governança democrática, seja pela par-
ticipação dos cidadãos no processo de produção de notícias ou pelo engajamento cívico

27
Maria José Baldessar, Pedro Vieira Dellagnello, Giovanni Letti

resultante desse processo. Outro aspecto importante a se ponderado é o grau de conexão


que a organização tem para/com sua comunidade (METZGAR, KURPIUS E ROWLEY, 2009)
O desenvolvimento desse tipo de jornalismo delimitado e mantido pela comunidade remete
a conceitos como o de jornalismo cívico, comunitário e/ou participativo. A falta de, e busca
por, um modelo de negócios de jornalismo essencialmente ligado ao noticiário local não é,
em si, novidade. Castilho (2009) nota que a evolução das tecnologias de informação permitiu
e estimulou a globalização informativa a partir dos anos 1970. Com a possibilidade de cober-
tura ampliada, grandes corporações de mídia surgiram via fusões ou com a criação de novas
organizações. Já antes, nos anos 1950, a polarização mundial entre os Estados Unidos e a
União Soviética conferiu ao noticiário internacional grande interesse e importância. Além da
união de conteúdo atrativo e possibilidades tecnológicas, a partir dos anos 1980 houve ainda
um barateamento da cobertura internacional, fruto da produção de grandes agências globais
de notícias. A audiência, e consequentemente os anunciantes, se concentraram nos grandes
meios, que incorporaram as estações locais como meros retransmissores.
Mas o modelo de grandes jornais e emissoras generalistas se esgotou nas últimas décadas,
devido a uma maior oferta de informações e a crescente segmentação do mercado, entre ou-
tros. Isso não significa, contudo, que as iniciativas locais desapareceram durante esse período.
Pequenos jornais impressos comunitários tiveram grande difusão, com pequenas (ou nem
tanto) equipes jornalísticas que cobriam os temas relevantes para o local. Dornelles (2004)
realizou uma pesquisa sobre os jornais comunitários no Rio Grande do Sul (Brasil). Apesar de
cada veículo possuir características próprias, alguns traços gerais puderam ser identificados.
Primeiramente os leitores e assinantes se consideravam “sócios” dos jornais, isto é, viam como
um parceiro para denunciar e resolver os problemas da comunidade. Também se enfureciam
quando o conteúdo da reportagem os criticava ou prejudicava de alguma forma.
O sentimento de “parceria” pode ser visto como um ponto do jornalismo cívico, que
prega e promove o ativismo cidadão e se posiciona como um instrumento dos usuários
em favor de uma causa. Mas também evidencia que uma das principais críticas a esse
movimento, enfatizada por Wolper (2003), o posicionamento da mídia, seja em favor
de quem for, não é capaz de ser positivo, porque qualquer alteração nos critérios de
noticiabilidade dentro da redação acaba fatalmente por favorecer algum grupo social. E
esse grupo é, geralmente, quem controla o financiamento da atividade de reportagem.
Outra característica marcante, no que diz respeito aos leitores, é o uso do jornal local
como complemento aos noticiários regional e nacional. Não se espera que o veículo faça
a cobertura, por exemplo, de questões internacionais, já que essa oferta é suprida por
outros produtos. A ausência de materiais não-locais, seja por apuração própria ou vinda
de agências de notícias, por um lado reduz os custos dos jornais e por outro promove
um senso de conexão com a comunidade necessária às organizações. Essa separação de
responsabilidades de cobertura é uma das faces do jornalismo comunitário.
Por fim, a tendência entre os jornais pesquisados foi a falta de uma separação clara
entre jornalistas e audiência no processo de produção de notícia. Apesar do trabalho
de apuração ser conduzido essencialmente pelos “empregados” do jornal, muito da
agenda do veículo era pautada por contribuições dos leitores. Essa situação é uma ca-
racterística marcante do jornalismo participativo. Porém, como no caso da pesquisa de
Corrêa e Madureira (2010), a contribuição não chega ao nível de jornalismo cidadão e
muitos dos conteúdos gerados pelos usuários (User Generated Content - UGC, na sigla
em inglês) eram meros flagrantes de realidade e materiais de divulgação, e não produ-
tos jornalísticos propriamente ditos.

28
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos

Uma revisão estratégica dos grandes jornais, a partir da metade da década de 2000, levou-
-os a apostarem novamente no mercado local, preocupados com a perda desse mercado
para a internet (CASTILHO, 2009). Porém, os estudos, e as iniciativas de mercado mais re-
centes têm apresentado o hiperlocalismo como uma prática nova que, apesar de ter muitas
raízes e características em comum, é independente destes conceitos. Diferentemente do
jornalismo cívico, não há um posicionamento claro dos meios em favor de causas comuni-
tárias. Os meios hiperlocais incentivam a participação do usuário, mas de forma separada
do conteúdo profissional, ou muitas vezes convocam os jornalistas/leitores para trabalhos
de freelancer remunerados, o que afasta esses meios de um ideal de jornalismo cidadão.

Patch.com e Texas Tribune


As características do hiperlocalismo não são claras no campo teórico justamente porque
as aplicações e usos no mercado são múltiplos. Para compreender melhor esse movimento
é preciso avaliá-lo em exemplos reais. Tomaremos então dois casos observáveis, que, ape-
sar de estarem reunidos sob um mesmo nome – e se autoproclamarem hiperlocais – têm
esforços e visões bastante distintos. O primeiro é o Patch.com, iniciativa lançada em 2007,
logo adquirida pela AOL e comandada por Tim Armstrong, vice-presidente do Google. A
AOL já anunciou investimentos de US$50 milhões na organização em 2010 e planeja aten-
der cerca de 500 localidades ainda nesse ano. A idéia do Patch é ter um editor em cada
pequena comunidade, responsável por agregar conteúdos, controlar as pautas e o orça-
mento da filial. Cada localidade tem a disposição, ainda, um orçamento para remunerar
reportagens e fotografias produzidas por freelancers. Embora o Patch não divulgue nú-
meros, especula-se que cada editor possua de US$500 a US$10007 por mês para esse fim.
Existem, porém, críticas ao modelo de negócio do Patch. Alguns jornalistas como Rothman
(2010) e Kennedy (2010) publicaram matérias em que analisam a organização como uma
espécie de ‘McDonalds’ ou ‘Walmart’ das notícias: através de modelos de negócio mais
eficientes e custos menores competem deslealmente com as pequenas lojas (neste caso
jornais locais) levando-os à falência. Outro ponto criticado é o desafio que a iniciativa
enfrenta ao utilizar conteúdo hiperlocal “federado”, vindo de diversas fontes locais. Bur-
ns, Saunders e Wilson (2008) alertam que quando um site adota como fonte de notícias
exclusivamente uma comunidade geograficamente local, o desafio tende a ser menor, já
que o conhecimento comunitário serve como moderação para a qualidade do conteúdo.
O conteúdo profissional, jornalístico, produzido serve então como um atrativo para a
leitura e participação comunitária, no que pode ser visto como uma condição rudimen-
tar Pro-Am, onde mesmo que os conteúdos amadores e profissionais não se misturem
perfeitamente, atendem a nichos específicos, como informação e análise, e se comple-
mentam (BELOCHIO, 2009; CORRÊA e MADUREIRA, 2010).
No Brasil, a RBS tem uma iniciativa similar. O grupo de comunicação possui páginas em
nove cidades, uma em Santa Catarina e oito no Rio Grande do Sul, onde produz e apre-
senta conteúdo estritamente local. Um executivo da rede, Pedro Sirotski, vê esse foco no
local como uma prestação de serviço essencial à presença do grupo no mercado: “Essa
lógica é sólida, de que as pessoas vivem a partir do seu endereço, sua rua, seu bairro e
sua cidade. Acho que uma empresa que quer ter, e preservar, uma ligação forte com seu
consumidor, deve oferecer produtos do interesse local.”
Quanto à monetização e sobrevivência econômica, o hiperlocalismo em rede apresenta
uma vantagem em relação às demais alternativas por possuir mais de uma opção de

29
Maria José Baldessar, Pedro Vieira Dellagnello, Giovanni Letti

cobrar pelo conteúdo. Pode-se vender anúncios e outras oportunidades para anuncian-
tes nacionais que queiram atingir mais de uma comunidade de forma coordenada e
específica. Por outro lado, um dos grandes desafios das páginas locais é voltar a cativar
o pequeno anunciante local, que mantinha ou ainda mantém o jornalismo comunitário.
Ao recordar as seis características propostas por Metzgar, Kurpius e Rowley (2009) podemos
considerar que o Patch.com é claramente nativo da internet e um modelo de negócios somen-
te possível via rede. Tem elementos de demarcação geográfica bastante fortes, determinados
pela direção nacional. Quanto à orientação para a comunidade, a produção de notícias origi-
nais e as lacunas preenchidas na cobertura da mídia tradicional podem ser consideradas ra-
zoáveis. Existem esforços explícitos para contratar editores com fortes raízes locais e pressão
pela produção e cumprimento de metas semanais, mas o fator do capital humano disponível
pode justamente limitar esses aspectos. Apenas algumas das “filiais” do Patch – aquelas que
têm os melhores editores – conseguem produzir conteúdos originais e relevantes. Por último,
o estímulo ao engajamento cidadão é um ponto fraco da plataforma. Por não produzir ma-
térias investigativas, de cunho fiscalizador do governo local, em quantidades suficientes, a
iniciativa tem pouco impacto quanto à mobilização cívica por causas específicas.
Outro caso é o da iniciativa sem fins lucrativos Texas Tribune, lançada em 2009, em
Austin, no Texas. Com a utilização de diversas fontes de receita, a organização, garantiu
fundos para três anos de funcionamento, através de uma captação inicial, e busca agora
maneiras de ser auto-sustentável. A principal aposta e diferenciação do Tribune é de
oferecer ferramentas inovadoras na produção, apresentação e difusão das notícias de
interesse público no âmbito estadual. O que levanta o questionamento de se um meio
com esse foco amplo pode ser considerado hiperlocal. Apesar de que existem alguns
exemplos de páginas que tratam grandes regiões como hiperlocais, não há uma resposta
definitiva sobre a questão (METZGAR, KURPIUS E ROWLEY, 2009).
Podemos pensar o hiperlocalismo como o foco em um território bem demarcado e não
necessariamente geográfico, de acordo com o modelo proposto por Lemos (2006) e Be-
lochio (2009). O Tribune afirma que sua área de cobertura abrange todos os tópicos que
estão ligados diretamente ao orçamento estadual, como energia, segurança, educação,
saúde, entre outros. Outra característica manifesta da iniciativa é a da complementarie-
dade com outros meios, no caso locais e nacionais. O portal busca ser um suplemento
aos esforços de cobertura investigativa jornalística, distribuindo, inclusive seu conteúdo
para outros veículos. O objetivo final é incentivar o debate e participação informada dos
cidadãos na política, o que Castilho (2009) aponta como uma retomada de certos valo-
res do jornalismo cívico com a chegada da internet. A diferença, nesse caso, é de que não
há uma intenção de posicionamento do veículo no debate. Além disso, o financiamento
da organização vem de múltiplas fontes, grandes e pequenas, corporativas e individuais.
Há, ainda, a questão da natividade na internet, com a utilização de ferramentas que são
possíveis somente no meio on-line. É o caso de grandes bancos de dados com o salário
de cada cargo público estadual, ou os detalhes de cada representante eleito. Além de
uma biblioteca virtual que contém mais de 80 gigabytes de documentos do governo
como atas e pareceres (LANGEVELD, 2009).
Outro fator importante, segundo o estudo de Metzgar, Kurpius e Rowley (2009), é a pro-
dução de notícias originais e relevantes. Nesse quesito o veículo texano apresenta uma
grande de quantidade de conteúdo jornalístico profissional e investigativo. A composi-
ção da redação foi feita, principalmente, pela contratação de repórteres experientes e
renomados dos jornais tradicionais do estado. O editor-chefe e co-fundador, Evan Smith,

30
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos

trabalhou 17 anos na revista Texas Monthly, ganhadora de diversos prêmios jornalísticos,


onde foi editor e posteriormente vice-presidente.
De fato, a grande maioria do conteúdo publicado segue o formato e o modelo de produ-
ção típicos do jornalismo. A participação do usuário é restrita a comentários nos blogs e
incentivada nos eventos de debate e arrecadação promovidos pela organização. Existe,
porém, uma abertura ao conteúdo externo na forma de acompanhamento das notícias
políticas estaduais através de serviços como o TribWire e o TweetWire. As duas páginas
agregam comentários e informações políticas vindas dos próprios representantes ou
de outros veículos, através dos seus sites próprios ou do Twitter. O objetivo do Tribune
é preencher as lacunas de cobertura comunitária ao sindicar o seu conteúdo, ou seja,
disponibilizá-lo gratuitamente para republicação em outro meios, cobrando apenas a
devida citação da origem do material. Assim, espera contribuir para que jornais ainda
menores consigam oferecer cobertura política de qualidade, através da seleção das ma-
térias publicadas pelo Texas Tribune que interessem ao seu público (LANGEVELD, 2009).
Nesse sentido, configura-se uma relação onde o meio está mais próximo de outros ve-
ículos regionais, maiores ou menores, aos quais pode complementar a cobertura de
política, do que do consumidor final da informação. Esse aspecto prejudica a orienta-
ção comunitária, a conexão com o público e a sensação de que o meio é parte ativa da
comunidade. Essas características de territorialização, complementariedade, natividade
na internet e engajamento cidadão levam classificar o Texas Tribune como um meio hi-
perlocal peculiar, cujas diferenças podem ser vistas como um distanciamento do modelo
proposto ou uma diferenciação com o objetivo de otimizar o mesmo.

Considerações
No nosso entendimento é impossível traçar um quadro teórico específico para definir
a hiperlocalidade de um meio, já que as diferenciações podem ser vistas como abor-
dagens de mercado ou critérios para excluir o veículo dessa classificação. Também não
existe sentido, ou métodos, para avaliar se um meio é mais hiperlocal que outro. Mas, ao
analisar exemplos concretos, podemos colocá-los frente a frente como uma maneira de
ilustrar a situação e os rumos desses veículos.
Com base no observado, três características são comuns nos casos tratados. A primeira,
e mais forte, é a natividade na internet: muitos dos recursos hiperlocais, e do senso de
comunidade que procuram despertar, são somente possíveis em um ambiente interati-
vo em rede. Em menor grau, temos a necessidade de preencher lacunas deixadas pela
mídia tradicional, que é o mercado onde as iniciativas podem procurar financiar seu
funcionamento, seja com fins de lucro ou não. E, ao final, os elementos de demarcação
geográfica, mais fracos no caso do Texas Tribune, mas muito presentes no Patch, como
forma de demarcar e mobilizar a comunidade atendida.
No entanto, essa constatação não é suficiente para estabelecermos um padrão para as inicia-
tivas hiperlocais ou uma caixa onde se possa agrupar todas. É útil no sentido de criar um filtro
mínimo para posterior análise mais aprofundada de cada iniciativa. Até por que, a própria
definição, pelos gestores, de um posicionamento hiperlocal não é um fim em si, mas uma
ferramenta para operar em uma área do mercado onde o consumidor exige um produto
específico. Essa segmentação pode ser vista em um contexto de aproximação dos veículos a
um interesse do público , no caso local, não atendido pela grande mídia generalista. Mitchell
(2009) e Giles (2010), por exemplo, incluem o movimento hiperlocal ao lado do jornalismo

31
Maria José Baldessar, Pedro Vieira Dellagnello, Giovanni Letti

ativista, por ambos se dedicarem à segmentação extrema, por uma causa, ou comunidade,
como maneiras de buscar receitas que sustentem, e remunerem a prática jornalística.

Referências
ASHFORD, Phillip. Newspaper Marketing Strategies. Disponível em: <http://dspace.mit.
edu/bitstream/handle/1721.1/13310/25142392.pdf?sequence=1> Acesso em: 30/09/2010
BELOCHIO, Vivian. Jornalismo digital e colaboração: sinais da desrreterritorialização. Es-
tudos em Jornalismo e Mídia, Ano VI, nº 2, Jul-dez. 2009, p. 203-216.
BOWMAN, Shayne; WILLIS, Chris. We Media: How audiences are shaping the future of
news and information. Disponível em: <http://www.hypergene.net/wemedia/downlo-
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BRAMBILLA, Ana Maria. A reconfiguração do jornalismo através do modelo Open Sour-
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ojs/index.php/famecos/article/viewFile/867/654> Acesso em: 20/10/2010
CASTILHO, Carlos Albano Volkmer. O processo colaborativo na produção de informa-
ções: gênese, sistemas e possíveis aplicações no jornalismo comunitário. Programa de
Pós-Graduação em Engenharia e Gestão do Conhecimento. Universidade Federal de San-
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32
Telenovelas no Brasil: de Roteiros
Viajantes a Gênero/Formato Nacional
e Transnacional1
Joseph D. Straubhaar
Universidade do Texas em Austin

A
criação e o fluxo globais de gêneros e formatos televisivos deveria ser concebida
como um processo fluido complexamente articulado, cujos efeitos de integração
não necessariamente eliminam diferenças culturais nem a diversidade, mas dão
contexto e limites à produção de novas formas culturais marcadas por uma especificida-
de local. A esse respeito, Ang (1996) observou:

O que se torna cada vez mais “globalizado” não é tanto o conteúdo cultural
concreto, mas, de forma mais importante e mais estrutural, os parâmetros e a
infraestrutura que determina as condições da existência de culturas locais. Pode-
-se entender isso, por exemplo, como a disseminação de um conjunto limitado
de convenções e princípios econômicos, políticos, ideológicos e pragmáticos que
governam e moldam as maneiras aceitas pelas quais a produção, a circulação e o
consumo de mídia são organizados no mundo moderno. (ANG, 1996: 153-154)

Gênero e Formato
Neste artigo, defendemos que há diversas camadas de gênero, comercialização de pro-
toformatos de elementos de programas, e atuais formatos licenciados comercialmente.
Algumas tradições de gênero, como o melodrama, tendem a ser amplas, categorias es-
truturantes que já têm uma longa história anterior à televisão (MARTÍN-BARBERO, 1993).
Gêneros específicos de produção de televisão, como a soap opera norte-americana e a
telenovela da América Latina podem se desenvolver dentro dessa tradição mais ampla.
Até gêneros mais específicos, como as novelas brasileiras socialmente engajadas ou de
época, em contraste com as telenovelas de Cinderela mexicanas (HERNÁNDEZ, 2001),
desenvolvem-se ou ascendem ao longo do tempo dentro dessas tradições de gênero.
Formatos de televisão são hoje frequentemente definidos como uma categoria paralela que
se vê nas formas de televisão empacotados para o comércio de franquias, o trânsito entre
culturas, e a adaptação localizada ou aplicação por parte das redes regionais, nacionais ou
locais. Formatos específicos são geralmente importados e adotados. Podem nutrir-se do
desenvolvimento de gênero, enxertado nas tradições mais antigas.
Neste estudo tendo a definir um formato como um pacote específico de produção, trans-
ferido de uma entidade de produção televisiva para outra, para ser adaptado em uma
versão local. Esta definição estrita é elaborada para facilitar a distinção entre formatos e

1Artigo apresentado no IV Colóquio Brasil-EUA de Ciências de Comunicação. Caxias do Sul (Rio Grande do Sul), 2010.
Joseph D. Straubhaar

gêneros. O arranjo é frequentemente comercial, vendido ou licenciado por preços espe-


cíficos ou por uma fatia das receitas (MORAN, 2004). As redes e emissoras não-comer-
ciais também podem compartilhar formatos, como quando as redes públicas nacionais
dos países nórdicos adquirem formatos da BBC.
Formatos de reality shows ou de game shows são alguns dos exemplos atuais e de difu-
são comercial mais frequente. Alguns autores, como Sharaf (ano?), veem implementa-
ções específicas de formatos em certos tipos de gêneros, como o de competição musical
dentro dos reality shows, como Pop Stars e American Idol. Outros formatos podem
surgir, como os reality shows, que compõem gêneros específicos, como concursos da
cantores ou de dança (Sharaf, 2008). Estes gêneros conservam características comuns a
formatos consagrados, como o gênero “show de calouros”, que elimina os participantes
em rodadas sucessivas, e de outros gêneros típicos de reality shows.
Gêneros representam um desenvolvimento em longo prazo: nacional ou intercultural, hí-
brido, de categorias bem compreendidas e de ampla aceitação ao longo do tempo. Schatz
(1981) faz uma distinção sobre o cinema que podemos aplicar à televisão: ele compara a
estrutura profunda de um “gênero de filme”, como uma espécie de contrato social entre
a indústria e o público, e um “filme de gênero”, como uma representação específica ou
a produção daquele gênero. A telenovela como uma adaptação desta tradição no século
XX poderia ser análoga à estrutura profunda do melodrama como uma espécie de me-
ta-gênero global; e a novela latino-americana como uma estrutura profunda do gênero
televisivo específico da região, como Ugly Betty, da ABC; como uma adaptação de formato
do gênero licenciado para os EUA da América Latina, particularmente popular, baseada
em uma produção específica, Yo soy Betty, la Fea produzida na Colômbia, exportada am-
plamente (MATO, 2005) e regravada nos Estados Unidos (BIELBY & HARRINGTON, 2005).
Moran (2004) argumenta que há um incentivo generalizado para a produção local que
pode usar conceitos originados localmente, programar ideias de coprodução e adapta-
ções de formatos de programas importados. Ele observa que já há algum um tempo os
produtores informalmente “pegam emprestado” formatos, aumentando a coprodução
e, particularmente, o licenciamento oficial de formatos. Os dois primeiros, junto com o
relevante comércio de roteiros de novelas, eram típicos da indústria da teledramaturgia
na América Latina desde a década de 1950, mas o comércio formal de programas em
pacotes completos é muito mais recente.
Nos termos de Moran (2004), a telenovela foi criada como uma espécie de localização de
gênero ou coprodução entre o patrocinador estrangeiro, geralmente uma das multinacio-
nais de sabonetes, como a Colgate-Palmolive, que já patrocinavam ou até coproduziam
novelas (soap operas) nos EUA ou em outros lugares, que traziam um considerável conhe-
cimento sobre gênero e produção, e os produtores locais, que adaptavam ou localizavam o
enredo a seus contextos e culturas, baseando-se também em outras tradições seriadas ou
melodramáticas que chegaram à América Latina a partir de uma miríade de fontes (MAZ-
ZIOTTI, l993). O padrão de gênero original da radionovela passou indiretamente dos Esta-
dos Unidos para o Brasil via adaptações culturais antecedentes a formas mais reconfigura-
das e culturalmente mais próximas em Cuba, Argentina e outros países da América Latina.
Alguns novos gêneros se tornaram o foco de uma forma global de fluxo e adaptação: o
comércio de formatos. Neste sentido, formato é um marco mais específico de produção do
que gênero. Segundo Moran (1998), “um formato televisivo é aquele conjunto de elemen-
tos invariáveis em um programa, a partir dos quais os elementos variáveis de um episódio
específico são produzidos” (op. cit., p. 13). Assim, um melodrama ou série de horário

34
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos

nobre é um gênero. O conceito, o roteiro e as orientações de produção de Desperate Hou-


sewives constituem um formato específico. Isso ocorre mesmo que o estilo de seriado do
horário nobre dos EUA seja sutilmente transformado, por exemplo, numa típica telenovela
latino-americana, que atualmente a maioria alegaria que é um gênero diferente (LA PASTI-
NA, REGO & STRAUBHAAR, 2003). Moran (1998, 2004) observa que os dois tipos principais
de formatos são 1) drama, sitcom (comédia de situação) ou entretenimento roteirizado e 2)
os reality shows, incluindo game shows, programas de entrevistas, e situações dramáticas
ao vivo, como Real World da MTV. Estes representam vários gêneros diferentes.
Este artigo defende que uma parte do que se tornou o gênero da novela latino-americana
veio originalmente da localização, em Cuba, de um gênero tipicamente americano, a soap
opera, promovido pela agência da Colgate-Palmolive e de outros anunciantes norte-ameri-
canos. No entanto, o que ocorreu de fato em Cuba e em outros países latino-americanos foi
a hibridização daquele esforço de localização junto a outras tradições da ficção seriada, em
virtude da agência e dos esforços de produtores e empresários como Goar-Mestre. Ainda
mais profunda foi uma diáspora do novo gênero da telenovela e sua maior glocalização em
toda a América Latina, já que foi adaptada pelas indústrias culturais locais. Isto ficou visível
de dois modos particularmente importantes: a dispersão dos autores de novelas, diretores e
empresários por toda a América Latina e um forte tráfego regional dos roteiros de novelas a
partir da década de 1950. Este tráfego de textos e profissionais foi um precedente importante
para o atual comércio mundial de formatos de TV, baseado em scripts, pacotes ou manuais de
produção sob franquia e consultores. Este artigo se concentra nos impactos dessa diáspora
de gênero, roteiros e profissionais e na adaptação destas tradições de gênero no Brasil.

Gêneros
Jason Mittell (2004) argumenta que os gêneros devem levar em conta as particularidades do
meio (TV versus cinema), negociar entre a especificidade e a generalidade, desenvolver-se a
partir de genealogias discursivas (como o exame das novelas), ser compreendidos na prática
cultural e situados em sistemas maiores de hierarquias culturais e relações de poder. Diferen-
tes grupos – como críticos, produtores, anunciantes, distribuidores, programadores e público
– muito frequentemente estruturam categorias de gênero de modos muito diferentes (Feuer,
1992). Por exemplo: críticos normalmente visam à compreensão teórica, tanto das formas
culturais/textuais em si (MITTELL, 2004) quanto das práticas complexas entre a indústria e
o público. Jane Feuer (1992) chama o primeiro enfoque de estético e vê o segundo como
centrado em rituais culturais, produzindo compreensões comuns entre público e produtores.
Pela minha formação mais como cientista social que literário, tendo a inclinar-me para a se-
gunda definição. Em contraste com essas duas metas acadêmicas, os produtores utilizam as
categorias de gênero para tentar descobrir quais estruturas institucionais, como os gestores
de redes de TV e os anunciantes, deixarão produzir os programas que lhes interessem, geral-
mente ao mesmo tempo em que tentam satisfazer a audiência. Trabalhos de Timothy Havens
(2006) e Denise Bielby (2005) buscam examinar a função dos produtores e programadores
como intermediários industriais do gênero e do desenvolvimento e fluxo de programação.
Aqui, o objetivo geral é entender o crescimento destas compreensões mútuas entre público e
produtores, enquanto se buscam nelas padrões de gênero e de formato mais amplos.
Em particular, queremos enxergar a forma como um novo gênero televisivo, a telenovela,
se desenvolveu na interação com um gênero-base, a soap opera norte-americana; uma pri-
meira rodada de desenvolvimento de gênero híbrido em Cuba e outras partes da América
Latina; e a particularização nacional do novo gênero regional em países como o Brasil. Que-

35
Joseph D. Straubhaar

remos estudar a interação entre os patrocinadores, produtores de TV, os textos e roteiros


do gênero em desenvolvimento, e a evolução das audiências regionais e nacionais.

Antecedentes do Comércio de Formatos no Mercado de TV da América Latina


A principal questão deste artigo é se as práticas da indústria de teledramaturgia que se acu-
mularam na América Latina podem ser vistas como um precedente para o surgimento do
comércio de formatos que atualmente vem sendo teorizado e conceituado. Em geral, este
exame do caso das novelas ajudará a estabelecer a importância geral de várias necessidades
que também reforçam práticas do comércio de formatos. Em primeiro lugar, talvez venha
o fato de que os espectadores preferem rostos locais aparecendo na tela (STRAUBHAAR,
1991) a ponto de que uma versão local de um game show ou reality, que poderia ser mais
barato se fosse importado inteiro, gera mais receita na prática, apesar de seus altos custos
de produção locais (MORAN, 2004). Em segundo lugar, os produtores de televisão podem
reduzir os riscos de testar novos gêneros ao adaptar programas que já funcionaram bem
em outros lugares, o que os produtores de novelas fazem quando produzem sua própria
versão de um programa que já foi sucesso em outros países da América Latina. Em terceiro
lugar, no entanto, os produtores de TV, particularmente aqueles trabalhando em um gênero
novo, normalmente prescindirão de experiência prévia, como a roteirização inicial da tele-
dramaturgia, que pode ser importada e adaptada. Em quarto, todas esses pontos também
barateiam a produção de um novo programa ao importar um script, ou mesmo um formato
inteiro, apesar do custo de compra. Em quinto lugar, o tempo pode permitir o desenvolvi-
mento de um novo gênero “local” e uma indústria cultural de apoio emergindo deste tipo de
processo de glocalização ou hibridização. Assim, em longo prazo, pode ser que vejamos as
indústrias culturais localizadas em países e regiões produzindo variações do que poderia ser
uma forma específica latino-americana da soap opera (STRAUBHAAR, 1982) ou uma nova
forma árabe do reality show de música como em Marwan Kraidy (2010).
Isto ajuda a entender algumas das práticas específicas que surgiram no início da década
de 1950, como a venda e a licença de textos de novela entre os autores e empresas por
toda a América Latina, ou o fluxo de equipes de produção e de negócios entre países,
ou ainda a cópia e a adaptação das práticas comerciais de televisão relacionadas com a
produção e programação de novelas. Considerados em conjunto, estas e outras práticas
mais recentes mostram como um conjunto transnacional de convenções e práticas, mas
culturalmente e linguisticamente específico, se estendeu e foi adaptado de maneira a
antecipar parte da atual disseminação e adaptação de formatos de game e reality shows.
Vemos a implantação e a adaptação de um gênero geral, o melodrama, de uma forma
comercial mais específica, transnacional, em toda a região da América Latina. A natu-
reza comercial da difusão e da adaptação é um dos antecedentes interessantes – como
as indústrias culturais podem perceber vantagem comercial na aquisição de elementos
de programa para produzir suas próprias versões. A criação de um comércio de rotina
desses elementos também antecede o atual comércio de formatos. A especificidade cul-
tural-linguística desse comércio na América Latina também pode antecipar algumas das
especificidades regionais que estamos começando a ver no comércio de formatos, quando
certos tipos encontram aberturas ou barreiras criadas pelas práticas culturais em alguns
mercados e regiões, mesmo que alguns pareçam ter formas quase globais de adaptação.
Este estudo se concentra, em primeiro lugar, na aparição do que chamamos aqui de me-
tagênero do melodrama. Em seguida, são examinadas as diversas influências culturais e

36
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos

os insumos nos gêneros especificamente latino-americanos da radionovela e da novela


de TV. Uma das influências importantes era a venda de roteiros entre os países, tanto
para rádio como televisão, bem como a migração de roteiristas destacados, empresários
etc., entre os países – abordado aqui brevemente como um precedente para o atual
comércio de formatos. Finalmente, examinamos o desenvolvimento do gênero no Brasil,
dentro da tradição maior da telenovela latino-americana, e sua interação com velhas e
novas formas de comercialização, que antecipam o comércio de formatos.

A Tradição do Melodrama
As novelas no Brasil e em outros países da América Latina evoluíram claramente a partir de
programas no rádio anteriores e semelhantes. Mas não se desenvolveram apenas da ma-
triz radiofônica, outras tradições de ficção seriada também afetaram o desenvolvimento
do gênero da telenovela na região. Desde os feuilletons publicados em série na França e
a secular literatura de cordel brasileira, o gênero evoluiu em cada país da América Latina,
com certas peculiaridades (MARTÍN-BARBERO, 1993; ORTIZ & BORELLI, 1988), novamente
refletindo a complexidade tanto das origens quanto das adaptações de novelas.
Martín-Barbero (1993) mostra que as telenovelas se baseiam naquilo que este estudo cha-
ma de metagênero do melodrama, que chegou à América Latina a partir de raízes fincadas
em diversas formas precursoras de impressão, circos e saltimbancos, poesia popular de tra-
dição oral, teatro popular e profissional, radiodrama e radionovelas. Suas diferentes formas
se encontram em várias partes da América Latina, mas Martín-Barbero e outros autores,
como Nora Mazziotti (l993), encontram a evolução gradual de um conjunto de raízes melo-
dramáticas para o desenvolvimento das primeiras novelas de rádio e, depois, de televisão.
A tradição do feuilleton, ou folhetim, foi essencial, segundo muitos estudiosos (HERNÁNDEZ,
2001; MARTIN-BARBERO, 1988; ROWE & SCHELLING, 1991). Balzac e Dickens publicavam de
forma seriada obras muito populares nos jornais no século XIX. Muitos dos contos e romances
famosos, novelas da época, tinham um sentido de melodrama em seu apelo de gênero. Eles
ajudaram a construir um público de massas para o gênero melodramático, que determinou as
bases e os limites para o gênero telenovela (STRAUBHAAR, 2007). Alguns argumentam que as
séries impressas, por sua vez, conseguiram criar um público de massas para os jornais, o rádio
e a televisão (HERNÁNDEZ, 2001). Isto mostra como um lado da equação do desenvolvimento
de gênero (FEUER, 1992), o da expectativa do público, era desenvolvido ou preparado por
formas anteriores do melodrama, de maneira que as novelas de TV delas puderam derivar.
Os folhetins também contribuíram com clichês dramáticos específicos do gênero e formas
narrativas, como o gancho de suspense (cliff-hanger) no final de cada episódio, que leva
o leitor, ouvinte ou espectador a esperar o próximo capítulo para ver o que acontece. No-
velas e contos em série nos jornais, como as histórias populares francesas de Eugène Sue,
também introduziram uma característica atual fundamental: a absorção sistemática da re-
ação dos leitores no processo de escrita, o que Martín-Barbero (apud HERNÁNDEZ, 2001,
p. 56) chama de “permeabilidade às transformações da vida moderna” da telenovela.
Martín-Barbero também enfatiza as raízes locais do melodrama na poesia popular e no
teatro latino-americanos, embora elas também se hibridizem entre as tradições literá-
rias e dramáticas europeias, como o teatro popular da Revolução Francesa e as raízes
indígenas e africanas na origem (1987). No Brasil, estas eram muito visíveis na literatura
de cordel – folhetos impressos, baratos, pendurados em barbantes e vendidos em feiras
(SLATER, 1982). Estes folhetos populares frequentemente contavam histórias melodramá-

37
Joseph D. Straubhaar

ticas clássicas, lidas pelo público ou cantadas por repentistas e interpretadas por conta-
dores de histórias, o que proporcionou uma tradição de representação oral de histórias
que alimentou as radionovelas no Brasil, Cuba e em outros lugares (HERNÁNDEZ, 2001).
O melodrama cinematográfico circulou amplamente na região, sobretudo nos filmes da era
de ouro do cinema mexicano, nos anos 1940 e 1950 (MARTÍN-BARBERO, 1995). Estes melo-
dramas ajudaram a criar uma cultura urbana que via o gênero como algo normal, como uma
das primeiras grandes narrativas da vida moderna e do desenvolvimento ao qual tinham sido
expostos. Ajudaram a criar um gosto regional pelo gênero e suas formas narrativas.

Radionovelas
À medida que o rádio se desenvolvia na América Latina na década de 1920, os feuille-
tons, folhetins no Brasil e folletines nos países de língua espanhola, viviam um período
de grande popularidade entre os leitores. Em Cuba, por exemplo, livros e folhetins eram
lidos em voz alta para enroladoras de tabaco nas fábricas de charutos, o que desenvol-
veu estilos de leitura que influenciaram o radiodrama e as radionovelas (HERNÁNDEZ,
2001). Essa popularidade tendeu a levar o gênero seriado para o rádio, como uma forma
de teatro. Na Argentina e em outros países, as radionovelas foram chamadas simples-
mente de radioteatro durante muito tempo, até que o nome “radionovela” ficou asso-
ciado a um gênero mais específico do melodrama radiofônico.
As radionovelas se desenvolveram em uma série de países, incorporando ideias nacionais
e regionais da América Latina. Os programas nacionais de rádio na Argentina e em Cuba
são identificados por Hernández (2001) como fontes de ideias particularmente relevan-
tes; mas muitos países, incluindo o Brasil, tinham importantes tradições locais de teatro
e indústrias que facilitavam ideias, autores, atores, para o radiodrama e a radionovela.
No entanto, Cuba foi uma fonte particularmente importante dos roteiros de radionovelas
que circularam por toda a região. A CMQ, a emissora de rádio comercial líder em Havana nas
décadas de 1940 e 1950, “inundou” a América Latina com os scripts exportados (SINCLAIR,
1999), influenciando as produções de rádio de Azcárraga, fundador da Rede Televisa, que
criou as telenovelas dominantes no México (FERNÁNDEZ & PAXMAM, 2001). No Brasil, a
primeira radionovela, em 1941, foi uma adaptação de um texto cubano (MOREIRA, 1991).
Muitas das principais ideias comuns da América Latina sobre novelas de rádio e TV im-
portadas de Cuba por outros países também representavam uma influência indireta dos
Estados Unidos sobre o gênero. A forma comercial específica das radionovelas foi desen-
volvida pela primeira vez na Cuba pré-revolucionária, sob encomenda da Colgate-Palmo-
live, multinacional norte-americana que queria vender sabonetes. Ao ver como as soap
operas alcançavam o mercado de consumo feminino para seus produtos nos EUA, estas
empresas introduziram o gênero primeiro em Cuba, depois no resto da América Latina.
A reação do público foi grande e garantiu que os anunciantes fornecessem a verba para
a produção continuada e crescente das novelas em um número cada vez maior de países.
A Colgate e a Sidney Ross ajudaram a inventar a novela de rádio e mais tarde de TV em
uma operação pioneira em Cuba antes da Revolução, onde “a soap opera norte-ameri-
cana” era “traduzida e exportada” (KATZ, 1977: 117).

Alguns dizem que a telenovela latina não é mais que a transposição da ra-
dionovela norte-americana. Mas não apenas o rádio latino-americano já vi-
nha utilizando o formato da história seriada há muito tempo, como também
os jornais latino-americanos. Qualquer busca por programação barata para

38
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos

formar fidelidade de audiência mal poderia deixar de chegar à fórmula do


drama seriado com um elenco mínimo e um estúdio minúsculo. O ponto-
-chave da telenovela é ter-se originado a partir da necessidade de preencher
o tempo (incluindo o dia) a baixo custo... (TUNSTALL, 1977: 176)

A forma comercial claramente se baseou em outras tradições narrativas e tradições orais


de dramaturgia, mas o pacote do gênero radiofônico específico que consideramos como
as radionovelas regionais da América Latina foi claramente determinado pela interação
entre os desejos dos anunciantes, expressados pela Colgate-Palmolive, o nascente mode-
lo de negócios dos donos de emissoras cubanas que também se inspiraram fortemente
nos EUA (SCHWOCH, 1990), e o gênero narrativo formado por autores e atores cubanos,
dentro da tradição maior do melodrama latino-americano (MAZZIOTTI, l993).
Nos termos de Moran (2004), a radionovela e, mais tarde, a telenovela, foram introdu-
zidas como uma espécie de localização de gênero ou coprodução entre o patrocinador
estrangeiro, que trazia um considerável conhecimento de gênero e de produção, e os
produtores locais, que a adaptavam ou localizavam em função de suas circunstâncias e
cultura. O padrão de gênero original da soap opera radiofônica passou indiretamente
dos Estados Unidos para o Brasil através de adaptações culturais anteriores para formas
culturalmente mais próximas e reconfiguradas (STRAUBHAAR, 1991) em Cuba, na Argen-
tina e outros países da América Latina.
Em um primeiro momento, as influências estrangeiras na telenovela eram visíveis. As no-
velas norte-americanas no rádio e na televisão proporcionavam modelos para as radio-
novelas e telenovelas que se desenvolveram posteriormente em toda a América Latina.
Os anunciantes norte-americanos frequentemente incentivavam emissoras latino-ameri-
canas a produzir estes programas porque eram eficazes para atingir grandes audiências.
As influências norte-americanas originais foram diluídas à medida que a forma básica
da novela se estendia por toda a América Latina. Autores e produtores cubanos e me-
xicanos que tinham trabalhado para as emissoras cubanas mudaram-se para o Brasil e
a Argentina depois da Revolução Cubana (SÁNCHEZ, entrevista, 1978). Emissoras de TV
brasileiras importaram da Argentina e do México, até 1964, roteiros e inclusive novelas
prontas para serem dubladas em português.
Os anunciantes norte-americanos também continuaram tendo alguma influência dire-
ta na programação da teledramaturgia brasileira, financiando seu desenvolvimento e a
formação de autores, produtores e técnicos. Florisbal (entrevista, 1979) observou que às
vezes os anunciantes pagavam técnicos e atores quando as TVs não conseguiam ou não
o faziam. Por exemplo: no início de 1960, a Colgate-Palmolive contratou roteiristas bra-
sileiros para adaptar textos de novelas argentinas, bem como para escrever os seus pró-
prios (WALTER DURST, Jornal da Tarde, 14 de outubro, 1970). Isto ilustra o grau em que
a contínua influência norte-americana na telenovela se misturava com outras influências
latino-americanas e criações nativas brasileiras. Florisbal (1979) estima que a influência
dos anunciantes norte-americanos prosseguiu até o final dos anos 1960. Depois, a TV
Globo e, mais tarde, a TV Tupi, adquiriram força de mercado e estabilidade financeira
suficientes para se tornar independentes das “sugestões” dos anunciantes.

As Raízes Comuns do Gênero das Telenovelas Latino-americanas


A estrutura econômica e comercial de televisão na América Latina, incluindo o Brasil, se
viu fortemente afetada pelos modelos e pelas ações diretas das empresas norte-ameri-
39
Joseph D. Straubhaar

canas (FOX, 1997). O desenvolvimento da programação, porém, inclusive as novelas, era


híbrido e mais complexo. Desenvolveu-se em uma matriz cultural latino-americana que
enfatizava certos temas e que depois mudou consideravelmente à medida que as varia-
ções de gênero de novelas nacionais se desenvolviam.

A telenovela explora a personalização – a individualização do mundo social –


como uma epistemologia. Oferece incessantemente ao público os dramas de
reconhecimento e re-conhecimento ao localizar questões sociais e políticas
em termos pessoais e familiares e, assim, dar sentido a um mundo cada vez
mais complexo. (López, 1995, p. 258)

A telenovela latino-americana, em quase todas as suas variações, se concentra em temas


que não eram centrais na soap opera norte-americana (STRAUBHAAR, 2007), o que re-
presenta um esforço de adaptação (MORAN, 2004). Estes novos temas incluem papéis
de classe e conflitos de classe –bempregadas contra patroas, por exemplo, bem como a
mobilidade social ao sair da pobreza. Também são incluídos temas antes mais frequentes
no cinema e no início da televisão nos EUA, como as dificuldades enfrentadas por pesso-
as que se deslocam do campo para a cidade para ocupar postos de trabalho industriais,
muito mais comuns e relevantes agora na América Latina.
A reação do público modificou as produções – de dramas focados na elite para uma for-
ma de cultura de massa que ecoava uma variedade de tradições e dispositivos narrativos,
incluindo tanto homens quanto mulheres, agricultores, trabalhadores urbanos e a classe
média (MARTÍN-BARBERO, 1993). Essa formação cultural se estendeu por toda a América
Latina, com adaptações distintas, o que torna as telenovelas brasileiras muito diferentes
das do México (HERNÁNDEZ, 2001).

As Variações Nacionais da Telenovela


Por toda a América Latina, a novela como gênero tem, portanto, uma história comum.
Mas as redes e os produtores de televisão nos diferentes países utilizaram temas bastan-
te variados, estilos narrativos e valores de produção que se tornaram mais diferenciados
ou nacionalizados com o tempo.
Segundo López (1995), as novelas mexicanas, em particular as da Televisa, tendem a ser
mais abertamente emocionais, muito dramáticas e chorosas e com maior frequência são
ahistóricas, sem oferecer contexto social, embora algumas produções recentes tenham
começado a mostrar diferenças generalizadas entre bairros ricos e pobres. Hernández
(2001) chama-as de blandas, ou novelas brandas, em comparação às novelas do Brasil ou
da Colômbia, que são mais delimitadas e sociais, que ele chama de duras (2001).
As novelas colombianas tendem a ter mais humor e ironia e maior preocupação com o
contexto. Produções venezuelanas são mais emocionais, mas não têm o “barroquismo”
dos cenários mexicanos. As novelas brasileiras são as mais realistas, com narrativas de
base histórica com uma clara contextualização temporal e espacial (LÓPEZ, 1995). No en-
tanto, como observa Hernández (2001), as emissoras vice-líderes em audiência em cada
país começaram a competir com as redes nacionais dominantes, importando truques
das redes de outros países. Assim, quando a TV Azteca no México quer contrastar sua
programação com a da Televisa, pode adotar as convenções brasileiras do gênero, mais
sociais e problematizadas. Estas variações mostram como a história comum, desde o me-
lodrama europeu até as soap operas Colgate-Palmolive, foram adaptadas e reconfigu-
radas pelos produtores que interagem com culturas nacionais e públicos distintos, bem

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Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos

como pelos concorrentes nacionais que tentam tanto imitar quanto distinguir-se den-
tro de cada mercado cultural nacional. Esses gêneros de novelas refletem consideráveis
adaptações nacionais do gênero regional, mas são todos fiéis às raízes melodramáticas.

Radionovelas e Telenovelas Brasileiras


A radionovela chegou ao Brasil em 1941. As radionovelas foram importadas pela primeira
vez no Brasil na década de 1940 em forma de roteiros de México, Argentina e Cuba, tradu-
zidos do espanhol para português (SÁNCHEZ, entrevista, 1978). O sucesso do gênero nas
rádios brasileiras levou a uma crescente quantidade de tempo e de recursos dedicados. A
passagem do rádio para a televisão no Brasil levou apenas uma década, de 1941 a 1951. Os
produtores brasileiros inicialmente adaptavam obras literárias estrangeiras, seguindo a fór-
mula do gênero melodramático das radionovelas cubanas, de tramas um tanto leves, mas
não particularmente específicas da cultura local. Eram, de fato, frequentemente baseadas
em roteiros importados. Uma das primeiras grandes novelas brasileiras de TV foi Eu compro
essa mulher, baseada em texto cubano. Este padrão de dependência brasileira de roteiros
internacionalizados ou diretamente importados ou já escritos no padrão – comum a toda
a América Latina, de romances leves e desterritorializados – perdurou na década de 1960.
Radionovelas e os primeiros seriados de televisão tiveram papel fundamental de semear
o terreno para o gênero, criando uma adaptação brasileira de televisão para o melodra-
ma que é híbrida, mas que pouco a pouco se converteu em diferenciada. Autores foram
capacitados nas convenções melodramáticas e gradualmente adaptaram-nos para se
ajustar ao Brasil, reconfigurando gêneros tanto dos EUA quanto da América Latina.
O rádio brasileiro também produziu, copiou, reelaborou e “abrasileirou” programas de va-
riedades, humor e teatro norte-americanos (RAOUL, 1975; PORTO e SILVA, entrevista, 1979).
Estes formatos de programas mudaram ainda mais à medida que foram adaptados para uso
na televisão. Raoul (1975, p. 16) também observa que o setor de televisão nos EUA se inspi-
rou na experiência da indústria cinematográfica, que não existia no Brasil no mesmo nível.
Portanto, a televisão brasileira se apoiou sobretudo na experiência do rádio comercial: pro-
gramação e financiamento. Também apoiou-se nas tradições do teatro nacional, do cinema,
do circo e do teatro de revista, uma versão nacional do cabaré ou vaudeville (SODRÉ, 1972).
Embora enfatize o conteúdo da programação do rádio em sua própria análise, Milanesi
(1979, p. 79) observa que “antes de a televisão existir, ou quando ela ainda era res-
tringida a poucos centros urbanos, o rádio foi, acima de tudo, o principal veículo para
a publicidade e a venda, ou se quiserem, o principal estímulo para o crescimento do
mercado interno”. As estruturas comerciais do rádio, tais como a contratação de artis-
tas, produção de programas e publicidade, compra de programação gravada, venda de
espaços publicitários e campanha de audiência, foram aplicadas diretamente à televisão.
Os pioneiros da transmissão da televisão comercial no Brasil foram bem sucedidos com
o enfoque comercial no rádio e o aplicaram diretamente à televisão.

A Economia da Ascensão das Telenovelas Brasileiras nos Anos 1950 e 1960


As radionovelas também foram adaptadas para a televisão, começando em 1951. Ini-
cialmente, não foram dominantes, pois na década de 1950 a televisão era muito mais
uma mídia da elite, com um público mais interessado em variedades musicais e dramas
originais. As novelas eram (e ainda são) mais orientadas para um público de massas, que

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Joseph D. Straubhaar

começou a dirigir as opções de programação, assim como a televisão e os conjuntos se


fizeram mais amplamente distribuídos na década de 1960 (MATTOS, 2000).
Por outro lado, fatores industriais favoreceram o distanciamento dos teleteatros de um
único episódio para a dramaturgia seriada. Porto e Silva (entrevista, 1979) observa que
os custos de produzir teledramaturgia original no Brasil tornaram-se exorbitantes. Uma
novela dos anos 1950 teria de 15 a 20 capítulos com os mesmos atores, cenários e uma
trama principal, oferecendo aos produtores uma considerável vantagem financeira sobre
os teleteatros, para os quais produtores tinham de fazer e refazer cenários, roteiros etc.
A atratividade econômica dos programas importados, “enlatados” dos Estados Unidos,
também começou a aumentar pelas mesmas razões, crescendo o seu papel na substitui-
ção dos teleteatros e musicais ao vivo.
A combinação de novelas, programas de auditório e filmes e seriados importados sur-
giu como resposta dos operadores de televisão às mudanças na demanda da audiência
na década de 1950. A mudança, em si, foi no fornecimento de cenários e no aumento
da demanda pelos mesmos, que aumentou dramaticamente depois de 1964, quando
o governo militar decidiu instalar a infraestrutura de telecomunicações para transmitir
sinais em maior alcance pelo Brasil e subvencionou crédito para permitir a compra de
televisores, pois os militares viam uma melhor comunicação com a população brasileira
como questão de segurança nacional (MATTOS, 2000). Esses fatores mudaram a oferta
e a demanda também em relação às ações dos anunciantes e agências de publicidade,
outros dois componentes principais da indústria da televisão.
Estas estruturas comerciais de mídia, bem como toda a economia de mercado do Brasil,
foram reforçadas pelos interesses comerciais estrangeiros. Além das influências sistêmi-
cas duradouras, havia influências específicas dos EUA nos impérios de rádio e da impren-
sa brasileira antes da televisão. Elas incluíam vendas de publicidade de equipamentos e
tecnologia, financiamento, vendas de música gravada e o fornecimento de notícias pelas
agências AP e UPI. Quando a televisão se desenvolveu, na década de 1960, sofreu as
influências adicionais do investimento direto dos EUA e a necessidade de financiamento
das ideias de gestão de redes americanas, sobretudo na TV Globo, criada em 1964 como
sociedade conjunta com o grupo Time-Life (HERTZ, 1987).
Além da influência norte-americana no sistema comercial brasileiro em geral e nas técni-
cas específicas da publicidade, também encontrei em programas de televisão específicos
exemplos da influência de anunciantes e agências de publicidade norte-americanos, so-
bretudo nos anos 1950 e 1960:

No passado, entre 1950 e 1967, antes de a Rede Globo chegar a ser tão podero-
sa, a programação era decidida metade pelos diretores e a outra metade pelos
desejos dos anunciantes. Por exemplo, a Gessy-Lever comprou o seriado Bonan-
za nos EUA e levou-o para a TV Tupi, em São Paulo, para patrocinar em 1956.
Foi a primeira série estrangeira a ser importada. Nas produções nacionais, como
as novelas, o papel dos anunciantes também era forte. Por exemplo, a agência
de publicidade [britânica] Lintas, em representação do grupo [norte-americano]
Unilever, queria chegar às donas de casa através das novelas, que são um veículo
mais econômico que o teleteatro [a forma principal de programação na época]
e tem maior apelo para as massas. Até 1965, a Lintas estava envolvida em todos
os aspectos das telenovelas: seleção de elenco e roteiro, pagamento dos atores
quando a emissora estava no vermelho, etc. Vários anunciantes diziam às emis-
soras o que queriam e conseguiam do seu jeito (FLORISBAL, entrevista, 1979).

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Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos

A telenovela em si representa um interessante exemplo da influência norte-americana.


Apesar de ser, como assinalado acima, originalmente criada por produtores latino-ame-
ricanos para uma empresa norte-americana, a forma do programa se desenvolveu muito
além das circunstâncias em que começou: como uma tática para vender sabonete. A no-
vela é uma forma de programa que atinge o público brasileiro mais fundo que qualquer
meio ou forma de arte comparáveis. É um produto comercial de uma indústria cultural,
mas agora é um meio para a cultura popular brasileira, não estrangeira.
A novela foi aceita rapidamente pelos anunciantes que se tornavam mais interessados
pela televisão como meio para promover produtos de consumo de massa, como sabo-
nete, produtos alimentícios, bebidas não-alcoólicas, cerveja, produtos para o lar, entre
outros. Esta mudança na publicidade era, no entanto, restringida pelo ainda limitado
poder aquisitivo da classe de baixa renda (PRADO, 1973, p. 61).
Paradoxalmente, Prado diz que “a pouca capacidade para gastos não-essenciais da po-
pulação” funciona para criar uma maior audiência de TV, diante da restrição das possibi-
lidades de lazer à disposição dos brasileiros (1973: 51).
Até certo ponto, isto tornou problemáticas a publicidade televisiva e as decisões de progra-
mação. A grande massa da audiência tinha um poder aquisitivo limitado, por isso os progra-
madores tinham de decidir se queriam direcionar seu material para eles ou para um público
mais restrito com maior poder aquisitivo. A decisão não foi praticamente automática, como
nos EUA, onde a ampla audiência tinha poder de compra. Algumas poucas emissoras em São
Paulo conseguiram, de fato, razoável sucesso com programação deliberadamente seleciona-
da para um público de classe mais alta na década de 1970. A maioria das emissoras preferiu
programar para a audiência de massa e depender da publicidade que vendia produtos de
interesse para a massa, em particular durante os anos de rápida expansão na década de 1960.

Em 1971, 70% da audiência no Rio era composta pelas classes C e D, pelo


que a programação teve que responder à cultura popular, os símbolos e os
interesses das novas classes de público. Estes tendem a ser folclore e o entre-
tenimento desde o interior do país, não à alta cultura favorecida pelas elites
de Rio e São Paulo... Mas a nova programação não se planificou e [foram]
impostas pelos experts, brasileiro ou norte-americano. Vinha das forças do
mercado. A lógica do mercado era para agarrar o dinheiro da publicidade
que se lhes oferecia, proporcionando a programação que se baseariam no
público maciço. (MUNIZ SODRÉ, entrevista, 1978)

As Telenovelas Brasileiras na Década de 1960


Os mesmos formatos de programação que surgiram na década de 1950, novelas e pro-
gramas de auditório, continuaram populares na década de 1960. No final dessa década,
os sistemas de produção, que constituíam “indústrias culturais” autônomas e prósperas,
cresceram na televisão brasileira. Em seu estudo sobre a massificação da programação
televisiva pela indústria cultural brasileira, Sodré (entrevista, 1978) enfatiza a importân-
cia destes formatos produzidos em nível nacional – a novela e o programa de auditório.
Ele indica que o programa do Chacrinha, o mais famoso do gênero, “foi financiado por
uma rede de supermercados do Brasil, as Casas da Banha (CB), que queriam vender pro-
dutos comuns como peixe e sabonete para as classes C e D. Estes programas populares
grotescos2 eram financiados pela publicidade de produtos comuns”.
2 Sodré (1972) definiu seu conceito de “grotesco” como uma combinação deliberadamente extravagante da cultura popular

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Joseph D. Straubhaar

Essas duas formas brasileiras de programação não só concorreram com as importadas dos
Estados Unidos, como cresceram rapidamente e de maneira constante em seus índices de
audiência ao longo dos anos 1960. A programação musical não aumentou sua cota, mas
mantinha a terceira posição entre os formatos e também recebia forte apoio da crítica.
Novelas e programas de auditório foram apontados por acadêmicos e críticos de jornal
(SODRÉ, 1972, p. 36; TÁVOLA, O Globo, 26 de março de 1974) como as mais importantes
formas de entretenimento da cultura popular na história recente do Brasil. Conquistaram
popularidade porque eram bons veículos para a cultura popular brasileira. Eram produ-
zidos amplamente porque eram populares e econômicos. Tunstall (1977, p. 176) assinala
que estes dois formatos básicos eram a “programação local autêntica” desenvolvida
em toda a América Latina “antes que começasse o fluxo de importações da televisão
norte-americana”, por volta de 1960. A telenovela e o programa de auditório evoluíram
consideravelmente durante essa década. Sua elaboração como formatos de programa
e o crescimento de sua popularidade refletiam uma visão essencialmente brasileira da
audiência e da cultura de massa que o público queria para entretenimento.
As telenovelas cresceram rapidamente em importância, sobretudo na década de 1960.
No final da década, que eram a forma de programação de televisão predominante no
Brasil, em termos da representatividade de seu conteúdo cultural, sua importância eco-
nômica dentro da indústria e seu provável impacto na audiência.
Aqui há um exemplo de como os programadores brasileiros pensavam o papel da nove-
la. A publicação Mercado Global (janeiro de 1976) citava José Bonifacio de Oliveira So-
brinho, o “Boni”, diretor de produção da TV Globo, que então trabalhava para a TV Rio:

A TV Rio não achava que seus programas de humor eram competitivos, en-
tão o diretor da emissora na época, Walter Clark, e eu decidimos testar no-
velas para alcançar o público. Pusemos no ar ‘Renúncia’, que havia sido um
sucesso no rádio. Fez bastante sucesso, mas eu já estava vendo ‘O Direito de
Nascer’ [Esta novela foi uma adaptação de uma telenovela clássica de Cuba
chamada El Derecho de Nacer – o direito de saber quem eram seus pais]. Foi
um episódio interessante. Ninguém queria a ideia, exceto Clark e eu... Para
transmitir o trabalho pronto foi a mesma briga: a TV Record era líder do
grupo ao qual TV Rio pertencia e a Record não queria produzir porque tinha
medo dos custos de produção e de que poderia ser um fracasso... A TV Rio e
a TV Tupi se uniram para transmitir”. (Sobrinho, [entrevista], 1976)

Na década de 1960, todas as principais emissoras tinham dado alguma contribuição para
o crescimento dos formatos de programa de apelo à massa. A TV Excelsior, a TV Tupi e a
TV Globo produziam novelas. Para as emissoras que tinham recursos a novela se tornou
o entretenimento dominante da televisão brasileira e provavelmente o produto mais
importante da cultura de massa e da indústria cultural brasileiras. A TV Tupi produziu-as
ao longo da década e a TV Bandeirantes começou a fazê-lo em 1979, quando já tinha co-
meçado a se constituir como uma rede. No entanto, como Rother (1978, p. 57) observa,
“o surgimento, o crescimento e o sucesso contínuos da telenovela foram inerentemente
vinculados à ascensão da TV Globo”. A revista Veja (out., 1976) afirmou que a “Globo
não inventou a novela, mas de seus estúdios veio a contribuição decisiva para a transfor-
mação da novela em um gênero quase cinematográfico nas dimensões de Hollywood e,
no entanto, mais tipicamente brasileiro em seu idioma, tramas e no ritmo de produção”.

tradicional, inclusive arcaica, com os meios de comunicação como revistas e a televisão, a indústria cultural, em uma exploração

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Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos

Outra demonstração do desenvolvimento da popularidade das novelas pode ser visto na


lista dos programas de maior audiência no Rio de Janeiro em cada ano da década:

Ano Programa Gênero Emissora


1960 “Noite de Gala” variedades TV Rio
1961 “Noites Cariocas” variedades TV Rio
1962 “O Riso é o Limite“ humor TV Rio
1963 “Noites Cariocas” variedades TV Rio
1964 “Peter Gunn” seriado importado TV Rio
1965 “O Direito de Nascer” telenovela TV Rio
1966 “Discoteca do Chacrinha” show de auditório TV Excelsior
1967 “Telecatch” game show TV Globo
1968 “O Homem Proibido” novela TV Globo
1969 “A Rosa Rebelde” novela TV Globo
1970 “Irmãos Coragem“ telenovela TV Globo

O ponto máximo de influência nas telenovelas brasileiras por outros programas da América
Latina chegou com O Direito de Nascer, sobre um jovem advogado tentando descobrir quem
eram seus pais. A história romântica inscrevia-se na tradição da novela melodramática, que o
Brasil compartilhou com outros países da América Latina (IstoÉ, 28 de fevereiro de 1979). Uma
das principais radionovelas cubanas, foi adaptada no Brasil como radionovela em 1959. Ape-
sar de ter tido um bom sucesso no rádio, a mesma história foi um sucesso estrondoso na tele-
visão em 1964 e 1965, reunindo os elementos da trama romântica, visual e de apelo à cultura
de massa que “consagrou o sucesso popular da telenovela” (PORTO E SILVA, entrevista, 1979).
Em 1964, os produtores da TV Excelsior examinaram o sucesso das novelas noturnas
regulares na Argentina e decidiram elevar sua produção para esse nível. Durante os pri-
meiros anos da década de 1960, assim como as radionovelas tinham sido, as novelas de
TV eram transmitidas em programação não-diária.
A telenovela aumentou rapidamente sua participação na audiência em São Paulo, de 2%
em 1963 para 12% em 1965, 13% em 1967 e 18% em 1969. Depois de uma estagnação
em 17% em 1971, a novela subiu para dominação total sobre todos os demais formatos
de programas, nacionais e importados, na década de 1970.
Os produtores de TV também começaram a aumentar a duração média das novelas, de
quatro a seis semanas para nove a dez meses, o que lhes permitia acumular audiências
consideráveis, mas preservando a necessidade de dispor de uma trama que leva a um clí-
max. Isto se deu em contraste marcado com as soap operas norte-americanas, cujas tramas
básicas de cada programa, tais como As the World Turns, podem durar mais de 20 anos.
No final dos anos 1960 a novela estava se convertendo rapidamente em um formato de
programa nacional muito particular no Brasil. As novelas pareciam sofrer pouca influên-
cia dos EUA em conteúdo e substância. Nenhum crítico observou influências argentina,
cubana ou mexicana tampouco, pelo menos depois dessa década.
Comentários dos autores de novelas indicam que eles sentem que os elementos essenciais de
suas tramas mantiveram-se constantes ao longo dos anos: o herói jovem e simpático, a mu-
lher reprimida com vontade de romper amarras sociais, os jovens amantes, a busca pela ver-
dadeira identidade do protagonista, ou um segredo de culpa, um vilão, tragédias, suspense e

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Joseph D. Straubhaar

o final feliz (BRÁULIO PEDROSO, WALTER DURST, Jornal da Tarde, out. 14, 1970; PLINIO MAR-
COS, IstoÉ, fev. 28, 1979). Este é o material da ficção romântica em todo o mundo ocidental.
Na década de 1950 e princípios da de 1960, os detalhes do enredo ou do conteúdo manifesto
de algumas tramas de telenovela vinham de obras estrangeiras de ficção, mais ocasionalmen-
te depois dos anos 1970. Estas tramas eram quase sempre adaptadas por autores brasileiros.
Textos estrangeiros importados foram cada vez mais substituídos por temas puramente bra-
sileiros: a vida cotidiana nas classes baixa e média, temas históricos e regionais e alguns temas
da atualidade, como ecologia ou a aculturação de indígenas na vida urbana.
Uma telenovela em particular marcou um distanciamento da tradição melodramática e
iniciou a redefinição do gênero no Brasil: Beto Rockfeller, escrita por Bráulio Pedroso e
transmitida pela Rede Tupi em 1968 e 1969 (MATTELART & MATTELART, 1990; ORTIZ e
BORELLI, 1988; STRAUBHAAR, 1982). O texto saiu de uma cepa da cultura de massa que
era muito tipicamente brasileira, apesar do sobrenome do protagonista.
Beto Rockfeller escapava das tradicionais e artificiais atitudes dramáticas e padrões de fala la-
tino-americanos. Utilizava o diálogo coloquial típico do Rio de Janeiro. A estrutura dramática,
as estratégias narrativas e os valores de produção também se modificaram. Beto Rockfeller
era a história de um jovem de classe média que trabalhava para uma sapataria, mas que, com
charme e astúcia, misturava-se entre a classe alta, fazendo-se passar por um milionário. A
telenovela obteve índices de audiência muito altos, o que levou a rede a esticá-la para quase
13 meses, muito mais tempo que o habitual de 6 a 8 meses (FERNANDES, 1987).

Beto Rockfeller era um clássico boa-vida carioca, um “clássico brasileiro”. A


novela foi muito popular porque era muito satírica e tratava questões na-
cionais reais, diretamente. Cristalizou um momento de transição, elevando
nossa consciência sobre o tratamento de nossa própria realidade nacional...
Depois de Beto Rockfeller, o sistema de adaptação de material estrangeiro
diminuiu e a quantidade de conteúdo nacional em temas, tramas e persona-
gens cresceu de forma constante (PORTO E SILVA, entrevista, 1979).

A TV Globo, que até esse momento vinha seguindo um estilo tradicional das novelas,
com cenários exóticos e parcelas, viu o interesse da audiência em Beto Rockfeller e de-
fendeu o estilo. Neste processo, o gênero brasileiro se reformulou, distanciando-se do
modelo da América Latina.
Pouco a pouco, autores como Daniel Filho, Janete Clair e Dias Gomes se tornaram famo-
sos em nível nacional para escrever roteiros originais. Junto com outros que adaptaram
obras históricas e de ficção brasileira, os escritores brasileiros foram lentamente afas-
tando os roteiros e autores argentinos e mexicanos, paulatinamente “abrasileirando” o
meio (SÁNCHEZ, entrevista, 1978).
Alguns críticos, como Miceli (1972, p. 162-167), argumentaram que apesar da popula-
ridade e do apelo às massas de uma produção brasileira como Beto Rockfeller nenhum
produto da indústria cultural brasileira representava realmente uma cultura de massa
do Brasil. Para ele, as expressões culturais ou símbolos na televisão brasileira refletiam
só segmentos sociais fragmentados, como uma ideologia de elite muito penetrada por
ideias estrangeiras, uma ideologia de classe média de elementos autocontraditórios do-
minada pelas ideias refletidas da classe alta e expressões “rústicas” ou populares que,
quando articuladas, eram tipicamente reprimidas pelos outros grupos. Não enxergava
nenhum espaço para uma cultura de massa no Brasil que fosse mesmo relativamente
coerente ou nativa.

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Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos

A análise de Miceli tinha o propósito de ser polêmica, suscitar perguntas. É bem-sucedida


nesse sentido, mas nesse ponto acredito que ele e críticos afins deixam escapar um ponto
crucial. É que há, de fato, produções de televisão brasileiras como novelas e programas de
auditório que claramente não são alta cultura, que apelam a um público de massa, tanto
da classe média quanto baixa (definidas pelos hábitos de educação e consumo), constante-
mente produzidas em escala industrial pelas emissoras, ainda que suas formas básicas como
entretenimento comercial reflitam algumas fontes e influências estrangeiras residuais.
Outro estudioso, Muniz Sodré, sentia que as telenovelas eram uma expressão genuína e
inclusive valiosa da cultura de massa brasileira.

Situo a telenovela no gênero da literatura de massas. Não concordo com


quem reclama que novela é “de baixo nível”. Creio que é o folhetim de hoje...
A Janete Clair (uma das mais populares autoras) tem o gosto pela cultura de
massa (talento folhetinesco). Ela não complica a linguagem; ela atua dentro
dos limites do folhetim de hoje. Ela “familiariza” a linguagem, já que a novela
é dirigida ao grupo familiar (FOLHA DE S. PAULO, 8 de julho de 1978).

Embora Beto Rockfeller tenha sido produzida pela TV Tupi e várias outras novelas de destaque
pela TV Excelsior em meados da década de 1960, a consolidação da telenovela como uma
expressão de sucesso (em audiência) da cultura de massa brasileira ocorreu com a TV Globo.
A Globo pagava bem no final dos anos 1960 para atrair os melhores atores, autores e
diretores do cinema e do teatro que passaram trabalhar em novelas (ROTHER, 1978, p.
57). Tornou-se uma prática comum para os atores e dramaturgos brasileiros trabalhar
em novelas, filmes e teatro, tudo em um mesmo ano. Isto levou a um notável nível de
qualidade nas telenovelas, economicamente gratificante para os artistas e autores e para
a Globo, que atraía enorme audiência e interesse dos anunciantes. No final da década,
a produção de novelas da Globo e da Tupi, que mantinha um público pequeno mas
respeitável, estava se tornando uma indústria cultural bastante estável, autocontida. Já
não precisava do tipo de apoio infraestrutural dos anunciantes norte-americanos (FLO-
RISBAL, entrevista, 1979) ou de orientação sobre os gostos e interesses da audiência dos
departamentos de pesquisa das agências de publicidade (DUAILIBI, entrevista, 1979).
A indústria da telenovela estava começando a estabelecer um conjunto coerente de va-
lores e símbolos para guiar e caracterizar o conteúdo de seus produtos no final dos anos
1960. Mas as novelas foram criticadas várias vezes entre 1964 e 1968 por mostrar violência
excessiva em horários em que crianças assistiam (O ESTADO DE S. PAULO, 22 de agosto de
1964; 9 de setembro de 1964, 15 de agosto de 1967). Também eram vistas como promo-
ção de materialismo e de valores de consumo (ARTUR DA TÁVOLA, O Globo, 3 de setembro
de 1974), que curiosamente não foram considerados como valores estrangeiros ou influen-
ciados por estrangeiros, senão como valores brasileiros passíveis de questionamento.

Abrasileirização da Telenovela na Década de 1970


Em 1969, as principais emissoras de televisão da época – as redes nacionais Globo e Tupi
e as emissoras independentes paulistas Record, Excelsior e Bandeirantes – percebem que
as telenovelas eram a forma de programação preferida do público brasileiro. Naquele ano,
cada uma produziu pelo menos quatro telenovelas.
Não havia audiência nem anunciantes suficientes no mercado para apoiar este nível de
produção. Em 1970, a TV Excelsior já estava dissolvida e a Bandeirantes parara de produ-

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Joseph D. Straubhaar

zir novelas. Em 1974, a Record também deixou de produzi-las, restando apenas as redes
Tupi e Globo, que tinham bases econômicas nacionais de apoio. Dirigiram-se à “solução
fácil” de substituir programas importados por tentativas de criar suas próprias novelas.
Na virada da década de 1960 para 1970, a telenovela brasileira evoluiu lentamente a
partir do modelo latino-americano. Straubhaar (1982; 1984) descreveu uma “abrasileiri-
zação” do gênero em dois sentidos: uma quantidade significativa da produção nacional,
pois as novelas passaram a preencher três horas de horário nobre, em seis noites por
semana, e uma adaptação igualmente significativa do gênero ao refletir a cultura na-
cional. A Globo, em particular, investiu fortemente nos valores de produção, tais como
o uso de gravações externas que antes eram evitadas devido aos custos de produção.
Também promoveu uma modernização dos enredos, incluindo temas de atualidade e
apropriou-se de textos produzidos por autores, romancistas e dramaturgos brasileiros.
Neste processo a TV Globo criou o que denominou, em sua própria publicidade, de
“Padrão Globo de Qualidade” (HEROLD, 1986; LÓPEZ, 1995; STRAUBHAAR, 1982). Este
alto nível de qualidade da produção começou a diferenciar as telenovelas brasileiras, em
particular as da Globo, de outras na região e mais ainda da soap opera norte-americana.
Isto demonstra uma reconfiguração da novela brasileira não apenas em forma de gêne-
ro, mas a qualidade da produção, assim.
Em uma importante mudança estilística de algumas formas de telenovela, as brasilei-
ras são “obras abertas” ou um “gênero aberto” (MATTELART, 1990, p. 41). Durante a
produção, os criadores recebem informação direta e indireta dos espetadores e fãs,
produções teatrais, anúncios, imprensa de elite e popular, redes institucionais, institutos
de pesquisa de audiência e de marketing e outras forças sociais na sociedade, como a
Igreja Católica, o governo e grupos de ativistas (HAMBURGUER, 1999). Esta capacidade
de resposta à reação do público é mais forte nas telenovelas latino-americanas do que
em outras formas globais de melodrama. É particularmente notável no Brasil, onde a
Globo desenvolveu amplamente métodos de pesquisa, antecipação e acompanhamento
das preferências e reações do público (STRAUBHAAR 1984).
Este modo de produção foi influenciado pelas práticas de censura do regime militar,
que pouco a pouco obrigaram muitos autores a sair do teatro e do cinema e encontrar
refúgio na TV. A televisão se tornou um espaço no qual, mesmo se censurados, autores
conseguiam esgarçar os limites do aceitável na atmosfera repressiva da década de 1970.
As novelas não romperam por completo com suas raízes melodramáticas, mas incorpo-
raram uma voz nacional. Introduziram uma linguagem popular, o uso de coloquialismos
e personagens arraigados na vida cotidiana das metrópoles brasileiras. No entanto, este
processo era limitado pelo que se percebia como as expectativas do público-alvo. Klags-
brunn (1993, p. 19) considera que a incorporação da realidade nas novelas brasileiras não
era mais que uma imagem superficial dos problemas reais que afetavam o país: refletia
superficialmente, não conclusivamente, sobre aspectos e problemas sociais enfrentados
pela sociedade brasileira, como costuma ocorrer nos gêneros adotados para entreter
as massas. Não sendo nem a crítica social nem sugestões sobre o caminho a seguir os
objetivos principais da telenovela, já que isto afastaria um número significativo de espec-
tadores, os problemas sociais e políticos aparecem apenas em papel secundário.
Na década de 1970, a novela alcançou o programa de auditório como o arquétipo de
entretenimento da televisão “brasileira”, mas estes não desapareceram. Na maior parte
da década, tardes e noites de domingo foram dominadas por uma variação pré-grava-
da e habilmente produzida dos programas de auditório, por um veterano do gênero,

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Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos

Sílvio Santos, e o chamado Fantástico. Este último foi muito ilustrativo de como a TV
Globo abordava a programação. Em primeiro lugar, era bem organizado e produzido
com requintes. Em segundo, contava com uma ampla variedade de talentos caros e
uma diversidade de temas. Em terceiro, continha notícias e até reportagens em estilo de
documentário sobre assuntos públicos, muito apolíticos. Em quarto lugar, era orientado
em nível nacional, não paroquialmente focado no Rio de Janeiro ou em São Paulo.
As redes tornaram-se cada vez mais capazes de alcançar um público nacional, o que lhes
proporcionou maior fatia da programação nacionalmente produzida. Em relação à demanda,
o público queria cultura popular ou de massa, brasileira (novelas, programas de auditório, hu-
mor, futebol e música) e cada vez mais constituía uma massa de consumidores que poderiam
apoiar os anunciantes que pagavam pela programação que preferia.
O fato de que uma novela típica durava de oito a nove meses também permitiu aos
autores incorporar a reação do público no processo de escritura e de produção, depois
do planejamento inicial. Alguns temiam que isto aumentaria a influência das questões
de marketing no ajuste ao gosto do público. No entanto, certos críticos brasileiros viram
isto como um desenvolvimento positivo e afirmaram que esta qualidade particular esta-
belecia a novela à parte de outras formas dramatúrgicas, o que permitia um intercâmbio
mais genuíno entre autor e público (TÁVOLA, O Globo, 2 de setembro de 1974).
Em meados dos anos 1970, a Globo tinha perfis diferenciais de audiência para suas várias
novelas, às 18h, 19h, 20h e 22h (ROTHER, 1977, p. 58). As novelas foram definitivamente
aperfeiçoadas para atrair audiência particular de cada faixa do horário nobre. Autores eram
orientados pelos departamentos de pesquisa das emissoras e de agências de publicidade
na seleção de temas e personagens de maior apelo. Esta integração entre pesquisa e pro-
dução foi maior na TV Globo (SÁNCHEZ, entrevista, 1978; Veja, 6 de outubro de 1976), o
que ajudou a manter sua independência relativamente alta de avaliação da programação.
Rother (1977, p. 5) cita o diretor de pesquisa da TV Globo, Homero Sánchez:

O espectador médio das novelas no Brasil é uma mulher abaixo dos 40 anos,
casada, católica, com dois filhos e membro da classe média baixa... Come-
çamos às 18h com algo que fará que uma mulher pensar no tempo de suas
avós, algo puro e cheio de romantismo. Em seguida, às 19h chegamos com
algo um pouco mais leve e jovem [apelando também à grande quantidade
de crianças que assistem]. Rompemos para um pouco de ação às 21h... a essa
altura o homem já jantou, leu o jornal e relaxou um pouco, assim damos nele
um golpe de ‘Kojak’ ou ‘SWAT’ e depois às 22h mudamos para algo muito
adulto, para atrair tanto o homem quanto a mulher. É aí que temos a opor-
tunidade de experimentar um pouco com nossas novelas.

Competindo com os Programas Importados


Embora a forma básica da novela brasileira tenha sido definida nos anos l960, foi nos 1970
que a realmente floresceu como forma de entretenimento primordial da cultura de massa
no Brasil. A influência externa foi reduzida e convertida em “literatura de massas”, como
já dito por Sodré. A TV Globo consolidou sua produção em escala industrial, com quatro
diferentes no ar simultaneamente, exceto aos domingos.
A fatia de audiência das telenovelas em São Paulo era mais que o dobro de qualquer ou-
tro formato de programa nacional e quase igual em 1975-1977 à audiência de seriados

49
Joseph D. Straubhaar

e longas-metragens importados somados. Novelas tinham 17% em 1971, 22% em 1973,


20% em 1975 e 22% de novo em 1977.
Apesar da dominação das novelas da Globo na década de 1970, todas as várias experi-
mentações foram importantes. Tanto Moya (entrevista, 1979) e Porto e Silva (entrevista,
1979) observam que a TV Globo havia copiado muitas de suas técnicas a partir de emis-
soras anteriores, em particular da TV Excelsior. A Globo sintetizara com sucesso muitos
elementos de estilo e os pôs em uma linha de produção rigorosa. Como disse Porto e
Silva, a diferença de qualidade entre uma novela da Globo e uma da Tupi era evidente.
Em 1979, a TV Tupi passou por problemas econômicos, mas ainda produziu três ou quatro
telenovelas noturnas, algumas introduzindo temas polêmicos, como questões indígenas ou
preocupações ambientais, atraindo certa audiência. Uma década da construção da sua base
e capacidade de produção econômica, a TV Bandeirantes voltou a entrar na competição de
telenovela em 1979, com dois programas noturnos, com relativo sucesso de audiência.
Em meados da década de 1970, críticos beasileiros começaram a tratar a telenovela pela
sua representação da cultura brasileira e qualidade de produção relativamente alta em
comparação com outros programas de televisão. Em 1974, Artur da Távola (O Globo,
25 de março de 1974) escreveu: “No futuro, telenovelas como “Beto Rockfeller”, “Nino,
o Italianinho”, “Selva de Pedra”, “Bandeira 2”, “O Bem Amado” e “Os Ossos do Barão”,
serão analisados como parte da consolidação da telenovela no Brasil, como expressão
cultural e artística mesclada com característica popular, um produto totalmente novo
gênero na história da dramaturgia”. Pesquisadores de comunicação estrangeiros concor-
dam. Katz (1977, p. 196) assinala que a principal telenovela da TV Globo “é agora um as-
sunto sério, relacionada com pessoas da vida real e problemas sociais contemporâneos”.
Read (1976, p. 91) e Tunstall (1977, p. 176) também observam que a telenovela está entre
os programas mais populares e representativos das produções da região.
A criatividade dos autores de telenovelas, diretores e atores tiveram influências exter-
nas, mais relacionadas com o padrão industrial do sistema de televisão brasileira. Esta
mudança ocorre a partir da década de 1960, quando os anunciantes norte-americanos e
argentinos passaram a ter grande influência.
As telenovelas brasileiras são produtos de uma indústria cultural única e distinta, do Brasil.
Na opinião de críticos brasileiros como Artur dá Távola e Muniz Sodré, reproduziram de
forma única o drama de massa brasileiro e sofreram influências comerciais da indústria, dos
processos da indústria essencialmente “brasileira”.

Telenovelas Políticas na Década de 1980


A partir do final dos anos oitenta, como resultado da abertura política que começou com
a transição do governo militar a um governo civil (STRAUBHAAR, 1989a), os escritores
de telenovelas aumentaram a visibilidade das suas agendas sociais, incluindo o debate
político nacional em suas narrativas (PORTO, 2005). A natureza comercial das telenove-
las também evoluíram: passaram a vender não apenas produtos destinados às donas de
casa, mas carros esportivos e serviços dirigidos a diferentes segmentos da audiência.
Apesar da margem para a criatividade nas tramas, os escritores de telenovelas agora
também devem se submeter aos imperativos comerciais e incluir merchandising em seus
roteiros, em cooperação com o departamento comercial. A forma comercial da teleno-
vela foi reconfigurada para explorar a cultura e as regras locais.

50
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos

Intencionadamente ou não, a TV Globo transformou a telenovela brasileira em fórum de


discussão da realidade brasileira: tem levado à maioria dos lares brasileiros temas atuais
do âmbito social e político. Em uma análise histórica do desenvolvimento das telenovelas
no Brasil, Hamburger (1999) argumenta que estes textos criaram um espaço para falar de
nação – e se converteram na forma imaginada da nação (ANDERSON, 1983).
As mudanças no estilo das telenovelas brasileiras foram mais dinâmicas e estritamente as-
sociadas com os acontecimentos (como a inclusão nas novelas de temas como eleições,
greves e escândalos, que ocorriam na “vida real”). A atenção aos eventos e assuntos sociais,
como a telenovela O Rei do Gado (1994-1995), sobre os sem terra, é um desenvolvimento
importante que diferencia as telenovelas brasileiras na América Latina.
O “viés melodramático”, que manteve a popularidade dos textos, se modernizou. Ainda
assim, os melodramas permaneceram fiéis a temas tradicionais como o desejo romântico
e o conflito, a mobilidade social e o esperado final feliz. A estrutura da telenovela man-
teve escritores dentro das convenções comerciais e de gênero e lhes deu recursos passar
mensagens à audiência. Um dos autores de telenovelas de maior sucesso, Benedito Rui
Barbosa, autor de O Rei do Gado, usou o espaço e os recursos da telenovela para dis-
cutir a reforma agrária. Outra telenovela da TV Globo, Duas Caras (2007-2008), utilizou
o seu espaço como “instância cultural específica”, colocando em evidência a história e
ascensão de um jovem corrupto “com duas caras”. Entrelaçada com a linha principal da
história estão tramas secundárias que incluem o “reinado” de um líder de comunidade e
as turbulências de campanha de um político local.

O Novo Mercado Regional para as Telenovelas – Mais Além?


A direção cada vez mais política e social que orientou muitas telenovelas da TV Globo marcou
uma nova onda de diferenciação da telenovela brasileira, com a adoção do gênero adotado
em outras partes da América Latina. Hernández (2001) observou o que considera duas formas
do gênero da telenovela: a dura (forte, com maior orientação política ou social) e a branda
(mais suave, romântica, menos política). Ele identifica o México e a Venezuela entre os princi-
pais produtores da América Latina que tendem a produzir telenovelas românticas, enquanto
o Brasil e a Colômbia tendem a tratar abertamente de temas políticos e sociais. Assinala ainda
que, apesar do desenvolvimento de novas redes nos anos 1980 e 1990, redes dominantes
como Globo no Brasil produziam novelas fortes, mas uma rede competidora podia impor-
tar ou produzir telenovelas suaves, caso do SBT (Sistema Brasileira de Televisão). No México,
quando a Rede Azteca resolveu desafiar a Televisa contratou uma empresa de produção (Ar-
gos) para produzir telenovelas fortes, com temáticas políticas ou sociais (HERNÁNDEZ, 2001).
Isso acrescenta nova peculiaridade a um mercado que evoluiu rapidamente. Na década
de 1990, o mercado latino-americano havia crescido e estava estratificado. Roncagliolo
(1995) identifica três atores daquele momento: 1) os exportadores de material bruto,
como México e Brasil, de telenovelas principalmente, mas também de programas de va-
riedades, comédias, música e esportes; 2) os novos exportadores, como Argentina, Chile,
Colômbia e Venezuela, que importavam e exportavam, mas cada vez mais autossuficien-
te em gêneros como telenovelas; 3) países menores e mais pobres, como a República
Dominicana, que importva a maior parte da sua programação dos principais produtores
da América Latina. Recentemente, novas formas de operação no México ou em Miami
estão voltadas para exportações ao mercado hispano nos EUA (PINHÃO; LÓPEZ, 2007).
É cada vez mais difícil caracterizar a televisão latino-americana por país, embora frequente-
mente países como México e Brasil tendam a ter sua marca bem definida para gêneros de

51
Joseph D. Straubhaar

exportação, conhecidos nos mercados mundiais como produtores primários de telenovelas


(HAVENS, 2006). Segundo Harrington e Bielby (2005, p. 911), nas feiras mundiais comerciais
de televisão, são duas as estratégias principais adotadas para a construção da identidade das
marcas. “Programação de gêneros e subgêneros formam o produto primário na televisão in-
ternacional, em torno da qual muitos distribuidores constroem suas identidades corporativas”
(HAVENS, 2003a, p. 29). Assim para criar uma reputação para as telenovelas brasileiras, para
os reality shows dos países escanidnavos, para o desenho animado japonês, e pelos filmes
de ação alemães, alguns distribuidores usam ferramentas de marketing (O’SHAUGHNESSY &
O’SHAUGHNESSY, 2000). Imagens nacionais também podem ser utilizadas pelos comprado-
res como outro elemento que influencia decisões de compra (HAVENS, 2003a, p. 31).
Em um nível menos global, mais matizado e regional, redes de vários países podem uti-
lizar importações diretas de programas, recorrer à importação de gêneros e formatos
menos tangíveis. O SBT no Brasil, por exemplo, começou a competir com a TV Globo no
início anos de 1990 com telenovelas importadas do México, dubladas em português.
Como os programas importados de México diferem bastante do modelo dominante
da TV Globo, encontraram um público que telenovelas mais leves, mais românticas (LA
PASTINA, 1999). O SBT fez isso relativamente bem durante uma década, sustentando o
segundo lugar no mercado brasileiro com a simples importação e dublagem de teleno-
velas mexicanas com custos relativamente baixos.
Uma terceira rede, a TV Record, entrou na concorrência partir de 2001 e o método encontra-
do para manter a audiência foi importar os roteiros de telenovelas mexicanas e adaptá-los ao
público brasileiro, com atores brasileiros. A demanda por parte do público, com o aumento
da concorrência, resultou na maior presença de telenovelas de estilo mexicano no Brasil.
Outras redes da América Latina também começaram a identificar como mais vantajoso
para concorrer nos mercados nacionais a importação de roteiros e a produção de ver-
sões localizadas de programas regionais de sucesso, no lugar de simplesmente importar
programas, uma lógica que Moran (2000) observou na Ásia e em outros países em re-
lação a games e reality shows. Telenovelas de sucesso, como Betty, a Feia (Ugly Betty)
também podem resultaram tanto em importações como em adaptações do formato.
O sucesso na Colômbia Betty, a Feia resultou na importação por vários países, incluindo
a maior parte de toda América Latina e o mercado hispânico nos EUA, dublada em ou-
tros idiomas para outros mercados (RIVERO, 2003). Em outros mercados, o programa foi
regravado ou adaptado a versões locais. Duas adaptações notáveis foram a que ocorreu
em 2006-2007 no México, como telenovela local da Televisa entitulada A Feia Mais Bela
(La más bella niña fea), e a adaptação no formato de série a partir de 2006 pela rede de
TV ABC nos Estados Unidos, entitulada Ugly Betty. Na produção da Televisa continuaram
alguns dos principais elementos da trama original, como o apoio a Betty de seu grupo
de amigos, os Feios, mas foram descartados outros. Os produtores norte-americanos
originalmente pretendiam que fosse uma espécie de telenovela com capítulos diários,
mas terminaram por produzir uma comédia convencional, com episódios semanais em
série, com episódios autônomos. Elementos da trama original tambeem foram reduzi-
dos, como o grupo de amigos, concentrando-se no núcleo familiar.

Conclusão
Vários pontos podem ser observados em relação ao gênero e formato das telenovelas. Primei-
ro e principalmente, que data de 1950 o fluxo de exportação dos roteiros de telenovelas na

52
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos

América Latina – formatos e scripts, assim como autores e produtores, em movimento ante-
rior à explosão dos programas de televisão norte-americanos enlatados na década de 1960.
Isso demonstra que a ideia de compra e adaptação de elementos de produção, assim como
a produção de versões nacionais, é chave para a produção cultural híbrida (KRAIDY, 2005).
Também evidencia, até certo ponto, o predomínio da exportação de produtos culturais norte-
-americanos, assinalado em estudos pioneiros como o de Nordenstreng e Varis (1974). Assim,
localização e adaptação de elementos de formatos de importados de televisão compõem a
hibridização da televisão transnacional na América Latina desde a década de 1950.
Em segundo lugar, talvez o ponto mais interessante seja a evolução histórica do gênero da
telenovela na América Latina como um diálogo entre tradições culturais regionais e nacio-
nais. Quase todos os países, incluídos os produtores dominantes Brasil e México, mostram
elementos importados de formatos, roteiros e escritores, como o início com Cuba. Quase
todos os países da América Latina suficientemente grandes ou suficientemente ricos são pro-
dutores de telenovelas (STRAUBHAAR, 2007) arraigadas em elementos importados e em suas
próprias matrizes culturais, com a adaptação de gênero e de formatos a histórias culturais
específicas (ROWE & SCHELLING, 1991) para competir nos mercados nacionais. Isso demons-
tra que os gêneros e os formatos importados são importantes para guiar o desenvolvimento
da indústria cultural – ainda que em médio e longo prazos, considerando a globalização e a
hibridização, a adaptação cultural das formas importadas seja talvez inevitável.
Em terceiro lugar, as telenovelas continuam a ter grande circulação global como programas
exportados, principalmente na América Latina, e também dobraram a presença em outros
idiomas. Esta circulação de exportação pode ser grande, sobretudo com exemplos como Ugly
Betty, mas a literatura de contra-fluxo, como de Biltereyst e Meers (2000) mostra que o volu-
me real de exportações alcançou seu ponto máximo na década de 1990 e eainda é restrito se
comparado com o fluxo de exportação de programas dos Estados Unidos.
Em quarto lugar, em linha com a tendência de adaptação dos gêneros e formatos televisivos
como parte do fluxo largo prazo do desenvolvimento cultural híbrida (KRAIDY, 2005; PIE-
TERSE, 2004), cada vez mais se exporta formatos e roteiros de telenovelas e não programas
enlatados baratos. Essa pode representar uma nova forma de contrafluxo (THUSSU, 2007),
talvez com maior alcance, já que os Estados Unidos têm se mostrado resistentes à entrada
de programas enlatados, mas abertos à importação de ideias de gênero e formatos – mais
visível em relação a programas como os reality shows, em grande medida importados de
todo o mundo. O apetite dos Estados Unidos para a importação de formatos roteirizados
aumentou consideravelmente em 2008, seguindo a demanda consolidada de importação de
reality shows. Este serve como exemplo atual do alcance do fluxo dos formatos roteirizados
no âmbito dos países produtores. Talvez seja interessante também considerar os quase 60
anos de fluxos e adaptações de textos do gênero telenovela na América Latina, para entender
como o fluxo transnacional de gêneros roteirizados pode funcionar nas redes TVs nacionais e
regionais, assim como a forma pela qual tais fluxos são localizados e hibridizados.

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55
Joseph D. Straubhaar

56
A Pequena Imprensa
de Mato Grosso do Sul1
Daniela Cristiane Ota e Mario Luiz Fernandes
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul

M
ato Grosso do Sul é um estado situado na região Centro-Oeste do Brasil, que conta
com 78 municípios e 165 distritos. Possui dois importantes biomas – Pantanal e Cer-
rado – e tem como base econômica atividades ligadas ao agronegócio. Segundo o
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) a população sul-mato-grossense no Censo
Demográfico de 2010 era de aproximadamente 2,5 milhões de habitantes.
Mato Grosso do Sul tem como limites os estados de Goiás (Nordeste), Minas Gerais (Leste),
Mato Grosso (Norte), Paraná (Sul) e São Paulo (Sudeste). Outra característica geográfica im-
portante é a fronteira com o Paraguai e a Bolívia. Historicamente, o Estado é um dos mais
novos do Brasil. Foi criado em 11 de outubro de 1977, por meio da Lei Complementar nº 31,
e instalado em 1979, pelo então presidente Ernesto Geisel.
Desde sua instalação, o Estado vem experimentando um acelerado crescimento em seus
aspectos econômicos e sociais. Movida por estes fatores, a mídia sul-mato-grossense
também passa por expressivo avanço. Nossa estimativa é de que entre 140 e 150 jornais
são editados no estado. Eles buscam atender a demanda de informação de 2,5 milhões
de habitantes com índice de alfabetização de 91,3% (IBGE 2010) e considerável renda per
capta, fatores que credenciam esses cidadãos a potenciais leitores.
No sistema de rádio são 132 emissoras comerciais – 74 FMs (Frequência Modulada), 56 OMs
(Onda Média), 02 OTs (Ondas Tropicais) – além de nove Educativas (FMs) e 76 Comunitárias
(FMs). Campo Grande, a capital, concentra 11,8% (26 rádios) desse total de emissoras. Entre
as seis principais cidades do estado que detém as maiores populações e indicadores eco-
nômicos essa concentração é de 28,7% (63 rádios).2 De acordo com a Agência Nacional de
Telecomunicações (Anatel), em fevereiro de 2011 Mato Grosso do Sul ainda contava com 29
canais em aberto para emissoras FM, cinco para OM e nove para Educativas.
Em televisão, são 15 emissoras comerciais de canal aberto e oito educativas. Neste siste-
ma de comunicação destacam-se alguns conglomerados regionais como a Rede MS de
Rádio e Televisão (afiliada à Rede Record), Rede Centro-Oeste de Rádio e TV (SBT), Rede
Mato-grossense de Televisão (Rede Globo) e TV Guanandi (Bandeirantes), entre outros.
De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD/IBGE – 2009), do
total de lares sul-mato-grossenses, 85,5% possuem aparelho de rádio, 96,9% de televi-
são, 92,8% de telefone fixo, 32,3% de microcomputadores e 24,8% de microcomputa-
dores com acesso à Internet. Esses índices colocam a informação, via meios eletrônicos,
ao alcance de praticamente toda a população.
1 Artigo apresentado no V Colóquio Brasil-EUA de Ciências da Comunicação. Chicago, 2012.
2 As cidades com o maior número de emissoras são: Campo Grande, a capital, com sete OMs, sete FMs, duas OTs; seis Comunitárias
e quatro Educativas; Corumbá com três FMs e quatro OMs, uma Educativa e duas Comunitárias; Dourados com três OMs, três FMs,
uma Educativa, uma Ondas Tropicais e duas Comunitárias; Três Lagoas com duas OMs, três FMs, uma Educativa e três Comunitá-
rias; Ponta Porã com duas OMs, três FMs e uma Comunitária; Coxim com duas OMs, uma FM e uma Comunitária.
Daniela Cristiane Ota e Mario Luiz Fernandes

E qual a estrutura dos pequenos jornais impressos de Mato Grosso do Sul? Em bus-
ca dessa resposta, estes pesquisadores colocaram em desenvolvimento do projeto de
pesquisa intitulado Perfil da pequena imprensa de Mato Grosso do Sul que tem como
objetivo diagnosticar este segmento de mercado quanto a: 1) Ordem estrutural – a) apu-
rar o número de pequenos jornais existentes no estado; b) levantar qual a estrutura da
pequena empresa jornalística; c) identificar as características do produto jornal; d) traçar
o perfil de seus jornalistas; e) identificar o perfil dos empresários do setor; 2) Ordem
conjuntural – a) avaliar o índice de crescimento destes veículos; b) identificar os fatores
sócio-econômicos e tecnológicos que contribuíram para este desempenho.
Como primeira fase desse projeto foi desenvolvido o Portal de Mídia (www.portaldemi-
dia.ufms.br) no qual estão postados os dados iniciais dos jornais localizados no estado.
Este paper tem como objetivo apresentar e interpretar esses esses primeiros dados que
foram o perfil mais geral da pequena imprensa de Mato Grosso do Sul. A rigor, o estado
não possui grandes jornais. Os dois principais, o Correio do Estado, tem uma tiragem de
apenas 17 mil exemplares dia, e O Estado, apenas 11 mil. Para efeito desse estudo, são
considerados como os dois maiores jornais e não foram enquadrados como objeto desta
pesquisa. Todos os demais jornais com linha editorial não segmentada, não institucio-
nais e com objetivos comerciais foram considerados.
Trata-se de uma pesquisa pioneira no estado e tem como relevância discutir construções
e desconstruções a respeito de um país de grandes dimensões como o Brasil, marcado
pela heterogeneidade, diversidade e contradições.

Uma Breve Conceitualização


A revitalização das mídias locais e regionais começou a ganhar força no contexto da
globalização das comunicações, e se desenvolveu como uma política de comunicação de
proximidade. Nela o cidadão vê o seu lugar, a sua história e a sua cultura retratadas pelos
mass media. Autores como Castells (2000) e Hall (1998) também demonstram o interesse
pelo reforço das identidades locais concomitantemente com o processo de globalização.
Xosé López Garcia (1999) contribui também com a idéia quando relata que os proces-
sos de globalização e o fortalecimento da comunicação local são complementares e
interconectados, ou seja, o global precisa do local para se realizar. Tal fato pode ser
evidenciado uma vez que, atualmente, existe uma demanda por uma comunicação mais
próxima a vida dos cidadãos e que preservem a diferença. Peruzzo (2002, p. 70) diz que
a valorização dos meios de comunicação em nível local ocorre no auge do processo de
globalização, e que este ao invés de destruição, contribui na geração de um reforço da
identidade local ou na construção de uma.
Podemos dizer que existe uma impossibilidade de se definir fronteiras precisas entre o
regional, local e o comunitário, uma vez que as fronteiras estabelecidas, conforme cita
também Ianni (1997) não são geográficas, mas sim culturais, ideológicas, de idioma e de
circulação de informação. “Em outras palavras o local se constitui num espaço caracte-
rístico constituído por partes que se relacionam, mas que ora se identificam, dependem
umas das outras, e ora são excludentes”. (Perruzo, 2002, p. 63).
Sendo assim, apesar do critério geográfico ter um peso relevante na definição do meio
de comunicação local, ele não é determinante, pois o conceito de território extrapola as
marcações geográficas e administrativas e incorpora outras dimensões do campo das
identidades culturais e das condições de relacionamentos na sociedade.

58
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos

Especificamente com relação a produção midiática de proximidade, Peruzzo apud Carlos


Camponez (2002, p.129) diz que:

[...] proximidade já não se mede em metros. Devemos estar preparados para


conceber a produção de conteúdos que, embora longe de nossas casas, nos são
próximos, bem como para assistir à produção nas regiões de conteúdos tão ho-
mogeneizantes e massificadores quanto os das grandes corporações de media.
[...] Não é a proximidade geográfica que, por si só, faz o media regional.

Renato Ortiz (1999) e Alain Bourdin (2001) também citam que não é possível dar um con-
torno territorial preciso para o local/regional, uma vez que o mesmo se constitui em um
espaço onde as partes estão interconectadas. Dessa forma, os pesquisadores dizem que os
meios de comunicação que operam em nível local podem valorizar os sotaques e modos
de vida da população do entorno, observando múltiplas variáveis e atentando para fatores
como a proximidade, singularidade, diversidade e familiaridade, caracterizados abaixo:

Proximidade – sentido de proximidade diz respeito à noção de pertencimento,


ou dos vínculos existentes entre pessoas que partilham de um cotidiano e de in-
teresses em comum;
Singularidade – cada localidade possui aspectos específicos, tais como a sua
história, os costumes, valores, problemas, língua etc., o que, no entanto, não dá
ao local um caráter homogêneo;
Diversidade – o local comporta múltiplas diferenças e a força das pequenas
unidades;
Familiaridade – constituída a partir das identidades e raízes históricas e culturais.

Castells (1997) define que a importância da informação de proximidade aumenta a partir


da defesa da identidade local, onde as relações permanecerão no âmbito das pessoas pró-
ximas, aquelas que compartilham um mesmo idioma e uma mesma realidade e identidade
local; onde a fonte de significado e experiência de um povo e que, explica Collier (1997),
emerge quando mensagens são trocadas entre pessoas.
Neste contexto, reiterando a importância da mídia local, o projeto de pesquisa Perfil da
Pequena Imprensa de Mato Grosso do Sul objetiva fazer o mapeamento e traçar o perfil
desses jornais que diz respeito a sua estrutura empresarial e editorial. Como primeira
fase desse projeto, foi desenvolvido o Portal de Mídia (www.portaldemidia.ufms.br).
Com base nos primeiros dados de 126 jornais localizados em 44 municípios, e que cons-
tam do portal, foi possível desenvolver um perfil inicial desses periódicos.

O Portal de Mídia
A estrutura dos meios de comunicação de Mato Grosso do Sul, notadamente dos jornais
impressos, é uma incógnita. Quantos são, qual o montante de sua tiragem, quantos jor-
nalistas empregam, qual o faturamento e qual o alcance entre os leitores são algumas
das muitas questões sem respostas. O projeto de pesquisa Perfil da Pequena Imprensa de
Mato Grosso do Sul objetiva fazer o mapeamento desses jornais e traçar o perfil do setor.
O Portal reúne dados sobre a comunicação em geral e sobre o exercício da profissão de
jornalista. Agrega links de importantes sites da área como os de crítica de mídia, legislação

59
Daniela Cristiane Ota e Mario Luiz Fernandes

do setor, cursos de graduação e pós-graduação, sindicatos e federação da categoria, etc.


Apresenta também resenhas e dicas de filmes, livros e cursos na área. O objetivo é tornar-
-se um referencial como fonte de pesquisa para estudantes, professores e profissionais e,
principalmente, democratizar as informações sobre os meios de comunicação local.
Colocado na rede em abril de 2011, já contém o maior banco de dados sobre a imprensa
de Mato Grosso do Sul, com informações sobre 126 jornais impressos, 80 emissoras de
rádio de seis de televisão. Informações que já estão disponíveis à sociedade, servindo
como um verdadeiro canal de democratização da informação sobre os meios de comu-
nicação. Entre 13 de abril de 2011 e 1º de março de 2012, o Portal teve 2.775 acessos,
o que demonstra sua repercussão e comprova sua aceitação como fonte de referência
para estudantes, professores e profissionais que pesquisam a mídia sul-mato-grossense.

Indicadores de Breve Perfil


Até julho de 2011 foram identificados e localizados 126 jornais no estado, a partir dos
quais foi possível traçar este breve perfil e tecer algumas avaliações apresentadas a se-
guir. Os 126 estão localizados em 44 (56,4%) dos 78 municípios sul-mato-grossenses.
Isso perfaz a média de 2,8 jornais por município onde há jornais. Nossa estimativa é de
circulem entre 140 e 150 jornais no estado, o que coloca os 126 periódicos pesquisados,
bem próximos do número total.
Dos 44 municípios que possuem imprensa escrita, 20 (45,5%) têm apenas um jornal. As
dez (22,7%) cidades com maiores números de títulos são: Nova Andradina e Corumbá
com seis cada; Aquidauana, Três Lagoas e Camapuã com cinco cada; Amambai, Coxim,
Dourados e Ponta Porã com quatro cada. Os demais 14 (31,8%) municípios contam com
dois ou três jornais.
Desponta no mapa a concentração dos jornais em cidades com maior número de habitantes e
densidade econômica, evidenciando a correlação entre estes dois fatores e a mídia. O estado
tem apenas cinco municípios (6,4%) com mais de 50 mil habitantes3, enquanto que 53 (68%)
têm no máximo 20 mil habitantes, um mercado difícil para o desenvolvimento da mídia. Na
faixa entre 20 mil a 50 mil habitantes estão apenas 20 (25,6%) municípios. Esses indicadores
podem sinalizar porque 34 (43,6%) dos 78 municípios ainda não possuem jornal.

Faixas de distribuição da população por município


Faixa de habitantes Nº de municípios %
Até 5.000 07 9,0
5.001 a 10.000 18 23,1
10.001 a 15.000 16 20,5
15.001 a 20.000 12 15,4
20.001 a 25.000 09 11,5
25.001 a 30.000 02 2,6
30.001 a 35.000 03 3,8
35.001 a 40.000 01 1,3
40.001 a 45.000 03 3,8
45.001 a 50.000 02 2,6
Acima de 50.000 05 6,4
TOTAL 78 100
Fonte: IBGE Censo Demográfico 2010

3 De acordo com o Censo Demográfico de 2010 do IBGE, os municípios são os seguintes: Ponta Porã (77.872 habitantes),
Três Lagoas (101.791), Corumbá (103.703), Dourados (196.035) e Campo Grande (786.797).

60
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos

Campo Grande, com seus 786 mil habitantes (potenciais leitores) e a maior concentração
de órgãos públicos e de empresas públicas e privadas (potenciais anunciantes), abriga o
maior número de jornais. Foram localizados 32 periódicos, do maior do estado, Correio
do Estado, com 17 mil exemplares dia, a publicações de bairros, de entidades, semaná-
rios entre outros. A cidade apresenta um fenômeno diferenciado no mercado editorial
brasileiro, que é a distribuição gratuita de jornais dominicais na avenida Afonso Pena.
São de 10 a 15 periódicos distribuídos a milhares de leitores que se deslocam pela manhã,
principalmente de carro, quase que exclusivamente para receber os jornais. Iniciado no
final da década de 80, o ritual já se tornou um programa habitual para muitos leitores.
Partindo para os indicadores constantes nas fichas dos jornais cadastrados no Portal,
emergem algumas características mais específicas destes veículos. A primeira delas é no
campo tecnológico. Dos 126 jornais, 70 (55,5%) possuem também uma versão online e
56 (44,5%) não. Como a maioria dos jornais na versão impressa (ver adiante) tem perio-
dicidade semanal e quinzenal, uma questão interessante a se pesquisar é a adequação
das pautas e dos conteúdos do online para o impresso e vice-versa, já que o jornalismo
online tem como uma das características a instantaneidade.
Outra característica de ordem tecnológica é a de que todos os jornais têm pelo menos
a capa e contra-capa coloridas. Muitos também apresentam algumas páginas coloridas
em seu interior. O sistema off-set e a cor têm contribuído para um grande avanço no
aspecto visual dos jornais, porém, o projeto gráfico de expressiva parcela deixa a desejar
quanto à legibilidade e hierarquização da informação. Falta uma melhor concepção es-
tética para que estes veículos obtenham mais qualidade visual.
A periodicidade dos jornais apresenta indicadores interessantes (quadro abaixo). Dos
126, 49 (38,8%) são semanários e 36 (28,6%) são quinzenais. Apenas 11 (8,7%) são diá-
rios. Essa é uma realidade que reflete a grande maioria da pequena imprensa distribuída
pelo interior do Brasil. Apenas como comparativo, segundo Fernandes (2003), dos 168
jornais que circulavam em Santa Catarina em 1999, 48% eram semanários e 19% eram
quinzenais. Esse indicador pode ser explicado em razão de fatores operacionais, dos
custos, da pouca intensidade dos fatos jornalísticos, do reduzido número de leitores e
de anunciantes nas pequenas comunidades. Nestes casos, a atualidade da notícia fica
circunscrita à periodicidade do veículo. Porém, tanto o semanário quanto o quinzenário,
em boa parte dos casos, parecem satisfazer a demanda do fluxo de informação local.
Como a maioria dos jornais não dispõe de gráfica própria, os custos com a impressão se
tornam elevados, o que dificulta a produção de um diário. Outro elemento complicador
é que, na maioria das vezes, a sede dos jornais é distante das gráficas, o que aumenta o
custo com o transporte e pessoal para levar e buscar o jornal. Mas o principal problema
é o reduzido mercado de anunciantes que na maioria dos municípios não propicia a sub-
sistência de jornais de maior porte. Como bem observa Marques de Melo (1973, p. 131),
“enquanto as cidades não atingem plena autonomia econômica e social, a imprensa será
sempre raquítica, ou, em alguns casos, inexistirá”.

Periodicidade
Periodicidade Nº de jornais %
Semanal 49 38,8
Quinzenal 36 28,6
Diário 11 8,7
Mensal 10 7,9

61
Daniela Cristiane Ota e Mario Luiz Fernandes

Periodicidade
Bi-semanal 05 3,9
Tri-semanal 01 0,8
A cada 10 dias 01 0,8
Não informado 13 10,3
Total 126 100
Portal de Mídia - www.portaldemidia.ufms.br

Ao contrário da região Sul do país onde a maioria dos jornais abraçou o formato tabló-
ide, em Mato Grosso do Sul 87 (69%) são standard e 39 (31%) são tablóides. Embora o
tablóide seja mais prático para a leitura, o standard ainda é considerado um formato que
transmite mais seriedade e também permite um projeto gráfico mais elaborado.
Como ocorre com grande parte dos jornais interioranos brasileiros, o período de sobre-
vida dessas empresas também é reduzido em Mato Grosso do Sul. O quadro a seguir
revela que 83 (65,8%) dos 126 atualmente em circulação surgiram entre 1996 e 2010,
um período de apenas 14 anos. Chama atenção também o fato de que dos jornais lan-
çados ente 1966 e 1970 já não há mais nenhuma circulação. Esse foi um dos períodos
mais duros da ditadura militar com a censura imposta aos meios de comunicação, mas é
provável que jornais tenham sido lançados até mesmo motivados pela própria ditadura,
como veículos de oposição ou situação. Porém, nenhum deles ainda perdura.
Tal definhamento suscita um outro interessante ponto de investigação e parece seguir
a tendência nacional das micro empresas onde, de cada 100, cerca de 70 fecham antes
de completar um ano de atividades. Muito em breve, menos da metade dos atuais 83
periódicos aqui destacados estarão fora de circulação. Além do fator econômico e da
falta de hábito de leitura dos brasileiros, agora há a forte concorrência com a Internet.

Períodos de surgimento dos jornais


Período de fundação Nº jornais %
Até 1960 04 3,2
De 1961 a 1965 01 0,8
De 1966 a 1970 00 00
De 1971 a 1975 03 2,4
De 1976 a 1980 08 6,3
De 1981 a 1986 05 3,9
De 1986 a 1990 07 5,5
De 1991 a 1995 11 8,7
De 1995 a 2000 24 19,0
De 2001 a 2005 31 24,6
De 2005 a 2011 29 23,0
Não informado 03 2,4
TOTAL 126 100
Portal de Mídia - www.portaldemidia.ufms.br

O índice de difusão dos pequenos jornais sempre foi uma incógnita, uma vez que não
são auditadas suas tiragens. Muitas vezes os números são elevados para impressionar o
mercado anunciante, o leitor e o concorrente. As informações levantadas nas fichas dos
jornais evidenciam que a maior faixa de tiragem está entre 1.001 e 3.000 exemplares

62
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos

com 36,5%. Como são jornais estritamente locais ou microrregionais cujas populações
são reduzidas, as tiragens também são pequenas. Além disso, acrescente-se o fato do
baixo de índice de leitura entre os brasileiros.
A segunda maior faixa, 15,1%, está entre três mil e cinco mil. O Correio do Estado (Cam-
po Grande), com tiragem declarada de 17.500 exemplares é único acima dos dez mil. Não
pode ser considerado um jornal de grande porte, mas é o maior de Mato Grosso do Sul.
No quadro a seguir, a distribuição dos jornais por faixa de tiragem.

Tiragem
Número de exemplares Nº jornais %
Até 1.000 exemplares 12 9,5
De 1.001 a 3.000 46 36,5
De 3.001 a 5.000 19 15,1
De 5.001 a 8.000 05 3,9
De 8.001 a 10.000 03 2,4
Acima de 10.000 01 0,8
Não informado 40 31,7
TOTAL 126 100
Portal de Mídia - www.portaldemidia.ufms.br

O quadro abaixo coloca em evidência o restrito alcance dos pequenos jornais quanto a
sua área de circulação.

Circulação
Quantidade de municípios nos quais circula Nº jornais %
De 1 a 5 62 49,2
De 6 a 10 24 19,0
Acima de 10 23 18,2
Não informado 17 13,5
TOTAL 126 100
Portal de Mídia - www.portaldemidia.ufms.br

Dos 126 periódicos pesquisados, 62 (49,2%) chegam apenas entre 1 e 5 municípios.


Uma explicação pode estar nas longas distâncias entre os municípios sul-mato-gros-
senses, o que encarece a distribuição. Por outro lado, 23 (18,2%) assinalam circular em
dez municípios ou mais. Destes, alguns assinalam chegar em todo estado. Vale ressalvar
que alguns não chegam efetivamente a um significativo grupo de leitores. Uma prática
muito comum é a remessa de alguns exemplares para prefeituras municipais, câmaras
de vereadores e outros órgãos públicos. Muitas vezes esses jornais ficam empilhados em
gabinetes e repartições e não chegam ao leitor.

Considerações
A pesquisa possibilitou a realização de um mapeamento inédito e bastante expressivo
dos jornais de Mato Grosso do Sul. Foram localizados 126 dos 140 a 150 que estimamos
existir no estado. Eles estão localizados em 44 municípios, o que evidência a falta de
jornais nos outros 34. Por outro lado, a média é de 2,8 jornais por município onde eles
existem, sendo que em vinte municípios circula apenas um jornal.

63
Daniela Cristiane Ota e Mario Luiz Fernandes

O projeto de pesquisa sobre o Perfil da pequena imprensa de Mato Grosso do Sul está na
sua fase inicial. Além do mapeamento, os jornais estão sendo visitados aplicados ques-
tionários junto aos empresários e jornalistas para diagnosticar a estrutura da empresa,
perfil do empresário, características do jornal e perfil do jornalista. Esse material mais
elaborado deve ser publicado em livro até o final do próximo ano.

Referências
ANATEL (2012). Agência Nacional de Telecomunicações. February Retrieved from
www.anatel.gov.br
BOURDIN, A. A questão local. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.
CAMPONEZ, C. Jornalismo de proximidade. Coimbra: Minerva Coimbra, 2002.
CASTELLS, M. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
CASTELLS, M. A era da informação: economia, sociedade e cultura, v. 1. São Paulo: Paz
e Terra, 2003.
COLLIER, M. J. Cultural identity and intercultural communication. In: Samovar, L. A. and Por-
ter, R. E. (ed.) Intercultural communication: a reader. Belmont: Wadsworth, p. 39-40, 1997.
FERNANDES, M. L. A força do jornal do interior. Itajaí: Univali, 2003.
HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 1998.
IANNI, O. Labirinto Latino Americano. Petrópolis: Vozes, 1997.
IANNI. Nacionalismo, regionalismo e globalismo. In: Bolaño, C. R. S. (Org.). Globalização
e Regionalização das Comunicações. São Paulo: Educ, 1999.
IBGE (2010). Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – Dados Demográficos, Censo
2010. Retrieved from www.ibge.gov.br
LÓPEZ GARCÍA, Xosé: “Medios locais do futuro e con futuro”, en Actas do II Coloquio
Brasil-Estado Español de Ciencias da Comunicación “Comunicación Audiovisual: investi-
gación e formación universitaria”. Santiago de Compostela: Universidade de Santiago de
Compostela, 1999.
PERUZZO, C. Mídia local, uma mídia de proximidade. Comunicação: Veredas nº 02,
novembro, 1993.
ORTIZ, R. Mundialização e Cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.
ORTIZ, R. Um outro território (2ª ed.). São Paulo: Olho d’Água, 1999.
ORTIZ, R. Cultura e sociedade global. São Paulo: Brasiliense, 1986.
Portal de Mídia (2012). Extraído de: www.portaldemidia.ufms.br

64
Reconstrução:
MediaNOLA em Chamas1
Mike F. Griffith, e Vicki A.Mayer
Tulane University – New Orleans

Introdução à MediaNOLA

D
epois da passagem do Furacão Katrina, a preservação da cultura de Nova Orleans
foi um dos mais importantes tópicos de discussão. Como instituição, a Tulane tinha
feito a transição para exigir que todos os estudantes de todas as classes comple-
tassem seus cursos de serviço público. Foi na intersecção destas pressões que o projeto
MediaNOLA surgiu. Nosso objetivo inicial era o de educar estudantes sobre as tradições
locais de Nova Orleans, treinando-os para serem produtores e guardiões de conhecimento
cultural. O que começou como um exercício de pesquisa regional e apresentação tornou-
-se um arquivo de ação humana e do processo que é como, ou até mais valioso, que as
informações enciclopédicas nele contidas.
Começamos o projeto MediaNOLA na primavera de 2009 com a intenção de fazer os estu-
dantes capturarem informações tanto geográficas quanto históricas em sites diretamente re-
lacionados com a produção de mídia (editores, espaços musicais, estúdios de gravação, etc.).
Esta noção limitada de “mídia” rapidamente mudou durante o curso dos próximos dois anos
na medida em que mais professores de diferentes disciplinas vieram para adicionar pesquisas
estudantis baseadas em tudo o que fosse local: de arquitetura e negócios a depoimentos
orais e história militar. Atualmente, “Mídia” na MediaNOLA que significa em latim “através
de”, o que mais se encaixa neste paradigma de cultura regional.
Mesmo com a drástica mudança de foco da MediaNOLA, nosso processo básico para
preencher o arquivo tem contado com a operacionalização da pesquisa digital e proces-
sos de escritas. Nosso processo básico para o projeto começou por treinar os estudantes
em processos e banco de dados que seriam necessários para fazer a pesquisa primária.
Ao mesmo tempo, teríamos que treiná-los no uso do MediaWiki (o mecanismo de có-
digo-fonte aberto que alimenta o Wikipedia). Finalmente, nós os ajudamos a fazer a
investigação necessária e capturar os dados de GIS (Sistema de Informações Geográficas)
para mapear historicamente o lugar.

1 Artigo apresentado no V Colóquio Brasil-EUA de Ciências da Comunicação. Chicago, 2012.


Mike F. Griffith e Vicki A.Mayer

No início deste projeto, era usado um sistema dividido. Tínhamos um MediaWiki per-
sonalizado que era hospedado localmente em servidores de Tulane, assim como um
ambiente compartilhado de informações geográficas (GIS) que foi construído em cola-
boração com um projeto semelhante da Universidade do Texas, em Austin. Esta divisão
levou a uma feliz duplicação de informações, nós capturávamos as histórias e coorde-
nadas básicas do Google Maps na MediaWiki, enquanto o GIS de níveis superiores de
mapeamento e pesquisa estava localizado no software companheiro. No fim de 2011,
nosso desenvolvedor desertou da fonte aberta para o setor comercial e levou uma boa
parte do trabalho do GIS com ele. Foi sorte termos duplicado os dados de coordenadas
quando nossos dados do GIS foram embora com este desenvolvedor.
Esta deserção nos deu a oportunidade de repensar nosso desenvolvimento local e a natu-
reza do relacionamento entre os dados do GIS e as histórias de mídia. Queríamos manter
os conjuntos de recursos da plataforma MediaWiki, enquanto construíamos a pesquisa
do GIS em cima dessas páginas Wiki2. Uma das maiores vantagens da MediaWiki é sua
habilidade para controlar versões de cada página no sistema. Todas as alterações são con-
2 Wiki é um conjunto de páginas interligadas, e cada uma delas pode ser visitada e editada por qualquer pessoa. Você pode editar
esta página, clicando no separador no início da página (ou no link no fim da página, dependendo do template que estiver usando).

66
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos

troladas por versão e usuário. Este recurso é útil para ver qual estudante contribuiu para
grande parte da informação, mas é também útil para acompanhar a forma como os estu-
dantes desenvolvem suas narrativas. Enquanto que inicialmente pensávamos que estáva-
mos construindo um repositório de documentação cultural, percebemos que estávamos
também construindo um registro vivo das respostas dos nossos alunos à pedagogia tec-
nológica, a pesquisa cultural/histórica e composição mediada.

Ao longo dos anos de trabalho neste ambiente desenvolvemos uma série de exercícios
pedagógicos para os estudantes. Um dos nossos projetos mais bem sucedidos é ter os es-
tudantes de graduação contribuindo para uma wiki que já existe para ver como a narrativa
geral muda sob a luz de novas evidências. O ambiente MediaNOLA requer este tipo de
colaboração. É improvável que um estudante em um semestre será capaz de contar qual-
quer tipo de história definitiva de qualquer objeto cultural, lugar ou prática. Mesmo que
fosse possível que os alunos coletassem e reunissem a grande maioria dos recursos disponí-
veis, essa história ainda seria contada por apenas uma perspectiva. Dentro da MediaNOLA
múltiplas vozes levam a múltiplas perspectivas. Nas seções a seguir, examinaremos algumas
das perspectivas pedagógicas e teóricas que definem a natureza deste espaço digital com

67
Mike F. Griffith e Vicki A.Mayer

um olho para a melhor compreensão da natureza do arquivo digital e o local da agência


humana no seu interior. Organizamos as seções em termos binários de modo a sugerir que
o arquivo é o produto da dialética entre estas forças opostas, tanto uma e quanto outra[...]

Aumento versus Estagnação

“É de se presumir que o espírito do homem deva ser elevado se ele puder


rever seu passado sombrio e analisar mais completa e objetivamente seus
problemas atuais.”3

Em julho de 1945, Vannevar Bush, Diretor do Escritório Federal de Pesquisa e Desenvolvimen-


to Científico, publicou um artigo chamado “Como Podemos Pensar,” no The Atlantic. Este
artigo chama para um novo exame da relação entre tecnologia e pensamento humano. Bush
tinha visto em primeira mão a ampliação dos poderes físicos da humanidade por meio da tec-
nologia. Neste artigo, ele queria focar nos caminhos disponíveis para o aumento de capaci-
dade mental. Para Bush, a extensão da memória humana através de arquivo tecnológico não
era apenas um meio de melhorar a descoberta, mas também um meio de desenvolver filoso-
fia ética. É justo que seu apelo por um novo entendimento sobre o poder da tecnologia foi
publicado pouco mais de um mês antes da detonação da primeira bomba sobre Hiroshima.
Apesar da visão de Bush, sobre o arquivo, ser baseada em tecnologia analógica, os
princípios que regem a sua ideia de o que ele chama de “memex4” é reconhecível na
organização contemporânea da internet em ambientes gerais e nas Wiki em particular.

Isto proporciona um passo imediato, entretanto, para indexação associativa,


a ideia básica da qual é uma provisão pela qual qualquer item pode ser cau-
sado à vontade para selecionar imediatamente e automaticamente outro.
Isto é, a característica essencial da memex. O processo de amarrar os dois
itens juntos é a coisa mais importante.5
Bush expõe as ideias básicas por trás do que se tornará o hiperlink na teoria da new me-
dia. Através da construção destas ligações, o indivíduo criaria caminhos pessoais por um
arquivo de conhecimento preexistente que ele ou ela poderia expandir através de con-
tribuições pessoais. Embora indivíduos pudessem copiar e compartilhar seus caminhos
de conhecimento, cada um reteria sua própria maneira pessoal de navegar no arquivo.
Bush admite suas preocupações sobre a velocidade e facilidade de acesso de oprimirem
o papel colaborativo no fazer do arquivo. O foco aqui é no ato pessoal de seleção pesado
contra a arquitetura do espaço.
A ação principal de uso é a seleção, e aqui nós estamos de fato parando.
Pode haver milhões de bons pensamentos, e o relato da experiência em que
se baseavam, todos envoltos em paredes de pedra de formas arquitetônicas
aceitáveis; porém se o acadêmico pode chegar apenas a um por semana por
pesquisa assídua suas sínteses são improváveis de acompanhar a cena atual.6

A tensão primária no trabalho de Bush está entre o poder da memória e nossa capaci-
dade de aumentá-la. Para Bush a extensão tecnológica da memória é simplesmente um
meio através do qual podemos armazenar e recuperar informações que possam ser úteis
mais tarde. Bush descreve o prazer em desenvolver a arte do esquecimento.
3 Vannevar Bush, “As We May Think.” in The New Media Reader, ed. Noah Wardrip-Fruin and Nick Montfort, 47.
4 O Memex (amálgama de memory + index) foi uma máquina visionária imaginada para auxiliar a memória e guardar conhecimen-
tos. O cientista americano Vannevar Bush anunciou-a em 1945, no célebre artigo intitulado As We May Think.
5 Bush, “As We May Think,” 45.
6 Bush, “As We May Think,” 42.

68
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos

Suas excursões podem ser mais prazerosas se puder readquirir o privilégio


de esquecer as múltiplas coisas que não se precisa ter imediatamente a mão,
com alguma garantia de que ele pode encontra-los novamente se provarem-
-se importantes.7

Neste modelo o ato de esquecer é complementado através da garantia da recuperação.


Mesmo com esta certeza, Bush limita suas apostas neste momento. O usuário de sua
memex tem “alguma segurança” de encontrar o que esqueceu. Obviamente, isto levanta
a questão de como relembrar-se o que se esqueceu. A natureza interior do esquecimento
esta emparelhada com um mecanismo externo de recordação. Bush ignora os problemas
de comunicação inerentes à existência do arquivo fora do espaço interno de conheci-
mento do indivíduo. Seu aumento será sempre sujeito a um processo de tradução comu-
nicativa e uma ameaça à estagnação.
Cinquenta anos após Bush abrir a questão moderna do arquivo tecnologicamente au-
mentado, Derrida abordou a questão da estagnação em Mal de Arquivo (1995). Para
Derrida a separação acima mencionada entre espaços de conhecimento interiores e ex-
teriores é fundamental para o entendimento da natureza do impulso de arquivamento.
Neste modelo, o impulso de arquivar o material é sempre predeterminado pela natureza
das ferramentas disponíveis ao arquivista.

Isto deveria, antes de mais nada, lembrar-nos que o dito arquivo tecnológico
não determina mais, e nunca terá determinado, apenas o momento da gra-
vação de conservação, mas sim a própria instituição do evento arquivável.8

Derrida não vê memória como intercambiável com o arquivo por vários razões. Primeiro,
que o arquivo existe como um meio externo para o mecanismo interno da memória. Em
sua melhor forma o arquivo estará no futuro. Isto é, uma promessa de futuro.

Esta não é uma questão de um conceito de lidar com o passado que pode já
estar a nossa disposição, um conceito arquivável de arquivo. É uma questão
de futuro, a questão do futuro em si, a questão de uma resposta, de uma
promessa e uma responsabilidade para amanhã. O arquivo: se queremos sa-
ber o que isso vai significar, saberemos apenas em tempos que virão.9

A fascinação pelo arquivo esta relacionada com a experiência de uma promessa de fu-
turo combinada ao prazer de estase. Derrida vê esse prazer na estática como sendo “in-
dissociável do desejo pela morte.”10 A compulsão pelo esquecimento é ligada a uma ten-
dência para a autodestruição. Baseando-se profundamente na autobiografia de Freud,
Derrida imagina o arquivo é como uma força para compartimentar o que não se pode ser
confrontado mentalmente. Neste sentido, o mal do arquivo permite que uma sociedade
evite a responsabilidade ética que Bush advogou.
A dicotomia entre aumento e estagnação é fundamental para as humanidades digitais e
para a preservação digital de projetos como o MediaNOLA. O pressuposto fundamental
por trás destes projetos é que eles coletam e preservam artefatos culturais nele docu-
mentados. De várias formas, o projeto MediaNOLA está construindo um arquivo das
interações dos participantes com outras formas contemporâneas do arquivo, tais como
blogs, Flickr, e novos repositórios institucionais. Em uma volta recente para os arquivos
de rede, estudantes de várias classes têm materiais digitalizados em arquivos físicos para
7 Bush, “As We May Think,” 47.
8 Jacques Derrida, “Archive Fever: A Freudian Impression.” Diacritics 25 (1995): 18.
9 Derrida, “Archive Fever,” 27.
10 Derrida, “Archive Fever,” 14.

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Mike F. Griffith e Vicki A.Mayer

os replicarem na MediaNola e na biblioteca digital da universidade, aumentando os três


arquivos. Ao mesmo tempo, pouquíssimas entradas na MediaNOLA catalogam itens que
já não existam nos arquivos físicos da universidade e na base local. Apesar dos estudan-
tes tirarem suas próprias fotos, gravarem suas próprias entrevistas, e até mesmo criarem
arte ou vídeos, estes são adicionados a entradas para eventos e tradições que já estão lo-
calizadas em outro lugar. Na maioria dos casos, estas entradas são um registro de nosso
desejo contemporâneo de criar narrativas dos traços que permanecem nestes arquivos.

Na formulação de Derrida o arquivo substitui o ato orgânico, complexo e espontâneo


do pensamento criativo. Uma vez criados e arquivados, os wikis e pontos nos mapas
da MediaNOLA não ativam memórias, mas reprimem seus retornos lúdicos. Pense, por
exemplo, da fotografia do restaurante tirado em um semestre e agora colocado junto da
imagem digitalizada de um menu. Ambos existem agora, achatados juntos, como parte
de uma história desconectada da manhã de sábado no restaurante.
Porque o arquivo, se essa palavra ou esta figura pode ser estabilizada para ter um
significado, nunca será uma memória ou anamnese espontânea. Pelo contrário:
o arquivo toma lugar no local original e estrutural de colapso de tal memória.11

Derrida nos conta que a criação do arquivo é a desconstrução da agência pessoal através
da abdicação da memória. A substituição tecnológica desta memória pode ser aumen-
tada, mas não é anamnese.
11 Derrida, “Archive Fever,” 14.

70
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos

A MediaNOLA e sua família de humanidades digitais não deve ser vista como uma preserva-
ção da cultura mas como um mapa contemporâneo da intersecção entre nossa compreen-
são da tecnologia e os materiais que estas mídias disponibilizam para nossa pesquisa. Parte
desta tensão pode ser vista nas abordagens de filtragem que vários projetos de humani-
dades digitais tomam. Este debate em andamento está relacionado à promessa de futuro
anteriormente discutida que é inerente no arquivo. Talvez não saibamos o que estamos cap-
turando e um filtro dirigido esta apenas disponibilizando uma banda pequena de conteúdo
que será inútil ao futuro. É óbvio que este debate sobre a largura da banda estende-se não
apenas ao conteúdo, mas à nossa capacidade de fazer uso significativo do arquivo.
Wendy Chun faz excelente uso desta tensão em seu artigo “O Contínuo Efêmero, ou o Fu-
turo é uma Memória” (“The Enduring Ephemeral, or the Future Is a Memory”). Para Chun
a ideia cultural de memória digital esta baseada num processo de degeneração negado.

Esta Degeneração, que os engenheiros gostariam de dividir em útil ou preju-


dicial (apagabilidade versus decomposição de sinal, informação versus ruído)
desmente a promessa de computadores digitais como máquinas permanentes
de memória. Se a memória de nossas máquinas são mais permanentes, se elas
permitem uma permanência que parecemos não ter, é porque elas são constan-
temente atualizadas, de modo que a sua efemeridade continue, para que elas
possam armazenar os programas que parecem conduzir nossas máquinas.12

Chun vê este processo de memória digital como mais dinâmico que Derrida ou Bush. Desde
que memória digital é definida por este processo de degeneração deferida, a duração do
conteúdo é mantida separada do meio. Enquanto a informação contida em mídias mais an-
tigas sofriam de uma degeneração linear bastante previsível, um parte do conteúdo na Inter-
net está em um estado relativo de fluxo. O conteúdo de mídia emergente pode nem sempre
estar disponível ou pode não estar acessível no mesmo local. Curiosamente, a Internet como
existe agora é baseada em um sistema localização. Uma parte do conteúdo é atribuído um
endereço que se relaciona à sua existência em um determinado servidor em um endereço
de IP específico. Ter apenas o endereço não garante a presença do conteúdo em questão.

Estas páginas não estão de fato mortas, mas tampouco vivas; a comemora-
ção apropriada requer maior esforço. Estas lacunas ou este esqueleto não
visualiza apenas o fato que nossas constantes regenerações afetam o que é
regenerado, mas também como estas lacunas - a irreversibilidade da lógica
causal programável - abre a rede como arquivo para um futuro que não iria
ser uma simples memória aprimorada do passado.13

Chun demonstra como a natureza fragmentada e locacional do arquivo de Internet torna


o processo da coleção de arquivo uma luta contínua. Não estamos mais lutando contra
uma decadência serena e conhecida de um só artefato. Agora o processo de arquivo
demanda uma contabilidade dos materiais acumulados, de um número de formas de
mídia, de fontes distintas.
No contexto da MediaNOLA lutamos não apenas com a natureza fraturada dos materiais
digitais que são coletadas no arquivo mas também com a ausência física de muitos dos
locais geográficos que estão catalogados. A regeneração do site em questão depende da
degeneração deferida da memória digital da Internet. A luta então para localizar humani-
dades digitais baseadas é dupla. Primeiro, devemos lutar contra a degeneração do espaço

12 Wen dy Chun, “The Enduring Ephemeral, or the Future Is a Memory,” Critical Inquiry 35 (2008): 167.
13 Chun, “The Enduring Ephemeral,” 169.

71
Mike F. Griffith e Vicki A.Mayer

cultural. Segundo, devemos lutar contra a degeneração do conteúdo digital que criamos
para preservar este espaço. Cada vez que esta degeneração digital é interrompida o proces-
so altera a memória reconstituída. Esta conclusão faz o trabalho das humanidades digitais
arquivar tanto sobre a coerência da memória digital quanto sobre o conteúdo de arquivo.

Ordem versus Caos


Por que mantivemos nossos próprios nomes? Por hábito, puramente por hábito. Para nos
fazermos irreconhecíveis, por sua vez. Para fazer imperceptível, não nós mesmos, mas o que
nos faz agir, sentir e pensar. Também porque é bom falar como todos os outros, dizer que o
sol nasce, quando sabemos que é apenas uma maneira de falar. Para alcançar o ponto onde
alguém não mais diz ‘Eu’, mas o ponto onde não é mais importante se alguém diz ‘Eu’. Não
somos mais nós mesmos. Cada um saberá de si. Fomos auxiliados, inspirados, multiplicados.14
Se aceitarmos a ideia de que os arquivos são na verdade mais sobre gravar as ideias con-
temporâneas e processos que cercam as relações entre a promessa da memória e o impulso
destrutivo de esquecer, então a natureza do trabalho de arquivo está relacionada direta-
mente ao estudo da mídia de que estes arquivos habitam e agrupam. Na obra de Allen
Sekula, “O Corpo e o Arquivo,” o autor nos dá um meio de conceituar as formas que a mídia
específica desenvolve os arcos narrativos do conteúdo de arquivo através de seus significa-
dos culturais preexistentes. Sekula começa com uma discussão do aparecimento da foto-
grafia como simultaneamente honorífico (na sua capacidade de substituir o retrato entre
a burguesia) e repressivo (na sua capacidade de classificar os prisioneiros como deviante).

Cada retrato tomou implicitamente seu lugar em uma hierarquia social e


moral. O momento privado de individualização sentimental, a contemplação
do olhar-do-amado, foi escurecido por dois outros olhares mais públicos: um
olhar para acima, em um dos seus superiores, e um olhar para baixo, em um
dos seus inferiores.15

O resultado desta ordem é um “arquivo de sombra” que simultaneamente cria e ordena in-
divíduos dentro de um espaço social. É importante então que Sekula amarre a imagem fo-
tográfica ao aparecimento do trabalho de policiamento e o estabelecimento de uma nova
elite cultural durante o final do século dezenove. Sua implicação é que o arquivo é uma
ferramenta hegemônica; seus sistemas de ordenação reforçam a ordem social. Até mesmo
arquivos criados para resistir à ordem social apoiará a lei de classificação, de acordo com
Sekula. Ele usa o exemplo do livro de Ernest Cole, House of Bondage, que documenta as
práticas de Apartheid da África do Sul para organizar e documentar seus sujeitos por raça.
Enquanto foi criado como uma crítica a estas práticas, a polícia Sul Africana acaba o
cooptando como um index do real sistema de ordem racial. Este é um arquivo que -
mesmo que compartilhe um meio com o arquivo que é documentado - conduz para na
verdade criar um arquivo do processo de arquivamento dominante. É claro que ainda
devemos considerar o fato que a autoridade e a legitimidade deste arquivo de segunda
ordem são diretamente herdadas através do mais antigo impulso imperial do meio.
Sob a luz destes conceitos de arquivo podemos ver uma utilidade na “instituição do evento
arquivável”, de Derrida. Até agora vimos que um arquivo pode ser uma simples consolida-
ção de uma autoridade cultural específica ou uma entidade mais complexa capaz de enfra-
quecer a expressão dominante de uma autoridade cultural. Deleuze e Guattari levam este
14 Gilles Deleuze and Felix Guattari, A Thousand Plateaus (Minneapolis: University of Minnesota Press, 1987), 3.
15 Allan Sekula, “The Body and the Archive,” October 39 (1986): 10.

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Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos

evento além com seu conceito da natureza rizomática do arquivo. Para Deleuze e Guattari
a multiplicidade de assemblagens mediadas presentes na cultura contemporânea nos le-
vou a indivíduos além das classificações rudes inerentes nos arquivos discutidos até aqui.

Como um conjunto, um livro tem apenas a si mesmo, em conexão com ou-


tros agenciamentos e em relação a outros corpos sem órgãos. Nunca per-
guntaremos o que um livro significa, como significado ou significante; não
buscaremos por nada para entender nele. Perguntaremos com o que ele
funciona, em conexão com quais outras coisas ele transmite ou não inten-
sidade, em quais outras multiplicidades está inserido e metamorfoseado, e
com quais corpos sem órgãos faz o seu próprio convergir.16

Se pensarmos no arquivo como um conjunto de interpretações individuais geradas atra-


vés de uma série de encontros com outras coleções de assemblagens, então o arquivo
começa a parecer mais dinâmico do que apenas uma gravação estática ou uma promes-
sa de futuro. A promessa do arquivo não é o significado que apresenta culturalmente.
A promessa do arquivo reside em sua conexão com outras “multiplicidades.” Deleuze e
Guattari entendem a importância de perguntar “com o que isto funciona” (meu ênfase).
Deleuze e Guattari estabelecem a multiplicidade do rizoma como fluído. O significado
deste sistema muda com cada acréscimo.

Uma multiplicidade não nem sujeito nem objeto, apenas determinações,


magnitudes e dimensões que não podem aumentar em número sem a multi-
plicidade mudar em natureza (as leis de combinação podem então aumentar
em número ao que a multiplicidade cresce).17

Neste modelo a acumulação de formas mediadas e expressões culturais individuais den-


tro dos arquivos criam um ambiente onde o significado do arquivo é constantemente
sendo refeito pelas permutações expandidas de seus elementos constituintes.18
Dentro do arquivo MediaNOLA temos uma série de narrativas complementares arranja-
das em um caos rizomático. Há a pesquisa acumulada em cada nódulo cultural ligado a
espaços e imagens. Elas ligam-se diferentemente através de buscas de categorias, tags
ou palavras-chave. Nós então adicionamos a narrativa espacial do nódulo a um discurso
maior quanto aos usos do espaço na cidade. Outros arquivos relacionados minados por
bens históricos (imagens, vídeo e documentação) que possam ser incorporados na nar-
rativa do nódulo. Cada nódulo aparece como mera coleção de artefatos que têm sido
colados por um participante no sítio. Eles também contêm um discurso complementar
sobre a natureza da pesquisa ao que é afetado através de novas mídias.
A apresentação de cada nódulo no arquivo depende de vários níveis de mediação. Em
sua base temos as relações entre os bens históricos e o local que criamos para sinte-
tizá-los. No seu coração, é um assunto clássico de forma comunicativa definida pelos
processos de codificação e decodificação permitidos pelo espaço. O comportamento
dos participantes no espaço é por sua vez influenciado pelos espaços culturais maiores
da Internet. Nos feedbacks, os alunos têm frequentemente relacionado suas escritas aos
fazeres de páginas de Wikipedia ao invés de aos ensaios que escreveriam para uma aula.

16 Deleuze and Guattari. A Thousand Plateaus, 4.


17 Deleuze and Guattari. A Thousand Plateaus, 8.
18 Curiosamente, Deleuze e Guattari escreveram “A Thousand Plateaus”, em 1980, cerca de quinze anos antes de “Archive
Fever”, de Derrida. Embora Derrida estivesse escrevendo à beira da explosão da Internet na vida cotidiana, Deleuze e Guat-
tari tiveram uma melhor compreensão sobre o que a proliferação de formas mediadas iria significar para a construção de
arquivo da memória cultural.

73
Mike F. Griffith e Vicki A.Mayer

As práticas estabelecidas dos participantes são então filtradas através da prática acadê-
mica e pedagógica que estabelecemos para a gestão do sítio.
A MediaNOLA extraiu suas categorias originais do Austin Memory Project, um site, ago-
ra extinto, que conseguiu dados em categorias de distinção cultural formulada por Pierre
Bourdieu.19 Estas categorias, como lojas de livros e cafés, formaram a base para a análise
de Bordieu sobre a reprodução de classes sociais francesas no final dos anos 1970. A Me-
diaNOLA então subsiste pela lei do que pode ser dito sobre Nova Orleans colocando estes
conteúdos em seus locais e práticas apropriadas, ditas a indexar outra ordem social. Não é
surpresa descobrirmos que algumas categorias seriam difíceis de preencher. De fato a loja
de livros e o café não tem entradas. Não é que estes locais não existam na história regional,
mas que eles não indexam ao sistema da ordem social por disciplina ou distinção. O que
se seguiu foi caos de arquivo. Professores e alunos seguiram um estilo “na hora certa” de
arquivar fazendo categorias baseadas no conteúdo ao invés de em qualquer lógica biblio-
tecária abrangente. Enquanto entradas da guerra civil sobre o Antigo Sul e uma série de
submarinos eram arquivados como “marcos” na pressa de ter as coisas colocadas na rubrica
das categorias, outras categorias, como “pesca” eram basicamente feitas sob encomenda
por um pedaço vago de conteúdo wiki. Além disto, as marcações de artigos nunca foram
reguladas, produzindo uma cacofonia de associações entre autor, seus colegas, e o profes-
sor. Estas características exigiram a assistência de um arquivista profissional para ajudar a
reorganizar o sítio de acordo com classificações que poderiam ser melhor reconhecíveis aos
especialistas, mas também suplantar a autoridade dos estudantes sobre seus trabalhos.
A ordem e o caos operam em conjunto através de práticas estudantis e guarda docente.
O que parece comandar a maneira com o que o membro docente diz a uma classe como
ordenar seu trabalho colide com outras classes ensinadas usando outros sistemas de ordena-
mento disciplinar. Por exemplo, a inclinação dos alunos de história em direção ao “evento”
como base de ordem 20 [xvii] assenta-se desconfortavelmente com a investigação de tipos de
negócios não lucrativos dos alunos de comunicação em uma ala da cidade. O valor pedagó-
gico do sítio não se dá em forçar alunos a um canal estreito na criação de seus nódulos. Cada
classe que se engaja com a MediaNOLA o faz de uma perspectiva pedagógica diferente. Os
membros docentes que utilizam o sítio fazem-no estrategicamente no desenvolvimento de
suas aulas, mas o arquivo é criado através de engajamentos táticos dos estudantes dentro
deste espaço. Este espaço tático permite aos estudantes criarem o que Deleuze e Guattari
chamam de “mapas” em oposição aos “traços” vazios do arquivo estático.

O que distingue o mapa do traçado é que ele é inteiramente orientado para uma
experimentação no contato com o real [...] O mapa é aberto e conectável em
todas suas dimensões; é destacável, reversível e suscetível a constante mudança.
Pode ser rasgado, revertido, adaptado a qualquer tipo de montagem, retraba-
lhado por um indivíduo, grupo ou formação social. Pode ser desenhado em uma
parede, concebido como peça de arte, construído como uma ação política ou
como uma meditação [...] Um mapa tem múltiplas entradas, oposto ao traçado,
que sempre volta ‘ao mesmo’. O mapa relaciona-se com performance, enquanto
o traçado envolve uma ‘competência’ alegada.21

Os nódulos no mapa que a MediaNOLA está construindo não pode ser ressuscitado com
o acúmulo de bens de arquivos. Estes nódulos só podem ser criados como parte de uma
negociação contínua entre os participantes criando as páginas, a prática cultural das fer-
19 Pierre Bourdieu, Distinction, (Boston: Harvard University Press, 1984) 6-7.
20 Veja por exemplo, Hayden White, “The Historical Event,” Differences 19 (2008): 9-34.
21 Deleuze and Guattari. A Thousand Plateaus, 12-3.

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Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos

ramentas envolvidas, os arquivos históricos e a atual autoridade local cercando o próprio


nódulo. Esta relação cria um arquivo dinâmico mais assemelhado ao mapa rizomático do
que ao traço estático.

Participação versus Recitação


Longe de ser aquele que unifica tudo que foi dito no grande e confuso murmúrio de um
discurso, longe de ser apenas aquele que assegura que existimos no meio do discurso
preservado, é aquele que diferencia discursos em suas múltiplas existências e os especi-
fica em sua própria duração.22
O perigo de colocar muita fé no potencial revolucionário de um arquivo rizomático é a
possibilidade do arquivo conter um papel ideológico maior sobre formas potenciais de
discurso. Enquanto Derrida posiciona o arquivo como exterior ao ato da memória e da
expressão, Foucault expande o arquivo como “primeira lei do que pode ser dito” (Fou-
cault 129). Se o arquivo é todo abrangente, como uma nova forma de expressão emerge
e o que essa nova forma mediada significa ao uso cultural do arquivo?
Para Foucault o arquivo é um histórico a priori para a legitimação da afirmação e das
condições que governam a emergência e avaliação de declarações.
O arquivo não é aquele que, apesar de seu escape imediato, guarda o evento
da declaração, e preserva, para memórias futuras, seu status como um fugi-
tivo; é aquele que na própria raiz da declaração-evento, e no qual o incorpo-
ra, define no início o sistema de sua enunciabilidade.23

O arquivo de Foucault é o espaço em que cada discurso existe. Não é um ambiente está-
tico do qual o propósito é a preservação de declarações anteriores válidas. Neste ponto
Derrida e Foucault concordam. Enquanto Derrida vê o arquivo como criando a “institui-
ção do evento arquivável,” Foucault vê o arquivo como permitindo a declaração-evento
em sua raiz. Para ambos os teóricos é difícil criar uma postura crítica de dentro da estru-
tura de um arquivo ativo culturalmente.

A análise do arquivo, então, envolve uma região privilegiada: uma vez perto de
nós, e diferente da nossa existência presente, é a fronteira do tempo que cerca
nossa presença, beira-a, e que a indica em sua alteridade... A descrição do arqui-
vo implanta suas possibilidades (e o domínio de suas possibilidades) com base no
próprio discurso que acaba de deixar de ser nosso; seu limite de existência é esta-
belecido pela descontinuidade que nos separa do que não podemos mais dizer.24

Esta perspectiva conta com a análise vinda de fora do arquivo. O que Derrida e Foucault
ignoram é o impacto que novas formas de mediação têm em remarcar o conteúdo do
arquivo. Com as novas ferramentas de mídia agora disponíveis, estes eventos arquiváveis
anteriormente estáticos tornaram-se os materiais crus de sistemas emergentes de comu-
nicação. Há uma mudança entre os arquivos materiais onde nossa pesquisa é feita e o
arquivo dinâmico onde os nódulos são sintetizados.
Henry Jenkins vê a emergência de espaço de rede criando novos momentos de expressão
através do desenvolvimento de cultura remisturada. Ao agrupar grupos afins, indiví-
duos são capazes de criar significados através da contextualização e descontextualiza-
ção do conteúdo de arquivo.
22 Michel Foucault, The Archaeology of Knowledge. (New York: Random House, 1972), 129-30.
23 Michel Foucault, The Archaeology of Knowledge, 127.
24 Michel Foucault, The Archaeology of Knowledge, 130.

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Mike F. Griffith e Vicki A.Mayer

O novo espaço de informação envolve formas múltiplas e instáveis de recon-


textualização. O valor de qualquer pedaço de informação aumenta através
da interação social. Mercadorias são um bem limitado e sua troca necessa-
riamente cria ou encena desigualdade. Mas o significado é uma fonte com-
partilhada e constantemente renovável e sua circulação pode criar e revitali-
zar laços sociais. Se antigas formas de especialidades operassem através de
disciplinas isoladas, a nova inteligência coletiva é um forno de miscelâneas
junto com muitas fontes ao que membros minam o que sabem, criando algo
muito mais poderoso que a some de suas partes.25

Ao menos, a formulação de Jenkins eleva a quantidade de rompimentos possíveis no


modelo de arquivo de Foucault. Leva além, Jenkins como um acadêmico de mídias refe-
rencia o antigo e radical potencial da montagem, em que a justaposição de partes dife-
rentes cria novos significados ao leitor. Esta constante remistura e recontextualização do
evento de arquivo pode criar um espaço onde as operações do arquivo na validação de
declarações estão constantemente no limiar da exposição crítica.
Na MediaNOLA criamos um espaço de afinidades para os esforços táticos de indivíduos que
estão respondendo às estratégias pedagógicas de uma variedade de disciplinas. O que mais
importa neste estilo de arquivo é a conceitualização da ação humana como um processo
social. Nosso arquivo opera como um espaço colaborativo onde os esforços táticos dos
participantes estão em constante contato um com o outro. Além do arquivo dinâmico dos
indivíduos envolvidos, o sítio também coleta a história acumulada destas modificações às
práticas de uso do espaço. O que então pode começar como uma simples recitação de um
argumento que um aluno leu em um livro, torna-se algo inteiramente diferente quando ou-
tros alunos trazem novos argumentos derivados de outros trabalhos. O resultado não é sem-
pre uma nova leitura radical do passado, como ilustrado por um grupo de alunos na classe de
história cinematográfica. Neste caso, os estudantes mapearam o discurso atual de celebração
associado à produção de filmes em Hollywood em contraste com antigos cineastas de filmes
mudos de Nova Orleans, e então participaram, portanto, em última análise, reforçando um
conto do status quo. Em um sentido este arquivo funciona ao longo dos dois eixos que vimos
até então nas respostas críticas aos arquivos: Um repositório renovável de declarações existe
como uma fundação abaixo do espaço dinâmico da criação de narrativas.
Na nova era da mídia, a natureza fundamental do arquivo é entendida como consideravel-
mente menos estático do que jamais foi. As conexões comunicativas entre indivíduos estão
dominadas por canais digitais. O processo de criação de arquivos tende a seguir o mesmo
caminho. Mesmo quando indivíduos parecem estar trabalhando sozinhos, seus acréscimos
moldam, e são moldados por contribuições de outros ao espaço. Voltando à Chun, este
processo de colaboração social refazendo o conteúdo também se estende ao processo de
reverter a degeneração da memória digital. Chun fala sobre a possibilidade de arquiva-
mento mecânico da Internet através de iniciativas como o Internet Wayback Machine que
meramente cataloga o texto e os links de páginas da rede sem baixar os documentos e
imagens relacionados. Chun vê estas falhas no processo de arquivamento automatizado
como indicativo de uma falha fundamental na concepção cultural da memória digital.
Por outro lado, seu argumento ignora a importância social de um grupo unindo-se para
promover a integridade física dos conteúdos de arquivos digitais.26 Obviamente a ação da
inteligência coletiva em regenerar este conteúdo não pode evitar de alterar o conteúdo
25 Henry Jenkins, Fans, Bloggers and Gamers, (New York: NYU Press, 2006), 140.
26 Na opinião de estudantes do curso de história do cinema , por exemplo, ver Vicki Mayer e Jocelyn Horner, “Student Me-
dia Labor in the Digital Age: MediaNOLA in the Classroom and the University,” in The Routledge Companion to Labor and
Media, ed. Richard Maxwell, (NY: Routledge, 2015), 242-251.

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Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos

para corresponder os interesses sociais imediatos do grupo. Entradas sobre filmes, bares e
clubes de música projeta a atual popularidade destes objetos e espaços entre universitários
em direção ao passado. A curadoria social coletiva deste conteúdo nem sempre revela algo
do local original explorado, mas também fala sobre o contexto social em que a restauração
ocorre. Quando examinadas ao longo do tempo os projetos de humanidades digitais estão
criando arquivos que indicam a importância social/cultural dos espaços culturais arquiva-
dos no processo acadêmico que tenta gravá-los e preservá-los.

Conclusão
O meio não é de modo algum a média; ao contrário, é onde as coisas tomam velocidade. En-
tre as coisas que não designa uma relação localizável indo de uma coisa para a outra e então
novamente de volta, mas uma direção perpendicular, um movimento transversal que varre
um e o outro para longe, uma corrente que mina seus bancos e toma velocidade no meio.27
Quando estabelecemos o projeto MediaNOLA nossa preocupação inicial era documen-
tar as relações complexas entre a cidade de Nova Orleans e o legado dos sítios quando
muito de sua herança cultural foi criada. Ao que o projeto cresceu para incorporar as
iniciativas pedagógicas de outros parceiros, o arquivo virou uma entidade diversa com
problemas relacionados ambos a geração e consistência do conteúdo. Um arquivo desta
natureza está constantemente lutando com o fluxo geral da Internet como um todo
assim como a evolução contínua da abordagem pedagógica para o processo de arquivo.
A natureza deste arquivo não está nas ligações entre conteúdos, mas sim no coletivo social
que monta e mantém estes links. Um arquivo de humanidades digitais não pode se regenerar
sem esta participação coletiva. Apenas contabilizando o tempo que usamos para administrar
aspectos pedagógicos assim como tecnológicos deste projeto, pode parecer que a razão que
muitas destas iniciativas de arquivos falham é sua dependência em um ou em um pequeno
grupo de indivíduos para que mantenham sua memória digital intacta. Para a MediaNOLA o
desafio tem sido achar um equilíbrio entre a pesquisa em que os alunos estão interessados
em fazer e a manutenção diária que é necessária para a saúde do site. O resultado deste ato
de equilíbrio é um sítio que está sempre em estado de mudança. Este fluxo vai além do con-
ceito de Chun de uma memória digital reescrita como parte de sua restauração. A natureza
fundamental do sítio muda ao que novos projetos começam e antigos são deixados para trás.
O sucesso do sítio é que ele tem sido flexível o suficiente para permitir que estudantes man-
tenham um papel chave no processo de arquivo. Isto se torna evidente ao que a MediaNOLA
move-se entre binários de aumento e estagnação, ordem e caos, e recitação e participação.
A melhor posição que um arquivo de humanidades digitais pode ocupar é o espaço de
interstício entre o espaço cultural do sujeito e a prática cultural de geração de arquivo.
Esta geração é um processo multivalente. No primeiro nível, o arquivo é mediação gerada
entre o arquivista individual e as várias mídias que contém o conteúdo primário do sujei-
to. Estas mídias são processadas através da prática cultural e acadêmica contemporânea
do arquivista dentro do arquivo de mídia emergente. Uma vez que esta “memória” ou
“momento de arquivamento” tenha sido criado, ele se torna sujeito do processo de dege-
neração e regeneração que Chun argumenta em seu trabalho. O processo regenerativo
nas humanidades digitais é movido por colaboração social e mudança de prioridades
culturais. Este fluxo contínuo é exacerbado pelos limites temporais arraigados de trabalho
acadêmico. Cada novo grupo de estudantes carrega novas prioridades e novos relacio-

27 Deleuze and Guattari, A Thousand Plateaus, 25.

77
Mike F. Griffith e Vicki A.Mayer

namentos com a mídia que irá finalmente afetar a visão institucional geral do arquivo.
Projetos de humanidades digitais de sucesso devem manter este espaço do meio.
Os arquivos que estamos criando não são fontes históricas estritamente. Desde que mu-
dança e regeneração são aspectos fundamentais da sua sobrevivência, a história destes
arquivos apresenta um registro de nossas relações que mudam com novas formas de mídia
assim como a natureza das relações entre a comunidade acadêmica e a autoridade local
que tentamos arquivar. A chave aqui é participação. Quando estudantes, acadêmicos e
membros da comunidade não estão todos apenas contribuindo para a criação do arquivo
memória, mas também considerando as relações entre seus espaços culturais e a presença
da mídia emergente, são nestes momentos de colaboração que o arquivo de humanida-
des digitais torna-se significativo. Sem uma presença social que constantemente recodifica
significado, tudo o que temos construído são arquivos mortos para serem esquecidos em
servidores abandonados. A chave para estes projetos é a vital representação da autoridade
local e o questionamento contínuo da mediação que planeja criar estes nódulos.

Notas
[i] Vannevar Bush, “As We May Think.” in The New Media Reader, ed. Noah Wardrip-
-Fruin and Nick Montfort, 47.
[ii] Bush, “As We May Think,” 45.
[iii] Bush, “As We May Think,” 42.
[iv] Bush, “As We May Think,” 47.
[v] Jacques Derrida, “Archive Fever: A Freudian Impression.” Diacritics 25 (1995): 18.
[vi] Derrida, “Archive Fever,” 27.
[vii] Derrida, “Archive Fever,” 14.
[viii] Derrida, “Archive Fever,” 14.
[ix] Wendy Chun, “The Enduring Ephemeral, or the Future Is a Memory,” Critical Inquiry
35 (2008): 167.
[x] Chun, “The Enduring Ephemeral,” 169.
[xi]Gilles Deleuze and Felix Guattari, A Thousand Plateaus (Minneapolis: University of
Minnesota Press, 1987), 3.
[xii] Allan Sekula, “The Body and the Archive,” October 39 (1986): 10.
[xiii] Deleuze and Guattari. A Thousand Plateaus, 4.
[xiv] Deleuze and Guattari. A Thousand Plateaus, 8.
[xv] Interestingly, Deleuze and Guattari wrote A Thousand Plateaus in 1980, a good fifte-
en years before Derrida’s “Archive Fever”. While Derrida was writing on the cusp of the
Internet’s explosion into everyday life, Deleuze and Guattari have a better understanding
as to what the proliferation of mediated forms will mean for the archival construction
of cultural memory.
[xvi] Pierre Bourdieu, Distinction, (Boston: Harvard University Press, 1984) 6-7.
[xvii] See for example, Hayden White, “The Historical Event,” Differences 19 (2008): 9-34.

78
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos

[xviii] Deleuze and Guattari. A Thousand Plateaus, 12-3.


[xix] Michel Foucault, The Archaeology of Knowledge. (New York: Random House, 1972),
129-30.
[xx] Michel Foucault, The Archaeology of Knowledge, 127.
[xxi] Michel Foucault, The Archaeology of Knowledge, 130.
[xxii] Henry Jenkins, Fans, Bloggers and Gamers, (New York: NYU Press, 2006), 140.
[xxiii] On student reviews of the film history course, for example, see Vicki Mayer and Jo-
celyn Horner, “Student Media Labor in the Digital Age: MediaNOLA in the Classroom and
the University,” in The Routledge Companion to Labor and Media, ed. Richard Maxwell,
(NY: Routledge, 2015), 242-251.
[xxiv] Deleuze and Guattari, A Thousand Plateaus, 25.

Para citar este artigo na versão original:


Reconstruction: Studies in Contemporary Culture, Archives on Fire: Artifacts & Works,
Communities & Fields, ed. W. Scott Howard, 16.1 (2016): http://reconstruction.eserver.org/
Issues/161/Griffith_Mayer.shtml.

79
Mike F. Griffith e Vicki A.Mayer

80
Ensino de Jornalismo Brasil-EUA:
o Legado de Pulitzer nos Tempos
do Capitalismo Financeiro1
Alice Mitika Koshiyama
Universidade de São Paulo

História e Histórias de Jornalistas

O
conhecimento do passado pode nos inspirar, oprimir ou libertar. Ao propor uma
história de personagens escolhemos nossos heróis ou vilões. Mas, ao mesmo
tempo, definimos, no caso da história do jornalismo, as figuras representativas
para uma avaliação do campo, sobre formação de jornalistas.
A escolha de Joseph Pulitzer dos EUA e de Cásper Líbero do Brasil para inspirar nosso per-
curso sobre o ensino de jornalismo não foi aleatória. São personagens significativos para
a história da profissão de jornalista, bem sucedidos em seus negócios e preocupados
em formar novos quadros profissionais. Jornalismo é uma profissão com mitos e ídolos
presentes nos meios de comunicação de massa e que atrai personagens com diferentes
perfis intelectuais e morais. E que tem uma tradição de negócios e também de militância
e que é parte do exercício do poder e da política e um meio presente no estado demo-
crático de direito e em luta contra os regimes autoritários e ditatoriais.
Trata-se de profissão que precisa ser aprendida e pode ser ensinada. Como e onde são
questões ainda polêmicas, embora haja uma suficiente experiência prática e acadêmica
para alimentar debates e permitir a instalação e desenvolvimento de cursos em nível de
graduação e de pós-graduação, no Brasil e nos Estados Unidos.
É uma profissão que tem uma especificidade, hoje posta em questão na cultura dos
meios de comunicação, pela promiscuidade de interesses do trabalho jornalístico com
áreas como publicidade, relações públicas, mercadologia, além das constantes tentati-
vas para se domesticar as ações do campo do jornalismo propriamente dito. Práticas an-
tes identificadas como atividades impróprias de jornalistas, hoje são identificadas como
aceitáveis atividades de mercado. É o caso da distinção entre jornalismo e assessoria de
imprensa no Brasil, que até os anos oitenta do século passado eram atividades distintas
pertencentes a sindicatos profissionais diversos.
É uma ma profissão também colhida pela reestruturação produtiva no capitalismo, tendo
conseqüências para o mercado de trabalho e para a formação de futuros profissionais.
Mas, o que é jornalismo? – perguntam os pesquisadores, os professores e os próprios
jornalistas, ao se verem na situação de defini-lo. Vários autores avaliaram a bibliografia
produzida sobre o tema para colocá-la sob perspectiva crítica. Dentre eles, destacamos
Maurício Tuffani (2005). Seu trabalho – “Diploma de Jornalismo. Regulamentação deve
1 Artigo apresentado no V Colóquio Brasil-EUA de Ciências da Comunicação. Chicago, 2012.
Alice Mitika Koshiyama

atender ao desenvolvimento humano” -- mostra a complexidade do campo de atuação


dos jornalistas ao longo da história. Aponta as múltiplas exigências para formar profis-
sionais em condições de atender as demandas de trabalho hoje. Descreve os fundamen-
tos teóricos e as possibilidades práticas do jornalismo, na perspectiva de autores que
analisaram o tema como campo de conhecimento e de prática cultural e política.
Em relação ao ensino de jornalismo, Tuffani alimenta um debate instigante. Uma das suas
conclusões é que jornalismo se aprende, mas não necessariamente em uma escola. Outra
conclusão sua é que o ensino das escolas de jornalismo é insuficiente para formar jornalistas,
que possam preencher todas as exigências da profissão. Coloca-se contra a exigência do di-
ploma em jornalismo para o exercício profissional. Mas propõe uma regulamentação das ati-
vidades profissionais, em virtude das condições do mercado desfavoráveis aos trabalhadores.
Sylvia Moretzshon, jornalista, professora de jornalismo e pesquisadora, opõe-se à a ava-
liação de que a exigência do diploma para a prática do jornalismo impede a livre expres-
são das idéias. Pondera, com razão, que há nisso uma má interpretação do conceito de
liberdade. Porque a exigência de um jornalista para atuar em um meio de comunicação é
a proposição de haver um mediador, com preparação para o correto exercício de produ-
ção da notícia e sua interpretação. O jornalismo é um ato de mediação e é uma profissão
que exige conhecimentos técnicos especializados que deve ser exercida por pessoas que
tenham habilitações e a responsabilidade sobre a atividade que executam e devem ser
remuneradas para tanto. (MORETZSOHN, 2003)
Perseu Abramo, cientista social, jornalista e militantes político, destaca a dupla condição
do jornalista: o de ser um intelectual e também ser um trabalhador da notícia e sua ação
difere do exercício da liberdade de expressão de um cidadão ou de um político profissio-
nal (ABRAMO, 1987).
Na perspectiva de Moretzshon e Abramo, justifica-se ter um curso específico para en-
sinar jornalismo. Se a perspectiva desses autores é a do jornalismo como atividade pro-
fissional, podemos avaliar que a formação de novos jornalistas deve ser uma atividade
organizada, seja como um projeto de preparação de mão de obra para a produção, seja
como um plano para formar quadros dirigentes para empresas jornalísticas, seja para
surprir demandas da comunicação do capitalismo hoje.
Joseph Pulitzer e Cásper Libero foram homens bem sucedidos no uso da imprensa como
instrumento da economia e da política, segundo os padrões da classe dominante de
suas épocas. Eles aprenderam com a vida e compreenderam a importância do ensino de
jornalismo em cursos específicos e especializados para a formação do futuro profissio-
nal. Ao estudar suas vidas conhecemos a relação entre a história e as práticas de ensino
de jornalismo, e podemos refletir sobre as relações possíveis entre nossas histórias e as
práticas de ensino na atualidade.

De Pulitzer ao Século XXI


A história de vida de Pulitzer mostra-o como um personagem singular e uma referência
na história do jornalismo. Lembrado anualmente na distribuição do prêmio que leva seu
nome, Pulitzer tornou-se um marco na vida jornalística e cultural dos E.U.A. E os registros
históricos como The Press and América (EMERY & EMERY, 1984) colocam-no entre os par-
ticipantes do desenvolvimento industrial do país, na construção de empresas jornalísticas
para as massas, na participação da expansão do capitalismo norte-americano e, o que o

82
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos

distingue de outros empreendedores da imprensa norte-americana, no seu empenho em


patrocinar a formação de jornalistas em um curso universitário que foi organizado pela
conceituada Universidade de Columbia, com fundos deixados em sua herança.
Imigrante, que mal falava inglês quando chegou a América e enriqueceu com o negócio
dos jornais, ao ser vitorioso empresarialmente reconheceu a importância da preparação
educacional para a profissão. Pois ele soube da importância de suas equipes de profissio-
nais competentes para executar tarefas jornalísticas e administrar suas empresas.
Autores (EMERY & EMERY, 1984, p. 253-262) registram a acirrada concorrência para venda
dos jornais na banca, com destaque para o confronto entre o World de Joseph Pulitzer e o
Journal de William Randolph Hearst. Houve momentos, como no período entre 1896 e 1898,
em que sob o termômetro da circulação, ambos recorreram aos apelos do sensacionalismo.
Os jornais interferiram na guerra travada com a Espanha, em favor da independência da
ilha de Cuba, então uma possessão espanhola. Com a expulsão dos espanhóis da ilha,
contribuíram para a expansão do capitalismo norte-americano pois empresas norte-a-
mericanas tiveram liberdade para desenvolver seus negócios, como aconteceu com a
United Fruit (JULIEN, 1970, 39-82).
Pulitzer destacou-se também pelo seu apoio a campanhas jornalísticas contra a corrupção
nas empresas públicas e privadas, lutou pela legislação anti-truste. Teve embates nos tribunais
por causa de matérias jornalísticas contra o banqueiro J.P. Morgan e Theodore Roosevelt, en-
tão presidente da República dos Estados Unidos. Em maio de 1904, em texto para o The Nor-
th American Review, defendeu a fundação de uma escola de jornalismo e expôs seu credo:

Nossa República e sua imprensa crescerão juntas. Uma imprensa competen-


te, generosa e com espírito público, uma imprensa provida de inteligência
para conhecer o direito e a coragem de sua ação, pode preservar essa virtude
pública, sem a qual o governo popular torna-se uma vergonha e um escár-
nio. Uma imprensa cínica, mercenária e demagógica, com o tempo, criará
um povo que será o seu apoio. O poder de moldar o futuro da Rep ública
estará nas mãos dos jornalistas das futuras gerações. (PULITZER, 1904)2

Um ano após o seu falecimento, em 1912, foi criada a Columbia School of Journalism. No
mesmo ano, surgiu a revista Columbia Journalism Review, que veicula temas referentes ao
exercício da profissão e o seu ensino, um eficiente instrumento para a formação permanen-
te de profissionais novos e aperfeiçoamento de antigos quadros. E um corpo de administra-
dores se encarrega de outorgar, a partir de 1917, o prêmio Pulitzer para jornalistas. O curso
de jornalismo, o prêmio Pulitzer e a publicação da revista de jornalismo são procedimentos
construídos para manter um clima permanente de atenção para as questões da profissão.
O legado de Pulitzer permanece no século XXI, quando, mais uma vez, jornalistas profis-
sionais e professores expõem a crença no ensino de jornalismo e buscam reavaliar como
formar jornalistas preparados para enfrentar as mudanças na sociedade norte-america-
na. Debatem sobre o modo de fazer um melhor trabalho, criticam seus procedimentos,
buscam opiniões que os desafiam, estão convencidos da utilidade dos estudos em uma
universidade. Mas sabem que a escola precisa atender as demandas dos potenciais jor-
nalistas de hoje. Dentre os textos de professores da Universidade, temos um trabalho crí-
tico, equilibrado e abrangente em suas proposições, o de Brent Cunnigham – “Em busca
2 No original em inglês: “Our Republic and its press will rise or fall together. An able, disinterested, public-spirited press,
with trained intelligence to know the right and courage to do it, can preserve that public virtue without which popular
government is a sham and a mockery. A cynical, mercenary, demagogic press will produce in time a people as base as itself.
The power to mould the future of the Republic will be in the hands of the journalists of future generations.”

83
Alice Mitika Koshiyama

da escola perfeita de Jornalismo” –, publicado em 2002 na Columbia Journalism Review


e traduzido pela equipe do Observatório da Imprensa, no qual relembra os embates do
passado com a participação de eminentes mestres:

O que escolas de Jornalismo devem ensinar? Um equilíbrio entre conhecimento


e prática foi claramente o que Joseph Pulitzer tinha em mente quando pensou
em criar uma escola – ainda que de graduação – em Colúmbia num comuni-
cado de 1902. Mas, quando Lee Bollinger, novo presidente de Colúmbia,inter-
rompeu a busca pelo novo reitor da escola de Jornalismo em julho deste ano
e declarou que era preciso repensar sua missão, ele atiçou as chamas de um
debate existente desde os dias de Pulitzer, nunca inteiramente resolvido. Um
artigo do New York Times de 1932, por exemplo, sobre a inclusão de “instru-
ção profissional” no currículo da escola, citou o reitor Carl Ackerman: “Nós
acreditamos que devemos tentar superar a lacuna entre o ambiente protegido
da educação e o ambiente desamparado da vida num jornal...” Outro artigo
do Times, este de 1983, começa desta maneira: “A administração e os profes-
sores da Escola de Jornalismo da Universidade de Colúmbia estão envolvidos
num debate sobre o que a instituição, a mais conhecida do país, deveria estar
fazendo e como deveria estar fazendo”. (B. CUNNINGHAM, 2002)

B. Cunningham observou que as escolas de Jornalismo dos programas de pós-graduação


nos Estados Unidos desenvolviam duas categorias de propostas: a primeira é ampliar e
aprofundar os assuntos; a segunda é dar flexibilidade para o aluno montar seu próprio
curso. Usar os recursos de uma universidade maior é uma maneira óbvia de expandir o
currículo. Há várias maneiras de fazer isso. Com equilíbrio, observa que talvez seja im-
possível resolver a questão sobre o que as escolas de Jornalismo devem ensinar:

Se jornalismo é dar sentido ao mundo, e o mundo está sempre mudando,


então deveriam sempre existir pessoas procurando maneiras de melhorar o
jornalismo. Mas, ao mesmo tempo, a alma do bom jornalismo – reportagem
robusta, extensa e redação clara – nunca mudou, e não deveria. Jornalistas,
diz James Carey, são pessoas com as quais a sociedade conta para dizer: “O
que diabos está acontecendo na economia? O que raios acontece com o sis-
tema educacional?” (B. CUNNINGHAM, 2002)

E faz um importante reconhecimento sobre as limitações da escola:

Não podemos dar aos estudantes conhecimento especializado em tudo que


eles provavelmente vão cobrir em suas carreiras, mas podemos dar a eles
valores, critérios e as ferramentas que os guiarão enquanto eles se educam
sozinhos. O ensino de Jornalismo continuará mudando, expandindo aquilo
que as escolas sempre fizeram – ensinar pessoas a reportar, escrever e pen-
sar. O básico. (B. CUNNINGHAM, 2002)

A Escola de Jornalismo de Cásper Líbero e a Formação Universitária


Na obra sobre história da imprensa no Brasil escrita por Nelson Werneck Sodré (1966)
Cásper Líbero é citado como proprietário de A Gazeta (p.371). Sodré, na avaliação da im-
prensa política e burguesa, menciona o jornal nas relações com o governo Vargas, mas
a protagonista da história é A Gazeta e não seu proprietário.

84
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos

Com a dissertação de mestrado de Gisely Hime (1997) conhecemos as múltiplas facetas do


jovem formado em direito na USP, Cásper Líbero, que se torna jornalista e empresário de jor-
nal A Gazeta. O jornal, foi mostrado no seu auge, de 1928 a 1943, -- ano da morte de Cásper.
Hime demonstra que Cásper agregou uma série de inovações ao panorama jornalístico brasi-
leiro, como o uso da rotogravura colorida e da radiofoto, o lançamento da página feminina e
do suplemento infantil. Como empresário, identificou-se com a modernização da cidade de
São Paulo, criou a marca para o seu jornal, o de ser o vespertino dos paulistanos. A identifica-
ção entre A Gazeta e São Paulo, contudo, não se limitou à modernidade das instalações, mas
também se deu na pauta do jornal, na sua orientação editorial, no tratamento dado à notícia.
O vespertino participou ativamente da vida de São Paulo: no apoio à urbanização, no incen-
tivo ao meio universitário, na presença em eventos políticos. Cásper teve sucesso profissional
e conquistou com seu trabalho no jornalismo um lugar de influência na sociedade paulistana.
Politicamente, passou de opositor ao Governo Federal, na Revolução de 30, à situação de
aliado de Getúlio Vargas, depois da derrota paulista na Revolução Constitucionalista de 1932.
Hime destaca que Cásper Líbero foi um jornalista e empresário de vanguarda, que es-
timulou o debate sobre o exercício do jornalismo, valorizou as discussões da classe e
investiu na formação intelectual dos seus funcionários. Soube valorizar seus empregados
jornalistas e o trabalho quotidiano por eles realizado. E reconheceu a importância de
uma formação de nível superior para eles.
A valorização da formação profissional dos jornalistas por Cásper Líbero culminou com a
doação da maior parte dos seus bens para constituir uma fundação, a qual deveria manter
um curso universitário para formar jornalistas . Com o seu falecimento, foi conhecido seu
desejo no ‘Testamento de Cásper Líbero” (HIME, 1997, p. 243-246). Este ato é totalmente
coerente com as preocupações demonstradas em vida pelo empresário e jornalista.
Em 16 de maio de 1947 foi fundada a Escola de Jornalismo Cásper Líbero, cujo nome foi
alterado para Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero, em 1972, quando a fun-
dação incorporou os cursos de Relações Públicas e Publicidade e Propaganda. E em 2002,
passou a ministrar o curso de Rádio e TV. Em 2003, o curso de graduação em Turismo
teve seu funcionamento autorizado pelo Ministério da Educação (o curso não foi implan-
tado). Em 2015 mantinha os seguintes cursos de graduação: Jornalismo; Publicidade e
Propaganda; Rádio, TV e Internet; e Relações Públicas (“Faculdade Cásper Líbero”, 2015).
Houve, portanto, uma alteração dos objetivos iniciais do seu patrono que pretendia er-
guer apenas uma escola de jornalismo.
No estudo de E. Meditsch temos uma explicação de um possível motivo para essa opção
didática: o fato do modelo CIESPAl ter sido adotado na América Latina. Meditsch busca,
na história recente da área acadêmica da comunicação social, a explicação para a ruptu-
ra entre teoria e prática no estudo do jornalismo, desenvolvido como parte dos estudos
de comunicação. E conclui que a mudança de direção no desenvolvimento da área aca-
dêmica do jornalismo, no sentido de um crescimento vertical, passa pela afirmação da
especificidade do seu objeto de estudo. (MEDITSCH, 1999)
A análise de Meditsch é aplicável também na avaliação dos currículos dos anos sessenta
aos anos oitenta do século passado implantados nos cursos de comunicações no Brasil.
Este foi o caso do curso de Jornalismo da Escola de Comunicações e Artes da Univer-
sidade e São Paulo, a ECA-USP. A escola, desde sua inauguração em 1967, enfrentou a
questão do ensino de jornalismo como um tema problemático, por ser ministrado como
parte do currículo formado por disciplinas obrigatórias de um curso de comunicações e
artes, que estavam sob a administração de vários departamentos da escola.

85
Alice Mitika Koshiyama

Ao longo da história, periodicamente foram feitas alterações pontuais no currículo. Ape-


sar do empenho em aparelhar a biblioteca e qualificar os docentes, o currículo fechado
causava insatisfações aos alunos pela impossibilidade de ampliar seus conhecimentos e
cursar disciplinas em outras unidades de ensino da universidade.
No início dos anos noventa, vários debates aconteceram para buscar outras alternativas
curriculares. Um grupo de professores defendeu a abertura do currículo de jornalismo
para disciplinas optativas. A organização curricular propôs um conjunto de disciplinas
teóricas e práticas básicas para todos os alunos. O curso de Jornalismo buscou uma fle-
xibilização curricular. Disciplinas optativas formavam dois terços da carga horária, parte
delas escolhidas entre as ofertas da ECA e o outro terço possível de ser cursado em
qualquer unidade da USP, sem nenhuma restrição. Foi preciso mudar também a cultura
dominante na burocracia universitária, na época ainda pouco acostumada como trânsi-
to de alunos pelos diferentes cursos, e negociar com outras unidades as vagas para os
alunos de jornalismo. Mas houve alguns gestos de receptividade como o de professores
das ciências sociais, que abriram uma classe especialmente para atender à demanda no
período 1992/1993. Desde então, o sistema tem funcionado e por causa dele tivemos
alunos formados em outras áreas que usaram parte dos créditos concluídos em seus
primeiros cursos para se formarem na ECA.3 Este currículo defende a idéia de que o
futuro jornalista deve conhecer a fundo alguma área de conhecimento na universidade.
Esta orientação surgiu de um estudo acadêmico do professor Bernardo Kucinski sobre
experiências curriculares de escolas de jornalismo nos Estados Unidos e na Inglaterra. Ele
visitou as instituições e acompanhou práticas de ensino bem sucedidas nesses países.
Para um curso de jornalismo hoje, emerge a questão de construir um paradigma de
ensino que problematize temas propostos por agentes do mercado tais como: profis-
sionalismo, competência, neutralidade. Concluímos que a relação ensino-mercado para
o jornalismo e os jornalistas neste tempo, apresenta desafios que só podem ser equa-
cionados com a compreensão da dimensão econômica, social e política do trabalho
no capitalismo financeiro do início do século XXI. Capitalismo que incorpora o próprio
sistema das corporações de comunicação, cuja organização procura subordinar exercício
do jornalismo aos objetivos empresariais.
Em março de 2004 foi feito um debate interno no curso de Jornalismo da ECA-USP e
um balanço do currículo em vigor há dez anos, com a participação de docentes e dis-
centes. Como havia docentes que queriam a volta de um currículo fechado, redigimos
um documento em defesa de uma formação na universidade, com a abertura curricular
obrigatória para optativas na ECA e na USP como uma questão de princípio sobre o nos-
so ensino (KOSHIYAMA, 2004). Nele expomos as principais idéias que foram assumidas
pelos docentes e discentes do curso de Jornalismo da ECA-USP, que resumimos a seguir:
A) Permanência da abertura curricular obrigatória para cursar optativas na ECA e na USP,
considerando:
1. As competências de professores e alunos do Departamento de Jornalismo e Editoração.
2. A experiência de participação curricular que integra as ofertas de conhecimento da
Universidade de São Paulo.
3. As vantagens para os formados nos mercados de trabalho existentes e possíveis de
serem construídos.

3 Notamos que em 2015, quase todos os cursos da USP incentivam seus alunos a fazerem disciplinas optativas em outros
cursos da universidade, abrindo os currículos, estimulando uma formação mais diversificada.

86
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos

B) Concepção do currículo como instrumento que expressa uma concepção mundo, uma
visão do trabalho sobre uma área. Do ponto de vista operacional, um currículo explicita os
interesses do corpo docente sobre as suas possibilidades de ensino. Em relação aos alunos,
é um roteiro para direcionar o trânsito rumo ao diploma, abrindo ou fechando caminhos.
Até a vigência do currículo implantado nos anos noventa, a formação do curso de Jorna-
lismo era feita inteiramente na ECA, com uma constante manifestação dos alunos sobre
a insuficiência e a fragmentação da proposta de ensino.
C) Análise do currículo vigente: princípios, operação e alguns resultados. O currículo implan-
tado nos anos noventa foi pensado a partir de uma análise do jornalismo como um trabalho
que exige do profissional uma sólida formação ética, política e técnica, sendo uma ativida-
de fundamental na sociedade democrática. Este projeto de currículo dos anos noventa pla-
nejou a formação de jornalistas com conhecimentos diversificados e projetos de carreiras
para suprir às múltiplas necessidades da sociedade brasileira, das corporações jornalísticas a
organizações não governamentais – em que temos jornalistas formados na ECA-USP.
A proposta implantada avaliou as possibilidades do sistema USP considerando as variá-
veis: alunos, docentes, aprendizagem e mercado de trabalho.
1. Neste currículo, os potenciais jornalistas, alunos da ECA, que ao entrar na escola,
chegam com um repertório de conhecimentos e interesses heterogêneos, são es-
timulados a participar da construção do seu conhecimento, usando a estrutura da
USP. Foi pensado um currículo para otimizar os recursos da USP a favor da capacida-
de individual de cada aluno que entra no Curso de Jornalismo. Por isso, o currículo
obriga à freqüência de disciplinas obrigatórias no Departamento e optativas, parte
na ECA e parte na Universidade de São Paulo. Esta obrigatoriedade de transitar pela
Universidade permite a cada aluno montar seu currículo final personalizado.
2. Para os professores que atuam no Curso de Jornalismo, o currículo com a obrigato-
riedade dos alunos freqüentarem, em suas optativas, outras áreas da ECA e outras
unidades da USP trouxe uma possibilidade de organizar o seu campo de atuação de
um modo mais racional. Foi possível dimensionar os limites de cada disciplina e, ao
mesmo tempo, estimular os alunos a buscarem, em outras áreas da Universidade, no-
vas abordagens. O corpo docente do Departamento de Jornalismo não carrega mais a
responsabilidade de uma missão impossível, a de oferecer toda a formação necessária
para o futuro jornalista.
3. Houve também uma transformação na relação dos alunos com a aprendizagem. O
contato com metodologias de trabalho de outras áreas de conhecimento na univer-
sidade, que não jornalismo e comunicação, traz uma dimensão mais abrangente da
relação do jornalismo com sociedade e reforça a compreensão das necessidades da
formação profissional ministrada no Departamento.
4. No mercado de trabalho, os alunos de Jornalismo da ECA, que se empenharam em suas
formações com as possibilidades do currículo vigente, tiveram as vantagens de concorrer
com currículos personalizados, valorizados no confronto com os currículos de profissio-
nais formados em outras propostas, desenvolvidas em condições mais limitadas.
Concluímos que a história das experiências concretas com diferentes projetos curricula-
res, que vivenciamos ao longo da nossa carreira docente, e principalmente a experiência
do currículo do Curso de Jornalismo vigente que comentamos, oferece significativos
argumentos em defesa da manutenção da abertura do currículo da área para outras

87
Alice Mitika Koshiyama

formações da USP, ressalvando que é uma proposta que valoriza os nossos alunos e as
nossas possibilidades como instituição de ensino.

Ensino, Mercado de Trabalho e Jornalismo


Há uma mudança radical no modo de trabalhar dominante a partir da revolução industrial.
Temos hoje o desaparecimento das condições que criaram os empregos, no seu formato clás-
sico, dos últimos duzentos anos, avaliou a psicóloga Yudith Rosembaum, em uma palestra:

No lugar do emprego estável, do plano de carreira, da fidelidade ao patrão,


da seguridade social, vivemos hoje a era do trabalho flexível e informal, com
carga horária variável, atividades de meio turno e contratos temporários; tal
cenário trouxe a exclusão de milhares de postos de emprego formal, a partir
de uma reestruturação produtiva bastante complexa. O mercado hoje não
tem fronteiras de emprego. Tornou-se um lugar onde ofertas de trabalho são
trocadas numa rede multidiversificada. (ROSEMBAUM, 2003)

A formação educacional precisa preparar os estudantes para essas mutações no mundo


do trabalho. A aprendizagem da mudança é um dos paradigmas da nossa época [grifos
meus], esclarece Y. Rosembaum (2003) ao registrar o processo de condicionamento de
uma sociedade em busca de “um profissional atualizado, versátil, criativo – total”, no
qual mais jovens acabarão sendo, “eles também, objetos de um sistema, ao querer res-
ponder a essa demanda de ser Tudo.”
A preparação para o mundo do trabalho é tarefa de todo o sistema educacional. Alain
Accardo, sociólogo do trabalho, detecta o poder disciplinador dos cursos de jornalismo
na França, e que tem continuidade nas grandes organizações jornalísticas:

De modo geral, os financistas e comerciantes que se apropriaram de uma


parte substancial da mídia não têm necessidade de ditar aos jornalistas o que
elesdevem dizer ou mostrar. Não precisam violentar suas consciências, nem
transformá-los em propagandistas. O senso de dignidade jornalística jamais
o aceitaria. (...) Deve-se confiar na “consciência profissional”.

(...)
Accardo afirma que ”basta entregar as rédeas do poder jornalístico nas redações aos
homens e mulheres geralmente qualificados como “excelentes profissionais”, o que sig-
nifica que nunca deixaram de dar provas de sua adesão a uma visão de mundo cujas
crenças fundamentais compartilham, explícita ou implicitamente, com seus patrões.”
(ACCARDO, 2000). São esses profissionais que fazem “um recrutamento destinado a
impedir a entrada de raposas no galinheiro ou de hereges na missa”, afirma o autor. Ele
descreve um sistema integrado que funciona permanentemente:

Esse mecanismo começa a funcionar nos cursos de jornalismo e continua perma-


nentemente em ação nas redações dos jornais. Portanto, os meios de comuni-
cação são solidamente dominados por uma rede à qual basta trabalhar “como
se sente” para trabalhar “como se deve”, isto é, em defesa das normas e valores
do modelo dominante – modelo esse onde se produziu o consenso entre uma
direita em pane de idéias e uma esquerda em crise de ideais. (ACCARDO, 2000)

No Brasil, jornalistas que integram o mercado de trabalho devem enfrentar as novas rea-
lidades, conforme mostram diversos estudos de campo, dos quais destacamos o estudo

88
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos

de Jorge Cláudio Ribeiro (1994), que examinou a introdução dos sistemas informatizados
nas redações de O Estado de S. Paulo e Folha de S. Paulo, e de José Roberto Heloani
(2003), psicólogo social e do trabalho, que fez um estudo de campo com jornalistas que
atuam em redações, rádios e televisões sobre as múltiplas e extensas jornadas de traba-
lho imprescindíveis para a sobrevivência financeira. Temos nesse contexto, uma degrada-
ção e precarização das condições de trabalho de todos trabalhadores.

Informação, Formação e Treinamento


A questão para os educadores, independente das suas atuais áreas de atuação, é trabalhar
com o pressuposto de que muitos dos que estudam em um curso usarão seus conhecimen-
tos de maneira que seus mestres não previam ou não desejavam ou não sabiam que era
possível. João Antonio Zuffo, coordenador-geral do Laboratório de Sistemas Integráveis
(LSI) da Escola Politécnica da USP (http://www.lsi.usp.br/) em 2003, avalia que o profissio-
nal do futuro deve ter uma formação humanística sólida para saber lidar com as constan-
tes mudanças tecnológicas que virão. Ele cita Albert Einstein em apoio ao que defende:

“O desenvolvimento da capacidade de pensamento deveria ser colocado em


primeiro lugar, e não a aquisição de conhecimento especializado. Se uma
pessoa domina o fundamental no seu campo de estudo e aprendeu a pensar
independentemente, ela será mais capaz de adaptar-se ao progresso e às
mudanças do que outra cujo treinamento consistiu apenas na aquisição de
conhecimento detalhado”. (ZUFFO, 2003)

Vivemos na infoera, que Zuffo especifica: “a era da informação que está mudando os valores
da sociedade e o relacionamento humano.” Nesta época temos bens que são intangíveis, não
quantificáveis, como o software, temos um excesso de informação cada vez mais intenso que
o nosso cérebro precisa selecionar o mais importante e útil para nós e descartar o excesso.
Os estudos devem formar para lidar com as mudanças constantes, “cursos superiores
que tenham uma base sólida, calcada em humanidades e artes, que desenvolva a capa-
cidade de saber o que quer, onde encontrar e como selecionar o que precisa” propõe
Zuffo. Cursos rápidos serão para conhecimentos mais técnicos e específicos. Todos deve-
rão fazer constantes cursos de complementação e atualização, online, com orientadores
especialistas. E a educação será permanente, pois o conhecimento adquirido terá que ser
constantemente atualizado.

Ontem e Hoje: Histórias que se Completam


Neste estudo interrogamos a questão do ensino do jornalismo e seus vínculos com aspectos
da história do jornalismo nos EUA e no Brasil a partir dos legados de Joseph Pulitzer e Cásper
Líbero. Ambos foram empresários de sucesso que doaram seus bens, decorrentes das suas
atividades profissionais, a organizações para patrocinar escolas de ensino de jornalismo.
Vimos a contribuição de Pulitzer permanecer na memória e na história da cultura nor-
te-americana e influenciar na perspectiva da história e da prática do jornalismo nos Es-
tados Unidos até os dias atuais, enquanto a doação de Cásper Líbero foi assimilada por
uma Fundação que descaracterizou o patrimônio financeiro e intelectual deixado pelo
empresário e jornalista em vários empreendimentos. Esses dois diferentes resultados
poderão ser ponderados na observação do ensino de jornalismo nos Estados Unidos e
no Brasil, institucionalizado nos dois países.

89
Alice Mitika Koshiyama

Nos Estados Unidos, o acesso à profissão não depende da posse de um diploma espe-
cífico de jornalista. Sem reserva de mercado para os detentores de diplomas, existe a
permanente avaliação dos problemas da profissão pela academia e pelos jornalistas em
atividade e a valorização dos estudos universitários. Há um consenso sobre a necessida-
de de preparação para que alguém exerça a profissão com competência. Conhecimentos
e experiências de vida importam para o jornalista de hoje e do futuro, o que significa as-
sumir novas concepções de educação, a partir da compreensão das condições do mundo
no processo de reestruturação produtiva do capitalismo e da mudança de valores, com
os paradigmas da globalização e da perda dos direitos dos trabalhadores e da infoera.
Nesta sociedade o ensino universitário de jornalismo deve constantemente avaliar os
modos mais adequados para atender aos estudantes oferecendo-lhes orientações e es-
colhas em seus currículos e respeitando as opções de estudos. Como assinalam as pro-
postas curriculares de Brent Cunningham, da Universidade de Columbia, e as do curso de
Jornalismo da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, o ensino
respeita a possibilidade de enfrentar as rápidas transformações do mundo.
Concluímos ser essencial respeitar os princípios aplicados na construção do currículo
que dialoga com as concepções de um mundo em veloz transformação de paradigmas
na cultura, no mundo do trabalho e nos processos de aprendizagem. Teremos contínuas
transformações nos conteúdos e nos modos de ensinar diante do desafio de propor um
jornalismo para as demandas de informação de um estado democrático de direito.

Referências
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91
Alice Mitika Koshiyama

92
Reconsiderando Cultura,
Contracultura e Nação Por
Meio das Lentes da Tropicália1
John R. Baldwin
Universidade de Illinois (Normal, IL.)

H
avia eletricidade no ar, durante o fantástico III Festival de MPB (Música Popular
Brasileira), em 1967, no Rio de Janeiro, quando Caetano Veloso se preparou para
cantar sua canção “Alegria, Alegria”, acompanhado pelo grupo argentino, Beat
Boys (Veloso, 2002). Os artistas foram vaiados no palco. Tais vaias não eram incomuns
nos festivais de rock brasileiros: os aficionados da Jovem Guarda – leiam-se Roberto Car-
los e seus colegas cantores de músicas românticas - ou os fãs de Chico Buarque e outros
compositores de MPB, muitas vezes, vaiavam artistas de outros estilos musicais (Dunn,
2001a; Napolitano, 2001). No decorrer dos próximos anos, Veloso, seu parceiro musical,
Gilberto Gil, e outros, como Tom Zé, Gal Costa, José Capinan, Torquato Neto e os Mutan-
tes, deram início a uma experiência musical de curta duração chamada Tropicália, que
brincou com a forma e a função da música brasileira (Dunn, 2001b; Sá Rego & Perrone,
sd). Em dezembro de 1968, então sob o regime militar, a polícia foi aos apartamentos
de Veloso e Gil, prendeu-os, interrogou-os, levando-os ao exílio na Inglaterra (Dunn,
2001a). A Tropicália, no entanto, a tudo superou. Ambos retornaram ao Brasil, alguns
anos mais tarde, e continuaram a compor; ironicamente, Gil serviu como Ministro da
Cultura, retirando-se para continuar sua música produção musical, somente em 2007.
Pastemagazine.com (Joynt, 2008), comemorando 40 anos de “ruptura estratégica” por
meio da Tropicália, observa que algumas das inovações promulgadas pelo movimento
-tais como guitarra elétrica -, naquele momento, podem ter parecido imperialismo
cultural, mas hoje são frequentes em “artistas de diferentes hemisférios... as trocas
influências etnomusicais (p. 72)”. Artistas como David Byrne, Beck e Paul Simon refe-
renciam os tropicalistas. Artistas posteriores, como os Paralamas do Sucesso (França,
2003) tomam emprestado com liberalidade influências afro-caribenhas e raízes temá-
tico-musicais latinas, citando (mesmo que de passagem) a inspiração de músicos como
Gilberto Gil. Em suma, a Tropicália teve um impacto duradouro sobre a música brasi-
leira contemporânea. O nascimento, supressão e sobrevivência da Tropicália constitui
um estudo de caso vital não só para a compreensão da cultura, mas da cultura jovem,
da contracultura e do conflito cultural.
Pode-se indagar como a Tropicália relaciona-se com Cultura e conflito cultural. Talvez as
vaias à banda fossem apenas uma marca de lealdade a ela e a prisão, o simples resultado
por tecerem sobre o regime militar algum comentário fora dos limites. Uma compreen-
são mais profunda tanto sobre a recepção inicial, quanto sobre a deportação dos canto-
res pode nos dar algumas pistas.
1 Artigo apresentado no IV Colóquio Brasil-EUA de Ciências da Comunicação. Caxias do Sul (Rio Grande do Sul), 2010.
John R. Baldwin

No III Festival de MPB, antes mesmo que Veloso entrasse no palco, a multidão já vaiava
furiosamente (Veloso, 2002): em primeiro lugar, porque os argentinos Beat Boys partici-
pavam de um festival de música brasileira; segundo, porque vestiam roupas de plástico
cor de rosa em vez dos habituais smokings; e sobretudo, conforme menção em tantos
livros que cobrem o evento (por exemplo, Napolitano, 1991; Perrone, 1989), porque a
banda usava guitarras elétricas. Até este momento, a música brasileira tinha sido ar-
ticulada como meramente acústica e alguns festivais tinha mesmo proibido Veloso e
sua guitarra elétrica completamente (Murphy, 2006). Já em relação à prisão, o grupo
Tropicália era notório entre as novas bandas da época pela falta de uma crítica política
aberta ao regime. A opção dos tropicalistas por evitar a crítica política direta provocou
contra eles profunda dissensão por parte do movimento MPB (Música Popular Brasileira),
integrado por artistas como Chico Buarque e Geraldo Vandré. Christopher Dunn (2001a),
um dos maiores escritores sobre o movimento Tropicália no idioma Inglês, observa que,
mesmo hoje, as pessoas têm dúvidas a respeito dos motivos da prisão e deportação de
Gil e Veloso, embora concorde com Veloso ao sugerir que, mais do que pela oposição
ao regime militar, a Tropicália teria minado as próprias estruturas da música brasileira
e da estrutura social – o movimento teria se tornado um fenômeno caro e sensível aos
corações brasileiros, como uma expressão fundamental da Identidade Nacional. Sendo
assim, a Tropicália entrara em conflito tanto com as vanguardas contemporâneas de
música popular, quanto com o regime militar.
Vemos agora que as vaias da multidão e as barras da cela de prisão estavam ligadas não pela
musicalidade pobre ou protesto político (por si só), mas pela definição de gosto (cultural) e
discursos de identidade nacional. Mas será que isso constitui um conflito cultural? Neste en-
saio, assumo que a resposta a esta pergunta depende em parte de como se define Cultura e
sugiro que Cultura é um termo polivalente. Além disso, afirmo que, na maioria das vezes, o
caso Tropicália é estudado segundo uma das definições do termo, mas que, de fato, sua com-
plexidade nos permite explorar a variedade de definições de Cultura já disponíveis para nós.

Definições Concorrentes de Cultura


Em 1952, Kroeber e Kluckhohn, com base na análise de 150 definições de Cultura, ofere-
ceram uma explicação sumária sobre Cultura:

Cultura consiste em padrões, explícitos e implícitos, de e para comportamen-


to adquiridos e transmitidos por símbolos, constituindo as realizações distin-
tivas dos grupos humanos, incluindo as formas de realização em artefatos; o
núcleo essencial da cultura consiste em ideias tradicionais e, especialmente,
em seus valores (ou seja, historicamente delas derivados e selecionados); sis-
temas de cultura podem, por um lado, ser considerados como produtos de
ação, por outro, como elementos condicionantes da ação adicional (p. 181).

Esta abordagem “padrão” para Cultura reinou suprema durante anos. Mas como Bal-
dwin e outros (2006) argumentam em Culture Redefining, Cultura é um “sinal, um
vaso vazio esperando que pessoas - acadêmicos e comunicadores do cotidiano - preen-
cham-no com sentido (p. 4)”. Por meio de um olhar para o desenvolvimento da noção
de Cultura, os autores observam que as primeiras definições de Cultura se relacionam
com o sentido de “cultivo” - baseado na noção de cultivo, do Latim colere, para lavrar
a terra (p. 5) -, muitas vezes traduzido como um elevado sentido de classe ou de de-
senvolvimento moral e educacional.

94
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos

Cientistas sociais vêem esta definição como elitista, sugerindo que todos os grupos pro-
duzem Cultura. Em uma análise temática (sincrônica) do termo (signo) Cultura, tendo
encontrado 313 definições em diversas disciplinas, Baldwin et al. (2006) mostram que
alguns antropólogos vêem Cultura, como estruturas mentais que levam a artefatos e
comportamento, e outros como estruturas e artefatos e comportamento. Alguns es-
tudiosos de Comunicação vêem a Cultura em termos de padrões de símbolos e signifi-
cados, e muitos escritores populares a definem como “grupos” de pessoas. A maioria
dos escritores modernos procuram inclusive definições, que incluam co-culturas étnicas,
culturas de identidades de orientação sexual ou de gênero, contraculturas e até mesmo
culturas organizacionais.
Este uso mais amplo da Cultura acaba por ser apenas uma extensão da definição de Kro-
eber-and-Kluckhonesque para um conjunto mais diversificado de grupos. Muitos já não
vêem a Cultura como uma bagagem mental, comportamental, de artefatos, passada de
geração em geração, mas como um processo contínuo de co-construção comunicativa
(à la interacionismo simbólico). E um número crescente assume uma postura crítica ou
pós-moderna em relação à Cultura. Por exemplo, Donald e Rattansi (1992) afirmam que
a Cultura não pode ser entendida simplesmente como crenças religiosas ou rituais cul-
turais, mas pelo modo como são “produzidos por meio de sistemas de significado, pelas
estruturas de poder e pelas instituições em que são implantados” (p. 4). Moon (2002)
caracteriza Cultura como uma “contestada zona em que diferentes grupos lutam para
definir questões em favor de seus próprios interesses” (p. 16). Em um ensaio dialógico
entre cinco estudiosos de comunicação intercultural, que relacionam entre as definições
de Cultura a noção do termo como “estrutura dominante ou hegemônica” (p. 230),
Wenshu Lee apresenta: “Conceituar Cultura constitui sua própria política e deve ser con-
textualizado/situado com compromisso ético/moral” (pp. 228-229). Raymond Williams, o
escritor sobre estudos culturais, define Cultura como “um modo particular de vida, que
expressa determinados significados e valores não só na arte e na aprendizagem, mas
também nas instituições e comportamento comum” (p. 43). O’Sullivan e seus colegas
(1983) estendem esse foco nas instituições para incluir tanto instituições como significa-
dos que por elas socialmente “produzidos e reproduzidos”, incluindo mas não limitando
a reprodução por meio de cultura de massa: “A Cultura é agora vista como determinante
e não apenas uma parte determinada da atividade social e, portanto, é uma esfera sig-
nificativa para a reprodução das desigualdades de poder” (p. 59). (Ver Apêndice para as
categorias de definição de Cultura).
Em suma, podemos concluir com O’Sullivan et al. (1983) que:

O termo cultura é multidiscursivo; pode ser mobilizado em inúmeros discur-


sos. Isto significa que você não pode importar uma definição fixa em todo
e qualquer contexto e esperar que ela faça sentido. O que se tem a fazer é
identificar o próprio contexto discursivo... Ao que o termo refere-se (seu
referente, ao contrário de seu significado) é determinado pelo próprio termo
em seu contexto discursivo, e não o contrário (p. 57).

É minha opinião que a maioria das definições modernas se aplicam a Tropicália, e que
sua análise por meio de várias definições ilustra seu uso como um estudo de caso para
entender abordagens modernas para Cultura, contracultura e cultura da juventude. Além
disso, como vemos e definimos Cultura terá implicações para os métodos que escolhe-
mos para a investigação social, para intervenções que implementamos na esfera social e
para a ética da nossa comunicação dentro e entre (contra) culturas.

95
John R. Baldwin

Tropicália, Cultura e Conflito Cultural


Kulture, Kitsch e Klass
Uma das abordagens mais tradicionais de Cultura é como “a paixão moral e social para
fazer o bem; o estudo e a busca da perfeição e esta perfeição como crescimento e pre-
dominância da própria humanidade, distinção de nossa animalidade” (Harrison, 1971, p.
270). Segundo alguns defensores da Tropicália, como Celso Favaretto (1979), cujo livro
canta louvores a ela, o movimento eleva a música brasileira a novo patamar cultural.
Tropicália “impõe, para a crítica e o público, a reformulação de uma nova sensação (sen-
sibilidade), deslocando, assim, a própria posição da música popular, que, a partir de uma
posição inferior, se revestiria com dignidade” (p. 7).
Ao mesmo tempo, alguns argumentam que o movimento Tropicália proporcionou uma
sensação de choque de Culturas, em termos de “bom gosto” na música: diferentemente
dos músicos “sérios” - mesmo dos roqueiros sérios - que davam concertos, apresenta-
vam-se em universidades e participavam de festivais, o playground da classe média e da
elite, Caetano Veloso e seus colegas apareceram em programas de auditório como o kitsch
Chacrinha, onde o anfitrião, um “palhaço corpulento” dirige-se às classes populares. Dunn
(2001a) resume: “O tropicalista abraçou publicamente personalidades da Comunicação de
Massa referentes à cultura Lowbrow, o que era escandaloso para os artistas originalmente
identificados com a MPB” (p. 125). Em certo sentido, a música da Bossa Nova tem sido as-
sociada à classe média e à elite brasileira.
A Bossa Nova simbolizava “as praias, boites e apartamentos de luxo do Rio de Janeiro;
a imagem idílica do Rio de Janeiro” (Murphy, 2006, p. 37). As formas musicais que se
desenvolveram a partir da Bossa Nova, na década de 1960, (McGowan & Pessanha, 1991)
teve o mesmo público. Um grupo de músicos - a Jovem Guarda (liderado por Roberto
Carlos, um dos cantores latinos com a maior venda de todos os tempos) - dedicou-se a
canções de amor e sobre a vida cotidiana, na ótica de um homem de classe média. Nas-
cida em oposição ao regime político vidente à época, a MPB incluiu letras e temas com
referências aos pobres, mas geralmente a partir da visão da classe média e com voz e
linguagem dirigidas aos estudantes universitários e esquerdistas de elite.
A Tropicália, por sua vez, nada teve a ver com as opções mencionadas. Inclui canções que
falam dos pobres, como “Domingo no Parque”, de Gilberto Gil - sobre dois jovens capo-
eiristas que têm uma luta fatal por causa de uma menina, em um parque de diversões,
em uma tarde de domingo - ou a de Torquato Neto, interpretada por Gil, “Marginalia II”,
“uma canção que situa explicitamente o Brasil no contexto das lutas do terceiro mundo”:

Minha terra tem palmeiras


Onde sopra o vento forte
Da fome, do medo e muito
Principalmente da morte (...)
A bomba explode lá fora
E agora, o que vou temer?
Oh, yes, nós temos banana
Até pra dar e vender (...) (Dunn, 2001a, p. 119).

96
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos

Caetano Veloso representa esse pastiche nas letras de “Tropicália”:

O monumento é bem moderno


Não disse nada do modelo
Do meu terno
Que tudo mais vá pro inferno
Meu bem

Que tudo mais vá pro inferno


Meu bem

Viva a banda, da, da


Carmem Miranda, da, da, da, da
Viva a banda, da, da
Carmem Miranda, da, da, da, da (Schreiner, 2002, p. 171).

E Tom Zé, “um dos membros mais experimentais do círculo Tropicália”, canta ironicamente
em “Parque Industrial”, que “o avanço industrial vem trazer nossa redenção” (Murphy,
2006, p. 47). A brincadeira pós-moderna e desdém pela convenção musical claramente
não se encaixam na “cultura” da elite de refinamento, educação e progresso moral.
Em relação à censura à Tropicália e ao exílio de seus líderes, Veloso (2002) afirma que os
militares viram o movimento como anárquico e Dunn (2001a) conclui que “ficou claro
que as performances irreverentes do grupo tropicalista alarmaram as autoridades mili-
tares, mesmo que a crítica dos artistas ao Brasil moderno, nas letras de música, tenha
passado, em grande parte, despercebida” (p. 147). Se a Cultura, então, refere-se à “con-
tinuidade de valores e gostos que foram tradicionais em uma sociedade” (Martin, 1970,
p. 15), então, a Tropicália violou essa noção, tanto para o público ouvinte quanto para a
elite governante, na Brasil da década de 1960.

Cultura como um Quadro de Valores, Crenças e Ação


A Tropicália violou padrões tradicionais de bom gosto e requinte, contrariando valores,
costumes e atitudes, mas, ao mesmo tempo, refletido esses mesmos valores. Caetano,
Gil e outros amarraram as raízes da Tropicália às noções de um canibalismo cultural, ela-
borada pelo poeta brasileiro da década de 1920, Oswald de Andrade, em que o Brasil
adota o que deseja ou precisa de outras culturas e torna isso singularmente brasileiro
(Dunn, 2001a). Mas o que é brasileiro é eclético, uma mistura de várias raças, várias cul-
turas, vários discursos. Assim, não deveria haver nenhuma surpresa quando Gil começa a
incorporar em seu trabalho temas e ritmos africanos tradicionais (Perrone, 1989), quan-
do os Mutantes incorporam sons da vida cotidiana (tilintar de talheres e pratos quebra-
dos) em seu “Panes e Circensis” (Pão e Circo) ou quando Caetano e outros misturam o

97
John R. Baldwin

absurdo com o mundano. Veloso (2001) cita Andrade, a propósito do Brasil: “Meu país
sofre de incompetência cósmica” (p. 44) - refletindo uma noção frequentemente citada
de que o Brasil era um país em busca de um firme senso de identidade nacional e de
sua afirmação. A Tropicália refletiu temas mais profundos do que a tradição brasileira: a
identidade nacional mais tradicional e ambivalente, a tensão entre as classes e o ecletis-
mo de um país bem adaptado a adaptar ideias e artefatos de outros.
Ao revelar as tensões da identidade e da sociedade brasileira, a Tropicália aproveitou a
identidade bricolagem do Brasil - preto, branco, mulato, mestiço, indígena, rico, pobre,
urbano, rural. A Tropicália misturou os artifícios “estrangeiros” de instrumentos elétricos
já adotados pela Jovem Guarda com os velados temas políticos da MPB. Refletia os te-
mas pós-modernos do lúdico e desfocado gênero da poesia concreta (onde a forma e a
disposição das palavras na página é tão importante quanto o verso e o ritmo da poesia)
e do movimento tropicalista na arte e drama ( Dunn, 2001a). E adicionou tudo isso a uma
“revolução” crescente na cultura popular brasileira (Basualdo, 2005).
O desafio de mitologias tradicionais brasileiras, incluindo os mitos do modernista e progres-
sismo industrial e da então chamada “democracia racial” do Brasil (Chidester & Baldwin,
no prelo) - o que Joynt (2008), como mencionado, chama de “estratégica ruptura” - indica
uma mudança proposta nos aceitáveis comportamentos/normas, crenças e valores de uma
cultura, e, pela mudança na forma e estrutura musical, nos artefatos também. Se isto é uma
mudança proposta para a cultura como um todo, um novo rumo para o Brasil, uma nova
direção - a linha evolutiva - para a música somente (Dunn, 2001) ou simplesmente uma nova
direção para a juventude do Brasil não se sabe ao certo. Nesse sentido, Dunn observa que
Caetano e Gil tornaram-se “líderes exilados de um movimento cultural amplamente conside-
rado como o momento inaugural de uma contracultura brasileira” (p. 172), concentrado ago-
ra mais na desilusão política e expressão pessoal. Expor isso mudou, embora não totalmente
a direção, enfatizando aspectos como minorias raciais e sexuais e encaixando bem com as
novas sensibilidades de desbunde e curtição (Dunn, 2001b, p 81), como exemplificado pelos
“Doces Bárbaros”, com Gal Costa e Maria Bethânia em 1976, quando cantaram canções com
referências ao Candomblé. Mas como uma visão estruturalista contempla a cultura, não
estaríamos preocupados com a tensão entre a contracultura e a cultura, mas simplesmente
com a compreensão dos valores ou ideias da cultura como enquadrado na música. Ou seja,
poderíamos analisar a Tropicália como uma lente para uma melhor compreensão da Cultura.
Os autores, porém, divergem sobre para qual Cultura devemos olhar. Alguns podem usá-la
para entender a cultura de um grande grupo de pessoas, tais como a cultura brasileira das
décadas de 1960 e 1970 (Gudykunst & Kim, 2003). Outros preferem usá-la como uma janela
para alguma cultura menor, como a definida pela sexualidade, etnia, faixa etária (especial-
mente aplicável aqui) ou alguma outra identidade de grupo (Collier, 2003).
Em suma, então, a Tropicália representa tanto uma continuidade quanto uma ruptura da
Cultura brasileira no sentido de um padrão de crenças, valores, comportamento e assim por
diante, isto é, o “modo de vida” que Williams (1981) descreve. Em termos de continuidade,
os artistas procuraram abraçar as noções brasileiras de diversidade e ecletismo (isto é, o ca-
nibalismo cultural) - o sentido da globalização que sempre caracterizou a cultura brasileira
- e refletir alguns elementos da vida cotidiana, não vistos em outro movimento de música
popular (apesar da MPB ter buscado esta mesma meta). Os artistas ainda abraçaram um
sentimento de nacionalismo, incorporando, nem sempre com ironia, as formas tradicionais
de música brasileira, como a Bossa Nova. No entanto, eles se separaram dos mitos tradi-
cionais da democracia racial, observando que o Brasil, na verdade, tem desigualdade racial
(Dunn, 2001a; Sovik, 2004); do mito da “Ordem e Progresso”, mesmo representado na

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Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos

bandeira brasileira, de avanço modernista, industrial, comercial, capitalista e tecnológico;


de concepções folclóricas do Brasil; e da necessidade de representar a identidade nacional
brasileira de uma forma musical “nacional” consistente (Chidester & Baldwin, no prelo).

Cultura como Processo


Street (1993) sugere que “a cultura é um verbo”: “a cultura é um processo ativo de construção
de significados e disputa sobre definição, incluindo a sua própria definição. É isso, então, o
que quero dizer, argumentando que a cultura é um verbo” (p. 25). Se tratarmos a cultura
como tal, então a Tropicália tornar-se-á relevante, uma vez mais, visto que significará um
ponto de viragem na música brasileira: a plena incorporação de elementos “estrangeiros” na
música brasileira de uma forma que ainda lhe permitiu ser definida como brasileira. Os tropi-
calistas não foram os primeiros ou únicos a fazer isso. Artistas da Bossa Nova incorporaram
aspectos do cool jazz americano em seus ritmos brasileiros singulares (McGowan & Pessanha,
1991; Murphy, 2006). O Samba teve suas raízes na música africana (Alvarenga, 1953). A Jovem
Guarda recebeu influência do pop americana e britânica. E Milton Nascimento, um dos mais
famosos de todos os artistas brasileiros, inspirou-se no jazz, no pop americano e britânico,
na sonoridade indígena, nas músicas regionais e na canción nueva latino americana (Borges,
1996; Dolores, 2006). Os diversos autores em Perrone e Dunn (2001) destacam o impacto da
globalização sobre a música brasileira moderna, com elementos de reggae, heavy metal, funk
e psychodelica. E Ronsini (2007) examina as contraculturas do punk e hip hop no Sul do Brasil.
Assim, a Tropicália não só representava as tensões que são o Brasil, mas faze parte de um
momento especial que mostra que a Cultura está em constante fluxo e negociação.
Em resumo, se vemos a cultura como processo, então a Tropicália, ao invés de ser apenas
um breve momento na história da música brasileira, torna-se uma mensagem - em vez
disso, um conjunto de mensagens ou “códigos” que contribuem para uma linha evoluti-
va contínua da música brasileira. Deve ser visto em relação recíproca com outras formas
de música, outros elementos da cultura, e ambos, anterior e posterior da música, pelos
mesmos músicos, como um fluxo e um refluxo da constante mudança de cultura (bra-
sileira). Isso pode ser uma maneira mais útil para ver a Cultura, pois a Tropicália, talvez
mais do que a maioria dos outros movimentos, na música brasileira, mostra-nos um pon-
to concentrado de mudança e fluxo. Embora artistas anteriores e posteriores, de Dorival
Caymmi a Paralamas do Sucesso, do samba raiz e fado ao moderno Techno-pop, terem
se inspirado em outras tradições musicais nacionais, a Tropicália representa um processo
mais agressivo e evidente de mudança, e se constituiu um movimento por breve perío-
do, formalmente por um par de anos (Perrone, 1989) - sugere como uma visão única da
música e cultura brasileira seria muito simples, pois a cultura sempre muda.

A Cultura como Lugar de Luta


No entanto, alguns argumentam que o fluxo e refluxo da cultura nunca é neutro. Em pri-
meiro lugar, ao passo que em muitos países do “Primeiro Mundo”, a música pode ser a
expressão cultural ou a resistência da juventude contra as gerações mais velhas, no Brasil,
a música moderna, independentemente da forma, existe em tensão, seja contra as forças
externas de “imperialismo cultural” (Ortiz, 2002) ou a entre classe e ideologia. O movimen-
to neoclássica de Villa Lobos foi o epítome de um nacionalismo em ascensão, refletindo
as características brasileiras de espontaneidade e sofisticação (Béhague, 1971). Hermano
Vianna (1999) chamou o samba de “música nacional do Brasil” (p. XVII), nomeando-o

99
John R. Baldwin

como “um elemento definidor da brasilidade ou identidade brasileira” (p. 10), mas o sam-
ba moderno foi negociado entre o samba do Morro - os sambas das encostas pobres - e os
sambas de Carnaval (Murphy, 2006); e o próprio samba veio a figurar na política nacional
para criar o mito multicultural do Brasil como uma “democracia racial” (Levine, 1984). A
Bossa Nova trouxe conflitos entre aqueles que queriam inaugurar elementos do cool jazz
americano e aqueles que sentiram que isso violava a brasilidade do gênero (Napolitano,
2001). E a cena de rock da MPB tornou-se abundante, não só com a política entre o yêy”ye
da Jovem Guarda e os cantores de esquerda da MPB que sentiram que a JG foi ao mesmo
tempo “alienada” das reais questões políticas de seu tempo, mas também que erradamen-
te abraçou expressões musicais internacionais (de Ulhoa Carvalho, 2005).
A Tropicália misturou visões de público competitivas: os cantores da MPB a viram como do
povo - o povo, como uma força política a levantar-se contra um Estado injusto; a Jovem
Guarda tratou-o simplesmente como o Público - o público comprador de discos (Napolitano,
2001). Os tropicalistas misturaram esses dois pontos de vista, para o desgosto de muitos
críticos sociais. Roberto Schwartz, um crítico cultural de esquerda da época, sentiu que a
indefinição “entre a crítica e a integração social” poderia levar ao conformismo ou poderia
levantar complexos, questões sociais difíceis. Mas da Tropicália especificamente, ele criticou:

Confrontado por uma imagem tropicalista, diante do disparate aparente-


mente surrealista que é o resultado da combinação que descrevemos, o es-
pectador up-to-date vai recorrer a palavras da moda, vai dizer que o Brasil
é incrível, é o máximo, é maneiro. Por meio destas expressões, em que o
entusiasmo e desgosto são indistinguíveis, ele associa-se ao grupo que tem
a “sensação” de caráter nacional (pp. 141-142).

Assim, Schwartz confirma que a Tropicália é, em última instância, referente ao caráter


nacional, à representação da identidade, ao estado atual da Cultura no Brasil, no final
dos anos 1960; mas ele admite que exatamente o que Tropicália está tentando dizer
sobre isso é incerto.
É o que está sendo dito pela Tropicália, de acordo com alguns dos mais novos pontos
de vista da cultura, que veem Cultura, não apenas os artefatos da cultura popular, mas
o “modo de vida”, integrados uns aos outros e, simultaneamente, ligada às estruturas
econômicas. Adorno argumenta, “O caráter comercial de cultura faz com que a diferença
entre cultura e vida prática tenda a desaparecer” (p. 53), o que sugere que não podemos
falar de cultura sem falar da administração dessa cultura - do papel da economia, do
estado e da empresa na moldagem dessa cultura. Isto é, “diferentes ‹sabores de culturas›
e comunidades expressam seus desejos por meio da influência política diferenciada e do
poder de mercado” (Harvey, 1989, p. 77). Fiske (1992) liga mais claramente cultura a poder
e à popular (isto é, massa) produção da ideologia:

A cultura da vida cotidiana é uma cultura de práticas concretas que encarnam e


executam diferenças. Estas diferenças incorporadas são um local de luta entre
os indivíduos que constituem a disciplina social e as diferenças de popularidade
produzida que preenchem e ampliam os espaços e poder do povo (p. 162).

Vemos claramente isso no caso da música popular brasileira em geral. Com a ascensão da
MPB, houve uma mudança repentina nas compras de discos brasileiros. Anteriormente, as
compras brasileiras eram predominantemente de importados, mas, na década de 1960, hou-
ve uma inversão, com os brasileiros, mesmo nos dias de hoje, gastando 70% de seu orçamen-
to para música em artistas brasileiros. Este fato leva Liv Sovik (2002) a notar que o “consumo

100
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos

de produtos culturais foi igualado à ação política” (p. 99). Napolitano (2001) descreve a eco-
nomia política por trás do aumento do samba como um símbolo nacional e internacional do
Brasil (ligado à transmissão de rádio e à política da boa vizinhança), atrás do elo da Bossa Nova
com a indústria da televisão e, finalmente, por trás da ascensão da MPB e da Jovem Guarda
nas mãos de empresas de TV em primeiro lugar, uma vez que promoveram as festas que soli-
dificaram e cristalizaram a identidade “nacional” do rock brasileiro, seguida pelas gravadoras.
Como parte dessa mediação, as próprias identidades - identidades da juventude, identida-
des afro-brasileiras, identidades nacionais - tornaram-se um “espetáculo midiático”, um item
de consumo popular (Canclini, 1995), e as culturas se tornaram um “híbrido” pós-moderno
por assim dizer, emprestando elementos fragmentados de diferentes setores. A Tropicália,
como uma forma precoce e evidente de “globalização” da música brasileira, promoveu a
exportação de música e incorporação de elementos da música de outras culturas. Mas como
importação e exportação sempre existem, segundo Canclini, “em condições desiguais entre
o atores variados e poderes que intervêm dentro dela” (p. 130). Sendo assim, para Velosian
(2001) o Brasil ver-se-ia sempre através dos olhos dos outros, comparando-se com os outros
(ver mesmo argumento em Stepan de 199, no que se refere às ideologias de “branqueamen-
to” no Brasil), mas o hibridismo representaria uma forma de pós-colonialismo (Drzewiecka &
Halualani, 2006; Hegde & Shome, 2006), de resistência (através de canibalismo) de influências
internacionais que procuram colonizar música e cultura brasileira.
A Tropicália foi definitivamente um movimento artístico, ecoando as crenças ideológicas
dos autores, em termos de oposição ao governo, mas também a resistência dos dogmas
cansados de nacionalismo musical brasileiro:

A Tropicália considerou as rupturas gêmeas do fim abrupto do regime de-


mocrático e a instituição da cultura de consumo, agora parte do passado.
Os termos da discussão em que tomou forma foram definidos pela oposição
de valores político-culturais aos valores de mercado e procedimentos, do
nacionalismo populista brasileiro à influência estrangeira e dominação. O ar-
gumento sobre a relação desses polos era um terreno comum para discursos
pelos partidários da música de protesto e os tropicalistas (Sovik, 2002, p. 99).

Mas ainda havia um motivo de lucro. Caetano afirmou: “Acredito que a necessidade de co-
municação com as massas é o próprio responsável por inovações musicais” (em Basualdo,
2005b, p. 21). Neste sentido, a Tropicália diluiu ou quebrou a distinção entre o público e
o povo (Napolitano, 2001), isto é, entre a música como “alienada”, no sentido marxista, a
partir dos problemas reais da vida cotidiana (alienado) e socialmente engajada em mudança
ativa da sociedade (engajado; Harvey, 2002). Da mesma forma, a Tropicália desafiou outras
dicotomias e dualismos, como aquele entre “nacional” e “internacional”, classe e kitsch, tra-
dição e modernidade. Isto, junto com o estilo pastiche, tanto musicalmente como liricamente,
marcou a Tropicália como uma forma verdadeiramente pós-moderna, evoluindo em um mar
de formas musicais relativamente consistentes (e modernistas), como MPB e Jovem Guarda.
Em suma, se vemos a Cultura como um desafio entre as forças ideológicas que se esforça,
uma contra a outra, para determinar o significado, então, podemos perceber a Tropicália
de maneira diferente. Não seria simplesmente uma “fase” na “evolução” da Cultura ou da
música, mais do que uma representação direta de algum padrão de pensamento ou compor-
tamento de uma cultura ou contracultura. Pelo contrário, seria um desafio - neste caso, bas-
tante deliberado, embora nem sempre explícito - contra alguma forma de ideologia do grupo
estabelecido. Não seriam simplesmente os valores e comportamentos, mesmo de um grupo
contracultural, mas estes em oposição a algum grupo de cultura dominante. Se tratarmos a

101
John R. Baldwin

Cultura em um sentido pós-moderno, examinaremos a bricolagem de formas e estilos musi-


cais, a indefinição de gêneros, o kitsch e o abrangente do lugar-comum, e a maneira como os
Tropicalistas usam, em novos discursos, formas comuns como imagens industriais, a seção de
anúncios ou a lua brilhante de uma placa do posto de gasolina Esso. A colocação dos sinais
nesses novos discursos produz novos significados ideológicos para progresso, “raça” e o que
significa ser brasileiro. E, a partir de uma lente pós-colonial, não poderíamos entender essa
nova imagem do Brasil simplesmente como uma luta entre forças no País, mas como forças
contra as ideologias colonizadoras (tanto na forma musical e conteúdo lírico) de países que
são cultural e economicamente “centro” em termos de fluxo de mídia.

Conclusão
Em suma, os estudiosos contestam calorosamente o que exatamente é Cultura hoje, como
um termo acadêmico. Baldwin et al. (2006) argumentam que a forma como se define o
conceito é muito importante, uma vez que irá impactar o que estudamos, como podemos
estudá-lo e o que fazemos com o conhecimento. Ou seja, ele tem implicações para as
abordagens metodológicas e pragmáticas para o fenômeno. Se tomarmos uma visão de
Cultura como moral elevada ou forma artística, ao considerarmos a Tropicália, como Favo-
retto (1979) ou os resumos habituais da internet do movimento ou de suas influências, nós
nos limitaremos a elogiar pelo alto nível as virtudes criativas do movimento - o ápice da
música brasileira naquele período. Essa visão, no entanto, trata a Tropicália apenas como
arte, e ignorando sua tentativa de ruptura política e cultural nos impediria de examinar
o quão bem atingiu tais objetivos ideológicos. A partir da perspectiva estruturalista da
Cultura, gostaríamos de analisar a música ou entrevistar os músicos para entender o que
a música está dizendo sobre uma contracultura em particular ou sobre a própria cultura
nacional às vésperas de 1970, no Brasil. Quais valores abraça? Quais comportamentos pro-
move? Se tomássemos uma visão processual, veríamos a Tropicália mais como um alvo em
movimento, assumindo as diferenças nos autores e de álbum para álbum, música para mú-
sica, observando como o movimento tanto influencia quanto é influenciado por (no sen-
tido da estruturação) alguns grupos culturais ou contraculturais. Com muitos fenômenos
sociais, a antiga abordagem pode levar mais a métodos quantitativos e resultados genera-
lizáveis sobre alguma cultura ou alguma comparação de valores entre culturas, e a última
abordagem levaria a questionamento mais humanista e qualitativo. No que se refere a
uma forma musical, no entanto, a abordagem metodológica de análise pode ser a mesma,
mas as conclusões tiradas e a forma como as moldamos seria diferente. Pontos de vista
críticos, incluindo as ramificações do pós-modernismo e pós-estruturalismo, investigariam,
em vez disso, as tensões ideológicas entre a Tropicália e outras formas musicais e ideolo-
gias políticas, ou mesmo as tensões discursivas nos e entre os Tropicalistas, não buscando
uma representação consistente de seu trabalho, mas um representação fragmentada que
admita a subjetividade do observador interpretar a obra (Conquergood, 1991).
Onde definições estruturais, processuais e críticas mais diferem é talvez no sentido ético e
pragmático de cada qual. Normalmente, as definições estruturais e processuais procuram
observar o fenômeno em seu próprio direito, procurando ser livre de valores. Aborda-
gens críticas podem inquirir mais sobre como o objeto da investigação leva à práxis. Em
relação à Tropicália, a investigação social tradicional seria simplesmente contextualizá-la
para compreendê-la, tanto quanto faríamos em relação a algum outro fenômeno folclóri-
co. A este respeito, muitos musicólogos analisariam o movimento para compreender sua
criatividade, talvez até mesmo perguntando como ele poderia informar os novos estilos

102
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos

musicais criativos. O estudioso da crítica cultural faria perguntas mais amplas sobre se
ou por que a Tropicália levou a uma verdadeira reforma social e, além disso, se o rock ou
outra música popular teria qualquer eficácia a este respeito. Aqui, podemos perguntar se
a música brasileira deve resistir a formas internacionais para permanecer exclusivamente
brasileira ou se qualquer tentativa nesse sentido apenas nos leva a ideologias tradicionais
da música e da cultura nacional e são, portanto, a sua maneira, opressivas.
Por qualquer definição escolhida, podemos ver que a Tropicália, o movimento da música
popular brasileira dos anos 1960 e início dos anos 1970, oferece um interessante estudo de
caso para a compreensão da Cultura, mesmo de definições concorrentes do termo. O que é
difícil, quando se inclui a cultura popular e a influência do Estado na definição de Cultura, é
encontrar espaços de diálogo. Parece que, com o passar do tempo, os Tropicalistas observa-
ram que o movimento foi por fim aceito e os cantores retornaram do exílio. No futuro, pode
recair sobre os trabalhadores culturais (1) o ônus de perceber o papel que a representação
mediada desempenha na produção e reprodução dos valores e identidades culturais; (2) de
trabalhar para fazer as bases ideológicas de tal representação mais aparentes, de modo que
as pessoas em seu cotidiano aumentem as escolhas sobre quais ideologias e quais identi-
dades aceitam; e (3) de tratar com produtores de mídia (por exemplo, músicos, produtores
de filmes) e administradores culturais (por exemplo, agências governamentais), as opções
disponíveis para a negociação de complexidades culturais como as criadas pela Tropicália.
Por fim, embora talvez um caso obscuro de conflito cultural, a emergência da e a repressão
à Tropicália exemplificam o valor de uma visão mais complexa da Cultura, que leve em conta
valores, comportamentos e também as estruturas sociais e artefatos simbólicos.

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105
John R. Baldwin

Notas
Temas de Definições de Cultura

ESTRUTURA /PADRÕES
Modo de vida: a acumulação total de [lista de elementos], estilo de vida; “Mais do que
a soma de traços”. Nota: Coloque nesta categoria também se a noção de Cultura é sim-
plesmente em termos de “diferenças” gerais entre grupos.
Estrutura cognitiva: pensamentos, crenças, suposições, significados, atitudes, preferên-
cias, valores, padrões; a expressão de processos inconscientes, interpretações.
Estrutura do comportamento: comportamento, “cola normativa”, padrões de regras,
técnicas, disposições, costumes, conjunto de habilidades, padrões de comportamento,
hábitos, ações, práticas concretas, cerimônias, rituais.
Estruturas de significação: sistemas de símbolos, linguagem, processos discursivos e de
comunicação, sistema de transferência de pensamentos, sentimentos, comportamentos.
Estruturais relacionais: relações com os outros, o sistema de orientação.
Organização social: as formas organizacionais, instituições políticas, instituições legais
(por exemplo, as leis, crime & punição), religião como instituição.
A “estrutura” ou “abstração” feitas por pesquisadores para descrever grupos de pessoas.

FUNÇÕES
Fornece guia e um processo de aprendizagem, adaptação ao mundo, sobrevivência.
Oferece às pessoas um sentimento comum de identidade/pertença ou da diferença em
relação a outros grupos.
Expressão de valor (propósito expressivo).
Função de estereótipos (finalidade avaliativa).
Fornece meios de controle sobre outros indivíduos e grupos.

PROCESSOS
Prática etc., um “verbo”, bem como um substantivo [alterar para verbo]
De diferenciação de um grupo de outro.
Da tomada de sentido, produzindo significado baseado em grupo, ou de dar vida a sig-
nificado e forma.
De processar “matérias-primas da vida”, de lidar com o mundo social.
De se relacionar com os outros.
De dominar, estruturação de poder.
Da transmissão de um modo de vida.

106
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos

PRODUTO
Produto de atividade significativa [mais ampla do que representacional]: arte, arquite-
tura.
Produto de representação/ significação: artefatos, “textos” culturais mediatizados ou
não etc.

REFINAMENTO:
“Civilização”
Progresso Moral: estágio de desenvolvimento que divide civilizados de selvagens; estudo
da perfeição, civilização.
Instrução: cuidado com o desenvolvimento da mente; refinamento (por exemplo, de
uma pessoa).
Esforços exclusivamente humanos a partir de quaisquer das categorias acima que distin-
guem seres humanos de outras espécies.

MEMBRO DE GRUPO
País.
Variações sociais entre os componentes da sociedade pluralista contemporânea; identi-
dade.

PODER/IDEOLOGIA
Domínio político e ideológico: Cultura dominante ou hegemônica [definições críticas].
Fragmentação dos elementos [definições pós-modernas].

De
Baldwin, J. R., Faulkner, S. L., Lindsley, S. L., & Hecht, M. L. (In Press). Redefining culture:
Perspectives across the disciplines. Mahwah, NJ: Lawrence Erlbaum.

107
John R. Baldwin

108
A Propagação da Cultura Norte-
americana no Jornalismo Brasileiro
dos Anos 19301
Gisely Valentim Vaz Coelho Hime
Faculdades Metropolitanas Unidas - São Paulo

N
a virada dos anos 1930 para os 1940, o vespertino paulistano A Gazeta, de proprie-
dade do jornalista Cásper Líbero, tornou-se a publicação mais moderna do Brasil,
do ponto de vista editorial, gráfico e administrativo, sintonizada com os principais
avanços na área, observados nos Estados Unidos e na Europa. Trata-se de um momento de-
licado na vida do País. Após uma década de um governo centralizador, com um projeto de
modernização fundamentado no espírito nacionalista, Getúlio Vargas oscila entre os países
Aliados e os do Eixo, com os quais se identifica ideologicamente, em negociações em busca
de financiamento e expertise necessários à sua implementação. Cásper Líbero tem participa-
ção ativa neste cenário de diversas formas: integra comissões de negociações político-econô-
micas; realiza conferências sobre a imprensa brasileira e, sobretudo, sua empresa; promove
conferências, reunindo empresários e intelectuais brasileiros e estrangeiros, em debates sobre
as temáticas mais pertinentes àqueles tempos. Nessa perspectiva, A Gazeta torna-se espaço
privilegiado de observação da gradativa influência da cultura norte-americana no País.
Se, durante muito tempo, era quase que obrigatório para a elite brasileira enviar os filhos
para completar os estudos na Europa, na década de 1940, ela descobre que os Estados
Unidos também podem ser uma opção bastante atraente. E o próprio país é responsável
por essa mudança. As bolsas de estudo em aviação integram um grandioso projeto de in-
tercâmbio universitário, largamente divulgado nas páginas d’A Gazeta.
A 13 de junho de 1941, por exemplo, o jornal registra a partida de uma delegação bra-
sileira, num intercâmbio promovido pela União Cultural Brasil-Estados Unidos. Entre as
dez moças e os doze rapazes que a compõem estão quatro paulistas: Décio de Almeida
Prado – que viria a se tornar um dos grandes intelectuais brasileiros –, Maria Conceição
Ribeiro, Francisco Soares Camargo e Henrique Lindenberg Filho.
O programa americano, contudo, não se restringe apenas ao Brasil. Em 18 de agosto
daquele ano, A Gazeta anuncia o custeio da viagem de 30 estudantes latino- americanos
e, em 8 de dezembro, divulga o oferecimento de 25 bolsas para a América Latina, nos
cursos de aviação, indústria têxtil, automóveis, construção, tração e serviços públicos,
química e física, jornalismo, economia, educação, saúde pública, engenharia (química,
elétrica, radiotécnica, comunicação), negócios e mercado, administração pública, serviço
social, instrução bibliotecária e música.
O programa também se dirige a professores. Em 16 de setembro, registra-se a viagem de
uma comitiva de professores e alunos da Escola Luiz de Queirós, de Piracicaba (interior
1 Artigo apresentado no IV Colóquio Brasil-EUA de Ciências da Comunicação. Caxias do Sul (Rio Grande do Sul), 2010.
Gisely Valentim Vaz Coelho Hime

de São Paulo), a convite das autoridades americanas. Além disso, tanto oferece cursos
em nível universitário, quanto de extensão – como registra matéria publicada no dia 19
do mesmo mês. Essa matéria, aliás, destaca o curso de português para estrangeiros,
criado naquele país, pela União Cultural Brasil-Estados Unidos.
O incentivo ao intercâmbio cultural era apenas um dos fatores da Política de Boa Viz-
inhança, plano que orientou o relacionamento do Governo Roosevelt com os governos
centro e sul-americanos no início da década de 1940. Como caracteriza Moniz Bandeira,
“a Boa Vizinhança correspondia à necessidade de manter em calma o quintal enquanto
se pelejava nas ruas (BANDEIRA, 1978: 247)”.
Enquanto a Segunda Guerra ensaia os primeiros passos, os Estados Unidos, apesar de
sua posição de neutralidade, iniciam a preparação de um plano logístico militar. Tal pla-
no esconde-se em propostas de cooperação econômica, que incluem o envio de capitais
e técnicos para ajudar na exploração da borracha, das fibras, dos óleos vegetais, do
manganês e do minério de ferro. Como os países europeus - principalmente Alemanha
e Inglaterra -, os Estados Unidos têm consciência da importância de se controlar as fon-
tes de matérias-primas que existem na América Latina para galgar posições políticas e
econômicas no então conturbado contexto mundial.
Na verdade, com a explosão da Segunda Guerra, os americanos buscarão intensificar a
presença junto à exploração das reservas brasileiras de matéria-prima, uma vez que essa
presença já se faz sentir desde meados da década de 1920, quando o Governo Efigênio
Sales divide o Estado do Amazonas em oito zonas para a exploração de minérios, entre-
gando seis à American Brazilian Co., Canadian Co. e The Amazon Co., todas pertencentes
ao mesmo grupo financeiro (BANDEIRA, 1978: 213).
Em 1927, também se instala na Amazônia o grupo Ford, ao obter a concessão de um mil-
hão de hectares de terra para o estabelecimento de uma ou várias empresas, que explo-
rariam a borracha nativa, com a obrigação de plantar apenas 1.200 seringueiras, ou seja,
uma seringueira a cada mil hectares (VERÍSSIMO, 1935: 43). Pode-se perceber que, já
nesses tempos, o Governo brasileiro era muito generoso com os americanos. Tão gener-
oso que permitia ainda à Companhia Ford Industrial do Brasil utilizar quedas d’água para
energia elétrica, construir represas, açudes, campos de aviação e estradas- de-ferro e de
rodagem, navegar por conta própria o Amazonas e seus afluentes, pesquisar minérios
para efeito de preferência das lavras, estabelecer serviços de comunicações telefônicas e
radiotelefônicas, levantar fábricas, fundar bancos e efetuar todas as operações de crédi-
to, criar e manter polícia de segurança (VERÍSSIMO, 1935: 51-54 e REIS, 1965: 156). Tudo
isso, gozando da isenção de todos os impostos existentes ou que porventura viessem a
existir por 50 anos. Não é preciso explicar porque a região tornou-se conhecida como a
Fordlândia (BANDEIRA, 1978: 213).
Nesse panorama, intensifica-se o relacionamento comercial entre Brasil e Estados Unidos,
contudo - deve-se ressaltar -, sem que o Brasil quebre as parcerias que mantém com a In-
glaterra e a Alemanha. Aliás, o Governo Federal se utilizará do bom entendimento com os
alemães para conquistar posições nas negociações com os americanos. Em 1938, devido
ao acordo de compensação estabelecido com a Alemanha, o Brasil importa 25% deste
país, enquanto os índices americano e inglês atingem 24,2% e 10,4%, respectivamente.
Contudo, a partir de 1939, respaldadas por essa nova política de posicionamento no mer-
cado mundial, as exportações americanas para o Brasil começam a crescer, suplantando
os índices alemães. Já em 1939, constituem 33,5% das importações brasileiras, em 1940,
sobem para 51,8% e, em 1941, atingem 60,3% (BANDEIRA, 1978: 249).

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Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos

A Gazeta espelha essa alteração no posicionamento brasileiro em relação ao mercado in-


ternacional. Ela que, até então, estimulava a intensificação dos negócios com a Alemanha,
passa a destacar a parceria brasileira com os americanos. Na verdade, o jornal reflete a
reorganização de posições dos países em função da Segunda Guerra. Reflete a movimen-
tação brasileira neste jogo de xadrez que é a política internacional.2
Aliás, as visitas de personalidades estrangeiras recebidas por Cásper Líbero n’A Gazeta, neste
momento, praticamente são as mesmas recebidas por Getúlio Vargas na capital da Repúbli-
ca. É o caso, por exemplo, da delegação de comércio americana, que visita A Gazeta e al-
moça com Cásper, em 24 de fevereiro de 1940. Na véspera, participou de um coquetel na
Esplanada. No mesmo ano, passam também pelos salões do vespertino Carol Foster e Fred-
erick J. Cunningham, consul e vice-cônsul americano (20 de março); René Deneau, presidente
da firma G. F. Steele, grande exportadora de papel para a imprensa, com sede em Nova York,
e antiga fornecedora do jornal (29 de março); Herman Lubeck, representante em São Paulo
da Price Brothers Sales Comp., W. J. Scheter, gerente em Nova York da G. F. Steele Comp.,
capitão Edward G. Depury e João Lourenço da Silva, membros da Missão Econômica Inglesa,
Floriano B. Arruda, chefe de propaganda da Companhia Ford, e Rosino Zacchi, da N. W. Ayer
& Son (28 de novembro); e Lester Grass, encarregado dos negócios do Canadá no Brasil, R.T.
Small Bones, consul geral da Inglaterra em São Paulo, A. B. Henderson, adido do consulado
inglês em São Paulo, W. A. H. May, diretor da Thornycroft do Brasil, e E. MacMillan, da Light
and Power (18 de dezembro). O jornal aproxima-se também da imprensa norte-americana.
Cásper recebe John Earnshaw Leard, redator do jornal News Leader, de Richmond, Virgínia
(15 de fevereiro); Adolph Zukor, fundador da Paramount (28 de fevereiro); os jornalistas
norte-americanos Laura Street e John Adams, redatora e fotógrafo da revista Life (17 de
abril); Robert Hall, catedrático em pedagogia na Universidade de Michigan (3 de agosto); e
James Miller, superintendente da United Press, na América do Sul, J. Alan Coogan, diretor da
United Press no Brasil, e Saturnino Leme, chefe da United Press (13 de agosto).
Dentro dessa perspectiva de aproximação entre os países americanos, os Estados Unidos
promovem, em Washington, o encontro de chefes do Estado Maior de tais países. Desse
encontro, realizado em 1940, sai a Missão Militar Americana, cujo objetivo é estabelecer os
planos de cooperação militar entre Brasil e Estados Unidos. Chefiada pelo general Lehman
W. Miller e integrada pelo coronel James B. Chaney, pelos majores Mathew B. Ridgway e
Louis J. Compton e pelo capitão Thomas North, a Missão vem ao Brasil em companhia do
Chefe do Estado-Maior do Exército Americano, George Marshall, pouco após a realização
do encontro. Ao regressar, leva para os Estados Unidos, o general Góis Monteiro, Chefe do
Estado-Maior do Exército Brasileiro, que, por sinal, acabara de chegar da Alemanha.
Por sua vez, a partir da década de 1940, Cásper também intensifica suas idas aos Estados
Unidos, partindo, pouco a pouco, os estreitos laços que o unem à Alemanha. Em 1938,
quando de sua viagem a esse país, com o intuito de se colocar a par das novidades do
setor gráfico, é recebido com honras de Chefe de Estado por Goebbels, artífice midiático
do governo nazista. Nas visitas aos Estados Unidos, realizadas em 1941 e 1943, terá a
oportunidade de se entrevistar com o presidente Roosevelt.
O ano de 1941 é o ano de consagração da Política de Boa Vizinhança e do Panamericanis-
mo. No início de abril, o casal Amaral Peixoto levaria mensagem de Vargas ao presidente
2 Devemos recordar que, durante muito tempo, Getúlio Vargas manteve uma posição oficial de neutralidade em relação à Segunda
Guerra, apesar de, nos primeiros tempos, demonstrar simpatia pelos regimes nazifascistas. Vargas se aproveitará dessa posição de
neutralidade para negociar com países de ambos os lados. Somente em janeiro de 1942, após a Segunda Conferência dos Chance-
leres Americanos, sentindo que não mais poderia prorrogar-se nessa indefinição, sem prejuízo para a economia brasileira, rompe
as relações diplomáticas com os países do Eixo e permite a tão almejada pelos americanos instalação de bases aéreas e navais no
Nordeste brasileiro. As represálias alemãs não se fazem esperar, o que leva o Brasil a declarar guerra ao Eixo em agosto de 1942.

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Gisely Valentim Vaz Coelho Hime

Roosevelt, confirmando o sentimento de solidariedade americana desenvolvido pelos


governos dos dois países, mas declinando do convite para visitar os Estados Unidos, à
espera de ocasião mais propícia (VARGAS, 1995: 388-II).
Ernâni e Alzira do Amaral Peixoto - genro e filha do Presidente - foram convidados a vi-
sitar este país para batizarem um novo navio de carreira para a América do Sul, lançado
pela Companhia de Navegação McCormack. O convite partiu de Robert Lee, um dos di-
retores da companhia. O casal retorna de sua viagem, no final de maio, completamente
encantado com o tratamento a ele dispensado pelos americanos.
Na mesma época, Cásper também embarca para os Estados Unidos, onde permanecerá
por três meses. Na bagagem, leva o documentário Um Vespertino Moderno, para ser exi-
bido no Museu de Arte Moderna, em Nova York. Destacando o moderno aparelhamento
de que dispõe A Gazeta, totalmente adquirido de empresas alemãs, o documentário
alerta os americanos para o bom relacionamento entre Brasil e Alemanha, lembrando
que ainda não fizemos nossa opção definitiva.
A volta para o Brasil acontece em 21 de junho, no Paquete Brasil, da Frota Boa Vizinhança.
Com ele, embarcam outras personalidades de destaque que se achavam nos Estados Unidos
em missão oficial ou a convite do Departamento de Estado. São eles: dr. Miguel Teixeira e
Oliveira, alto funcionário federal; professor Pacheco e Silva, presidente da Sociedade de Cul-
tura Brasil-América; dr. Vicente de Sampaio Lara, do Instituto de Higiene de São Paulo, que
fez estudos na Fundação Rockefeller; dr. Jorge Americano, professor da Universidade de São
Paulo; dr. Pedro Calmon, diretor da Faculdade de Direito da Universidade Estadual do Rio de
Janeiro; Manoel Ferreira Guimarães, presidente da Associação Comercial do Rio de Janeiro; e
dr. Mario de Mello, secretário das Finanças do Distrito Federal, que esteve realizando compras
oficiais. Ao chegar ao Rio, em 1o de julho, Cásper é homenageado pelos cônsules americanos.
Retorna a São Paulo dois dias depois, sendo recepcionado no campo das Congonhas pelo
tenente Alfredo Guedes Souza Figueira, representante do interventor Fernando Costa; Aníbal
de Andrade, representante do prefeito de São Paulo, Prestes Maia; Alexandre Marcondes Fi-
lho, do Departamento Administrativo do Estado de São Paulo; dr. João Batista de Souza Filho,
diretor da Divisão de Imprensa do Departamento Estadual de Imprensa e Propaganda (DEIP) e
representante do professor Cândido Mota Filho, diretor geral do DEIP; e Simões de Carvalho,
assistente técnico da Divisão de Imprensa do DEIP (A Gazeta, 4 de julho de 1941).
Por sua vez, Roosevelt envia Douglas Fairbanks Júnior ao Brasil para recolher maiores
informações sobre a nossa cultura e começar a delinear um possível acordo de inter-
câmbio. Na ocasião, é convidado pel’A Gazeta para uma conferência no seu auditório.
Naturalmente, Panamericanismo e Política de Boa Vizinhança são as tônicas da palestra
(A Gazeta, 5 de maio de 1941).
Enquanto isso, prosseguem as negociações entre Brasil e Estados Unidos. Os dois go-
vernos negociam a liberação de um crédito de 100 milhões de dólares para o Brasil
armar-se, assim como a permissão para que os Estados Unidos instalem bases aéreas no
Nordeste. Por ocasião das comemorações do aniversário da independência americana,
a 4 de julho, A Gazeta revela-se cada vez mais inclinada a apoiar a adesão do Brasil à
política norte-americana para a América Latina. Publica um editorial em que os Estados
Unidos são exaltados como o líder natural da América.

Essa liderança não implica subordinações ou aliança de intuitos agressivos,


mas, antes de tudo, comunhão de interesses, identidade de pontos de vista.
(...) Não representa ameaça de qualquer espécie à soberania ou à vida de

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Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos

qualquer Estado do continente, mas pelo contrário, exprime a segurança de


um vizinho ou de um amigo, que não pensa senão, em colaborar, ajudar e
compreender (A Gazeta, 7 de julho de 1941).

A defesa e segurança encarnadas pelos americanos reaparece em reportagem dias depois,


sobre o anúncio do Departamento de Estado americano, declarando prioridade de ajuda
ao Brasil para a construção de uma usina metalúrgica, no valor de 45 milhões de dólares.
O jornal julga o “projeto importante para a defesa do hemisfério ocidental e para a econo-
mia brasileira e continental (A Gazeta, 10 de julho de 1941)”.
Os laços entre Brasil e Estados Unidos tornam-se, pouco a pouco, mais estreitos. Em
24 de julho de 1941, é assinado o acordo que regula as atividades da Comissão Mista
Brasil-Estados Unidos de Oficiais de Estado-Maior para elaborar os planos de defesa do
Norte e do Nordeste do País. Por decreto-lei, editado no dia seguinte, a Panair do Brasil
ganha concessão para construir, ampliar e aparelhar aeroportos de Salvador ao Amapá,
apoiando a decisão de consolidar uma rota aérea que permitisse do Brasil alcançar a
África. “Este foi o expediente encontrado pelo Brasil e Estados Unidos para a instalação
de bases militares, sem comprometer a posição de não-beligerância assumida pelos dois
países (VARGAS, 1995: 407-II)”. A instalação das bases desperta a desconfiança do gen-
eral Góis Monteiro, que alerta Vargas para o perigo da ocupação do território brasileiro
pelos americanos a pretexto de nos defenderem contra ataques alemães. Vargas retruca
que as negociações devem continuar porque necessitamos reaparelhar o Exército para
assegurarmos nossa defesa. Não concordamos, contudo, com a ocupação estrangeira e
isso deve ser reforçado junto aos representantes americanos. As negociações continuam.
Em 16 de agosto, A Gazeta comunica a visita ao Brasil da Comissão de Orçamentos do
Congresso Norte-Americano, cuja chegada está prevista para o dia 28. Fazem parte da
comissão os deputados Louis O. Rabaut, John M. Houston, Harry P. Beam, Vincent F. Har-
rington, Albert G. Carter, Jack K. MacFall e Guy W. Ray.
Dois dias depois, divulga a liberação de 10.331.639 dólares para a realização do programa
Nelson Rockefeller. Membro da Junta de Defesa Econômica, presidente do Rockefeller Center
e coordenador das Relações Interamericanas dos Estados Unidos, Nelson Aldrich Rockefeller
é responsável pelo Office for the Coordination of Commercial and Cultural Relations be-
tween the American Republics (Escritório para a Coordenação das Relações Comerciais e Cul-
turais entre as Repúblicas Americanas), justamente a instituição que encabeça o programa,
cujas bases confundem-se com os princípios da Política de Boa Vizinhança. O total divulgado
será assim distribuído: 450 mil dólares para a análise da propaganda do Eixo na América
Latina; 900 mil dólares para filmes que aumentem o conhecimento mútuo das repúblicas
americanas; 1,05 milhão de dólares para levar a “verdade dos fatos” acerca do que acon-
tece no hemisfério aos povos de todas as repúblicas americanas; 1,5 milhão de dólares para
jornais, revistas, retratos e panfletos para estimular a solidariedade interamericana. Destes,
250 mil dólares para uma revista ilustrada mensal sobre os recursos dos Estados Unidos e
os seus esforços na preparação da defesa do hemisfério ocidental; 125 mil dólares para arti-
gos e reportagens sobre os Estados Unidos; 175 mil dólares para reportagens e fotografias
sobre as repúblicas americanas a fim de torná-las mais conhecidas nos Estados Unidos; 200
mil dólares para artigos informativos sobre as repúblicas americanas, para comunicados a
organizações e instituições civis, culturais, sociais e educacionais dos Estados Unidos; 150
mil dólares na preparação e distribuição na América Latina de folhetos e de panfletos sobre
os esforços de defesa dos Estados Unidos; 175 mil dólares para uma seção informativa, por
meio do contrato com o Export Information Bureau Inc., com representantes no Brasil, Ar-

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Gisely Valentim Vaz Coelho Hime

gentina, Chile, Peru, Bolívia, Colômbia, América Central, México, Antilhas; 125 mil dólares
para inquéritos sobre a opinião pública, por meio de contrato com a American Social Servey
Inc., que estabelece inquéritos especiais no Brasil, Argentina, Chile, México, Peru, Colômbia,
Venezuela e Estados Unidos; 150 mil dólares para continuar o trabalho em 1942; 1,05 mil-
hão de dólares para o melhoramento das instalações de rádio a fim de obter material para
irradiação; para estímulo e execução de projetos para irradiações em ondas curtas para a
América Latina e para irradiação em ondas longas em cada república; para a preparação de
programas especiais de treino básico nas línguas das Américas.
A Gazeta registra a chegada da comissão americana, uma semana antes do previsto, e en-
fatiza os objetivos do grupo - estudar diretamente o trabalho desenvolvido pelos serviços
de cooperação norte-americana e obter conhecimento detalhado dos problemas do Brasil
e de outras nações americanas - objetivos estritamente ligados à Política de Boa Vizinhança
(A Gazeta, 21 de agosto de 1941). Contudo, esse tão propagado interesse pela realidade e
cultura brasileiras acaba se traduzindo em propaganda da cultura americana, no sentido
de despertar um processo de “americanização”, do que em verdadeiro intercâmbio cultural
- apesar dos jornais proclamarem o contrário. Como ressalta Moniz Bandeira, o Brasil tor-
na-se cada vez mais americano. Só não assimila, porém, a sua forma de democracia política,
gerada no movimento pela independência, de 1776 a 1783 (BANDEIRA, 1978: 215).
As conferências de Pacheco e Silva, Jorge Americano e Cásper Líbero sobre a vida intelec-
tual nos Estados Unidos, realizada a 17 de julho de 1941, no auditório d’A Gazeta, refle-
tem o clima de exaltação da cultura americana que se instaura por aqui, nesses tempos.
Promovido pela União Cultural Brasil-Estados Unidos, em conjunto com o vespertino, o
evento é conseqüência direta da recente viagem dos três a esse país. Aliás, a partir de
então, a dupla de patrocinadores promoverá a exibição de uma série de documentários,
sempre sobre o mesmo tema: hábitos e costumes do povo americano, o que demonstra
a franca adesão do vespertino à propaganda dos Estados Unidos.
É a abertura para a experiência das outras nações que legitima o discurso de Boa Vizinhança,
de cooperação entre os países latino-americanos, de mútuo interesse - ainda que totalmente
forjada. Pelos freqüentes elogios à ação americana e pela sua intensa participação nos proje-
tos de intercâmbio, A Gazeta parece não se dar conta disso. A edição do dia 8 de dezembro
de 1941, por exemplo, destaca como uma das grandes preocupações da política de Pana-
mericanismo fazer propaganda do Brasil nos Estados Unidos. O Departamento de Imprensa
e Propaganda (DIP) estaria cooperando na edição de livros sobre o Brasil, sem procurar in-
fluenciar em juízos e opiniões sobre a nossa atualidade política. Ele forneceria elementos de
informação, material fotográfico, contatos pessoais, acesso a arquivos públicos e estabeleci-
mentos oficiais. Por outro lado, estaria aumentando o interesse da cinematografia americana
pelo Brasil. Em fevereiro de 1942, Orson Welles vem ao Rio de Janeiro para filmar o carnaval
e, posteriormente, realizar um documentário. Em dezembro, Clyde Elliott, da Monogram Pic-
tures, filma películas de aventura em Mato Grosso e Amazonas. John Dored, camera-man da
Paramount, há seis meses no Brasil, já filmou 47 reportagens para o jornal da companhia.
Victor Jurgens, operador do jornal The March of the Time - exibido semanalmente na Rádio
City Music Hall e nos Cineacs dos Estados Unidos - produziu dois documentários sobre as prin-
cipais realizações sociais e administrativas de Vargas. O DIP e a cadeia de jornais Scripps-How-
ard, além da Moore McCormack, Panair, Copacabana Palace Hotel e Ford Motor Company
patrocinam as Embaixatrizes da Boa Vontade, um concurso de beleza.
Progressivamente Cásper alarga seu círculo de relações na sociedade norte- americana.
Em 1942, visitam A Gazeta praticamente todas as personalidades americanas que pas-

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Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos

sam pelo Brasil, como o jornalista William Wieland, assistente especial do embaixador
dos Estados Unidos junto ao Governo brasileiro (20 de março), e S. Habib, diretor da
Metro Goldwyn Mayer do Brasil (23 de maio). Também Nelson Rockefeller, que vem ao
Brasil para acompanhar de perto o funcionamento de seu programa, entrevista-se com
Cásper, durante sua estada na capital da República (10 de setembro). Dois dias depois, já
em São Paulo, aproveita para visitar A Gazeta.
A aproximação dos jornalistas brasileiros com os Estados Unidos realmente intensifica-se
no segundo semestre de 1942. Sob a chefia de Alfredo Pessoa, diretor da Divisão de Di-
vulgação do DIP, parte uma missão jornalística com destino a Londres e, posteriormente,
Washington. São convidados Miguel de Arco e Flexa (pel’A Gazeta), Mario Martins (pel’O
Radical), Danton Jobim (pelo Diário Carioca) e Joaquim Ferreira (pel’O Globo) (A Gazeta,
6 de outubro de 1942). Ao chegar em Londres, Arco e Flexa saúda o Brasil pelo microfone
da BBC. No dia seguinte, os jornalistas são recebidos pelo presidente Churchill, a quem
entregam um busto, em nome do Governo brasileiro. Dois meses depois, já em Washing-
ton, são recebidos por Rosalyn Roosevelt.
Em novembro do mesmo ano, Cásper é convidado pelo embaixador americano a visitar
os Estados Unidos. Segundo o jornalista, “era desejoso do Governo Norte- Americano
que todo o trabalho de preparação para a guerra fosse testemunhado por jornalistas
brasileiros que, assim, poderiam sentir de perto o esforço total e a total capacidade de
produção dos Estados Unidos (A Gazeta, 2 de agosto de 1943)”. A viagem é marcada
para maio de 1943. Integram o grupo André Carrazoni, Rodolpho da Mota Lima, Be-
lizário de Souza, Romeu Ribeiro e Hugo Barreto, do Rio de Janeiro; Joaquim Ottoni Silvei-
ra Camargo, Elias Antonio Pacheco Chaves Neto e Cásper Líbero, de São Paulo; Arlindo
Pasqualini, do Rio Grande do Sul; Ernesto Simões Filho e Wilson Lins, da Bahia; e Edgard
Godoy da Matta Machado, de Minas Gerais.
Além de visitar as principais redações de jornais, empresas e escolas de aviação, o grupo vai
ao arsenal de guerra norte-americano, em diferentes Estados. As impressões causadas nos
brasileiros não poderiam ser melhores, como registra a série de artigos assinados por Cásper
e publicados nas páginas d’A Gazeta, em julho e agosto de 1943. Sob o título, “Impressões
de uma viagem”, os artigos versam sobre os mais diversos assuntos, tais como geografia bra-
sileira, pobreza do Nordeste e geografia das Guianas (a propósito da vista aérea que se tem
do avião a caminho para os Estados Unidos); Panamericanismo; transporte fluvial, ferroviário,
rodoviário e aéreo; escola de aviação; a participação da mulher na guerra; o milagre da água
na Califórnia; treinamento militar; desenvolvimento industrial; democracia e cidadania. Inde-
pendente do assunto, porém, todos os artigos referem-se aos Estados Unidos como exemplo
a ser seguido pelas demais repúblicas americanas, pois,

somente na honestidade prática de um regime verdadeiramente democráti-


co, baseado nos princípios de auto-determinação dos povos, na leal coope-
ração dos países e no respeito inerente ao ser humano e ao cidadão, que são
inseparáveis, encontrará o mundo a paz definitiva para trabalhar, progredir e
viver (A Gazeta, 6 de agosto de 1943).

Um dos aspectos mais valorizados da Política de Boa Vizinhança, nesse momento, é a


cooperação continental, enfatizada pelos editoriais d’A Gazeta, a partir de setembro de
1941. O jornal parte do princípio de que a manutenção da paz interna é fator decisivo
para a defesa nacional: cessadas as divergências internas, povo e governo devem for-
mar um só bloco indivisível para assegurar a própria defesa. Num segundo momento,
o raciocínio é ampliado no que diz respeito ao relacionamento com os demais países

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Gisely Valentim Vaz Coelho Hime

americanos, ou seja, cessadas as divergências, os governos devem formar um só bloco


indivisível para assegurar a defesa das Américas.
Para ilustrar esse posicionamento, nada melhor do que a primeira página do dia 11 de
outubro de 1941, dedicada exclusivamente à Semana Interamericana: dia 12 é o Dia
das Américas. A manchete diz tudo: “Pela união inquebrantável das Américas”. E a ilus-
tração completa: ocupa toda a página uma fotografia da Estátua da Liberdade (“símbolo
do pensamento unânime das nações americanas e dos ideais panamericanos”), cercada
por pensamentos escritos especialmente para A Gazeta pelos representantes das nações
americanas. Retomando, porém, o assunto no interior da edição, o jornal mostra que
nem tudo são flores no relacionamento do Brasil com os Estados Unidos. Destaca que,
segundo a revista americana Fortune, estaria na hora deste país trocar o discurso da “boa
vontade” pelo crédito. E o Brasil, cliente alemão antes da guerra, sofreria represálias e
seria preterido pelas empresas americanas.
O tema da amizade entre Estados Unidos e Brasil seria retomado no editorial do dia 23
do mesmo mês. Os dois países seriam dois “bons vizinhos” que não se conhecem devida-
mente. Mas - o jornal acredita -, não por muito tempo, pois existe um profundo interesse dos
norte-americanos pelas coisas do Brasil. O destaque fica por conta das comemorações da Se-
mana Interamericana, quando Francisco Silva Junior, diretor do Brazilian Information Bureau
(Escritório de Expansão Comercial do Brasil) de Nova York, fala a estudantes do Russel Sage
College e industriais da cidade de Troy, Estado de Nova York. E encerra afirmando que “os
Estados Unidos devem firmar nas Américas a mais perfeita comunhão internacional”.
A frase é típica da teoria de solidariedade americana, que imperou durante a guerra,
justamente como conseqüência da instabilidade européia. Diante do totalitarismo, da
anarquia e das convulsões sociais, a civilização ocidental sente-se ameaçada e, por isso,
busca novas bases de sustentação no continente americano. Diante do caos que se mos-
tra a Europa, a América - liderada pelos Estados Unidos - surge como a mais concreta ex-
pressão dos conceitos fundamentais do pensamento moderno: racionalidade e eficiência
(MOTA & CAPELATO, 1981: 74/75).
Ainda no final dos anos 1920 e início dos 1930, a liderança americana já é profetizada
por dois brasileiros: Anísio Teixeira e Monteiro Lobato. O primeiro, como Diretor da In-
strução Pública do Distrito Federal, mostra-se entusiasmado com a democracia ameri-
cana (“é uma lição para o mundo”) e critica os “profetas da Idade Média”, que temem a
“corrupção da grandeza americana (TEIXEIRA, s/d: 9)”. O segundo, ao retornar de Nova
York, em 1927, exalta seu progresso e sua civilização (LOBATO, 1948).
A crença na liderança americana é também o que expressa Cásper Líbero, em 1943, ao
retornar de uma visita a esse país: “os Estados Unidos organizarão as forças do mundo
após a guerra (A Gazeta, 19 de julho de 1943)”. É também o que expressa a mensagem
assinada pelos diretores dos principais jornais da Capital da República, manifestando a
Roosevelt “toda a confiança que os jornalistas brasileiros depositam na sua ação em def-
esa da segurança do hemisfério ocidental e dos valores da civilização, em que os países
do Novo Mundo cresceram e desenvolveram (A Gazeta, 1 de novembro de 1941)”.
Na verdade, como aponta uma entrevista de Nelson Rockefeller À Gazeta, em 1o de
dezembro de 1941, com a crise econômica de 1939, os Estados Unidos se dispõem a
abrir crédito para os países latino-americanos, como também, reabastecer o seu merca-
do, com o único objetivo de ocupar o lugar da Europa no comércio das Américas. Para
escamotear esse comportamento que nada tem de simpático, amigo e desapegado, é

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Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos

desenvolvido o discurso da Política de Boa Vizinhança. Seus argumentos passam então


a ser impedir que as repúblicas americanas se tornem vulneráveis a Hitler, estimular o
desenvolvimento da América como continente, incentivar a integração das culturas para
favorecer a cooperação mútua, entre outros.
Já no final da década de 1920 e princípio dos anos 1930, porém, o contexto político-econômi-
co brasileiro mostra-se favorável ao imperialismo norte-americano. Além da Ford, outras im-
portantes organizações vêm para o Brasil, também interessadas em garantir matéria-prima e
conquistar o mercado brasileiro. Atlantic Refining Company of Brazil, Firestone Tire & Rubber
Company, Universal Picture Corporation, Armour of Brazil Corporation, International Harvest
Company, Metro Goldwyn Mayer, Companhia Brasileira de Força Elétrica S/A, Refinações de
Milho Brasil, Western Eletric Company of Brazil, Burroughs do Brasil Inc., Swift & Co., Armour
& Co., Wilson & Co. e Pan American Airways Inc. estão entre os principais trustes americanos
que se instalam no País (Departamento Nacional de Indústria e Comércio, s/d: 122-141). Che-
gam para dominar os mais diversos setores da economia brasileira. De acordo com os reg-
istros do Banco Central, até 1930, os Estados Unidos investem no Brasil, 10.292.331 dólares
contra 17.119.380 dólares de outras nações (BANDEIRA, 1978: 214).
Nesses tempos, abrimos as portas às empresas e também aos produtos de fabricação
americana. Em 1927, por exemplo, o Brasil aparece como o quarto melhor mercado
do mundo para os automóveis americanos, absorvendo cerca de 10% das exportações
americanas de veículos (automóveis de passageiros, caminhões e ônibus) (BANDEIRA,
1978: 208). E, em 1928, enquanto as exportações para os Estados Unidos aumentam
de 101.800.900 dólares (32%) para 215.992.000 (45,4%), as importações dos produtos
americanos passam de 50.900.000 dólares (15,7% do total das importações brasileiras)
para 117.510.000 (26%) (BANDEIRA, 1978: 221).
Aderindo plenamente ao discurso panamericanista a partir da década de 40, A Gazeta
faz vista grossa ao imperialismo para ressaltar a solidez das relações comerciais entre
Brasil e Estados Unidos. O editorial de 7 de outubro de 1941 destaca que

a nossa amizade com os Estados Unidos constitui sempre a base mais firme e
tradicional de nossa política externa. Os Estados Unidos são os nossos maiores
fregueses, o maior comprador do nosso principal produto de exportação - o café,
que não paga direitos de entrada nos portos norte-americanos. Devemos ao ca-
pital americano contribuições notáveis ao nosso progresso e à nossa economia.

Não é o que demonstram os números. As exportações de café caem ano a ano. Se em 1933,
representam 73% sobre o valor em ouro das vendas, em 1934, chegam a apenas 61%, em
1935, atingem 51%, em 1936, 45%, e em 1937, 42%. É indiscutível qual o lado da balança
beneficiado pelo Tratado de Reciprocidade Brasil- Estados Unidos. Enquanto caem as expor-
tações de café, as importações de produtos americanos crescem consideravelmente. Para se
ter idéia, tomando como base os níveis de 1933, aumentam 64,80%, em 1936, e 130,8%, em
1937, enquanto as exportações brasileiras registram o incremento de 23,44 e 46%, respecti-
vamente (BANDEIRA, 1978: 248). A explicação é simples, como nos faz ver Moniz Bandeira:

Os produtos primários, principalmente os gêneros alimentícios (foodstuffs),


compunham cerca de 99% das exportações brasileiras para os Estados Unidos
e a expansão da sua demanda depende menos da redução dos preços do que
da elevação da renda no país a que se destinam. No caso do café, cuja elastici-
dade é negativa (menos que 1%) a diferença de preço (um pouco mais baixo)
não aumentaria o seu consumo, que, além do mais, estava saturado, nos Esta-

117
Gisely Valentim Vaz Coelho Hime

dos Unidos. O pequeno crescimento das exportações brasileiras não decorreu,


portanto, da assinatura do Tratado e sim da recuperação da renda, após a crise
que abalou a economia americana, de 1929 a 1933, e isto se torna tão evidente
quando se leva em conta que o café e os demais produtos (cerca de 97,5%) já
entravam livremente naquele país e não receberam qualquer nova concessão.
Para os Estados Unidos, que exportavam (...) produtos manufaturados, as re-
duções de tarifas representaram, porém, enorme vantagem, como os núme-
ros comprovam. Os bens duráveis de consumo (os artigos manufaturados) são
mais elásticos, mais sensíveis às diferenças de preço. A reciprocidade formal
assim se convertia na unilateralidade de fato (BANDEIRA, 1978: 248).

E assim, com a intensificação dos negócios entre os dois países, os brasileiros dependem cada
vez mais dos americanos. De 1921 a 1927, o Brasil recorre às praças de Londres e Paris para
realizar operações financeiras, apenas duas vezes, concentrando os grandes empréstimos na
praça de Nova York. Por isso, em 1928, o Brasil já deve aos Estados Unidos mais de 20% do
total dos financiamentos (106.970.000 libras e 333.577.000 francos) que recebeu da Ingla-
terra e da França (BANDEIRA, 1978: 221), num valor de 152.800.000 dólares. A mudança de
posicionamento, contudo, não é peculiar ao Brasil, mas comum aos demais países da América
Latina. Ela reflete o deslocamento do centro financeiro mundial de Londres para Nova York.

Referências

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ed.). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.

DEPARTAMENTO NACIONAL DE INDÚSTRIA E COMÉRCIO, Sociedades Mercantis autor-


izadas a funcionar no Brasil (1908-1946). Rio de Janeiro: s/d.

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VERÍSSIMO, Inácio J. A Concessão Ford no Pará. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1935.

118
Brasileiros do Horário Nobre – ou o
que a CBS me Ensinou Sobre o Brasil1
Samantha Joyce
Saint Mary’s College, Califórnia

E
m 2006, a série de televisão CSI: Miami recebeu o título de “programa de TV mais
popular do mundo2”. Em um estudo de Ratings em 20 países, estimou-se que 50
milhões de pessoas assistiam ao show. O objetivo daquele estudo foi encontrar o
programa mais bem sucedido em todo o mundo em termos de atrair telespectadores
(Gorgan, 2006). Naquele mesmo ano, um dos episódios ocorreu no Rio de Janeiro, Brasil.
Então, o objetivo da atual pesquisa foi o de revelar como o Brasil, tradicionalmente repre-
sentado através de estereótipos (Fitz, 2005, p. 1) foi retratado. A grande preocupação com
os estereótipos na TV é que o resultado dessas representações pode ser a aquisição de
atitudes negativas para com determinados grupos pelo público e a solidificação de estere-
ótipos raciais e sexuais (Seiter, 1986, pp.7-8). A análise semiótica revelou três temas prin-
cipais: “O Brasil exótico e sem lei”; a “A ideologia do “Nós contra eles’” e a “ Ideologia da
supremacia tecnológica”, onde o acesso Americano à tecnologia de ponta os coloca como
países “modernos e eficientes” contrapondo-o aos “primitivos e retrógrados outros”.
Antes de me aprofundar na análise do episódio em questão, é importante destacar al-
guns dos maiores desafios enfrentados por pesquisadores da area de televisão e cultura
em definir seu objeto de estudo: O que é exatamente a cultura e como é que vamos de-
finir televisão? Para este trabalho tomo como parâmetro a definição de John Fiske (1987,
1991): A televisão é um portador/provocador de significados e prazeres e a cultura é vista
como a geração e circulação dessa variedade de significados e prazeres no seio da socie-
dade. A “televisão como a cultura” é uma parte importante da dinâmica social em que a
cultura é vista como a geração e circulação de todos os significados e prazeres dentro da
estrutura social e mantém-se em um processo interminável de produção e reprodução.
A definição descrita anteriormente é ampla, desse modo, pesquisadores ainda amplas e,
portanto, ainda tem dificuldade em definer seu objeto de estudo. Por exemplo: estudar
o Cosby Show. Pode-se entender como estudar um episódio de uma temporada; incluir
ou não os comerciais (segundo as idéias de flow/fluxo de Raymond Williams); estudá-
-lo em tempo ou em reprises e assim por diante. Ainda que ampla, a definição de TV
proposta por Fiske (1987, 1991) de um “circulador de significados” é um bom ponto de
partida para entendermos este fenômeno, especialmente para a semiótica. Dessa forma,
podemos entender o que Fiske descreve como significados socialmente produzidos ou
como Hall (1980) os descreveu: leituras preferenciais, negociadas e de oposição.
1 Artigo apresentado no V Colóquio Brasil-EUA de Ciências da Comunicação. Chicago, 2012.
2 A popularidade do show ainda está sendo forte. Em 14 de março de 2011, a CSI Miami superou as classificações de 18-49
adultos em uma noite que viu principalmente declínios no horário nobre da transmissão. Por exemplo, The Amazing Race
da CBS caiu um décimo de ponto vs. a semana anterior para uma classificação de 2.6 adultos de 18 a 49 anos. Undercover
Boss pegou um ataque ascendente contra as repetições ABC aumentando 7% contra a semana anterior, para um 2.9 adultos
18-49 anos. CSI Miami mostrou um aumento surpreendente, um aumento de 17% em relação à semana anterior para uma
classificação de 2,7 adultos de 18 a 49 anos (ver Gorgan, 2006, março de 2011).
Samantha Joyce

Portanto, se olharmos para a televisão como um portador de significados ou circulador


de sentido, uma das coisas fundamentais que devemos indagar tem a ver com o proces-
so de produção, assim como a respeito da circulação de significados. Fiske (1987, 1991)
argumenta que, embora os programas de televisão são preenchidos com diversos e pos-
síveis significados há uma tentativa de controlar e concentrar esses significados com a
ideologia dominante e de grupos de interesses na sociedade, mesmo que o “dominante”
pode ser instável e inconstante (através do processo de hegemonia). Portanto, na atual
análise semiótica estou interessada em descobrir alguns dos significados sobre o ‘Brasil’
e / ou ‘brasilidade’ que foram circuladoa pelo show CSI Miami: Rio.
Embora as analises semiótica e textual sejam muitas vezes criticads por serem subjetivas, eles
são uma ferramenta valiosas para os pesquisadores de mídia, cultura e sociedade. Precisamos
ter um entendimento mais complexo e profundo de textos culturais para guiar os estudos
de efeito e recepção. A análise textual interpretativa visa ir além do significado denotativo
superficial e visa examiner e reveler aqueles significados conotativos implícito e não óbvios.
Esta abordagem considera a cultura como uma narrativa ou como processo de contar
histórias em que determinados textos ou “artefatos culturais” (ou seja, programas de te-
levisão), consciente ou inconscientemente vinculam-se a histórias maiores em jogo na so-
ciedade. A questão fundamental aqui é a forma como os textos podem criar identidades
para aqueles que os utilizam (Allen, 1985, 1987 ; Radway, 1984). A crítica textual aborda
esta questão, explorando os significados particulares em jogo em determinados textos.
Além disso, a fim de ter uma pesquisa de recepção ou de conteúdo mais significativa, precisa-
mos entender as complexidades do texto apresentado para o público. A análise de conteúdo é
uma abordagem mais quantitativa que examina amplamente por exemplo quantas instâncias
“A” (pr exemplo, um palavrão) aparece durante um programa de televisão, ou quantas vezes
um Africano-Americano aparece em um episódio de um programa. Esta informação pode
ser muito valiosa ainda mais quando nós combinamos essa análise com outra análise mais
qualitativa, tal como a análise textual que estou sugerindo (Radway , 1984; Saukko , 2003).
Uma das maneiras pela qual “significado” são criados pela na televisão, além do diálogo,
e que somos treinados a reconhecer são os “códigos”: as regras, os sistemas de sinais,
e as convenções que são compartilhadas por membros de uma sociedade / cultura . Os
códigos de televisão funcionam como ligações entre produtores e público e também são
agentes de intertextualidade. Assim, a “realidade” é codificada ou representada pela
televisão de modo aparentemente verossímel e, por vezes, a representação do mundo
acaba sendo aceita como “o” mundo real. Por exemplo produtores utilizam determina-
dos códigos ideológicos. Além do diálogo óbvio, outras ferramentas que nos ajudam a
“ler” os textos de televisão de uma forma preferencial: ângulos de câmera, iluminação,
cor, figurino, estilo, casting, edição, diálogo, etc.
Se entendermos programas de televisão como atos discursivos, podemos compreender
as relações de poder embutidas e divulgados por eles. O discurso funciona não apenas
na produção e leitura de textos, mas também no processo de se fazer sentido na experi-
ência social. Assim, um discurso particular de raça e gênero em programas de televisão
como As Panteras, Sex and the City, ou CSI , funciona não apenas para fazer sentido do
programa de televisão , mas também estrutura um padrão de sentido em relação a gê-
nero e raça nas relações sociais. É este o parâmetro da atual pesquisa.
Os estudos críticos de televisão estabeleceram um nicho importante graças a autores
como Horace Newcomb, Marshall McLuhan, Jonh Fiske e Bruce Gronbeck. É uma área

120
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos

específica de pesquisa, embora emprestada a partir da perspectiva crítica dos estudos


culturais. Em Critical Approaches to Television Gronbeck, (2003) chama a atenção para
um elemento-chave da crítica de TV: Não se trata apenas da história da TV. O autor expli-
ca que, apesar de ensaios críticos de TV poderem ter elementos históricos (por exemplo,
traçando a evolução da TV, ou de um gênero específico, o mapeamento das relações
entre o meio e a veiculação de programas em um determinado momento, as leis, etc.),
críticos de televisão - e eu me incluo aqui - escrevem por razões diferentes de historiado-
res. Enquanto o último se concentra em questões como “o quê” e “por quê”, o crítico de
televisão centra-se em questões acerca de “como” e “o que isso significa”.
Além disso, Bruce Gronbeck (2003) argumenta que o crítico está mais preocupado com
a geração de significados do que entender um significado. Assim, a crítica de televisão
está preocupada com o fornecimento de interpretações perspicazes que estimulam as
pessoas a olharem para programas de televisão (ou textos) de maneiras novas e diferen-
tes, a estimular, descobrir e trazer a tona significados que possam passer em branco. Isso
é o que eu busco fazer.
Finalmente, esta análise de CSI Miami é baseada na disseminação de mitos, e é semelhante
à análise de Will Wright acerca em The Structure of Myth & the Structure of the Western
Film. Assim como afirmou o autor: “O meu interesse não é o de revelar uma estrutura
conceitual, mas o de mostrar como os mitos da sociedade, através de sua estrutura, comu-
nicam uma ordem concetual para os membros dessa sociedade; ou seja, eu quero provar
que um mito ordena as experiências cotidianas de seus ouvintes (e espectadores) e comu-
nica essa ordem através de uma estrutura a priori que é entendida como a linguagem” (p.
16). O episódio em questão funciona como um Western modern e tem fins específicos: a
disseminação de uma ideologia que coloca os brasileiros como others, perigososs, inferio-
res e fora da lei, em completa contraposição aos Americanos, como veremos.

CSI Miami: ‘Rio’


O episódio começa mostrando o Tenente Horatio Caine (David Caruso), o principal CSI
( Crime Scene Investigator), em frente de um dos mais conhecidos símbolos do Rio de
Janeiro - O Cristo Redentor no topo do morro do Corcovado, seguido por outros mo-
numentos famosos como o Pão de Açúcar, e o bondinho amarelo de Santa Teresa. Esta
pesquisa revelou que o belo Sul tropical serviu como pano de fundo para um faroeste
occidental do século 21, onde os cowboys americanos vão para uma terra ‘incivil’ e sem
lei para fazer o trabalho que os locais não deram conta - trazer um famoso traficante de
drogas e assassino à justiça. E depois que este trabalho é feito, os cowboys cavalgam em
direção ao por do sol montar fora no pôr do sol: voam de volta para a ensolarada Miami
restaurando a ordem e família nuclear (Nayar, & Chapelle, 2006).
O fato de um programa de TV americano ter sido filmado no Brasil é de fato diferente,
devido aos altos custos de produção. No entanto, locações estrangeiras e ‘exóticas’ são
na realidade um velho dispositivo usado por Hollywood para atrair um grande público.
Nos últimos 25 anos, Hollywood tem cada vez mais se voltado para as culturas latino-
-americanas para material cinematográfico. Desde os anos 1980, o foco nos problemas
sociais, políticos e económicos comuns da região (Marambio & Tew, 2006, p 124) tem
se destacado, o que traz uma questão importante a tona: Esta análise não tem como
premissa o foco em personagens individuais, mas em maiores categorias sociais (raça,
nação e etnia) como ponto de referência. O exame específico de personagens perde as
maneiras pelas quais as instituições sociais e práticas culturais, em oposição aos indi-

121
Samantha Joyce

víduos, pode ser deturpados, sem um único personagem ser estereotipado (Shohat &
Allen, 1994, p. 201). Além disso, não há nenhum personagem brasileiro especificamente
brasileiro neste episódio, embora o argumento pode ser feito de que o perdonagem seja
o próprio Brasil, ou o Rio de Janeiro, que está representando o país como um todo.
No início do show, o personagem principal, Horatio Caine, revela que “Nós estamos indo para
o Brasil”. E segundos depois, ele está de joelhos aos pés do Cristo Redentor. Ao se levantar
lentamente com um ângulo de camera de baixo para cima, os códigos de produção parecem
indicar o seu poder sobre a cidade aos seus pés. Aqui, o público entende que a grande “Brasil”
é substituído por “Rio”. Mas por que eles estão na América do Sul? Os dois melhores amigos
CSIs - Horatio, o chefe (David Caruso) e Eric Delko (Adam Rodriguez) seu ajudante, vão para
o Rio de Janeiro em busca Antonio Riaz , um traficante de drogas responsável pela morte de
Marisol. Marisol era a mulher de Horatio e irmã de Delko. Por razões inexplicáveis, Riaz que
fala espanhol (sua nacionalidade não é clara), e obviamente não é um brasileiro, é mantido
em uma prisão brasileira. O ICS saber que Riaz será deixar ir da prisão - um erro evidente co-
metido pela despreparada polícia do Rio de Janeiro - que os CSI devem corrigir. Além disso,
Raymond (irmão de Horácio), um policial infiltrado no mundo do narcotráfico que está traba-
lhando no Rio, está desaparecido a mando de Riaz (Nayar, & Chapelle, 2006).
As imagens ensolaradas e brilhantes, e a música festiva e das primeiras cenas são substitu-
ídas por cenas com iluminação chiaroscuro. Sons de correntes e gritos podem ser ouvidos
enquanto vemos uma tela split-screen revelando Riaz andaando emu ma fila na cadeia, e
Delko, conversando com um oficial brasileiro na prisão, que revela para ele que o traficante
de drogas está prestes a ser livre. Delko está chocado, uma vez que ele “matou [sua] a minha
irmã”. Mas o policial revela que devido a problemas burocráticos Riaz está deslizando através
das lacunas. O oficial brasileiro diz: “Sinto muito”, mas Delko, o policial americano, prenuncia
o que está fadado a acontecer: “não sente tanto quanto você irá sentir” (Nayar, & Chapelle,
2006). Após essa revelação, é claro que os americanos serão “forçados” a tomar as rédeas da
situação. E logo que Riaz sai da prisão, ele vê Horatio do outro lado da calçada e diz: “Eu acho
que você não sabe como é que isto vai acabar, Caine”. No entanto, Horatio responde que ele
“sabe exatamente como isso vai acabar”. E um ônibus passa entre os dois, fazendo Horatio
desaparecer, como se ele fosse uma aparição da mente de Riaz; o que também pode ser lido
como uma indicação dos poderes supra-naturais de Horatio (Nayar, & Chapelle, 2006).
Em seguida, colagens adicionais de atrações turísticas do Rio aparecem, e agora Horatio e
Delko estão em frente ao renomado Teatro Municipal. Neste momento, Delko pergunta:
“Para onde está se dirigindo Riaz” E Horatio responde: “Meu palpite é uma das favelas (ele
diz ‘favelas’em portugês mesmo)”, que de acordo com a Delko são “as partes mais perigosas
da cidade; barracos construídos nas encostas dos morros, e os policiais dizem Riaz é como se
fosse o prefeito de uma deles “. Na realidade, a possibilidade de um imigrante não se sabe de
onde estar no comando de uma favela no Rio é pouco provável. Além disso, a generalização
evidente de que todas as favelas são completamente fora lei e perigosas é um estereótipo. Em
seguida, Horatio está na casa de seu irmão com a cunhada Yalina e pergunta para ela se Ray
nunca vai para as tais favelas. Yalina diz: “as drogas ...” como se os dois fossem inevitavelmen-
te ligados e, neste momento, Horatio vê umas botas rústicas e enlameadas de Ray e procura
provas forenses na sola: uma pequena folha! Horatio tira uma foto com seu celular de alta
tecnologia e imediatamente manda por email para o laboratório em Miami.
Não é difícil perceber que há um claro contraste entre a tecnologia de ponta do civilizado
e primeiro mundo e as botas rústicas usadas no Brasil. Além disso, somos apresentados a
cenas de satélite da Terra viajando do Brasil para os EUA, chegando ao prédio dos CSI Miami

122
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos

- uma estrutura de vidro moderna, onde CSIs revelam que o computador irá revelar exata-
mente de onde a folha veio, o que poderia indicar o paradeiro de Ray. Neste momento, Cal-
leigh Duquesne (Emily Procter), a chefe interina pergunta ao especialista de computação:
“Como está o Brasil?” enquanto o policial aponta para a imagem da planta em seu compu-
tador ele explica que: “A planta é a Drosera Vollosa. A coisa é carnívora e por isso estamos
olhando para o rosto de um assassino”, enquanto o público vê a planta encapsulamento e
devorndo um inseto. Já que Calleigh refere-se a planta como o “Brasil”, podemos entender
que ela supostamente representa o Brasil: uma misteriosa floresta selvagem, com plantas
assassinas que se alimentam de bichos (Nayar, & Chapelle, 2006).
Esta representação restrita de ‘brasilidade’ pode ser descrita como o que Shohat & Al-
len (1994) definem como um “fardo de representação”: ou o princípio semiótico que faz
com que uma coisa, ação, comportamento, valor ou preferência de uma pessoa ou grupo
cultural seja imediatamente generalizado como típico de uma essência (p. 183). Calleigh
está perplexa: “Isso é interessante. Ela pode ser encontrada no Rio? E o policial responde:
“Eu duvido. É nativa da floresta tropical”. Então Calleigh liga para Delko em seu telefone
celular, e pergunta sobre o Rio. Delko responde que é “bonito, mas não poderia se mais
diferente de Miami, exceto pelo o clima… A cada esquina há um arranha-céu e uma mon-
tanha. Favelas com muito pouco poder, já tivemos duas ações policiais só hoje “, diz ele.
“Mas e o povo?”, pergunta Calleigh. “As pessoas são ótimas!” “Elas estão simplesmente
em todos os todos os lugares?”, pergunta Calleigh. E um Delko intrigado responde: “Não,
isso é interessante! Onze milhões de pessoas e parece menos populoso que Miami. É como
se eles estivessem esperando por alguma coisa “. “Pelo quê?”, aergunta Calleigh curiosa.
“Eu não sei e eu não sei se eu quero descobrir” (Nayar, & Chapelle, 2006).
Então, com este gancho de suspense, que sugere que os brasileiros devem estar escon-
didos esperando algum tipo de guerra às drogas, Calleigh muda de assunto e revela que
ela “tem más notícias. A planta que eles descobriram é a Drosera Vollosa e isso significa
Riaz está trabalhando fora da cidade “Mas, para sua surpresa, Delko responde:”. Eu es-
queci de te dizer, o Rio tem uma floresta urbana, que é ao lado de uma favela”. Calleigh
é então convencida de que o laboratório de Miami foi capaz de ajudar a investigação e
desliga o telefone (Nayar, & Chapelle, 2006).
Como podemos ver até agora, a ciência e tecnologia americana desempenham um papel
importante na série CSI duplamente: dentro da narrativa, bem como em técnicas de pro-
dução do show. Assim, percebe-se que o programa não desvia-se de outros programas
policiais nda TV, onde a tecnologia, a ciência, a bravura da polícia assim como habilidades
dedutivas que são corroboradas por dispositivos de laboratório de ponta assumimem um
papel de destaque. O que é particularmente intrigante sobre este episódio é a sua contra-
posição a uma estrutura “primitiva”: o próprio Brasil (supostamente). De fato, como O’Don-
nell (2007) aponta, o show em si e o papel proeminente da ciência forense tem tido uma
enorme influência sobre as escolhas profissionais dos jovens - o principal público do show.
Por exemplo a pesquisa afirma que: “a West Virginia University tinha três alunos em 2001,
mas, em 2005, tinha 400. Desde que CSI entrou no ar, houve 10.000 inscrições para os car-
gos de polícia científica no Departamento de Polícia de Las Vegas “(p. 216).
Além disso, cada episódio da franquia CSI reforça ideologias específicas que culminam
em uma óbvia: A ideologia consumista capitalista. O sucesso do show o torna um veículo
perfeito para propaganda. Além disso, todos os tipos de paraphernalia com o logo CSI
são vendidas em lojas e na web. A ideologia da “lei e ordem”; e do “bem contra o mal” é
também apresentada ao longo da ideologia da tecnologia como um marcador definitivo

123
Samantha Joyce

de uma sociedade contemporânea e moderna, bem como sua necessidade de consumi-


-la, a fim de sobreviver e de se ser o melhor.
Consequentemente, a franquia CSI é um grande exemplo do processo de um consumo
e mnipulação retroativa descritos por Adorno e Horkheimer em ‘A Indústria Cultural’.
Uma vez que a necessidade de contar com a tecnologia cara e de ponta é tão óbvia, suas
consequências também são visíveis: se você não tiver o poder e capacidade financeira
para consumi-los, então você está preso no passado - ou no Brasil. Este reforço da neces-
sidade tecnológica totalmente impermeável de qualquer contexto social, econômico ou
político é apresentado pelo show como o único caminho possível para combater o crime
e prevalecer sobre os “maus”. Isto é verdade para na narrativa de CSI, mas um paralelo
também pode ser extrapolado para a cultura americana e modo de vida em geral.
Até agora, no ‘Rio’, o Brasil foi retratado como uma terra de grande beleza, mas com
leis inadequadas, onde governam os traficantes de drogas, e com favelas perigosas, e
plantas carnívoras. A música é animada e as pessoas dançam nas ruas. Tudo isso é con-
traposto ao higienizado, representante do racional e moderno “Ocidente” (América do
Norte) personificado por Horatio, sua trupe, e laboratório, revelando que mais uma vez,
os estereótipos parecem ser a norma quando no que se refere ao Brasil e também aos
EUA. Além disso, a narrative do “Nós contra Eles” também é clara.
Enquanto isso, depois de muitos outros casos de ciência forense e tecnologia de ponta
dando vantagens aos Americanos em relação aos nativos brasileiros e ao “malvado”
Riaz, Horatio e Delko se encontram no coração de uma favela, ilesos, mas encontram
Ray, pendurando de cabeça para baixo e muito ferido. E instantes antes de ele morrer,
Horatio afirma a seu irmão que ele vai “cuidar do menino”. Horatio olha sobre o corpo
morto do irmão e repete: “Eu vou cuidar dele. Eu amo você”(Nayar, & Chapelle, 2006).
Fica evidente que o experiente Horation foi capaz de ver através de Riaz; algo que a polícia
brasileira não foi capaz - ou não teria deixado um homem perigoso como ele vagar pelas
ruas livremente depois de tê-lo capturado. Novamente vemos a premissa do “Nós contra
Eles” e da “Ideologia Civilizada Vs a do Terceiro Mundo”: Brasil, o país sem lei, com favelas
perigosas, plantas selvagens - uma representação restrita do país - sendo divulgada na
televisão em todo o mundo. Embora eu esteja ciente do fato de que não há representação
absolutamente verdadeira de uma realidade na TV, “embora não haja nenhuma verdade
absoluta, nenhuma verdade além da representação e difusão”, é importante ressaltar que
“ainda há verdades contingentes, qualificadas a partir de certas perspectivas, que infor-
mam a visão de mundo de certas comunidades” e estas devem ser considerados pelos
produtores de televisão (Shohat & Allen, 1994, p. 179).
Além disso, ainda que a teoria pós-estruturalista nos lembra que vivemos e habitamos dentro
de linguagem e representação, e que não temos acesso dircto ao “real”, [filmes] que repre-
sentam culturas marginalizadas em um modo realista, como CSI Miami, mesmo que não
queiram, representam incidentes específicos, ainda que implicitamente, mesmo sem fazer
alegações factuais. Assim, os críticos têm razão em chamar a atenção para a ignorância com-
placente dos retratos de Hollywood de grupos sociais, culturais e étnicos que eles deturpam
(Shohat & Allen, 1994, p. 179). É inegável que, embora o realismo seja uma impossibilidade
teórica (p. 182), existem maneiras mais realistas de representar grupos sociais e lugares.
De volta ao mundo CSI, e graças a tecnologia de ponta e as habilidades dedutivas de Ho-
rácio, o CSIs descobrem que Riaz enviou Ray Jr como uma “mula de drogas” de volta para
Miami, e assim a equipe se prepara para deixar o Brasil e para acertar as contas com Riaz e

124
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos

salvar Ray Jr. Yalina e Horatio encontraram paraphernalia de se fazer cápsulas de heroínas
misturadas aos pertences de Ray Jr: luvas de látex, fita. A trama agora é uma cópia perfeita
do filme Maria Cheia de Graça (2004) – um filme colombiano e não brasileiro, que lida com
os problemas específicos do tráfico de heroína naquele país (Nayar, & Chapelle, 2006). Mas
o que isso importa? Colômbia, México, Brasil. Tudo parece ser o mesmo ao Sul do Equador.
Antes de deixar o Sul, Horatio e Delko se deparam cara a cara Com Riaz. Com samba como
pano de fundo, Riaz exibe dois canivetes e começa a dançar/lutar (algo reminicente da capo-
eira) com os policiais americanos. Horatio salva o dia ao esfaquear Riaz até a morte com sua
própria faca. E no que o bandido cai no chão, Horatio olha para o corpo, a partir de cima.
Atrás dele, a estátua do Cristo Redentor, de braços abertos está em destaque no quadro.
Horatio olha para o Cristo em close e parece aliviado - finalmente a morte de Marisol está vin-
gada e eles podem voltar para casa. Os policiais simplesmente saema pé deixando o cadáver
para trás, em plena luz do dia, sem nenhuma consequencia (Nayar, & Chapelle, 2006).
Momentos depois, na cena seguinte, como de se esperar, já de volta a Miami, Horatio
é consegue salvar Ray Jr., agora sob a custódia de Diego Matos, um outro traficante de
drogas. Nesta cena de faroeste clássica - um duelo - os dois atiram um em direção ao
outro, ao mesmo tempo, mas Horatio ganha. E ao dar adeus a Yalina e Ray Jr. Horatio os
lembra de que “eles terão sempre uma família em Miami”. A família, a lei e a ordem são
então restauradas (Nayar, & Chapelle, 2006).
É importante ressaltar o fato de que a série CSI não usa técnicas de representação este-
reotipadas somente para retratar os Latinos. Um olhar mais atento sobre a série revela
o que nenhuma quantidade de efeitos especiais e de aparatos tecnológicos promovido
pelp CSI é capaz de esconder: a representação conservadora de gênero, classe e raça
no seu elenco original e recorrente. Isso não é nenhuma surpresa, já que Laura Mulvey
sugeriu que conservadorismo é mais frequentemente do que não, a própria essência do
espetáculo visual - ao chamar a atenção para o superficial e efêmero, mantendo as mes-
mas e antigas estruturas operativas. Então, segue uma divisão hierárquica do programa:
Enquanto o show parece ser uma série justa no quesito ‘oportunidade igual’ o “ com um
elenco colorido, a estrutura narrativa revela o seu verdadeiro conservadorismo com o
fálico e branco tenente Horation Craine (David Caruso) ajudado pela linda e loira Calleigh
Duquesne (Emile Procter). Os dois estão no topo e comandam uma “equipe diversificada
composta de homens e mulheres Latinos. E a pessoa que faz o “trabalho sujo” - o CSI
que faz autópsias e que lidar com os cadavers é Khandi Alexander é uma mulher negra.

Conclusões
Platéias latino-americanos há tempos lidam com sua própria imagem sendo representada por
outros, exibidas em suas telas, e amplamente exportadas para outros mercados (Marambio
& Tew, 2006, p. 123). CSI é um show americano, e sendo assim, a sensibilidade em torno dos
estereótipos e distorções de brasileiros e brasilidade surge da impotência desse grupo em
controlar sua própria representação. Esta análise textual de CSI-Rio serviu como um ponto
de partida para entender como a brasilidade foi retratada, especialmente através de mitos.
O mundo de fantasia da televisão “faz mais do que proporcionar entretenimento: ele
estrutura uma crença no que é possível no mundo real (Shayon, p.24). Sendo assim, de
acordo com o programa, o Brasil é um retiro para chefões de drogas, a terra em que as
plantas carnívoras prosperam; é densamente povoado, mas as pessoas tem com medo
de sair às ruas e se escondem à espera de “algo” acontecer. O Brasil também é repleto de

125
Samantha Joyce

favelas, e é um país inferior nos quesitos tecnologia, poder de polícia e do conhecimento.


O Brasil também está posicionado como um inimigo dos EUA, ao permitir que crimino-
sos condenados vaguem pelas ruas livremente.
Marambio & Tew (2006) mostram que é importante colocarmos em perspectiva o mito
Hollywoodiano do “Nós contra Eles” que é geralmente usado ao representarem americanos
e latinos em Hollywood, especialmente-através de um “mito do Oeste (faroeste)”: a família
está ameaçada e vitimizada por pessoas de fora indicando também que a civilização em si
está também ameaçada. Um representatnte, atuando em nome da família deve confrontar
diretamente os outros e a família deve ser reparada para que a ordem possa ser restaurada
(p. 135). Na mitologia do “Nós contra Eles” os personagens dos EUA envolvidos na luta com
o “sul” estão preocupados com a segurança de suas próprias famílias ou espaço físico. Nesta
estrutura da família, o poderoso EUA é transformado em vítima de traficantes e contraban-
distas. Seu status de vítima facilita a identificação do público com sua situação. Diante dessa
estrutura tais representações sempre apresentam uma desconfiança a respeito de pessoas ao
“sul” da fronteira e continua a incentivar os Estados Unidos a serem vistos como a vítima e,
como tal, com direito a defender a sua família, cultura, fronteiras, a qualquer custo (p. 135) –
assim como invadir um país e deixar um corpo para trás, à vista (p. 135).
Uma coisa que pode ajudar a representação de Brasileiros e outros Latinos é a tro-
ca e e colaboração de diretores e produtores de vários países latino-americanos com
Hollywood. Este movimento que de fato já começou, vem aumentando a qualidade de
algumas produções de Hollywood que representam Latinos, mas ainda há um longo ca-
minho a percorrer, como exemplificado por pesquisa como esta. No entanto, o sucesso
de crítica de Alejandro Gonzalez Ifidrritu em Amores Perros (2000) levou ao projeto 21
Gramas (2003), com Sean Penn, Naomi Watts e Benicio Del Toro. Outros exemplos: Al-
fonso Cuarón, que dirigiu Y Tu Mama También (2001) e que depois dirigiu Harry Potter
and the Prisioner of Azkaban (2004) e os brasileiros Walter Salles; Diários de Motocicleta
(2004) e Dark Water (2005), e Fernando Meirelles, com The Constant Gardner (2005).
O recente sucesso de diretores latino-americanos, chamado de New Wave (Nova Onda)
é notório pela sua concentração em contextos latino-americanos e por sua produção de
de filmes acessíveis ao público estrangeiro. O recrutamento por parte de Hollywood a
esses diretores ajudou a indústria cinematográfica a suprir a demanda crescente a filmes
relacionados a culturas latinas (Marambio & Tew, 2006, pp. 125-126). Não há nada que
impeça que esses esforços aconteçam também na TV.
A preocupação com estereótipos é legítima já que eles são “altamente carregado de
sentimentos ligados a eles. Eles são a fortaleza de nossas tradições, e atrás da defesa
dos mesmos podemos continuar a sentirmos seguro nos na posição que ocupamos (Li-
ppman, 1922, p. 96). Descrito dessa maneira, Estereótipos como uma operação da ideo-
logia torna-se clara: Eles estão cheios de potencial hegemônico. Esse problema é uma ta-
refa difícil e um passo importante para se resolver. Como Oliver (2006) lembrou-nos, ao
mesmo tempo, é notável que a mídia desempenha um papel fundamental na divulgação
de estereótipos, é importante reconhecer que o tema é complexo. Devemos trabalhar
juntos para compreendê-lo e dar passos no sentido de melhorar a situação. Conforme os
pesquisadores, temos de explorar técnicas como a alfabetização midiática (media litera-
cy) que pode ajudar a diminuir os efeitos nocivos sobre as atitudes dos telespectadores.
Como produtores de mídia devemos estar cientes das maneiras em que raça e etnia são
retratados. E como consumidores de mídia, temos de estar vigilantes pela maneira como
nós constantemente compreendemos e interpretamos o que vemos (19-20).

126
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos

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128
A Cartógrafa, a Escrita e os Jovens:
Marcas de Subjetividades e das Mídias1
Maria Luiza Cardinale Baptista
Universidade de Caxias do Sul

Sinalizadores Iniciais da Cartógrafa

U
ma das conclusões mais fortes da metodologia é certamente esta: não
faz sentido buscar a cientificidade por ela mesma, porque método é ape-
nas instrumento. Faz sentido, isto sim, fazer ciência para conseguirmos
condições objetivas e subjetivas mais favoráveis de uma história sempre mais hu-
mana. É um absurdo sarcástico jogar fora da ciência o que não cabe no método.
Se a ciência se der a isto, não passará de algo mesquinho. (Pedro Demo, 1989)

Uma cartógrafa estuda os mapas e relata suas transformações. Assim, abro um espaço
para resgatar o processo e refletir sobre a mutação e a processualidade, que caracteri-
zam, tanto o processo de escrita quanto o de pesquisa. Cada vez mais, percebo imbrica-
ções entre o processo de escrita e o de investigação. As considerações que trago sobre a
pesquisa, neste sentido, são também válidas para a escrita, em especial, para a produção
da escrita científica, o registro de uma ‘viagem investigativa’, que precisa ser narrada,
meticulosamente, com os cuidados inerentes à linguagem da Ciência.
Apresento, então, um conjunto de estratégias, que dizem respeito à prática de cartógrafa,
que tenho adotado na produção da pesquisa e que muito têm me ajudado na construção de
relatos de investigação como este. Fundamento-me, para tanto, em Rolnik (1989, p. 66) e na
compreensão de que o método cartográfico é aquele se faz “[...] juntamente com as paisa-
gens, cuja formação ele acompanha”. Rolnik explica que a prática do cartógrafo diz respeito
às estratégias de formações do desejo no campo social e que o sujeito que se dispõe a tal
prática “[...] leva no bolso: um critério, um princípio, uma regra e um breve roteiro de preocu-
pações – este, cada cartógrafo vai definindo e redefinindo para si, constantemente” (ROLNIK,
1989, p. 69). Nesse sentido, parto com um critério de busca de aberturas para a captação
sensível do real, um princípio que é o da paixão-pesquisa em Comunicação, uma regra que é
a busca de ‘costura’, busca de encontro com os ‘nós’ da trama dos fenômenos analisados, e o
roteiro, que procuro apresentar, mesmo que resumidamente, neste texto.
Entendo a pesquisa como um ‘jogo de escolha múltipla’. Por mais referências e conheci-
mento que se tenha, cada pesquisador faz uma determinada configuração de escolhas, na
composição do seu universo de pesquisa. Escolhas que perpassam todas as instâncias, todas
as fases. Escolhas que se fazem necessárias o tempo todo. Quer dizer, um outro pesquisador
sempre vai poder analisar a produção e pensar que escolhas diferentes poderiam ter sido
feitas. Isso porque a composição do universo de referências é diferente, o tempo é diferente.
Há sempre variáveis que fazem da experiência de uma pesquisa algo singular, como vivência
e como processo de aprendizado, de apreensão do mundo. Nesse sentido, há um texto pre-
1 Artigo apresentado no IV Colóquio Brasil-EUA de Ciências da Comunicação. Caxias do Sul (Rio Grande do Sul), 2010.
Maria Luiza Cardinale Baptista

cioso de Buber (1974), que me parece excelente para ilustrar o desafio com o qual se depara
o pesquisador contemporâneo.2 O texto trata das múltiplas possibilidades de se considerar
uma árvore, o que pode ser sentido como uma metáfora para as múltiplas possibilidades de
se apreender, de se considerar qualquer ‘objeto’ de estudo e até de se repensar a condição/
relação objeto-sujeito da pesquisa. O repensar essa relação tem implicações profundas em
todas as dimensões da pesquisa e, claro, nos seus aspectos metodológicos.

A reflexão hermenêutica torna-se, assim, necessária para transformar a ciência,


de um objeto estranho, distante e incomensurável com a nossa vida, num objeto
familiar e próximo, que, não falando a língua de todos os dias, é capaz de nos
comunicar as suas valências e os seus limites, os seus objetivos e o que realiza
aquém e além deles, um objeto que, por falar, será mais adequadamente conce-
bido numa relação eu-tu (a relação hermenêutica) do que numa relação eu-coisa
(a relação epistemológica) e que, nessa medida, se transforma num parceiro da
contemplação e da transformação do mundo. (SOUZA SANTOS, 1990, p.13)

A propósito, a metáfora da árvore aparece também em Demo (1989, p. 249), apontando


para a perspectiva hermenêutica na pesquisa. “Para o homem, uma árvore morta não é
apenas a constatação externa de um vegetal que deixou de viver e se encontra em esta-
do de decomposição orgânica. Pode ser o símbolo de um modo de vida, ou a indicação
da agressividade contra a natureza, ou o marco de uma identidade cultural”.
Como me referi, anteriormente, resgato, aqui, a perspectiva Loucos de Paixão-Pesquisa3,
para dizer que só acredito na pesquisa produzida por sujeitos implicados emocional-
mente, sujeitos inteiros. Convém deixar claro que, quando falo de emoção, refiro- me ao
conceito trabalhado por Maturana4 (1998), que não o opõe ao da razão, mas o coloca
como algo que está na essência do ser humano e de suas ações. Ele apresenta o conceito
de emoções da seguinte maneira: “[...] são disposições corporais dinâmicas que definem
os diferentes domínios de ação em que nos movemos. Quando mudamos de emoção,
mudamos de domínio de ação.” (MATURANA, 1998, p.15). O autor questiona a desvalori-
zação da emoção pela nossa cultura e explica que isso faz com que não consigamos per-
ceber o entrelaçamento entre emoção e razão, “[...] que constitui nosso viver humano,
e não nos damos conta de que todo sistema racional tem um fundamento emocional.”
Maturana ensina que todo o sistema racional é constituído a partir de operações com
premissas previamente aceitas, a partir de uma certa emoção.
É nesse sentido que venho trabalhando a concepção de objeto paixão-pesquisa na prática
da investigação e do ensino em Comunicação5, como pressuposto fundamental. Quero dei-
xar claro que, longe de significar uma visão pueril ou um termo carregado de ingenuidade,
sem maior amadurecimento, para mim ‘objeto paixão-pesquisa’ representa uma convicção.
O sujeito só produz, se deseja, se algo o mobiliza. A paixão é plena de dispositivos de mobi-
lização. E é assim que me situo - falo do lugar de quem vive, pensa, ensina, estuda investiga
2 A subjetividade da pesquisa, assim como a relação com o texto de Buber sobre a ‘consideração de uma árvore’ está mais deta-
lhada em Baptista (2001).
3 Criei esse slogan para representar o trabalho de pesquisa e de iniciação científica dos alunos e professores do Curso de Co-
municação Social da Universidade Luterana do Brasil (ULBRA), Canoas, RS, Brasil, em 1995. Está referido também em texto
intitulado “Roteiro de um Projeto Paixão-Pesquisa. Diálogo com um Pesquisador Iniciante”, que produzi em 1992. Depois,
em vários outros artigos que venho apresentando em eventos nacionais e internacionais, defendendo o que eu também
denomino como metodologia de sensibilidade (BAPTISTA, 2001).
4 Biólogo chileno, uma das principais referências da contemporaneidade. Autor da teoria que ele mesmo chama de Biologia
do Conhecimento ou Biologia Amorosa. Abre a possibilidade de compreensão do entrelaçamento biológico e social ou
cultural do humano.
5 Há mais de 20 anos, essa é a orientação também do trabalho de supervisão técnica de processo de escrita, de monografias
de graduação e especialização, dissertações e teses de diversas áreas, além de Comunicação - Educação, Psicologia, Serviço
Social, Medicina, Administração, Geografia, Urbanismo, Marketing, Matemática, Direito, Psicopedagogia, etc. - que venho
realizando na empresa Pazza Comunicazione.

130
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos

Comunicação, como um dos sustentos existenciais. Trago para compartilhar pistas de um co-
nhecimento que venho produzindo, contaminado de emoção assumida. Sim, porque vivemos
muito tempo produzindo saber com a emoção escondida e, mais que isso, negada, como se
fosse crime ou, pelo menos, força negativa, que se opõe à razão positiva.
O abandono da dimensão emocional é criticado, entre outros autores, por Restrepo,
quando este aborda o que chama de analfabetismo afetivo. Ele resgata uma palavra
interessante, splacnisomai, do original grego do Novo Testamento. Essa palavra “[...]
corresponde à conjugação de um verbo desaparecido no século II a III de nossa era e que
hoje poderíamos traduzir literalmente como ‘sentir com as tripas’.” (RESTREPO, 1998,
p.30). Fico pensando. É isso. Sentir com as tripas. É preciso um sentimento visceral que
nos coloque em movimento, também na pesquisa.

Cenário de Mutações da Ciência


Desde o início deste texto, venho apresentando a dimensão epistemológica da pesquisa.
Sigo, a partir deste ponto, reiterando uma orientação geral qualitativa, que se pauta pelos
sinais de mutação, em relação ao que se convencionou chamar de A Ciência, segundo o pa-
radigma emergente pós-Revolução Científica. Do ponto de vista da reflexão da própria pes-
quisa, procuro avançar na dimensão teórica. Vale ressaltar, de antemão, o trabalho de Lopes
(1990), em que a autora, depois de discutir as diferenças de metodologia ‘da’ pesquisa e me-
todologia ‘na’ pesquisa (que é mais restrito, diz respeito ao que eu chamo de procedimentos
operacionais), fala das quatro dimensões: epistemológica, teórica, metódica e técnica.
Considerando, então, entrelaçamento entre a dimensão epistemológica e teórica de pes-
quisa, uma primeira perspectiva a ser mencionada é a da complexidade, cujo principal
representante é Edgar Morin (1993) Essa visão muito tem auxiliado para compreender
os desafios contemporâneos da produção da pesquisa e das práticas comunicacionais,
pois sinaliza para o resgate dos entrelaçamentos das áreas, para o caráter efêmero, para
a não hierarquização... não totalitária dos saberes. Nessa linha de contribuição para a
visão sistêmica dos fenômenos, cito também Fritjof Capra (1990, 1991, 1997), Roberto
Crema (1989), Boaventura Sousa Santos, Humberto Maturana (1998) e Cremilda Medina.
(1990- 1991); Cremilda Medina e Milton Greco (1994); e Luís Carlos Restrepo (1998).
Do ponto de vista teórico, a perda da referência única, da rigidez paradigmática ga-
rantida durante a modernidade, pelas ditas macro teorias globalizantes, convida para a
revisão dos nossos pressupostos. Trata-se, portanto, da necessidade de constituição de
um mapa mínimo teórico, uma cartografia no sentido que Rolnik (1989) usa o termo. Isto
significa a composição de uma trama de referências, que nos auxiliem no contato com o
desconhecido, que atenue a cegueira das luzes da racionalidade exacerbada.
Trata-se de lidar com um ‘mar’ de referências, uma enorme complexidade teórica, que
caracteriza a contemporaneidade. Um tempo de cegueira, como nos ensina Saramago
(1995) e Morin (1986; 1991; 1993; 1998). Uma cegueira branca, talvez decorrente das
luzes da racionalidade moderna. No romance Ensaio sobre a Cegueira, tem-se a ficção
de um mundo que retorna à horda primitiva, só que em escala ampliada. A metáfora é
evidente, constituindo-se em um belíssimo retrato do caos contemporâneo.
Sem usar diretamente a metáfora da cegueira, Restrepo (1998, p.37) fala do analfabe-
tismo afetivo, trazendo uma grande contribuição para pensar a “pesquisa científica”.
Segundo ele, a “[...] separação entre razão e emoção é produto do torpor e do analfabe-

131
Maria Luiza Cardinale Baptista

tismo afetivo a que nos levaram um império burocrático e generalizador que desconhece
por completo a dinâmica dos processos singulares”. O autor lembra que nossas cogni-
ções são determinadas por fenômenos de dependência e interdependência, por cruza-
mento de gestos e corpos, o que evidencia que “[...] é impossível continuar excluindo a
afetividade do terreno epistemológico [...]”.
Já Edgar Morin (1991, p.12) se refere a uma “inteligência cega”, ensinando que existe
uma nova cegueira, ligada ao uso degradado da razão. Sua fala remete ao quanto avan-
çamos, em termos de conhecimentos sobre o mundo físico, biológico, psicológico, socio-
lógico, e, mesmo, no espectro de métodos de verificação empírica e lógica. Apesar disso,
ele convida a admitir que “[...] por toda parte, o erro, a ignorância, a cegueira, progridem
ao mesmo tempo que os nossos conhecimentos”.

Desafios e Implicações Operacionais


Anunciar-se como cartógrafa e defender a perspectiva da Metodologia da Sensibilidade,
da emoção na pesquisa, bem como os pressupostos científicos com que venho traba-
lhando colocam-me diante de uma série de desafios e de demanda de explicações, quan-
to às implicações metodológicas, no que diz respeito aos procedimentos operacionais,
leia-se metodologia na pesquisa (LOPES, 1990). Parto da ideia de que a noção de sujeito
com a qual trabalho permite-me questionar a dicotomia sujeito-objeto da pesquisa, bem
como a relação de determinação de um sobre o outro. Tenho observado que o ‘suposto
objeto’ é o próprio sujeito, mostrando-se nas suas qualidades discursivas, de lógica ar-
gumentativa, na representação do real - ao menos, do real que esse sujeito apreende,
do seu ‘olhar’ para o real. Olhar marcado pela sua subjetividade.
Como a árvore do texto de Buber, o objeto existe, mas na interação com o sujeito, vai
constituir-se com peculiaridades, características de relação, numa espécie de ‘mistura’,
de simbiose, de modo que fica sempre difícil a determinação dos limites, ou seja, saber
até onde é um, até onde é outro. No processo, na constituição da pesquisa, ‘eu e tu’
mesclam-se. A perspectiva racionalista - mecânica, reducionista, cartesiana - propõe a
separação, como prática discursiva, como tentativa de afastar a produção científica do
plano das emoções - mais difícil de ser trabalhado.
Os denominados critérios da teoria sistêmica (CAPRA, 1997, p.46) ajudam a apresentar
as implicações metodológicas. Um primeiro deles é a mudança da visão das partes para
o todo - e compreensão que os sistemas são totalidades integradas, com propriedades
não reduzíveis às partes. Isto implica em uma abordagem metodológica que não frag-
mente o objeto, mas considere os fenômenos em sua totalidade, buscando a compreen-
são da sua trama de relações. Do ponto de vista técnico, implica em uma multiplicação
de dispositivos, com o objetivo de abordar, dessa forma, os entrelaçamentos.
Um outro critério trata da capacidade de deslocamento contínuo nos níveis sistêmicos
- uma espécie de ruptura com as hierarquizações rígidas e com a fixidez dos ‘pré-con-
ceitos’. Quer dizer, aqui temos a necessidade de que o planejamento das estratégias de
abordagem dos fenômenos seja o que eu venho chamando de ‘trilha referencial’ e não
‘camisas de força’, que muitas vezes endurecem o processo. Deparamo-nos com o desafio
de embrenharmo-nos no processo para conhecê-lo verdadeiramente e não apenas para
confirmar ‘pré-suposições’, como parece ocorrer com alguns pesquisadores. Do ponto de
vista técnico operacional, isto implica em planejamento, sim, mas na sensibilidade para
alterações e reconsiderações, quando elas se fizerem necessárias pelas evidências.

132
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos

O terceiro critério envolve a compreensão de que não há partes, mas padrões numa teia
inseparável de relações. Portanto, as relações é que são fundamentais. Nesse sentido, te-
mos a compreensão de que uma das grandes dificuldades é o processamento adequado
dos dados obtidos, no que tange ao seu cruzamento. Há muitas pesquisas, com excelen-
te nível de dados coletados, mas com grandes deficiências no que tange à explicitação
das suas relações. Temos aqui, então, a demanda de um esmero na descrição dos dados,
de modo a apresentá-los na sua complexidade.
Fundamental, como critério sistêmico, a ruptura com a concepção tradicional de objetivi-
dade científica. Nesse sentido, as opções metodológicas implicam em aberturas para ex-
trapolar a captação do concreto. Implicam na ousadia de se posicionar perante o processo,
explicitando o ‘lugar’ de onde ele foi construído.
O quinto critério da visão sistêmica nos fala sobre a compreensão do limite de todas as con-
cepções e de todas as teorias científicas. Isto nos leva, na questão metodológica, a repensar
a instância teórica, principalmente a tendência de adoção cega de visões de mundo, incor-
porando-as integralmente às peculiaridades de um objeto construído – que envolve, pela sua
construção, especificidades, difíceis de serem contempladas por apenas uma visão teórica.
O próximo critério está relacionado à lógica processual - a estrutura do sistema, vista como
manifestação de processos subjacentes. Em síntese, temos aqui o desafio de abordagem dos
fenômenos em sua dinâmica, como processo de vida, considerado em suas mais complexas
dimensões. Do ponto de vista do desafio metodológico, este critério relaciona-se diretamen-
te ao seguinte, qual seja, o caráter efêmero/mutação - compreensão dos sistemas abertos,
que precisam de um contínuo fluxo de matéria e de energia, extraídas do seu ambiente.
A despeito da perspectiva estruturalista, o texto de Lopes (1990, p. 82), reforça essa ar-
ticulação dinâmica, espécie de campo de forças, em que se constitui a pesquisa. Quanto
à questão da objetividade, no entanto, a autora a defende, como algo jamais alcançado,
mas pretendido.
A objetividade é entendida como limite ao qual se tende e a que nunca se chega termi-
nantemente [...] do ponto de vista metodológico, o campo de pesquisa seja concebido
como articulação dinâmica de diferentes instâncias e de diferentes fases que determi-
nam um espaço no qual a pesquisa é apanhada num campo de forças, submetida a
determinados fluxos, a determinadas exigências internas.
Como campo dinâmico, a pesquisa se configura como estrutura e como processo. [...] Um
outro critério considera a dimensão de entropia (desordem) nos sistemas. Herdamos nes-
tes séculos decorrentes da Revolução Científica, nestes tempos de Revolução Pós-Indus-
trial, um arsenal de saber e de descobertas tecnológicas que difundiram a informação e o
conhecimento amplamente. A facilidade de acesso às informações, a uma enorme quanti-
dade de informações, mais estonteia que esclarece. O desafio aqui, então, é o desenvolvi-
mento da capacidade de convivência com o caos informacional. Os dados obtidos em uma
investigação são muitos, múltiplos, não controláveis totalmente e, pela grandiosidade de
seu volume, muitas vezes “entopem” o sujeito, a pesquisa. Travam o processo. Metodolo-
gicamente, aqui, o desafio é ficarmos atentos ao que Morin6 (1991, p. 89) chama de “recur-
são organizacional”, muito bem representado pelo autor pela metáfora do redemoinho.
Por fim, pode-se acrescentar um aspecto decorrente dos critérios – mas não menos im-
portante. Defini este aspecto da seguinte maneira: a ciência se sensibiliza. Na medida em

6 Este autor é uma referência importante quanto à flexibilização do processo de busca de conhecimento, considerando a
incerteza como algo inerente.

133
Maria Luiza Cardinale Baptista

que o sujeito cientista tem que captar o real também a partir de dimensões sutis, sensí-
veis, abstratas, dos fluxos que o compõem, que compõem os universos da significação,
a demanda extrapola o reducionismo objetivista.

Operacionalização da Cartografia
Coerente com esses pressupostos gerais epistemológicos e teóricos, o estudo dos proces-
sos de escrita dos jovens adultos envolveu dispositivos heterogêneos. Primeiro, uma gran-
de cartografia bibliográfica, visando vislumbrar a produção já existente acerca das seguin-
tes ‘trilhas’: pressupostos científicos, comunicação, subjetividade, processos de escrita,
linguagem, pós-moderno, jovem adulto e tecnologia. Ao mesmo tempo que a bibliografia
inicial era cartografada, foi realizado o trabalho de leituras e fichamentos, de acordo com
as priorizações que foram sendo feitas e refeitas, à medida da necessidade de aprofunda-
mento teórico. Os textos foram discutidos em seminário teórico com o orientador, e em
grupo de estudo sobre Recepção e sobre Violência em Televisão, sempre com coordenação
do professor doutor Mauro Wilton de Souza, da ECA/USP.
A partir do referencial teórico, foi possível realizar também um trabalho de elaboração de
linhas de tempo: história dos meios de comunicação, história da escrita, que pude contra-
por com a da história da humanidade (grande marcos). Este levantamento possibilitou- me
visualizar sincronicidades entre as três linhas, ajudando a compreender a importância e
transformações decorrentes do dispositivo comunicacional ‘escrita’.
Além de livros pesquisados, é importante ressaltar aqui a grande contribuição de informa-
ções obtidas junto a periódicos - com destaque para os jornais Zero Hora, de Porto Alegre,
Folha de S. Paulo, de São Paulo. Foi realizada coleta e análise de textos sobre as trilhas,
com uma grande quantidade de textos, classificados sob a rubrica ‘escrita’, apresentando
reportagens e entrevistas com autores consagrados nacional e internacionalmente. Nestes
textos, os referidos autores abordam seus processos de escrita e temáticas as mais diver-
sas, como a dificuldade dos jovens com a escrita ou a relação entre palavra e imagem.
Para trabalhar a composição da amostragem, tenho pensado três campos de delimita-
ções necessárias. A amostragem bibliográfica, referente a tudo o que se encontra escrito
sobre o assunto; a material, envolvendo informações a partir de suportes; e a pessoal, os
sujeitos envolvidos diretamente na coleta planejada. Como amostragem material, posso
referir também os textos analisados no trabalho de orientação de Trabalho de Conclusão
de Curso. Na época da pesquisa, havia mais de 70 monografias de conclusão de curso
orientadas7, às quais somam-se textos de projetos de pesquisa e de projetos de iniciação
científica. Além destes, considero importante ainda o trabalho de supervisão de artigos,
projetos de pesquisa, monografias, dissertações e teses, de outras áreas8.
Antes do trabalho direto com a amostragem do estudo de casos, foi realizada uma sonda-
gem com 120 alunos dos cursos de Comunicação Social e de Letras, da Universidade Lutera-
na do Brasil (ULBRA), de Canoas, RS, através de um levantamento que consistiu no seguinte:
os alunos foram convidados, em disciplinas de Língua Portuguesa, a produzir três textos –
um sobre sua história de vida, outro sobre o seu cotidiano e outro sobre a sua relação com a
escrita. Por fim, as pessoas envolvidas diretamente na pesquisa - os casos analisados - foram
7 Em 2010, este número chegou a 181.
8 Refiro-me aqui ao trabalho de supervisão de processos de escrita que deu origem e, ao mesmo tempo, se transformou
com a produção da pesquisa. Trata-se de um trabalho desenvolvido profissionalmente, que se aproxima ao de orientação,
mas, no caso, é uma orientação da ‘escrita científica’, que se produz no acolhimento e acompanhamento de sujeitos em pro-
cessos de escritura de textos científicos nas mais diversas áreas: Comunicação, Psicologia, Psiquiatria, Medicina, Engenharia,
Geografia, Urbanismo, Matemática, Administração de Empresas, Agronegócios, Educação, Serviço Social.

134
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos

estudantes do Curso de Comunicação da mesma universidade. Todos tiveram o trabalho de


conclusão orientado por mim, envolvendo um trabalho de observação sistemática e diário
de pesquisa de, pelo menos, um semestre. Vários deles produziram a monografia em um
ano, sendo as observações resultantes do trabalho nesse período. Os dois recortes parece-
ram-me interessantes, na medida em que o sujeito que está cursando uma faculdade vive
um momento da vida em que já deveria estar com a escrita estruturada e, também, tem
acionado todo o potencial de recepção dos mídias. A escolha deste público para a pesquisa
deve-se ao fato de que estes jovens estão prestes a ingressar no ‘mercado’. Mercado no sen-
tido amplo que venho utilizando aqui. Não é apenas o mercado de trabalho, mas o mercado
de relações adultas, de um modo geral. Vivem a emergência das exigências da vida adulta,
em confronto com suas características de adolescentes.
Outros aspectos que caracterizam os jovens adultos. Eles vivem na ‘pele’ uma crise - no
sentido de enfrentamento, questionamento e reinvenção - com as referências, em geral.
Vivem a implosão das instituições. São marcados pelo período de ‘des-orientação’. Sen-
tem falta de acolhimento para suas angústias, ao mesmo tempo que têm necessidade de
tomar decisões acerca da sua própria vida. Além disso, são cobrados a tomar decisões
adultas que interferem na vida de todo mundo. Suas atrapalhações ou seus acertos cons-
tróem o futuro, no sentido de que cristalizam marcas... que podem ser de invenção de
um mundo novo em múltiplos sentidos...
No caso dos jovens adultos, o encontro com a transformação das referências aparece na rein-
venção intensa da linguagem. Temos, então, uma relação direta com o estouro das estruturas
de verbalização, já que o processo de construção do verbal é o processo de individuação e
de reconhecimento da existência do Outro e da existência do si - mesmo. Estruturação do
próprio ser, que se relaciona, em relação e mutação constante.
Quanto aos ‘casos’, a coleta de dados foi realizada através de reuniões semanais com
os seguintes objetivos: discutir o processo do TCC; realizar seminários teóricos; analisar
e discutir o processo de escrita e suas relações com diferentes áreas da vida do sujeito.
Além disso, passei a analisar o texto produzido, buscando observar relações entre este
texto e as características subjetivas e de comunicação do sujeito envolvido. Como o que
me interessa é o processo e não apenas as características específicas de cada texto, op-
tei por uma descrição mais abrangente, sem apresentar, por exemplo, uma análise das
produções textuais, em si. Interessa-me, isto sim, o processo de inscrição... o vínculo da
inscrição com aspectos subjetivos e da comunicação contemporâneas.
Além disso, foram realizadas entrevistas com todos os pesquisados, marcadas com fins
exclusivos de coletar informações para a minha pesquisa. O momento das entrevistas
foi caracterizado pela escuta do pesquisado, numa interação dialógica (MEDINA, 1986),
visando ouvir as impressões pessoais sobre o seu processo de escrita. Fundamento-me
também aqui em Medina (1994, p. 180-181), quando esta apresenta alguns dos grandes
dilemas, comuns aos cientistas e jornalistas contemporâneos, ajudando-me a pensar,
inquietando-me, provocando-me a buscar novas formas de perceber e retratar o real:
As entrevistas foram estruturadas, de modo a obter uma ampla gama de informações so-
bre o pesquisado. A estruturação, no entanto, foi complementada às novidades inerentes
ao processo de interação entrevistador-entrevistado. Quer dizer, há uma lista de temáticas,
que foram abordadas com todos os pesquisados, mas essa lista foi acrescida de novas
informações, à medida em que se faziam presentes, naturalmente, na fala do entrevista-
do. São três as temáticas gerais priorizadas na entrevista: subjetividade, comunicação e
relação com a escrita. Há, intencionalmente, uma mescla de temáticas, com o objetivo de

135
Maria Luiza Cardinale Baptista

obter ainda mais espontaneidade nas respostas. Pauta para entrevista específica: relação
com a escrita; histórico dessa relação – momentos marcantes; relato do cotidiano – o que
faz no dia-a-dia; relação com meios de comunicação (quais utiliza, quais mais gosta...);
ambiente vida – como é o lugar onde mora, onde estuda/escreve, com quem mora; rela-
ções familiares – descrição das pessoas e do vínculo; relações tribais – descrição das tribos
e do vínculograndes desejos – pelo menos três; grandes medos; relação com o mercado de
trabalho – Já trabalha? Alguma dificuldade? Preocupações? Relação com chefia?; relação
com o estudo. Gosta ou não: Que tipo de matéria gosta mais?; relação com leitura. Gosta
ou não? Livros, revistas, internet...?; apresentação pessoal, diferenciais, marca...; como se
sente quando tem que entregar um texto que escreveu...?
Apesar da ênfase da análise sobre a expressão/inscrição linguístico-escrita, a observação
sistemática buscou relações com outros tipos, outras formas de inscrição. Isso é coerente
também com o conceito amplo de escrita-inscrição, que foi trabalhado. Foram observados
e questionados, no processo, os seguintes aspectos: iconográfico - relativo à produção tex-
tual, envolvendo inscrição/expressão através de imagens; sonoro – expressão através de sons
em geral, particularmente manifestações e/ou relação com produções musicais. Considero
aqui que as manifestações sonoras para inscrição do sujeito podem utilizar ou não suportes
midiáticos. (CD, fita magnética...); corporal – expressão através de aspectos relacionados ao
corpo. Observados aqui desde características físicas, vestuário, adereços/enfeites, emblemas
totêmicos, movimentação (caminhar, gestual, dança....); linguístico-oral – expressão verbal
não inscrita em suporte midiático material. Veiculação direta, sem mediação de tecnologias
comunicacionais, interação direta/imediata com o receptor, expressão efêmera; linguístico-
-escrito – expressão verbal inscrita em suporte midiático. Não necessita da interação física e
direta com o receptor. Expressão/inscrição que permanece no tempo e tem a possibilidade de
vencer o espaço (distâncias) que, muitas vezes, separam emissor e receptor do texto.
Há ainda algumas especificidades que puderam ser consideradas, no aspecto lingüísti-
co-escrito: monólogo – texto escrito para si mesmo. Ex. Agendas diárias, poesias, textos
rascunhos. Tipo de texto pessoal, sem intenção de compartilhar; diálogo – texto escrito
para uma outra pessoa, em particular. Ex: cartas, mensagens via internet; tribal – texto
escrito para compartilhar em grupo restrito, do trabalho, da escola, de amigos, em gru-
pos de discussão pela internet; midiático – texto escrito para ser veiculado por meios de
comunicação de massa, mediado e inscrito em um suporte midiático.
Como se pode observar, tanto entrevista como observação sistemática constituem-se
em instrumentos complexos de coleta. Não houve, diante disso, a pretensão de um
processamento quantitativo dos dados obtidos, até porque isso seria incoerente com a
proposta de abordagem de uma amostra pequena, em um trabalho qualitativo. Existiu,
no entanto, a preocupação de uma ‘escuta’ e seleção criteriosas das informações, bem
como o de um relato que correspondesse à seriedade e dedicação com que informações
tão significativas foram obtidas. Nesse sentido, alguns cuidados foram tomados, no es-
tabelecimento de estratégias de descrição.
Optei por apresentar relatos dos trechos significativos das entrevistas, entremeados por
considerações minhas, que resultam das observações das entrevistas. Os trechos foram
apresentados por escrito, como ‘texto de fala’, quer dizer, não houve adaptações, corre-
ções. Acredito que isso possibilita a apreensão de um pouco do ritmo de cada um. Uma
fala do pesquisado chamado de Salvatore, por exemplo, adaptada para a escrita perde-
ria informações importantes sinalizadas pelas intercalações, quebras... pelos resmungos
de fala que ele produz e que eu procurei reproduzir.

136
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos

Identifiquei com reticências as hesitações dos entrevistados e com reticências entre pa-
rênteses as supressões de trechos de textos, considerados não significativos. Os trechos
de fala estão identificados com aspas e itálico, por se tratarem da ‘fala do Outro no Meu
texto’. Diferente das citações dos autores, no entanto, mesmo os trechos longos citados
não estão em recuo gráfico, para diferenciar das citações escritas.
Para efeito da descrição dos dados das entrevistas e observação sistemática, utilizei um ro-
teiro, de modo a apresentar preferencialmente na mesma sequência as informações sobre
os diversos casos analisados. Digo preferencialmente porque, ao optar pelo estilo de texto
mais literário, tratando cada caso como o de um ‘personagem’, escolhi também o caminho
de uma produção mais solta, mais fluida, que não permitiria a obrigatoriedade de sequ-
ência. Os casos foram descritos todos sob pseudônimos, para preservar a identidade dos
pesquisados, o que foi acordado com os sujeitos da pesquisa. Seus nomes foram escolhi-
dos em um elenco de nomes italianos, por uma opção pessoal. Depois, o material passou
pelo tratamento de ‘discussão’, com cruzamento, em quadros, com o referencial teórico.

Considerações Finais
A cartografia mostrou-se como método adequado, para a pesquisa com os jovens adultos.
A investigação permitiu considerar que os seus processos de escrita expressam, claramen-
te, a dimensão de multiplicidade, hipertextualidade e complexidade de processos contem-
porâneos. Processos de relações subjetivas, de interações de subjetividades, processos de
comunicação-trama. As grandes pistas, para a potencialização desse processo, parecem
apontar no sentido da necessidade de flexibilização das regras e estabelecimento de estra-
tégias mais lúdicas, mais prazerosas, na constituição das relações e da escrita, bem como a
ampliação da compreensão da influência das mídias no processo de inscrição.
Outro aspecto é que é difícil o sujeito colocar-se em relação em contexto caótico de
exacerbação da demanda idealizada, por parte de um mercado medíocre, falso e in-
fantilizador. A aceleração cotidiana coloca o sujeito em busca de uma busca constante,
em processos de constante substituição das demandas e ofertas de satisfação. Sofis-
ticados recursos e dispositivos envolvem-no com ofertas sedutoras, de encantamento
do mundo, de entregas supostamente totais. Trata-se de um sujeito desejante que não
escreve, também porque seu desejo não se inscreve, não tem tempo de amadurecer. A
psicotecnologia decorrente do forte vínculo com televisão e computador, por exemplo,
é emblemática dessa aceleração fluxo do desejo, que não se realiza.
Aliada ao cotidiano caótico, a trama de mídia disputa o sujeito, em um esgarçamento,
‘esticando’ o ego até não aguentar mais. Em troca disso, por trás da trama de mídias, a
trama empresarial capitalista com a produção de ‘bens materiais’ propõe a substituição
constante de necessidades existenciais por produtos de alta geração e sofisticados recur-
sos tecnológicos. Trama em que o jogo dos interesses põe o sujeito correndo, às pressas,
‘buscar seu lugar no futuro’. O sujeito inscreve-se, assim, apressadamente, afoitamente...
não goza o suficiente o processo. Não tem tempo de sentir... o processo... de escrita.
A contemporaneidade apresenta, então, a multiplicidade como marca intrínseca. Múltiplas
relações, múltiplas associações, aceleradas pela velocidade cada vez maior dos processos de
interação. Redes midiáticas, de sofisticados dispositivos e de artifícios que tentam aproximar
as pessoas na distância. ‘Tão longe dos olhos, tão perto do coração’. Nem sempre. Infeliz-
mente, pelo que relato na pesquisa a subjetividade contemporânea, em muitas situações, vale
mais a inversão da bela frase para ‘tão perto dos olhos, tão longe do coração ou tão longe
dos olhos, tão longe do coração’. Vínculos à distância. Rápidos encontros fortuitos mediados

137
Maria Luiza Cardinale Baptista

por máquinas ‘inteligentes’. Sujeitos maquínicos com medo de se mostrar, de se entregar.


Desenvolvem a prática de expressar-se-imprimir-se, sem adequado ‘processamento’, de afeto
e das informações. É disso que me falam alguns jovens, quando se dizem ‘sem tribo’, mas
com muitos conhecidos... É disso que me dizem os alunos quando afirmam terem dado ‘uma
olhada’ no texto do referencial teórico. Sujeitos sem projeto, sem inscrição de profundidade...
há que se pensar nisso...ainda mais, em outros textos, em outras pesquisas.

Referências
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SOUSA SANTOS, Boaventura. Um discurso sobre as ciências. 2. ed. Porto/Portugal: Afron-
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138
Sofrendo Longe e Perto.
Cosmopolitismo como
Trabalho de Identidade1
Laura Robinson
Universidade Santa Clara, Califórnia

A
partir de dados empíricos sobre os espaços do discurso digital no Brasil, na Fran-
ça e nos Estados Unidos, este capítulo analisa o uso de enquadramentos univer-
sais e transnacionais de identidade no processo de identificação com aqueles
que sofreram em consequência do atentado de 11 se setembro de 2001. Mais especifica-
mente, este análise trabalha com três perguntas: Qual foi o alcance do posicionamento
cosmopolita usado para classificar o sofrimento de outras pessoas como digno de com-
paixão? Que formas de trabalho identitário facilitaram a empatia como sofrimento des-
sas pessoas? Que tipo de contextos culturais influenciaram a forma como os indivíduos
identificaram semelhanças ou eliminaram os limites entre eles e aqueles que sofriam?
Para responder a essas perguntas, este capítulo analisa a construção de categorias de
identidade cosmopolita utilizadas para dar sentido às identidades das vítimas do 11 de
setembro. Para fazer essas conexões, a análise explora como os indivíduos processaram
uma identificação que criou categorias abrangentes de identidade como forma de ex-
pressar solidariedade. A análise da identidade cosmopolita aqui apresentada aponta
para o potencial do trabalho inclusivo de identificação, no qual o sofrimento dos outros
é compartilhado. Como o caso brasileiro nos mostra, quando tal pensamento predomi-
na, a “humanidade” se revela como categoria principal de identidade.
Assim, este capítulo contribui para a literatura sobre cosmopolitismo. Muitas vezes, o
pensamento cosmopolita refere-se ao “cosmopolitismo moral” definido como o “ideal
moral de uma comunidade humana universal” (Kleingeld e Brown, 2011). No entanto,
as identidades cosmopolitas existem em um continuum e permitem que indivíduos se
identifiquem com uma variedade de comunidades supranacionais. Mais precisamente,
as identidades cosmopolitas produzem empatia quando os observadores fazem cone-
xões entre eles e aqueles que sofrem. Além disso, ao longo do continuum, as identidades
cosmopolitas podem ser transnacionais e se basearem em semelhanças que unem os
cidadãos de diferentes estados-nação. Em uma concepção mais ampla, as identidades
cosmopolitas podem ser totalmente universalistas e ter o poder de competir em impor-
tância com as identidades nacionais (Jameson, 1982). Quando os indivíduos que defen-
dem uma posição cosmopolita consideram-se cidadãos do mundo, o sofrimento de toda
a humanidade se torna igualmente relevante e digno de solidariedade. Vemos assim que,
ao contrário de boa parte da literatura das ciências sociais que assume que o Estado-
-nação é a categoria de identidade dominante (Beck 2000), as identidades cosmopolitas
também podem ser grande relevância.

1 Artigo apresentado no VI Colóquio Brasil-EUA de Ciências da Comunicação. Foz do Iguaçu (Paraná), 2014.
Laura Robinson

Dados e Métodos
Estudos mostram a importância da internet como espaço de coleta de dados sobre narrati-
vas de sofrimento (Anderson, 2014). Este capítulo segue essa tradição ao analisar o discurso
em três países, em fóruns oganizados por jornais emblemáticos no Brasil, na França e nos
Estados Unidos: O Estado de S. Paulo, Le Monde e The New York Times. Parte de um projeto
maior (Robinson 2005, 2008 e 2009), o quadro de amostragem é o universo das contribui-
ções postadas nos três websites na semana seguinte aos ataques. De 11 de setembro a 17
de setembro de 2001, leitores publicaram 2.905 posts em “Uma nação desafiada”, do The
New York Times, 2.264 posts em “Os ataques do 11 de setembro nos Estados Unidos”, do Le
Monde, e 1.119 posts em “A primeira guerra do século”, de O Estado de S. Paulo.
Os dados neste capítulo se referem a mensagens expressando solidariedade com as
vítimas, suas famílias e/ou preocupação com o sofrimento coletivo. Portanto, os dados
incluem apenas posts que abordaram especificamente esses temas, analisados através
de codificação repetida e recodificada. Comecei usando codificação aberta para demar-
car categorias analíticas. Na sequência, fiz anotações iniciais centradas nos principais te-
mas identificados na codificação aberta, antes de proceder à codificação específica para
refinar as categorias analíticas. As etapas de codificação focada e de notas integradas
embasaram a análise dos dados.

Cosmopolitanismo Universalista
Os cosmopolitas brasileiros se identificam com aqueles que sofrem como membros da
família humana, independente de qualquer outra categoria de identidade. O caso brasi-
leiro oferece um exemplo de cosmopolitismo na forma mais bem acabada de universali-
zação. Para os cosmopolitas brasileiros, o sofrimento de todos os membros da humani-
dade é igualmente relevante:

É quando o outro está sofrendo, quando as consequências são tamanhas,


que todos devem ajudar uns aos outros e pedir ajuda... O pior é quando al-
guém não quer ver seus irmãos doentes e tristes e não reza junto para pedir
paz para a humanidade e boa vontade para os homens.
Esses cosmopolitas também concebem a extensão da empatia como um imperativo mo-
ral. Como um cosmopolita brasileiro argumenta: “Qualquer um com consciência deve
lamentar a morte de milhares de civis e pedir a Deus para confortar as famílias dos que
sofrem”. Ao usar essa estratégia inclusiva, o cosmopolitismo estende a empatia ao sofri-
mento e marginaliza outras categorias de identidade:

“Não temos o direito de sacrificar qualquer vida humana por motivos polí-
ticos ou outras ideologias. O terrorismo é um grande erro. Lamento e rezo
pelos mortos nesse triste ato para que eles possam ter paz“.

Ao incluir todos os integrantes da humanidade como “irmãos”, os autores dos posts


desnacionalizam explicitamente as vítimas e descartam qualquer outra categoria de
identidade como irrelevante. Este cosmopolita brasileiro escreve: “A melhor coisa que
podemos fazer é que todos os países demonstrem sua solidariedade com nossos irmãos
americanos. Nesses momentos, as diferenças não existem!”. Outro acrescenta: “O valor
da vida é o mesmo em todos os lugares: inestimável”. Um terceiro contribui: “É uma
pena que tantos inocentes tenham morrido nesta terrível história. A humanidade ainda
deve evoluir muito aqui na Terra.” Os cosmopolitas brasileiros empregam a categoria hu-

140
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos

manidade para se juntar a aqueles que sofrem: “A humanidade assistiu (...) aqueles seres
humanos inocentes de tantas nações que foram assassinados nesse dia horrível e ines-
quecível”. Além disso, eles estendem a empatia para parentes e amigos: “Fico terrivel-
mente triste com os entes queridos daqueles que morreram”. Outro acrescenta: “Sinto
terrivelmente as mortes dessas pessoas e gostaria de dizer às suas famílias que só Deus
pode medir a profundidade e a intensidade da sua dor, indignação e tristeza”. Tanto nas
referências às próprias vítimas como aos seus entes queridos, os brasileiros cosmopolitas
enfatizam a humanidade como o único aspecto marcante nas identidades das vítimas.

Imagine o desespero das famílias procurando por seus parentes. São vidas
e vidas perdidas. Quantos pais, homens da família, morreram – pessoas que
nunca pensaram em opressão política. Devemos chorar por essa tragédia,
assim como devemos chorar por pessoas que morrem por causa da violência
no Brasil... Somos todos humanos... certo?

Outro exorta: “Minhas condolências às famílias brasileiras e americanas, mas principal-


mente à humanidade, uma pequena parte da qual morreu ontem”. Ao fazer essas afir-
mações, os cosmopolitas brasileiros eliminam as fronteiras entre eles, as vítimas, suas
famílias e o resto da humanidade.
Além disso, os cosmopolitas brasileiros fazem outros comentários sobre o que significa ser
humano – no que há de melhor e pior. Um descreve: “Horror... horror... horror... sinto vergo-
nha do ser humano”. Outro comenta: “Os seres humanos são os maiores culpados de tudo o
que aconteceu, porque a ganância global não respeita ninguém”. Um terceiro acrescenta ain-
da: “Acredito que aquilo que estou pensando não é muito diferente do que o resto do mundo
está imaginando. Estamos envergonhados de fazer parte da mesma raça que os responsáveis
por isso!” Esse mesmo cosmopolita afirma: “Como é possível que a raça humana tenha de-
cidido ser tão baixa? Somos todos culpados nessa tragédia. Todos trazemos dentro de nós
sentimentos de ódio e intolerância”. Esses cosmopolitas brasileiros consideram a humanidade
como o principal agressor simbólico do 11 de setembro. Eles acreditam que, porque a huma-
nidade é capaz de grandes maldades, cada ser humano compartilha da culpa. Como afirma
este cosmopolita: “O que aconteceu é fruto da cobiça, da religião, da política, da economia,
em suma, do que chamamos de ser humano”. Dessa forma, os cosmopolitas brasileiros argu-
mentam que o 11 de setembro de 2001 oferece uma oportunidade para reconsiderar o que
significa ser humano: “Nada justifica esses atos. Talvez a humanidade vá refletir mais sobre
coisas tão esquecidas como amor, meio ambiente, prosperidade e igualdade entre os seres
humanos. Espero que possamos aprender esta lição” e “Espero que os responsáveis sejam
punidos e dêem exemplos de que o mundo voltará a ser mais HUMANO...”
Os cosmopolitas brasileiros usam a expressão mais intensa do cosmopolitismo como ide-
ologia que separa simbolicamente a humanidade contra aqueles que a destruiriam. Para
eles, todo ser humano enfrenta a escolha fundamental entre o bem e o mal presente na
humanidade:

Terrivel? Brutal? Nós, seres humanos, precisamos parar e refletir sobre tudo o
que aconteceu, está acontecendo e acontecerá sobre o mal criado pelos seres
humanos, precisamos entender e parar e pensar em nós mesmos e usar nosso
livre-arbítrio, de cada um de nós para mudar o mundo.
Se o mundo continua egoísta, perverso, e continua a fechar os olhos para a
pobreza, a dor etc., o fim estará próximo, muito pior do que pensamos! Mas
há tempo; todos podemos mudar. Meus pensamentos vão para as vítimas.

141
Laura Robinson

Outros também dividem o mundo em “humano” e “desumano”. Um deles associa: “...toda


a humanidade sofre as consequências dos atos desumanos cometidos hoje”. O uso da pala-
vra “desumano” é significativo e usado por outros: “Um ataque dessas proporções mostra
ao mundo a extrema traição desses grupos terroristas... A morte de milhares de pessoas,
vítimas inocentes desse brutal ataque, é um ato desumano”. Para os cosmopolitas brasilei-
ros, todos os integrantes da humanidade devem fazer a sua escolha e optar por um lado:

Para mim é óbvio que existem dois mundos absolutamente diferentes: o


primeiro formado por pessoas que nascem e trabalham para ajudar os seus
vizinhos, a sociedade. Pessoas como nós, que apesar da dificuldade, luta
diariamente pelo melhor. A segunda forma de ser, que não podemos chamar
de humana, nasceu para semear o ódio, a destruição, a morte injustificada.
Na verdade são os cavaleiros do apocalipse que decidem quem viverá e quem
morrerá. Não devemos permitir que nos influenciemos por esse sentimento
de ódio e, assim, criar mais destruição.

Os cosmopolitas brasileiros consideram essa escolha como o indicador definitivo da identida-


de e da escolha que deve ser feita por todos os membros da humanidade em resposta a todo
tipo de sofrimento humano.

Cosmopolitanismo Transnacional
Voltando à instância francesa, à primeira vista o trabalho de identidade é semelhante ao
discurso no fórum brasileiro, mas um exame mais atento revela diferenças importantes.
Como os correspondentes brasileiros, os cosmopolitas franceses vinculam as vítimas do
11 de setembro a vítimas de outras tragédias, como o atentado terrorista em Paris:

Eu me sinto tão perto daqueles que morreram. Trabalho em uma torre em La


Défense e as imagens dessas torres desmoronando me perseguem. Aqueles que
estavam lá trabalhavam em vários tipos de emprego, secretários, contadores,
serventes etc. como aqueles com quem cruzo todos os dias no meu trabalho.
Não eram soldados. Deveriam ser de diferentes raças e religiões... A história hu-
mana não passa de uma grande repetição; os mesmos horrores se repetem ...

Como os brasileiros, os cosmopolitas franceses consideram aqueles que sofrem dignos


de solidariedade:

Os autores não escolheram seu alvo para destruir um marco americano; eles
queriam e decidiram destruir o maior número de vidas humanas, independen-
temente de serem cristãos, muçulmanos ou judeus. Todos que estavam nas
torres do WTC e ao redor delas. Não pouparam ninguém.

Em princípio, o discurso francês pode parecer semelhante ao cosmopolitismo universalista


expresso pelos brasileiros. Mas enquanto os cosmopolitas brasileiros empregam o con-
ceito de “humanidade”, mesmo os cosmopolitas franceses mais expansivos raramente se
referem à “humanidade” para expressar empatia.
Em vez disso, eles enfatizam sua nacionalidade ao afirmar o vínculo transnacional: “Com-
preendo sua mágoa e compartilho, mas entendo que eu mesmo sou francês... Aceite a
minha garantia e a de muitos outros de que, apesar de algumas implicâncias insigni-
ficantes, estamos ao seu lado.” Outro escreve: “Eu não sou americano, sou francês...
você pode contar com seus amigos de longa data...” Esse padrão também fica claro em

142
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos

relação aos três minutos de silêncio observados na União Europeia para honrar as vítimas
na sexta-feira seguinte ao 11 de setembro. Os cosmopolitas franceses descrevem os três
minutos de silêncio como uma expressão da união franco-americana:

O noticiário francês mostrou como os três minutos de silêncio foram ob-


servados em todo o país. Foi doloroso. Isso me deixou orgulhoso de ser
francês... Não tenha dúvida, alguns de nós franceses estamos prontos para
morrer pela América, como seus avós morreram por nós.

Outro ecoa: “Hoje os franceses observaram três minutos de silêncio em memória das vítimas
dos ataques e asseguro-lhe que pude constatar a emoção nos rostos das pessoas à minha
volta”. Outros cosmopolitas franceses também destacam a nacionalidade francesa nas suas
expressões de solidariedade transnacional: “A verdadeira França parou por três minutos hoje
para honrar os seus mortos... A verdadeira França ficou profundamente chocada com os ata-
ques... Nos sentimos realmente atacados. A verdadeira França está com você”.
Em vez da “humanidade”, os franceses adotam um cosmopolitismo mais transnacional
baseado em valores democráticos compartilhados. A solidariedade dos cosmopolitas
franceses com esse sofrimento se manifesta como uma atribuição do patrimônio de-
mocrático que compartilham com os Estados Unidos enquanto cidadãos da república
francesa: “Eu aprovo inteiramente a moção de apoio do Presidente da República e do
Primeiro-Ministro aos Estados Unidos; em casos de uma grave crise como essa, as demo-
cracias devem esquecer suas diferenças e se manter unidas contra os seus adversários”.
Aqui é importante notar o uso da palavra adversários usados para definir aqueles que co-
meteram os atos de terror, em particular atos terroristas que se configuram tendo como
alvo ideais democráticos ou o Estado democrático: “Os valores democráticos nos permi-
tem superar nossas fraquezas, nossas contradições e nossa covardia. Hoje eu escolhi meu
campo e eu apoio o povo americano. - Um cidadão comum.” A ênfase francesa na demo-
cracia indica que essa forma de cosmopolitismo está enraizada em valores transnacionais
compartilhados, bem como em um senso comum compartilhado de vulnerabilidade ao
terrorismo: “Eu acredito que muitas pessoas neste fórum mostraram sua solidariedade
com os americanos porque eles estão conscientes de que, ao atacar os americanos, são
atacados os modos de vida e os valores que nós, franceses, compartilhamos.” As expres-
sões francesas de solidariedade transnacional se baseiam mais na diluição das divergên-
cias de fronteiras entre a França e os Estados Unidos enquanto “democracias” do que
entre todos aqueles que integram a “humanidade”. Aos olhos dos cosmopolitas france-
ses, o sistema francês é a realização dos objetivos e dos valores ocidentais que servem de
modelo para outras nações, como os Estados Unidos. Os cosmopolitas franceses que ex-
pressam solidariedade com as vítimas o fazem, portanto, com base no seu compromisso
compartilhado com a democracia, como escreve esta cosmopolita: “Este CRIME deve ser
simplesmente condenado. Compaixão e indignação. DEMOCRACIA.”

Nacionalismo, Transnacionalismo e Cosmopolitanismo


No fórum americano verificamos a ampla variedade de estruturas de identidade que vão des-
de a universalização do cosmopolitismo até o cosmopolitismo transnacional mais restrito e o
nacionalismo. Quanto ao nacionalismo, não é surpreendente que, como resposta imediata ao
11 de setembro, muitos americanos pedem unidade nacional. Enquanto diversos americanos
mencionam coletividades maiores, eles o fazem em conjunto com expressões de identidade
nacional. Embora façam referência a coletividades além das fronteiras americanas, eles defi-

143
Laura Robinson

nem simultaneamente o objeto da empatia como próximo à pátria: “... eu acho imperativo
que nós permaneçamos junto dos nossos irmãos e irmãs americanos neste momento de crise,
firmemente comprometidos com os ideais democráticos que nos unem além das fronteiras
religiosas e étnicas”. Para esses americanos, a unidade nacional é fundamental mesmo quan-
do aplicada paralelamente a estruturas de identidade transnacionais:

Enquanto escrevo, estou sentada no meu escritório em Nova York, assistindo


o sol que prepara para se por no rio Hudson. Está claro e lindo lá fora. As
democracias são coisas engraçadas – os déspotas anti-ocidentais nunca po-
derão compreendê-las... Eles confundem nossa transparência com a fraque-
za; o nosso capitalismo dinâmico com o egocentrismo. Como respondemos?
E pluribus Unum. Dentre muitos, um. A América, e especialmente Nova York,
sairão desta mais fortes do que antes.

Nos dias que se seguiram aos ataques, os americanos foram levados, pela força do trau-
ma cultural, a se situarem antes de tudo como americanos que também fazem parte de
coletividades maiores. Quando os americanos citam estruturas de identidade suprana-
cionais, eles geralmente o fazem referindo-se à identidade nacional.
Esses americanos foram acompanhados nos fóruns por centenas de cidadãos de outras na-
ções que expressavam ali a sua solidariedade. Quando o fórum teve início na manhã de 12
de setembro, uma enxurrada de empatia internacional fluiu para o fórum. Como um dos
participantes explicou, “registrar-me nesse quadro de mensagens do The New York Times
foi a única forma que encontrei para me comunicar com alguns moradores de Nova York
a partir de uma pequena cidade no norte da Inglaterra”. Esses cosmopolitas internacionais
se apresentaram como unidos simbolicamente às vítimas em Nova York, Washington D.C.,
Pensilvânia e em todo o país. Eles entraram no fórum “...para permitir que os habitantes
de Nova York e da América saibam que não estão sozinhos”. A frase “vocês não estão so-
zinhos” aparece repetidamente: “Eu simplesmente quis dizer a todos os que lêem isso que
vocês não estão sozinhos... e digo mais uma vez que vocês não estão sozinhos”.
Mesmo assim há diferenças importantes nos cosmopolitas internacionais que participa-
ram do fórum americano. De modo semelhante ao discurso no fórum francês, os cosmo-
politas europeus e a “Anglosfera” (Vucetic, 2011) estavam mais propensos a confiar em
esquemas de identidade cosmopolitas transnacionais baseados nos conceitos de “demo-
cracias” ou de mundo “livre”. Um deles disse: “Este ataque não foi apenas na América,
foi um ataque a todas as pessoas boas, simplesmente pessoas do mundo livre”. Essas
referências ao “mundo livre” se aproximam muito mais do discurso transnacional do
fórum francês, do que do cosmopolitismo universalista dominante no fórum brasileiro.
Como escreveu este cosmopolita australiano:

O que vi me abalou no âmago. Não consigo começar a expressar o horror/o


choque/a dor que senti. Nunca estive nos Estados Unidos, mas de alguma forma
sempre senti que os Estados Unidos representavam o mundo livre e, portanto, o
meu mundo. Desde então, estou colado na televisão em todos os momentos que
posso, em luto com as famílias que perderam seus entes queridos, orando com
aqueles que ainda estavam à procura, exultando com cada resgate de uma víti-
ma e desejando justiça para aqueles que fizeram essa coisa terrível. É assustador
que isso aconteça com a América, o país que representa força, liberdade e demo-
cracia. Ver Nova York e Washington violentadas dessa maneira me fez perceber o
quanto estamos todos inseguros contra tais ataques.

144
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos

Outro cosmopolita espanhol declara: “Tempo para uma Coalizão de Democracias contra
o Terrorismo... Temos um inimigo comum e nos deixe trabalhar.” Em nome da sua famí-
lia, um cosmopolita alemão acrescenta:

Eu e a minha família gostaríamos de assegurar (e ao povo americano) que


estamos muito chocados com o que aconteceu não apenas com NY e Washin-
gton, mas também com todo o mundo civilizado... Esperamos que os países
democráticos consigam impedir o terrorismo um dia.

Embora essas auto-identificações transnacionais sejam abrangentes, elas encorajam a


solidariedade em termos de mundo “democrático” ou “livre”, refletindo dessa forma o
cosmopolitismo transnacional no fórum francês.
Por outro lado, as manifestações de cosmopolitismo universalista são mais prováveis de
ocorrer no caso de cidadãos de nações democráticas, como a Índia. As contribuições
desses cosmopolitas internacionais equiparam-se ao uso brasileiro de “humanidade”
como marco central da identidade. Um participante escreve: “Condenamos o ato mais
grave de barbárie contra a humanidade, no qual pessoas inocentes – homens, mulheres
e crianças – foram massacrados tão brutalmente. Que Deus os receba no céu com os
braços abertos!” Outro cosmopolita indiano visita o fórum americano para expressar
afinidade com as vítimas e condenar os ataques à “humanidade”:

Ofereço minhas sinceras condolências às famílias das vítimas inocentes que


tragicamente perderam a vida no pior ataque à humanidade, à democracia
e à liberdade... Esses atos não são contra uma nação, mas contra a huma-
nidade como um todo.

É significativo que, apesar de viver na maior democracia do mundo, este cosmopolita


indiano coloque a “humanidade” à frente da democracia ou da liberdade porque os
ataques terroristas violam a “humanidade como um todo”. Finalmente, um cosmopolita
argentino emprega o discurso universalista semelhante ao do fórum brasileiro: “Da Ar-
gentina, o que posso dizer é que aqui [os ataques] são vistos como um ato de cruelda-
de... O que eles fizeram foi contra a humanidade... Para mim, os que estão por trás disso
já não podem ser considerados humanos...” Como o comentário brasileiro dividindo o
mundo em “humano” e “desumano”, este cosmopolita argentino faz conexões entre os
atos de 11 de setembro e o que deveria significar integrar a humanidade.

Conclusões
Em todos os casos os cosmopolitas trabalham com a identidade para vincular simbolicamen-
te as vítimas do 11 de setembro com coletividades maiores. Dito isto, há diferenças impor-
tantes a serem consideradas as estruturas de identidade em jogo. Os cosmopolitas brasilei-
ros oferecem uma forma de cosmopolitismo completamente inclusiva. No caso brasileiro,
a “humanidade” se baseia em estruturas identitárias cosmopolitas que incluem todos os
indivíduos unidos na “luta cotidiana pelo que é melhor” como integrantes da grande família
humana. Ao usar “humanidade” como categoria mais importante de identidade, eles fazem
com que o sofrimento de qualquer ser humano seja igualmente digno de empatia e ressal-
tam a convicção de que todos os integrantes da humanidade compartilham a dor uns dos
outros. Mais abrangentes, os brasileiros estabelecem conexões entre os que sofreram no 11
de setembro e fazem comentários mais longos sobre o que significaria ser um humano. Estes
resultados repercutem pesquisa anterior, que apontou a relevância dos sistemas universais

145
Laura Robinson

de confiança no Brasil contemporâneo (Pew-Templeton, 2013). As referências brasileiras ao


“livre arbítrio” e aos “cavaleiros do apocalipse” fazem parte de sistemas mais amplos de
crenças espirituais de mais de 85% da população (65% se autoidentificam como católicos
e 22% como protestantes) (Pew-Templeton, 2013). Para esses brasileiros, o catolicismo e o
protestantismo são autoridades cognitivas relevantes (Burdick, 1996).
No fórum francês, as formas articuladas de discurso cosmopolita estão relacionadas a fatores
culturais bastante diferentes. Os cosmopolitas franceses adotam uma versão mais restrita do
cosmopolitismo transnacional que, no entanto, constrói uma unidade com aqueles que so-
frem. Os cosmopolitas franceses se baseiam na identidade nacional e a vinculam à afinidade
transnacional a partir da longa história compartilhada entre a República Francesa e os Esta-
dos Unidos. Essa ênfase na identidade nacional francesa e na República Francesa decorre da
ideia de l’exception française ou l’exception culturelle. Os dois conceitos referem-se à ideia
francesa do excepcional no domínio da cultura, tanto no país como no exterior: “A ideia de
que a França é, de alguma forma única, está profundamente inserida na auto-imagem do
país... Reflete a convicção de que a França tem um papel exemplar e universal como força ci-
vilizatória...” (Jenkins, 2000, p. 112). Além disso, muitos dos franceses que contribuíram para
o fórum do 11 de setembro tiveram que superar duas ondas de atentados terroristas na Fran-
ça na metade das décadas de 1980 e de 1990. Por esses motivos, os cosmopolitas franceses
enquadram a sua solidariedade de acordo com valores democráticos que compartilham com
outras nações democráticas ao longo do tempo e do espaço – valores ameaçados pelo fan-
tasma do terrorismo na França e nos Estados Unidos.
Voltando ao fórum americano observamos o nacionalismo, o cosmopolitismo transnacional e
o cosmopolitismo universalista lado a lado. O mais interessante em relação ao fórum america-
no são as combinações de múltiplos quadros de identidade pelos participantes internacionais.
Identificamos nesta análise paralelos importantes entre franceses e brasileiros. É significativo
como os colaboradores europeus e da “Anglosfera” (Vucetic, 2011) são mais suscetíveis à
«democracia» como estrutura compartilhada de identidade transnacional. Embora essas au-
toidentificações sejam mais abrangentes, elas são semelhantes ao caso francês. Em contra-
partida, os nacionais da Índia e da Argentina são mais parecidos com os brasileiros no uso de
um sentido mais amplo de “humanidade”.
Ao fazer essas conexões, o capítulo traz algumas contribuições. Primeiro, revela pressupos-
tos sobre o mundo social usado para reforçar as estruturas cosmopolitas de identidade. Em
segundo lugar, os resultados mostram como as perspectivas cosmopolitas nos permitem en-
quadrar o “outro” como semelhante a nós mesmos. Em terceiro lugar, a análise aponta para
novas conexões entre o contexto cultural e as formas de cosmopolitismo. Finalmente, ainda
que o 11 de setembro seja um caso específico, evidencia o leque de gramáticas discursivas ou
os modelos disponíveis para construir identidades cosmopolitas como forma de solidariedade
com as vítimas de qualquer tragédia, incluindo aquelas geradas por atos de violência política.
Com base nas evidências empíricas que identificam formas que são mais ou menos universais
de cosmopolitismo, este capítulo mostra como a identidade cosmopolita opera de várias for-
mas e oferece uma percepção importante da capacidade dos cidadãos mundiais de ajudar a
atenuar o sofrimento de pessoas desconhecidas e distantes.

Referências
Anderson, R. (2014). Human Suffering and the Quality of Life: Conceptualizing Stories
and Statistics. New York: Springer Books.

146
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos

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ca: Cornell University Press.
Jenkins, B. (2000). French political culture: homogenous or fragmented? In W. Kidd and
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Vucetic, S. (2011). The Anglosphere: A Genealogy of a Racialized Identity in International Rela-
tions. Stanford: Stanford University.

147
Laura Robinson

148
Fronteiras da Globalização:
Polifonia, Identidade, Estado-Nação1
Ada Cristina Machado da Silveira
Universidade Federal de Santa Maria - Rio Grande do Sul

O
artigo sintetiza resultados de um estudo sobre as relações entre Comunicação e
Estado, detido no que aqui se denomina terras de fronteira do Brasil Meridional.
Enquanto espaço limítrofe do Estado nacional, o território lindeiro mediado entre
o extremo sul do Brasil, Uruguai e Argentina, observa a idiossincrasia de haver forjado as
culturas gaúcha e/ou missioneira, compartilhadas entre as três nações. A análise aponta
para a riqueza comunicacional do Estado brasileiro do Rio Grande do Sul, tomado como
referência paradigmática das fronteiras brasileiras. Abordando as noções de fronteira e
de periferia nacional, o texto caracteriza uma malha de comunicação que articula o nível
local e o internacional, antecipadora das condições da globalização.

Fronteira e Periferia Nacional


A forma das sociedades periféricas para adentrar no império ocorre através de seus mi-
tos de origem e lendas, símbolos e, especialmente, dos “heróis de fronteira”. Recorde-se
que, no Ocidente, a periferia “é um espaço de maravilhas e de horrores, de heróis e de
monstros” (LE GOFF 2002, p. 214). Os meios simbólicos convocados à tarefa buscaram
integrar populações em sua maioria aculturadas por via oral e não literária e que, depois,
foram assumidos pela mídia.
À diferença das metafóricas fronteiras de identidade, usuais na descrição de aspectos
da sociedade pós-moderna, as “terras de fronteira” seriam territórios in natura, com
realizações políticas e sociais inerentes aos modernos Estados-nação e até anteriores
a eles. Tal conjunto de elementos permite compreender a condição fluida e indefinida
das borderlands, enfatizando seu hibridismo potencial pela incapacidade de conciliar as
contradições que sua sociedade encerra.
A partir da segunda metade do século XX, o que denominamos terras de fronteira do Brasil
Meridional, deslocadas em cerca de dois mil quilômetros do eixo Rio de Janeiro - São Paulo,
por ser berço de origem de alguns dos generais, assessores e base parlamentar dos Governos
Militares, tiveram parte de sua atividade descaracterizada pela força que um tal vínculo pro-
porcionava. A condição de partícipe do poder da mídia nos territórios fronteiriços foi, pau-
latinamente, a de ordenar, orientar a produção de sentido, alertando a sociedade não como
um agente de poder que vigia ou ameaça, mas como agente responsável pela circulação de
informações. Os territórios fronteiriços, desta forma, anteciparam-se às condições mais gerais
assumidas pela mídia no atual processo de globalização, regulamentando, pautando, agen-
dando, formulando o debate e consagrando repertórios.

1 Artigo apresentado no II Colóquio Brasil-EUA de Ciências da Comunicação. Rio de Janeiro, 2005.


Ada Cristina Machado da Silveira

A atividade midiática nas sociedades de fronteira rompe com a perspectiva segura e


contemplativa que as metrópoles litorâneas pretendem estender ao amplo interior con-
tinental brasileiro, detendo um potencial capaz de demonstrar o equívoco de atribuir-se
a condição de mero aglomerado de ideias, heterogêneas, multifacetadas e incompatíveis
entre si, ao aparentemente mundo caótico das fronteiras e à estrutura de seus discursos.
A Geografia propõe alternativas de interpretação ao tema das fronteiras frente à globa-
lização. Lia Osório Machado (2003) aponta que: “Estudar as fronteiras internacionais do
ângulo das cidades gêmeas no sul do Brasil é um enfoque alternativo e complementar
àquele que enfatiza as relações conflituosas, primeiras entre metrópoles coloniais (Por-
tugal e Espanha) e posteriormente entre Estados Nacionais (Brasil, Uruguai e Argentina)”.
Sua posição aposta no caráter profundamente conectivo que uma fronteira pode ter em
relação a outros Estados nacionais, bem como na importância do desenvolvimento da
vida social estabelecida nessas condições. A autora argumenta:

[...] para inúmeros atores, e de forma cada vez mais evidente, os lugares e
regiões fronteiriços são valorizados não por sua posição marginal, mas por
seu caráter conectivo e interativo. Partindo desta hipótese, o que nos interessa
aqui é analisar, através de um exemplo empírico, a densidade e a diversidade
das interações que tem lugar na fronteira (MACHADO, 2003, Online...)

Culturalmente, as fronteiras podem ser entendidas como membranas através das quais
as pessoas, bens e informações podem circular, podendo ser aceitas ou não pelo Esta-
do. Na definição dos antropólogos Thomas M. Wilson e HastingsDonnan (1998, p. 5) “as
fronteiras são registros espaços temporais das relações entre comunidades locais e entre
Estados”. Apoiando-se em diversos outros autores, Wilson e Donnan distinguem três ele-
mentos constitutivos da noção de fronteira: a linha limítrofe, a qual simultaneamente per-
mite separar e unir os Estados-nação; as estruturas físicas do Estado que visam demarcar
e proteger a linha de fronteira, composta de pessoas e de estruturas enraizadas profunda-
mente no território nacional; e as zonas territoriais, cujas variadas dimensões se alargam
a partir e através de fronteiras, dentro das quais as pessoas negociam uma variedade de
comportamentos e significados associados a sua pertença a nações e a Estados.
Fronteiras vivas no argot militar alude aqueles territórios permeáveis e à mercê de múl-
tiplos embates. Historicamente, constituem-se em territórios ameaçados de saques e
espoliações de parte da banda inimiga. Tais terras arrasadas frequentemente sofreram e
continuam padecendo de rejeições culturais e políticas, dada sua condição de ser contí-
guas ao Estado nacional, ainda que culturalmente possam ser distintas dele. Esquecem-
-se muitos que a permanente tensão é raiz geradora do hibridismo cultural fronteiriço,
capaz de proceder a acumulações sui generis. Os territórios fronteiriços observam regras
diversas quanto a aspectos como o uso do solo, circulação de pessoas e mercadorias,
propriedade de empresas de produção primária e, em alguns casos, de privilégios fiscais.

O Paradigma das Fronteiras Sul-brasileiras


A continentalidade brasileira exigiu do Estado Português e brasileiro um conjunto de esforços
para definição do poder imperial sobre a dezena de vizinhos. A História brasileira conta com
um rico repertório sobre a demarcação de seus limites (GOLIN, 2015). Destaque-se como
uma das mais recentes referências nesse longo processo um novo aspecto criado durante o
governo do General Ernesto Geisel pertinente à legislação ao considerarem-se os 150 quilô-
metros internos e paralelos à linha divisória terrestre do território brasileiro na condição de

150
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos

“área indispensável à segurança nacional”. Tais territórios brasileiros permanecem necessitan-


do observar certas licenças prévias de órgão federal competente quanto à implementação
de determinadas atividades em seu espaço; dentre eles, a concessão de terras, a abertura de
vias de transportes, a instalação de meios de comunicação, a construção de pontes, estradas
internacionais e campos de pouso, além de outras atividades (SILVEIRA; ADAMCZUK, 2004).
É fácil compreender que este tipo de regramento em área de limites internacionais pode-
ria gerar repercussões de extensão imprevisível. No Cone Sul, no entanto, não se verifi-
cou aparentemente algum tipo de reação de parte das nações vizinhas. Verificando-se o
contexto fronteiriço de outras nações da América do Sul, Rebeca Steiman (2002) reuniu e
analisou a legislação básica e os projetos especiais, tendo constatado que parte dele foi
construída em dissonância com normas anteriores e sem o conhecimento, muitas vezes,
das normas entre países limítrofes. A autora constatou que apenas cinco países possuem
legislação específica sobre o tema promulgada na década de 90, sendo que Bolívia e
Peru designam os 50 quilômetros internos para tal, enquanto Colômbia, Equador e Ve-
nezuela não especificam sua largura.
A faixa de fronteira brasileira está constituída, conforme dados do IBGE (2002), de 182 dos
467 municípios do Rio Grande do Sul; ou seja, 39% dos municípios gaúchos estão dispostos
ao largo de seu domínio. Essa expressiva participação que corresponde a quase metade da
totalidade dos municípios também se faz notar na amplitude do território nacional, dado que
os municípios fronteiriços gaúchos ainda representam 32% dos municípios fronteiriços do
Brasil, especialmente se considerarmos que estes, ao total, somam apenas 576 municípios.
Assim,as fronteiras com as quais, a meados do século XIX, alcançou-se delimitar o Estado
sul-brasileiro do Rio Grande do Sul constituem 10% das fronteiras internacionais do Bra-
sil, num Estado que representa tão somente 3,32% do território nacional, embora suas
fronteiras sejam as mais densamente povoadas, pois ela concentra relativamente quase o
dobro da densidade média do país como um todo (CASTELLO, 1995).
O processo histórico de delimitação das fronteiras territoriais do Cone Sul culminou em que
a configuração territorial do Rio Grande do Sul equivaler à figura de um losango, no qual
cada uma de seus quatro lados constitui-se numa fronteira distinta. A incorporação do que
hoje constitui a faixa de fronteira sul-riograndense implicou na expatriação/nacionalização
da população de origem castelhana e na expulsão/marginalização dos aborígenes. Isto
põe um dos mais sérios obstáculos à integração do Cone Sul: o tema da identidade cultural
numa região estruturada com base no conflito de Estados-nação (BANDEIRA, 1995).
Entretanto, as relações comunicativas entre o Brasil e o Uruguai ocorrem intensamente
desde muito antes do processo de globalização atual. Osório (1995, p. 114) afirma que
o atual Rio Grande do Sul e o Uruguai, no século XVIII, “[...] faziam parte de um mesmo
espaço-em-construção, uma zona de fronteira, com uma ampla circulação humana e ma-
terial, no qual os súditos de uma e outra Coroa instalavam-se conforme fosse mais fácil sua
sobrevivência, independentemente de fidelidades estatais”. O Estado gaúcho “que teve
historicamente uma tão rica e variada e muitas vezes sangrenta evolução, foi um elemento
fundamental para definir a identidade cultural de uma região extrema do Brasil, que hoje
tem características tão específicas” conforme argumenta Hélgio Trindade (1995, p.10).
Recorrendo ainda à história da colonização, observa-se que foram necessários vários
acordos diplomáticos para que a região tivesse o contorno atual: Tratado de Tordesilhas
(1494), Madri (1750), El Pardo (1761) e Santo Ildefonso (1777), firmados em Castilha. O
último seria consagrado pelo Tratado de Badajoz (1801), na fronteira com Portugal, dan-
do finalmente o contorno atual às lindes na região platina.

151
Ada Cristina Machado da Silveira

Situado no paralelo 30 da latitude sul, o Estado tem ao sul à República Oriental do Uruguai,
que se situa em alguns dos mais conflituosos 1.003 quilômetros de linha de fronteira da his-
tória do Brasil. Dela, dois terços foram demarcados considerando-se acidentes geográficos,
como elementos fluviais de lagoas e rios (GOLIN, 2015). O outro terço foi ganho num corpo a
corpo hoje evocado por uns marcos de pedra cravados esparsamente e depois estabelecidos
por linhas geodésicas. O turbulento Oceano Atlântico está ao leste, com 622 quilômetros
de litoral de praias de areias de difícil aporto. A oeste, outro litoral; os 724 quilômetros das
barrancas do caudaloso Rio Uruguai estabelecem uma divisa natural com a República Argen-
tina. Dos quatro lados do losango, apenas um lado conta com fronteira brasileira. São os 958
quilômetros de limites com o Estado de Santa Catarina, situado ao nordeste do Estado sulista.
As condições geopolíticas e o histórico de ocupação contribuíram para que, no contexto
de afirmação dos Estados nacionais do Cone Sul, as vozes que se alçaram como gran-
des representantes da sociedade de fronteira forjaram práticas cuja análise pressupõe
categorias que instituem a realidade servindo-se do poder de revelação e de construção
exercido através da objetivação do discurso.

As Relações entre Comunicação e Estado


As relações entre Comunicação e Estado supõem determinações que este determina sobre
aquela. Os elementos constituintes do Estado nacional como território, idioma, legislação,
povo e soberania têm nas políticas de comunicação um elemento fundamental para sua
existência. Os aspectos através dos quais que o Estado brasileiro demonstra suas caracte-
rísticas mais restritivas também podem ser reconhecidos como expressivos de sua identi-
dade nacional. A defesa de sua ampla linha de fronteiras nacionais, da periferia de grandes
espaços urbanos e da expressão em língua portuguesa convergiram para uma legislação
de comunicação. Consideradas como um “espaço de exclusão”, as margens periféricas
configuram-se também como um espaço especial, de refúgio e liberdade.
Contradizendo o largo processo rumo à centralização ora observada, a imprensa e o sis-
tema de rádio conseguiram manter um forte caráter regional, eles que sempre tornaram
possível e se instituíram em sustentáculo da representação de distintas vozes nos discursos
das identidades regionais brasileiras. No contexto nacional, as identidades culturais sofre-
ram em compasso de espera até que, nos anos 80, viriam a reclamar presença, prestando
sua voz crítica contra a anodinização de conteúdos prescritos nos governos militares, de
um lado, e a homogeneização provocada pelo caráter industrial das atividades culturais
orientadas pelos mecanismos do mercado capitalista, de outro. Se qualquer representação
deve ser considerada a partir de um sujeito que lhe confere sentido, este se faz acompanhar
da noção de espacialidade e de temporalidade social que convoca. Assim, não podemos
analisar o período de desenvolvimento da malha de comunicação nas terras de fronteira
com as mesmas lentes que analisam o Brasil metropolitano do período do regime militar.
Considera-se que a discursividade propende a ser condizente à ordem heterônoma deter-
minada por políticas de consolidação das fronteiras dos Estados-nação do Cone Sul, mas
que não esgotam sua competência discursiva neste nível, nem abrem mão de sua varieda-
de em termos de estratégias de comunicação. Foi desta maneira que a comunicação em
seus territórios criou a relação entre os níveis local e internacional.
Atualmente, os habitantes da fronteira entre o Rio Grande do Sul e o Uruguai desfruta
de um acordo bilateral estabelecido através do DLG-00090722 de 21/11/2003 que insti-
2 Um DLG (projeto de Decreto Legislativo) é uma competência exclusiva normativa da legislatura brasileira que se assemelha

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Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos

tuiu a cidadania regional binacional para moradores de cidades-gêmeas ali localizadas


(BRASIL, 2005, p.156, 178). A alta permeabilidade da cultura transfronteiriça de Brasil e
Uruguai, bem como a forte integração cultural (atualmente com preponderância brasi-
leira) argumentam em favor da excepcionalidade dessa relação (BRASIL, 2005, p.168).
Igualmente, no âmbito do Mercosul, o Protocolo de Integração Cultural, registrado no
Decreto no. 11/1996 estabelece princípios para o acolhimento de ações entre os Estados
membros no sentido de assegurar a integração (MERCOSUL, 1996).
O reiterado uso do termo globalização requer precisar seu entendimento, conforme registra
García Canclini (2003, p.44): “o que se costuma chamar de globalização apresenta-se como
um conjunto de processos de homogeneização e, ao mesmo tempo, de fragmentação articu-
lada do mundo que reordenam as diferenças e as desigualdades sem suprimi-las”.
Considera-se pertinente revisar os mitos, descongelar os fantasmas e enfrentar as duplicida-
des por tanto tampo mantidas em cumplicidade inconfessa, rompendo com a reprodução
do discurso nacionalista sobre a condição fronteiriça. Justifica García Canclini (1995, p 124)
que “a globalização diminui a importância dos acontecimentos fundadores e dos territórios
que sustentavam a ilusão de identidades a-históricas e ensimesmadas. Os referentes de iden-
tidade se formam, agora, em relação com os repertórios textuais [...] gerados pelos meios
eletrônicos de comunicação e com a globalização da vida urbana.
Põe-se em debate, portanto, a vigência do projeto da Modernidade nas terras de fron-
teira e indagar como foi possível a construção da ideia de fronteira nas representações
midiáticas, no transcorrer do século XX, as quais desempenharam uma função mítica ca-
paz de atualizar re-organizando o mundo simbólico para os sul-brasileiros. Tal processo
ocorreu justamente quando eles estavam atravessando um vário e acelerado processo de
modernização, reconsiderando sua inserção num Estado federado composto por milha-
res de imigrantes e seus descendentes em condições de multiculturalismo.
Os habitantes dos territórios de fronteira, ao mesmo tempo em que são membros de ins-
tituições políticas, constroem redes de relações informais, as quais competem com o Esta-
do. Embora muitas das atividades que engajam as redes informais e grupos da sociedade
civil de vínculo débil possam parecer que, à primeira vista, não detêm função política ou
não levem o Estado em consideração. Mas, sem dúvida, muitos delas o têm, seja quando
agem ilegalmente e burlam normas ou se aproveitam dos vazios de poder que o Estado
usualmente experimenta nos territórios de fronteira. Os símbolos do poder, estatais ou de
outras instituições, atingem assim uma grande variedade, atingindo a própria concepção
de Estado, através da relativização de sentido de representações tomadas tacitamente em
outros contextos, como a de “pátria” ou de “identidade nacional”. As divergências quanto
a tais concepções também são objeto da dimensão polifônica, pois ela tanto pode referir-
-se ao espaço territorial concreto, como pode referir-se ainda à impressionante abstração
que o moderno Estado-nação de dimensões continentais como o Brasil representa.

A Malha de Comunicação Local-internacional


A malha de comunicação local-internacional por ser entendida como um sistema articulador
de mídias, uma rede de comunicação aberta e sensível à diferença e à irredutibilidade de suas
vozes aos agentes estruturais precisamente por necessitar afirmar uma identidade permanen-
temente posta à prova, fruto das pugnas de distintos Estados-nação (SILVEIRA, 2007).

a uma versão anterior de uma ordem executiva ou um instrumento estatutário, que deve ser discutido e votado em ambas
as casas do Congresso Nacional: a Câmara dos Deputados e Federal Senado.

153
Ada Cristina Machado da Silveira

Trata-se de um circuito composto de canais e/ou agentes interligados segundo o prin-


cípio unificador de atividades midiáticas que, de outra forma, estariam dispersas em
centenas de práticas atuantes no nível local- o território fronteiriço-, com sentidas re-
percussões no nível internacional - o espaço colindante dos Estados-nação do Cone Sul.
Assim compreendida, ela considera especialmente uma estrutura permanente de canais
e/ou agentes variados e os processos comunicacionais deles decorrentes.
Ela se apresenta como uma concepção de rede de comunicação aberta e sensível à dife-
rença e à irredutibilidade de suas vozes aos agentes estruturais precisamente por neces-
sitar afirmar uma identidade permanentemente posta à prova, como fruto das pugnas
de distintos Estados-nação.
A malha pretende expressar a autocompreensão de uma sociedade mediada por sua
relação a um Estado-nação e polarizada por uma lealdade cruzada claramente em dois
níveis: o político, responsável por sua vinculação ao Brasil, e o cultural, compreendido
pelo pertencimento histórico à conformação do espaço platino. Sua condição fronteiriça
lhe determina uma cotidianidade permeada pelas relações de poder das nações circun-
vizinhas e guiada por sua pertença irrecusável a um deles.
Fazem-se reconhecíveis dois objetivos na malha de comunicação local-internacional. O
primeiro deles seria o de fixar a vigência da expressão em íngua portuguesa nos confins
meridionais do Brasil e, subsidiariamente, estaria o segundo objetivo, encarregado de
captar e registrar as ações da sociedade fronteiriça. Ou seja, a dinâmica interna deter-
mina que a estrutura seja ao mesmo compatível com a ordem heterônoma e com a so-
ciedade civil local, enquanto sua projeção externa exibe marcas de distinção ao padrão
internacional, embora este lhe seja muito próximo fisicamente.
No espaço intersticial do tecido social afetado pela intervenção da malha cristalizaram-se
diversas práticas no decorrer da consolidação dosprocessos midiáticos. Conteúdos e práti-
cas se construíram de forma maleável, flexível, de forma a responder a demandas definidas
pela interpenetração defronteiras internacionais. Os canais de comunicação tiveram que se
adequar àrigidez da estrutura burocrática do Estado-nação, exercitando uma elasticidadede
enfoques e conteúdos. Assim também os sucessivos elos que configuraram a malha deco-
municação, quando analisada em sua discursividade, contemplam a produção de sentido
orientada respectivamente pela ação da sociedade civil organizadaem veículos de comuni-
cação localizados na estremadura de municípioscontextualizados pelo Estado federado e
enquadrados no marco próprio aoEstado-nação. Considera-se ademais que este último é
localmente percebidocomo o limite de um sistema político em permanente confronto com
outrossistemas políticos externos, quais sejam, as demais nações do Cone Sul.
Em tal nível de articulação, a produção de conteúdos evidencia que a passagem econô-
mica dos sistemas de comunicação deescala industrial pelo fordismo e pós-fordismo pa-
rece não haver abalado arigidez da mentalidade atrelada à ordem definida pelo Estado-
-nação. Antes, oque se observa é uma relação de complementaridade entre as práticas
culturaisdos veículos locais com as redes e cadeias nacionais e internacionais (SILVEIRA et
al., 2008).O cotidiano captado pela ação midiática ou, por outra, a midiatização do co-
tidiano fronteiriço, evidencia um complexo fluxo de informações pertinentes a serviços,
mercadorias e aspectos culturais que unem e desunem as populações que ali residem.
Como síntese que reflete as instâncias representativas da nação no nível local, pois suas ati-
vidades midiáticas envolvem o consentimento de vários órgãos federais determinantes das
políticas de comunicação, sobre ela convergem, ademais, os interesses do Estado nacional no

154
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos

que respeita a suas relações internacionais. A relação dialética entre a atividade de comuni-
cação realizada em íntimo compromisso com o nível local e aqueles interesses identificados
como internacionais faculta a convergência de posições inerente à geopolítica.
O agenciamento de ideias, conceitos e imagens historicamenteapropriados pelo fazer midiáti-
co indica uma orientação principal no trato da constituição identitária no sul do Brasil, defini-
da por um padrão de discurso eprotagonizado por uma certa voz, a fronteiriça. As narrativas
midiáticas que a expressam toma a identidade como umaconstrução consagrada, fechada,
estabelecida, com significados firmadosdoutrinariamente. A noção de identidade desenvol-
vida pela voz fronteiriçaassenta sua base principal no imaginário da formação dos Estados-
-nação doCone Sul. O movimento cultural tradicionalista gaúcho encarregou-se, nodecorrer
do século XX, de destacar as autoridades abalizadas para falar destaidentidade que, desta
forma, atua como um discurso fundador, dada suacondição de antecessora das demais vozes.
Vários temas virtualmente convertidos em pautas recorrentes nosmunicípios da malha
de comunicação das terras de fronteira são perceptíveis.Atentando ao propósito semio-
lógico apontado por Milton Pinto (1999, p. 27) de explicar o porquê de “dentro de todos
os textos passíveis de citação [...] só alguns dentre eles, bem determinados, são citados,
recorrentemente, no texto produzido”, procedemos à identificação das vozes reconhecí-
veis enquanto lugares de fala específicos.
A instrumentalização da identidade como dispositivo de poder não é uma imposição
exclusiva da mídia nas terras de fronteira pois há muitos outros agentes atuando naquele
espaço, estipulando regras e ordenamentos e evidenciando sentidos. Mas ela o assumiu
e continua assumindo como sua tarefa precípua e sua principal manifestação é registra-
da pelas competências da voz fronteiriça.
No Sul do Brasil, a voz reconhecida como fronteiriça apresenta-se como aquela maisvin-
culada ao estereótipo prevalente do gaúcho no Brasil. Ela concorre, no entanto, com re-
presentações vinculadas à voz da etnicidade. Sua presença se justifica porvários fatores.
Trata-se de uma voz faz ressoar sentidos estabilizados por uma ordem significante que foi
pré-estabelecida pela voz fronteiriça. Os sentidos mobilizados por ela tendem a responder
indiretamente ao discurso da voz fronteiriça, apontando para outros valores étnicos. Suas
propriedades discursivas encontram-se em materiais simbólicos tão distintos como podem
ser a promoção de um forte sotaque que soa a italiano ou alemão, ou mesmo a expres-
sar-se em outros idiomas/dialetos, além de ostentar distintos repertórios linguísticos.O
movimento de seu discurso avança num multiculturalismo que ainda não se estabilizou. A
aparição da voz étnica nas representações midiáticas dá lugar a um jogo de perspectivas.
Sua exótica aparição atesta que ela busca recuperar-se do apagamento simbólico que o
discurso dominante impôs a grupos sociais de imigração a partir do século XIX no sul do
Brasil. Ainda que sua materialidade seja pouco expressiva ou depreciada no cenário cul-
tural e, especificamente, midiático, sua condição é claramente emergente. Seu principal
efeito consiste em desnaturalizar a rede de sentidos institucionalizada pela voz fronteiriça
dominante. rompendo com a imaginária unidade de representação da identidade do gau-
chismo, perfilando-se como mais uma orientação do dizer identitário. Ela acusa a incom-
pletude da identidade cultural sulina e recupera sentidos do multiculturalismo excluídos
pela fixação do estereótipo. Atuam nesse projeto o reconhecimento de práticas linguísti-
cas diversas, como o Portunhol e o Portuguaranhol (WEBER; STURZA, 2015).
Uma outra voz, a de mercado responde diretamente à determinação capitalista que
orienta e limita certa produção de representações midiáticas. A voz de mercado atua,
via de regra, procedendo à mera colagem de materiais reconhecidos como significantes

155
Ada Cristina Machado da Silveira

próprios de uma “identidade gaúcha” já cristalizada em representações simplificadas e


adaptadas às proposições mais diversas. Anúncios para mídia impressa e outras peças
de campanha. Sua análise permite deduzir que a construção identitária nas terras de
fronteira, depois de conhecer o amplo apoio das indústrias culturais, encontra-se numa
luta de forças entre o pertencimento a esta ou aquela corrente cultural e se ajusta à con-
vivência do momento, sobressaindo-se a estratégia de reterritorialização de empresas
multinacionais ao nível do espaço local através do apelo a suas tradições.
Por fim, a voz missioneira. Ela se ressente do caráter fronteiriço que impregnou o estere-
ótipo do gaúcho e é detentora de uma discursividade que brilha por sua ausência quanto
confrontada à condição fundadora da voz fronteiriça. À voz missioneira foi determinada
a condição de não poder aparecer, não poder ser veiculada, visto que ela interpela di-
retamente os sentidos pretendidos pela voz fronteiriça. O confronto esboçado, eviden-
temente, é reconhecível no seu aspecto estruturante, pois uma série de iniciativas vem
operando no propósito de desconstruir tal ordenamento.

Globalização e Comunidade de Comunicação


Esquematicamente, a armação de um processo de integração das distintas comunidades
de comunicação do Cone Sul conta com ciclos rotatórios de mútua interpenetração e dis-
tintas escalas. A variedade de algumas experiências sincrônicas e o reconhecimento atri-
buído a algumas produções de êxito permitirá construir a nova comunidade de comunica-
ção. Desta maneira, observamos no material levantado aquelas estratégias discursivas que
contribuíram e continuam a atuar no cumprimento da ordem heterônoma em benefício
do Estado-nação e as que lhe fazem frente. O hibridismo seria responsável pela adjunção
de materiais estranhos, tecendo uma malha de comunicação heterogênea e heterovalente,
desconhecida e por vezes irreconhecível ou indiscernível por outras sociedades.
As populações fronteiriças, por um século enfrentando a estagnação econômica e já “acostu-
madas a dividir suas misérias”, como dizem ao aludir à flutuação cambial que ora favorece a
Brasil, ora a Uruguai ou a Argentina, demandam soluções de desenvolvimento regional que
devem ser pensadas a partir do espaço local. Essas soluções são entendidas como processos
que devem conceder certa estabilidade à região e um projeto de desenvolvimento que não
contemple apenas os interesses identificados pelas capitais políticas e centros econômicos,
mas que atenda às sociedades que vivem o cotidiano da integração proposta nos grandes
acordos diplomáticos. O reconhecimento da condição pós-moderna há muito é reclamada
por essa sociedade que alcançou maturidade para expressar que o custo da integridade terri-
torial de uma nação não pode ser pago pelas populações fronteiriças. A colonização brasileira
que começou pela costa litorânea, teve uma periferia particular dentro da ordem colonial.
Havendo superado internamente no Brasil contemporâneo sua condição de “espaço de ex-
clusão”, sua sociedade relega às atuais margens periféricas os constrangimentos já sofridos.
Mas seu valor é reconhecido pelos núcleos de produção de ficção televisiva, os quais recor-
rem ao legado cultural regional em busca de uma matéria sólida de representação. Cabe aos
Estados periféricos encontrar nesta alternativa uma dupla possibilidade: considerá-la uma
forma de adentrar no império através de seus mitos de origem e lendas, símbolos e, especial-
mente, dos “heróis de fronteira”, ou fazê-los personagens de seus próprios relatos. E é desta
última alternativa que as práticas da malha de comunicação local-internacional podem vir a
ocupar-se com êxito, promovendo os seus próprios heróis transfronteiriços ou contendores,
confrontando versões e expondo sua diversidade de perspectivas. A ação dos agentes midiá-
ticos na sensibilização para os temas latino-americanos mostra-se como fundamental para o

156
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos

processo de integração do Cone Sul. Desenvolver a dimensão simbólica da integração é uma


atividade que deve ocorrer necessariamente no âmbito da pragmática da comunicação e a
correlação de forças do espaço geopolítico se estabelece no plano simbólico, antes que no
plano territorial. Para isso, é necessário ter consciência da existência de uma geografia simbó-
lica que venha a desenvolver uma comunidade de comunicação com base na anterior malha
local-internacional. Segundo a ação da mídia, a produção de narrativas sobre a identidade na
discursividade das diferentes vozes tende a fazer-se útil e pública. Assim, a malha de comu-
nicação local-internacional poderá converter-se numa ponte que permita um salto sobre um
vazio determinado por forças e agentes que já não respondem pelas demandas presentes na
vida fronteiriça e que conhecem com a globalização um grande desafio.
A malha de comunicação local-internacional pretende ser um salto sobre um vazio de-
terminado por forças e agentes que já não respondem pelas demandas presentes na
vida fronteiriça. É a organização de um grande encontro nas periferias do Estado-nação,
protagonizado por agentes civis em resposta aos poderes políticos e militares do nacio-
nalismo. A força do militarismo faz supor que, no que respeita a suas relações internacio-
nais, a passagem das armas ao discurso exigiu do Estado nacional brasileiro um esforço
concentrado no sentido de estabelecer uma cortina sonora de proteção e alerta contra
uma possível invasão cultural e de resguardo à nacionalidade. O congelamento dos con-
flitos entre Brasil, Uruguai e Argentina, observáveis na atualidade, esconde um passado
de intensas pugnas nos limites meridionais nacionais.
Portanto, a grande finalidade da malha local-internacional consiste em desenvolver uma
competência capaz de produzir novas lógicas por assimilação predicativa, o que consisti-
ria em lutar contra a invisibilidade; buscar o mútuo (re)conhecimento coordenando fatores
heterogêneos como circunstâncias, projetos, motivos, cooperação, hostilidade, ajuda ou
impedimento; estabelecer pontos de pautas comuns e integrando acontecimentos dispa-
ratados pela ordem do Estado-nação; transfigurar o mundo pré-configurado pelos Estados
nacionais e alheio ao cotidiano da sociedade fronteiriça. Tais elementos encaminhariam para
uma futura consolidação de uma comunidade de comunicação erguida sobre as ruínas do
congelamento de relações do passado. Em que pesem as idiossincrasias aparentes e marca-
das pela superficialidade das diferenças idiomáticas e interesses nacionais, há uma busca de
superação do (mútuo) estranhamento de sociedades que compartilham historicamente de
algumas características consagradas como a condescendência e a co-territorialidade.

Nota
O texto resultou das atividades do projeto de pesquisa “Terras de Fronteira. A variedade
das estratégias de comunicação no Brasil Meridional”. Integraram o projeto de pesquisa
como bolsistas de Iniciação Científica entre 2001-2015: Leandro Stevens, Aliandra R. L.
Barlete, Lindamir E. Adamczuk e Micheli Seibt.

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Ada Cristina Machado da Silveira

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WILSON, T. M.; DONNAN, H. (Ed.). Borderidentity: nationandstateatinternationalfron-
tiers. Cambridge (RU): Cambridge University, 1998.

158
A vida em 700 palavras: Os
Obituários do The New York Times
e da Folha de S.Paulo1
Monica Martinez
Universidade de Sorocaba – São Paulo

A Experiência Estadunidense

P
ertencente à The New York Times Company, o diário The New York Times foi fundado
em 18 de setembro de 1851 por George Jones e Henry Jarvis Raymond, sendo que este
último também participou da fundação da Associated Press em 1856. Em O Reino e o
Poder, o jornalista Gay Talese, que trabalhou no jornal por nove anos, de 1956 a 1965, lembra
a (...) “gloriosa história do Times, que sobrevive desde a década de 1850, enquanto tantas
outras publicações (como o The Saturday Evening Post, as revistas semanais Life e Look e o
diário New York Herald Tribune) não resistiram à invasão da televisão, aos crescentes custos
de produção e à mudança de valores da sociedade moderna” (TALESE, 2000, p. II).

Em 1896, quando (Adolph) Ochs comprou o jornal, sua circulação paga diá-
ria estava abaixo de 9 mil exemplares, menos do que vendia com dez dias de
vida, em 1851. Quando da morte de Ochs, em 1935, a circulação diária era de
465 mil exemplares. Esse número quase dobrou desde então e aconteceram
várias mudanças para melhor, mas em muitos aspectos o Times continua a
ser o jornal de Ochs, seu santuário, e suas palavras de sabedoria são reverbe-
radas por velhos experientes ainda sob sua influência [...] seu credo – “Dar as
notícias com imparcialidade, sem medo ou favor”.
O New York Times era uma mistura atemporal de passado e presente, um mo-
derno reino medieval no interior da nação, com suas próprias leis e valores parti-
culares e com líderes que se sentiam responsáveis pelo bem-estar do país, porém
menos inclinados a mentir do que os estadistas e os generais. O Times era a
bíblia, surgindo a cada manhã com uma visão da vida que milhares de leitores
aceitavam como se fosse a realidade, com base na simples teoria de que o que
aparecia no Times devia ser verdade, e essa fé cega transformava em monges
muitos homens do jornal. [...]. Afinal, o New York Times cresceu com o país du-
rante as duas grandes guerras, prosperou com ele e ambos estavam igualmente
comprometidos com o capitalismo e a democracia, e o que era ruim para a nação
era, com frequência, igualmente ruim para o Times. (TALESE, 2000, 18-19).

O jornal foi seriamente atingido pela crise econômica de 2008 e pelo avanço da Internet.
Com o aumento do acesso ao conteúdo disponibilizado digitalmente, e como uma forma
de aumentar as receitas, desde março de 2011 o jornal lançou pacotes de assinatura di-
gital, passando a cobrar o acesso ao conteúdo digital de usuários frequentes. O usuário

1 Artigo apresentado no V Colóquio Brasil-EUA de Ciências da Comunicação. Chicago, 2012.


Monica Martinez

eventual possui uma quota de até 20 artigos que podem ser acessados por mês, sem
custo. O esforço rendeu frutos e criou uma cultura de cobrança chamada pay wall, em-
pregada hoje por jornais de tudo o mundo, como a Folha de S.Paulo no Brasil.
Quanto à sua estrutura atual, o jornal é organizado em três seções. A primeira delas, cha-
mada News, inclui os obituários entre editorias como Internacional, Nacional, Nova York,
Saúde e Tecnologia. A segunda, Opinião, contém editoriais e cartas ao editor, entre outras.
Já a terceira, Features (coberturas especiais), é dedicada a seções de artes, cinema, viagem
etc., além das revistas, como a The New York Times Magazine.
Obituários é uma seção importante. Na versão online do jornal é possível pesquisar
obituários desde 1851. É o caso da rainha Victória, que subiu ao trono britânico em
1837 e faleceu no dia 23 de janeiro de 1901, aos 81 anos.
O livro The Obits (MCDONALD, 2010), editado pelo jornalista responsável pela editoria
de obituários, William McDonald, é organizado de maneira semelhante à qual os obituá-
rios são publicados no jornal. Isso é, as notícias de falecimento são inseridas na editoria
na qual o perfilado se inseria em vida. No livro, os perfis são distribuídos nas editorias
de Arts & Design (Artes e Design), Business and The Economy (Negócios e Economia),
Letters (Letras), Music (Música), Public Affairs (Assuntos Públicos), Social Activism and
Religion (Movimentos Sociais e Religião), Sports (Esportes), Stage and Screen (Teatro e
Cinema) e, finalmente, Other Notables (Outros Notáveis).
Na introdução da obra, MacDonald diz que aproximadamente 55.5 milhões de pessoas
morrem no mundo por ano – o tamanho da população da Itália –, sendo que apenas mil
delas são anunciadas no NYT2:

[...] limitamo-nos a escrever sobre pessoas que fizeram a diferença no grande


palco (da vida) – pessoas, pensamos, que atrairão o interesse da maioria. Se você
foi notícia na vida, as chances são de que sua morte seja uma notícia também.
Como diretores de admissão, que peneiram os candidatos, nós estudamos o
seu curriculum vitae, lemos suas cartas de referência e classificar os prospectos
em pilhas: sim, não, talvez. (Um lote inteiramente separado, menor e de alguma
forma pungente, é composto por material enviado pelos candidatos, pedindo-
-nos para mantê-los em arquivo para esse dia inevitável). Nós também fazemos
nossa lição de casa: investigamos, pesquisamos, perguntamos ao redor antes
de decidir sim, não ou talvez. Procuramos apenas relatar os óbitos e resumir as
vidas, iluminando porquê, em nosso julgamento, essas vidas foram significativas
– porquê nós a escolhemos. A justificativa para o obituário é a própria história
que conta (MCDONALD, 2010, p. xv, tradução nossa) 3.

Segundo ele, não há uma fórmula fixa para a seleção, embora haja critérios. Um deles é
fama, caso do ator Tony Curtis (1925-2010). São bem-vindos os realizadores, como o bio-
químico Eugene Goldwasser (1922-2010), cujas pesquisas possibilitaram a criação de uma
droga para tratar a anemia. Interessam representantes de grupos cujas contribuições foram
esquecidas ou ignoradas, como Violet Cowden (1916-2011), integrante do Women Airforce
2 Daqui em diante, o jornal The New York Times será identificado pelas iniciais NYT.
3 Do original: […] we confine ourselves to writing about people who made a difference in the large stage – people, we think,
who will command the broadest interest. If you made news in life, the rule of thumb goes, chances are your death is news,
too (…) Like deans of admission, we sift through the candidates, study their curriculum vitae, read their letters of reference
and sort the prospects into piles: yes, no, maybe. (An entirely separately, smaller and somehow poignant batch is composed
of material submitted by fully breathing obituary themselves, asking us to keep them on file for that inevitable day). We also
do our own homework: we investigate, research as ask around before deciding yes, no or maybe. We seek only to report
deaths and to sum up lives, illuminating why, in our judgment, those lives were significant – why, that is, we’ve choosen
them. The justification for the obituary is in the story it tells.

160
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos

Service Pilots (WASP), grupo feminino da força aérea americana na Segunda Guerra Mun-
dial. Segundo MacDonald, os jornalistas desta editoria estão sempre “ansiosos para escre-
ver sobre heróis ou heroínas desconhecidos, olhamos para todos que aparecem em nosso
caminho, nunca descartando qualquer um” (MCDONALD, 2010, p. xv, tradução nossa) 4.

A Experiência Brasileira
Três títulos, a Folha da Noite (fundada em 1921), a Folha da Manhã (1925) e a Folha da
Tarde (1949) foram fundidos em 1º de janeiro de 1960, dando início ao jornal Folha de
S. Paulo ou, como é chamado informalmente, à Folha. Editado na cidade de São Paulo,
trata-se do jornal brasileiro atualmente com maior circulação paga, com média diária
de 332.354 exemplares em janeiro de 2014 segundo a Associação Latino-Americana de
Publicidade (Alap)5. O jornal passou por quatro fases:

De Olival Costa e Pedro Cunha, nos anos (19)20, a Octaviano Alves de Lima,
proprietário do jornal de 1931 até 1945, a Folha ganhou dimensões que a
colocariam no debate político mais vivo do período. De fato, de uma visão
urbana e fiscalista, circunscrita aos horizontes de frações da classe média
paulistana, o jornal viria a adquirir um vigor dado pelos projetos de classe de
uma ‘burguesia afazendada’ – para usar a expressão de Cunha Motta – mais
voltada para os interesses da lavoura. Nesta fase, Rubens do Amaral pontifi-
cará, exercitando sua formação de futuro udenista...
De 1945 a 1962, o jornal será dinamizado por uma nova concepção, mais
moderna, urbana e empresarial, capitaneado por José Nabantino Ramos. Na-
bantino Ramos fará retornar o jornal ao seu estilo fiscalista e modernizador.
Nessa fase, o jornal de classe média assumirá seus contornos mais nítidos,
tendo por pano de fundo os dilemas que a Guerra Fria carreava para este
imponderável ‘Terceiro Mundo’. O ‘4º. Poder’, caro a Nabantino, era testado
no ‘Terceiro Mundo’, expressão esta que se fortaleceria ao longo do período,
também fruto da Guerra Fria – guerra surda entre os dois mundos polarizados
pelos Estados Unidos (admiração maior de Nabantino) e pela União-Soviética.
O quarto momento iniciar-se-á após a greve de 1961, quando o grupo Frias-Cal-
deira assume em 1962 a direção da empresa, imersa em grave crise financeira.
A lenta recuperação do empreendimento, as iniciativas na esfera da distribui-
ção (reorganização administrativa, novas frotas etc.), propiciarão acúmulo de
capitais que permitirão o salto tecnológico que se dará entre 1967 e 1974. (...)
Neste quarto momento, a formulação de um projeto mais claro de jornal
será tarefa relativamente recente, situada por volta de 1974. O processo de
‘distensão’ política do país, iniciado por Geisel, guarda íntima relação com
essa fase da história da Folha: a procura de um espaço político democrático
– sempre nos marcos da ideologia liberal – passará a ser a pedra de toque do
jornal. (MOTA; CAPELATO, 1980: III-IV).

Essas transições, é claro, não foram sempre feitas de forma pacífica. Em A Regra do Jogo,
de Cláudio Abramo, o jornalista Mino Carta relata um dos episódios mais dramáticos

4 Do original: “[...] eager to write about unsung heroes or heroine, we look at everyone that comes our way, never dismiss-
ing anyone out of hand [...]” (MCDONALD, 2010, p. xv).
5 A Folha de S. Paulo foi o primeiro em circulação nacional no período de 1986-2010, quando, segundo dados do Instituto
Verificador de Circulação (IVC), o jornal perdeu a liderança para o diário popular Super Notícia, de Belo Horizonte (Minas
Gerais). Em 2014, o IVC (Instituto Verificador de Circulação) alterou o critério de levantamento para refletir o crescimento
das edições digitais e o jornal paulistano reconquistou a liderança.

161
Monica Martinez

deste quarto momento. Trata-se do afastamento do diretor de redação Abramo (1923-


1987), atendendo ao pedido do então ministro do Exército, Sílvio Frota. O general teria
ficado incomodado com uma crônica escrita por Lourenço Diaféria que, segundo ele,
tinha ofendido a memória do patrono do exército, Duque de Caxias. Carta, contudo,
lembra que Octávio Frias Filho, hoje diretor de redação e proprietário do jornal, numa
entrevista concedida em 1988 à revista Playboy, explicou o evento como uma necessária
ascensão e queda dos “barões do jornalismo.” (CARTA in ABRAMO, 1988, p. 9-10).
O historiador brasileiro Nicolau Sevcenko reflete sobre este “caráter descontínuo, cheio
de rupturas e redefinições que assinala o percurso da FSP6 desde a sua fundação.” (SEV-
CENKO, 1999, p. 9):

Isso que poderia parecer um demérito a alguns, aos olhos de um historiador


se apresenta como uma circunstância particularmente feliz. Alguns jornais
são fiéis a si mesmos, o que é sem dúvida uma forma de virtude. Outros o
são ao tempo no interior do qual se acham enquadrados, como o caso da
Folha de S.Paulo. Fato que me encanta sobre uma forma muito especial, por-
que coloca esse diário sob o signo da ruptura, que, ao que me parece, presi-
de não só a essência do exercício jornalístico quanto aos próprios movimen-
tos dessa estranha nebulosa denominada História (SEVCENKO, 1999, p. 9).

Embora evidentemente a FSP publique obituários desde sua fundação, em 1960, este es-
tudo se concentra na implantação, em 30 de outubro de 2007, da seção Mortes, publica-
da no caderno Cotidiano, escrita até 18 de agosto de 2008 pelo jornalista William Vieira.
Tanto os obituários da FSP quanto os do NYT são frutos de modelos de jornalismo
que divergem em alguns pontos, mas que convergem em outros. Em estudo sobre o
tema, o jornalista e docente Carlos Eduardo de Lins e Silva cita o estudo de Siebert,
Peterson e Schramm, de 1956, para apontar os quatro modelos jornalísticos:

(...) o libertário, que teria sua expressão máxima nos EUA; o de responsabili-
dade social, como se pratica na maior parte dos países da Europa Ocidental;
o autoritário, com seus exemplos mais claros nos países do Terceiro Mundo;
e o comunista, nas sociedades socialistas.
O Brasil faz um jornalismo que se guia atualmente pelos princípios e parâme-
tros da escola libertária. Mas como aconteceu com sua formação econômica,
também no caso do jornalismo ele se insere num modelo sem que no interior
da sociedade houvessem realizados as condições que, nos EUA, tornaram
lógico o aparecimento deste tipo de jornalismo e não de outro. Há um século
a sociedade americana desfruta de um público razoavelmente homogêneo
que consome jornais em escala suficiente para que os produtores de bens
materiais tenham interesse em veicular por seu intermédio as mensagens
publicitárias que irão expandir o mercado para seus produtos. As barreiras
do analfabetismo foram superadas quase por completo, as classes médias
cresceram a ponto de se transformarem em maioria absoluta da população e
tudo isso aconteceu há mais de cem anos (SILVA, 1991, p. 57-58).

A própria implantação da imprensa nos dois países – 1638 em Cambridge, Massachu-


setts, e em 1808 no Rio de Janeiro – diz muito sobre o cenário social, econômico, político
e cultural onde estas iniciativas se instariam. Evidentemente, muita coisa mudou em
ambos os países desde que esse livro foi escrito, em 1991, notadamente a crise de 2008
6 Daqui em diante, a Folha de S.Paulo será identificada pelas suas iniciais, FSP.

162
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos

nos Estados Unidos e a ascensão da chamada nova classe média no Brasil, que ampliou
o poder consumidor de um segmento significativo da população.
Contudo, e apesar das diferenças socioeconômicas desses dois países, tanto os leitores do
NYT quanto os da FSP parecem estar interessados no que o jornalista estadunidense Walter
Lippmann (1889-1974) já receitava em carta ao editor Horace Greeley (1811-1872). “Começo
com uma clara concepção de que o assunto que mais profundamente interessa ao ser hu-
mano médio é ele próprio; depois disso ele está mais preocupado com seus vizinhos. Ásia e
Togo estão muito longe destes neste aspecto” (LIPPMANN, 2010, p. 283).
Esse rol conteria, igualmente a morte, bem como os obituários, inclusive os de jornalistas
encarregados de dar essas más notícias aos leitores. É o caso do perfil de Alden Whitman,
considerado o pai dos obituários do NYT, escrito por Gay Talese (TALESE, 2004, p. 478-494).

Metodologia de Pesquisa
O corpus desse estudo comparativo entre obituários brasileiros e estadunidenses
consiste em sete obituários publicados na FSP de 30 de outubro de 2007 (quando a
seção Mortes é lançada, a 6 de novembro do mesmo ano) e 21 obituários publicados
no mesmo período no NYT. Todos foram colhidos por meio digital.

1. Discussão dos Resultados – Seleção


O critério de seleção adotado no NYT (MCDONALD, 2011) baseia-se no tripé fama, con-
quistas e representatividade de grupos sociais. Não há uma definição tão específica no
caso brasileiro. Nesse último, na fase analisada, a escolha privilegia os perfis de anônimos,
escolhidos após pesquisas nas mídias digital, eletrônica e impressa, bem como consulta à
lista de óbitos do Serviço Funerário Municipal e aos informes feitos pelas famílias à reda-
ção. O processo de apuração envolve entrevistas com amigos e familiares nos dois casos.

2. Frequência
A seção Mortes da FSP publica um óbito por dia. Isso se deve ao fato de que as notícias do
falecimento de personalidades são publicadas em outras editorias do jornal. Já no NYT os
obituários são identificados como tal, embora não sejam publicados em um lugar específi-
co, mas nas editorias às quais os perfilados estariam naturalmente ligados, como Esportes
e Artes, entre outras. No período analisado (30/10 a 6/11/2007), foi publicada uma média
de três obituários no jornal estadunidense, ou seja, três vezes mais do que a média da FSP.

3. Gêneros
No período analisado, houve incidência maior de obituários de mulheres na FSP (38%)
em relação ao NYT (10%). Em ambos estudos, contudo, ressalta-se a predominância
das histórias masculinas em relação às femininas. Não se notou, no jornal brasileiro,
nenhuma menção explícita ou implícita a homossexuais. Já no caso estadunidense há o
relato de uma lutadora profissional cujos “cinco casamentos terminaram em divórcio (...)
e viveu por muitos anos com Katie Glass”. Este dado biográfico é transmitido de forma
informativa, sem julgamento ou interpretação moral sobre a vida sexual da falecida.

163
Monica Martinez

Gráfico 1 – A questão dos gêneros

Gêneros (NYT) Gêneros (FSP)

Mulher (2)
10% Mulher (3)
38%

Homem (5)
62%
Homem (19)
90%

Fonte: Martinez, 2012

4. Faixa Etária
No período analisado, a expectativa de vida nos EUA era de 78,2 anos, enquanto no Brasil era
73,5 anos (dados de 2011). A média da faixa etária dos obituários publicados no NYT foi de 79
anos, sendo que o falecido mais novo possuía na ocasião 41 anos e o mais idoso, 104. Além
desse, houve um segundo centenário, com 101 anos. Não houve uma diferença significativa
em relação ao estudo brasileiro, que registrou no período uma média etária de 74,5 anos.
Não há notificações de mortes de crianças, adolescentes nem suicidas em ambos casos.
Um dado que chama a atenção é a apresentação da idade. No caso estadunidense a idade é
expressa no título. No brasileiro, a idade é mencionada na última linha da matéria. Como se
sabe, no formato jornalístico tradicional, da pirâmide invertida, o final da mensagem é consi-
derado o menos importante. Este dado sugere que o brasileiro ainda se vê como uma nação
constituída por jovens, ainda que os dados estatísticos apontem o envelhecimento gradual
da população devido a fatores como a redução da mortalidade infantil e o aumento da ex-
pectativa de vida. O dado, portanto, sugere uma sociedade que não tem uma tradição de se
preparar para o envelhecimento e reluta em assumi-lo, o que é expresso simbolicamente na
prática de se colocar este dado na última linha possível do relato jornalístico. A expectativa
de vida nos EUA é de 78,2 anos, enquanto que a brasileira é de 73,5 anos (dados de 2011).

5. Espaço do Texto, Autoria e Linguagem


O NYT apresentou no período uma média de 736 palavras por obituário. A média não foi
muito diferente na FSP: 727 palavras. O curioso é que, graças à objetividade do inglês, há
mais informações e dados concretos sobre os relatos dos mortos naquele idioma do que os
obituários em português. Por outro lado, o português permite uma tessitura poética surpre-
endente, característica enfatizada pela escrita criativa e sensível do jornalista então responsá-
vel pela coluna Mortes, William Vieira. No caso do primeiro obituário da história da seção, da
tradutora das cerimônias do Oscar para a televisão brasileira – Elizabeth Hart –, Vieira sintetiza
de forma elegante as coisas e as pessoas que a tradutora amava: “Hart tinha dois filhos, três
netos e duas paixões: o samba da Mangueira, que a levou para o sambódromo por seguidos
13 anos, e o futebol do Flamengo, que acompanhava no Maracanã.” (VIEIRA, 2007).
A questão da linguagem está diretamente relacionada à autoria. No período analisado, 11
diferentes autores, além de uma agência de notícias (Associated Press) e um obituário assi-
nado coletivamente (The New York Times), foram publicados no NYT. Já o jornalista William
Vieira, responsável pelos obituários em 2007 da FSP, foi o autor de todos os textos analisados

164
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos

no período. Com isto, é possível notar um padrão maior nos textos do jornal brasileiro e uma
discreta variação de acordo com o estilo de cada jornalista estadunidense.
Um exemplo é o jornalista com mais textos publicados no período, Douglas Martin, cujo
estilo prima pela visão crítica. É o caso do obituário do barítono Robert Goulet, publicado
em 31/10/2007. Após apontar as conquistas profissionais do cantor, Martin pontua: “Ainda
assim, Mr. Goulet deixou a impressão de que poderia ter sido mais do que foi. Para um ator
de musicais (de voz) suave, ele chegou tarde, depois de Elvis e antes dos Beatles. Em 1961,
o New York Daily News Magazine chamou-o de ‘o homem que poderia ajudar a esmagar
o rock’n’roll.’ Mas esta era uma tarefa impossível. (MARTIN, 2007a, tradução nossa).”7
Essa visão crítica pode ser igualmente encontrada na pesquisa brasileira. No obituário de
Elizabeth Hart, o jornalista William Vieira ressalta: “Por mais de 15 anos ela recebeu elogios
por sua pronúncia e entonação, e críticas, por traduzir cada detalhe da cerimônia, inclusive
as piadas. Aos poucos tornou-se mais sintética.” (VIEIRA, 2007). O que é alvo de julgamen-
to do trabalho da intérprete: “Dizem os críticos mais ácidos que, com o passar dos anos,
dava para ouvir o som local do teatro onde acontece o Oscar”. (VIEIRA, 2007).

Gráfico 2 – Distribuição da autoria no jornal The New York Times


Autores
6

Autores
2

0
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Ri Th

Fonte: Martinez, 2012

Ao tratar a questão, o jornalista brasileiro Matinas Suzuki Jr., que organizou e escreveu o
prefácio de O livro das vidas:obituários do New York Times, afirma: “Os jornais (...) abandona-
ram o antigo preceito de mortuis nil nisi bonum – dos mortos, só falar bem – e começaram a
dedicar mais linhas para o lado menos honroso das biografias (SUZUKI JÚNIOR, 2008, p. 304).
De toda forma, em ambos os jornais predomina a prática de enfatizar o significado da vida
do morto, quase como se o obituário fosse uma homenagem póstuma. Daí no caso brasileiro
não ser rara a reprodução destes textos em blogs, publicações de classe ou corporativas –
sempre com o devido crédito ao autor e à publicação. O fato de o primeiro jornal em circula-
ção do país publicar a nota de falecimento parece ser uma credencial da grandeza do morto.
Já a espirituosidade é decididamente uma marca estadunidense notada em particular
nos textos do jornalista Douglas Martin. Ele se alinha à tradição do bem humorado

7 “Still, Mr. Goulet left a sense that he might have been more than he was. For a suave musical theater performer, he arrived
late, just after Elvis and just before The Beatles. In 1961, the New York Daily News Magazine called him ‘just the man to help
stamp out rock’n’roll.’ But it was an impossible assignment.”

165
Monica Martinez

Robert McG. Thomas Jr., que escreveu 657 obits para o NYT (SUZUKI JÚNIOR, 2008,
p. 309). No obituário do cantor de música country Porter Wagoner, de 30 de outubro
de 2007, Martin cita um affair entre o cantor e a cantora Dolly Parton que teria ren-
dido várias manchetes de tablóides. “Um (tablóide) relatou que a esposa do senhor
Wagoner encontrou-o na cama com a senhorita Parton e atirou em ambos. ‘Não foi
assim’, disse o senhor Wagoner ao The Tenessean em 2000 (‘com uma piscadela’, disse
o jornal). ‘Ela sequer atingiu Dolly.’” (MARTIN, 2007b, tradução nossa)8
Outro exemplo é o fecho do obituário do barítino Robert Goulet, de 31 de outubro de
2007: “(...) Mesmo com problemas de saúde, ele ria de si mesmo. Quando ele sofreu uma
cirurgia por causa de um fêmur partido em meados dos anos 1990, perguntou ao cirurgião
se ele seria capaz de dançar após a intervenção. O doutor disse que sim. ‘Isso é bom,’, disse
o senhor Goulet, ‘porque eu não sabia dançar antes.’” (MARTIN, 2007a, tradução nossa)9.
Esse bom humor não é encontrado nos obituários brasileiros. Talvez isso se deva, em par-
te, à herança da visão religiosa ibérica católica, bastante conservadora. Como diz Matinas
Suzuki Jr, o organizador de O livro das vidas: “A cultura brasileira não lida bem (com a mor-
te). Na nossa tradição católica e latina, a morte é vista como silêncio e dor”(COSTA, 2012).

Procedências dos Mortos


Personalidades ligadas às artes e ao comportamento (style) respondem pela maioria dos
obituários do NYT do período (38%). A segunda maior incidência reflete os falecimentos
ocorridos na cidade e região (19% dos obituários). Contudo, se a este segundo dado
forem somados os obituários relativos ao país como um todo – a editoria de U.S. (10%)
–, este número sobe para 29%, ou seja, quase um terço do total. A morte de esportistas
também é bastante noticiada (19%). Quase 14% do corpus analisado refere-se a faleci-
mentos de personalidades de destaque no mundo, o que é um diferencial em relação à
seção do jornal brasileiro, que não destaca falecimentos internacionais.

Gráfico 3 – Distribuição dos obituários nas editorias do The New York Times

Editorias
U.S. (2)
10%

World (3) Artes & Style (9)


14% 38%

Sports (4)
19% NY & Region (4)
19%

Fonte: Martinez, 2012

8 “One reported that Mr. Wagoner´s wife had found him and Ms. Parton in bed and had shot both. ‘There wasn’t nothing to
that’, Mr. Wagoner told The Tennessean in 2000 (‘with a wink’, the newspaper said). ‘She didn’t even hit Dolly.’”
9 “(...) But even with health problems, he could laugh at his own expense. When he had surgery on a split femur in the mid-
1990s, he asked the surgeon if he would be able to dance afterward. The doctor said yes. ‘That´s good,’, Mr. Goulet said,
‘because I couldn’t dance before.’”

166
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos

No caso brasileiro não há a divisão por editorias, mas a distribuição de acordo com a profissão
sugere uma predominância de profissionais liberais, que são o público principal do jornal.

Gráfico 4 – Categoria profissional dos obituários da Folha de S. Paulo

Folha de São Paulo


Público (1)
12,5%

Ex-militar (1) Profissional


12,5% Liberal (1)
37,5%

Empresário (1)
12,5%

Dona-de-casa (1) Docente (1)


12,5% 12,5%

Fonte: Martinez, 2012.

Contudo, um dado interessante da pesquisa brasileira é o de que a totalidade dos casos


é formada por residentes principalmente no estado sede do jornal (São Paulo, 75%), se-
guido de sua ex-capital até a década de 1960 (Rio de Janeiro, 12.5%) e da capital atual e
o centro político da nação (Brasília, 12.5%).

Gráfico 5 – Domicílio dos obituários da Folha de S. Paulo

Residência

Brasília (1)
12,5%

Rio de Janeiro (1)


12,5%
São Paulo (6)
75%

Fonte: Martinez, 2012

Estrutura do Texto
Usando como exemplo o obituário do escritor Frank Kermode (MCDONALD, 2010, p. 29), o
padrão do NYT em geral demanda título (Autodidata das Letras10), um primeiro parágrafo
que sintetiza a vida e obra da pessoa (“Frank Kermode, que ascendeu das origens simples
para se tornar um dos críticos mais respeitados e influentes da Inglaterra, morreu em 17 de
agosto em sua casa em Cambridge, Inglaterra. Ele tinha 90 anos.”).11. Esta abertura, que
“qualifica e dá tempero à vida”, foi introduzida por Robert McG. Thomas Jr. (1939-2000), que:
10 Self Made Man of Letters.
11 Frank Kermode, who rose from humble origins to become one of England´s most respected and influential critics, died
on Aug. 17 at his home in Cambridge, England. He was 90).

167
Monica Martinez

[...] conferiu enorme clareza ao gênero ao fixar definitivamente o epíteto lon-


go, no parágrafo inaugural, como o momento decisivo de um obituário. No
NYT [...] o aposto é chamado de ‘a cláusula Quem’. Mais do que consolidá-lo
como fórmula, McG. elevou-o a um requinte literário: ele define uma vida logo
de cara, coisa dificílima de fazer, e enlaça algumas promessas, promessas que
vão se revelando ao longo do texto” (SUZUKI JÚNIOR, 2008, p. 309).

Ainda no quesito estrutura, um segundo parágrafo informa a fonte da informação do


falecimento, como em “Sua morte foi anunciada pela London Review of Books, que ele
ajudou a criar e com a qual contribuiu com freqüência”. (MCDONALD, 2010, p. 29)12. O cui-
dado de se registrar a fonte da informação se deve ao fato de vários jornais terem levado
‘barrigas’ ao publicar a morte de pessoas vivas, como o Nile´s Weekly Register, que em 19
de setembro de 1818 anunciou com dois anos de antecipação o falecimento do explorador
Daniel Boone (1734-1920) (SUZUKI JÚNIOR, p. 302). Ou, mais recentemente, em 28/8/2008,
quando a agência de notícias Bloomberg distribuiu por engano um obituário incompleto
do então executivo-chefe da Apple, Steve Jobs (1955-2011). O rascunho, ainda disponível
no blog Gawker (http://gawker.com/5042795/bloomberg-runs-steve-jobs-obituary), con-
tém uma relação de nomes de pessoas a serem contatadas para falar sobre ele.
Esta estrutura é mais flexível no estudo dos obituários brasileiros. O título não contém
referência à morte, fazendo uma descrição sintética e poética do falecido, caso de “Eli-
sabete Hart, a eterna voz do Oscar” (VIEIRA, 2007). Neste exemplo de 17 linhas, 14 delas
são escritas de forma livre, contando a vida do indivíduo. A progênie é mencionada no
parágrafo final, “Hart tinha dois filhos, três netos” (VIEIRA, 2007). Já os obituários do
NYT citam nomes e cidades onde os descendentes residem, como no caso da notícia
de falecimento de Sam Dana, 104, o mais velho jogador da NFL.“Além de Bob Dana, de
Kenmore, ele deixa uma filha, Marti Knodel, de Orchard Park, NY, quatro netos e quatro
bisnetos. Sua esposa, Helen, morreu em 1985”. (GOLDSTEIN, 2007)13
Nos obituários brasileiros não há o parágrafo inicial que sintetiza a vida do indivíduo, e
a causa da morte, sem citação da fonte, é dada na última linha.“Ela morreu ontem de
câncer, aos 64 anos, no Rio”(VIEIRA, 2007).

Considerações
A escolha por apresentar personagens não midiáticos, que de alguma forma contribuí-
ram para sua comunidade em detrimento de estrangeiros, não chega a ser surpreenden-
te em vista das diferentes formações sociais do Brasil e dos Estados Unidos.
Há na formação dos Estados Unidos um componente de que a nação foi formada pelos
founding fathers, indivíduos letrados de boa condição econômica que emigraram em
busca de condições mais favoráveis para expressar seus ideais (TOCQUEVILLE, 2010). Por
extensão, e sobretudo a partir da Segunda Guerra Mundial, o país puxa a si o protago-
nismo de manter o sistema democrático vivo em nível mundial. Essa perspectiva ideoló-
gica está marcada na linha editorial do NYT desde suas origens e ainda o norteia, a julgar
pela fala do editor responsável pelos obituários, William MacDonald.
Não é por acaso que 14% das notícias de falecimento sejam de personagens mundiais.
Contudo, mesmo entre as locais, há protagonistas desse ideário de uma nação que se vê

12 “His death was announced by The London Review of Books, which he helped created and to which he frequently contributed”.
13 “In addition to Bob Dana, of Kenmore, he is survived by a daughter, Marti Knodel, of Orchard Park, N.Y.; four grandchil-
dren; and four great-grandchildren. His wife, Helen, died in 1985”.

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Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos

como importante no cenário geopolítico mundial, como o obituário do último dos 12 com-
petidores que ganharam medalhas no atletismo nas Olimpíadas de 1936, desacreditando
a teoria de Adolf Hitler de supremacia da raça ariana. John Woodruff, cujo obituário foi
publicado em 1 de novembro de 2007, era negro, bem como cinco outros vencedores (LIT-
SKY, 2007). Há também a história da holandesa Johtje Vos, naturalizada americana, que
salvou 36 judeus de serem mandados para campos de concentração quando a Holanda foi
invadida por Hitler (HEVESI, 2007). Nesse contexto, o obituário mais curioso é o do piloto
Paul W. Tibets Jr. que, a bordo do Enola Gay, no dia 6 de agosto de 1945, jogou a bomba
atômica sobre Hiroshima, no Japão, causando a morte de 70 mil pessoas e ferimentos em
outras 50 mil, numa cidade que tinha até então 250 mil habitantes. Apesar de a matéria
ser bem informativa, ela é encerrada com a seguinte frase: “Eu via minha missão como a
de salvar vidas (...). Eu não havia bombarbeado Pearl Harbour. Eu não havia começado a
Guerra, mas eu iria terminá-la.” (PETERSON, 2007, tradução nossa). 14
No livro It Used to Be Us (2011), o colunista de assuntos internacionais do NYT, Thomas Fried-
man, sugere que uma das possíveis causas do declínio econômico americano seria a falta de
um oponente forte, como o representado pela União Soviética no período da guerra fria. O
curioso é que, dos três obituários de estrangeiros no período analisado, dois são provenien-
tes da antiga União Soviética: o do espião Aleksandr Feklisov, morto aos 93 anos (MARTIN,
2007), e do coreógrafo Igor Moiseyev, aos 101 – ambos russos (ANDERSEN, 2007).
Dividir o título de império do mundo com outra nação pode ter sido difícil para os EUA,
enquanto a dicotomia de poder da Guerra Fria durou, mas há em alguma medida o reco-
nhecimento póstumo concedido pelos jornalistas responsáveis pelos obituários a esses
dois antagonistas de valor no cenário mundial das artes da espionagem e da dança, res-
pectivamente. O terceiro obituário, de Khun Sa, considerado então o rei das drogas do
Golden Triangle (triângulo formado por Laos, Tailândia e Miamar), não é escrito de forma
a incensar o morto (FULLER, 2007). Prova, talvez, de que a batalha contra as drogas, na
visão estadunidense, está longe de chegar a um fim.
Na parte brasileira do estudo há o obituário de um ex-pracinha da Força Expedicionária
Brasileira que lutou ao lado dos aliados na Itália na Segunda Guerra Mundial. Apesar da
menção a uma medalha ganha na luta contra os alemães, não há uma reflexão maior
sobre o papel da nação brasileira na guerra. Em vez de ressaltar a visão histórica, o obi-
tuário destaca a repercussão pessoal que participar daquele conflito causou na vida do
indivíduo (VIEIRA, 2007a). O historiador Sérgio Buarque de Hollanda (1902-1982) aponta
essa ausência de orgulho pátrio e a ênfase na vida do clã familiar em detrimento do co-
munitário na formação do povo brasileiro (2006).
Essas visões diferentes sugerem que os textos dos obituários estadunidenses empregam
histórias exemplares como uma forma de representação simbólica de uma nação que se
vê como uma liderança na manutenção de certos valores mundiais. Já no caso brasileiro,
essa noção não está na matriz da tradição católica portuguesa, que ao ocupar o país
no século XVI, privilegiava uma forma de vida baseado na ousadia individual e não no
trabalho duro, sem a visão comunitária da fundação de associações e dos cuidados com
a nova pátria que marca a tradição protestante puritana (HOLANDA, 2006). Não é de
se estranhar, portanto, que essa visão ensimesmada, voltada ao próprio umbigo, ainda
ecoe nos obituários brasileiros. Ainda que, seja necessário ressaltar, ela também tenha
seu ponto forte ao destacar anônimos ou heróis do cotidiano em vez de heróis midiáti-
cos como no caso estadunidense.

14 “I viewed my mission as one to save lives (...). I didn’t bomb Pearl Harbour. I didn’t start the war, but I was going to finish it.”

169
Monica Martinez

Referências
ABRAMO, Cláudio. A regra do jogo: o jornalismo e a ética do marceneiro. São Paulo:
Companhia das Letras, 1999.
ANDERSEN, Jack. Igor Moiseyev, 101, Choreographer, Dies. Obituaries. The New York
Times, 3 nov. 2007, Arts & Style. Disponível em: <http://www.nytimes.com/2007/11/03/
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171
Monica Martinez

172
Comunicação Comunitária:
Transformação Social e
Metodologias de Avaliação1
Fernando Oliveira Paulino, Marcelo X.A. Bizerril,
Juliana Soares Mendes, Leyberson Pedrosa e Mel Bleil Gallo
Universidade de Brasília

E
m 2001, depois de um período de greve acadêmica na Universidade de Brasília,
professores e estudantes se mobilizaram para garantir a continuidade das ativida-
des de uma rádio comunitária criada para debater e informar a sociedade sobre as
demandas educacionais dos servidores. A mobilização resultou na fundação da Ralacoco
(Rádio Laboratório de Comunicação Comunitária), uma iniciativa radiofônica com princí-
pios comunitários. Por conta de o estúdio ser localizado na Faculdade de Comunicação,
diversos estudantes e professores da área se juntaram.
Fundamentalmente, a Ralacoco respondeu à uma necessidade de práticas laboratoriais
e experimentais de rádio e estimulou a consciência acadêmica em torno da importância
de se promover o diálogo entre universidade e sociedade. Em seguida, um grupo de pes-
soas ligadas à iniciativa propôs à mesa diretora da Faculdade de Comunicação uma dis-
ciplina na qual estudantes de áreas diversas (tais como Biblioteconomia, Serviço Social,
Letras e Literatura e Geografia) poderiam se matricular para executar reflexões e ações
que propusessem transformações sociais e o desenvolvimento comunitário. Tal conceito
de desenvolvimento é baseado em Amartya Sen (2000), que considera as possibilidades
de intersecção deste conceito com liberdade e, consequentemente, a capacidade das
pessoas de escolherem a vida cujas razões considerem válidas.
A primeira aula da então recém criada disciplina — Comunicação Comunitária — teve lugar
no primeiro semestre de 2002. Entre 2002 e 2012, aproximadamente 600 estudantes univer-
sitários (a maioria de Comunicação, Biblioteconomia, Serviço Social, Letras e Literatura e Ge-
ografia) participaram em oficinas, apresentações musicais, produções de vídeo, transmissões
de rádio e outras atividades em diferentes comunidades, tais como Varjão, Mesquita e São
Roque de Minas. O projeto atualmente se foca em Planaltina — região administrativa do Dis-
trito Federal do Brasil — juntamente com diversos parceiros e reeditores sociais (TORO, 1997).
Dentre eles, existe atuação conjunta dos universitários com a Rádio Comunitária Utopia FM,
o Projeto Canto Livro, e a Associação dos Amigos do Centro Histórico, o Centro de Integração
Esporte, Arte e Cultura estão entre as organizações locais que colaboraram.
Tais parcerias tem contribuído para o desenvolvimento de diversos produtos de mobiliza-
ção social — a maioria em Planaltina e Varjão —, tais como: spots de rádio e o CD de rap
“Proteja-se, use camisinha”, com apoio da STD, do Programa Nacional do HIV e da Secre-
taria de Saúde do Distrito Federal; spots de rádio e CD de rap “Aconteça o que acontecer,
use camisinha”, com apoio da Secretaria de Saúde do Distrito Federal; spots de rádio e
1 Artigo apresentado no V Colóquio Brasil-EUA de Ciências da Comunicação. Chicago, 2012.
Fernando O. Paulino, Marcelo X.A. Bizerril, Juliana . Mendes, Leyberson Pedrosa, Mel B. Gallo

CD de rap “Existe cura para a tuberculose e hanseníase, se informe”, com apoio da Escola
Superior de Ciências da Saúde, da União dos Profissionais de Rádio, da Fundação Damien e
do Programa de Controle à Tuberculose; o curta-metragem “Um olhar sobre o Varjão”, es-
crito por moradores do Varjão; spots de rádio para divulgar atividades da campanha Abril
Indígena, com o apoio do Instituto de Estudos Socioeconômicos; spots de Rádio promo-
vendo direitos à saúde, à educação ambiental, à comunicação e à cultura; o kit audiovisual
“Trilhas Sociais” (www.trilhassociais.com) com CD Rom, 2 CDs de áudio e um DVD com
vídeos promovendo direitos à saúde, à educação ambiental, à comunicação e à cultura.

Parcerias Institucionais da Comunicação Comunitária


Diante das crescentes demandas por novas ações e a necessidade de mais recursos para
conquistar seus objetivos iniciais, a equipe do Programa de Extensão de Ação Contínua
Comunicação Comunitária e o Projeto de Pesquisa Comunicação Comunitária e Cidadania
enxergou a necessidade de consolidar mais parcerias institucionais com a Universidade de
Brasília. Depois de um ano participando nas atividades, os estudantes da universidade suge-
riram a criação da disciplina Comunicação Comunitária 2, como um mecanismo para garan-
tir a continuidade das ações educacionais, bem como de pesquisa e de mobilização social.
Assim, em 2003, foi criada tal matéria. Ela conta com estudantes que participaram e foram
aprovados em Comunicação Comunitária (ComCom 1). Eles são responsáveis por manter
o diálogo com os reeditores locais e evitar que não haverá interrupção nas atividades, en-
quanto os matriculados em ComCom 1 leem, nas primeiras seis semanas do semestre letivo,
textos e aprendem acerca dos direitos humanos, da cidadania, do trabalho de campo.
Mais à frente, em 2007, ambas as disciplinas se tornaram um projeto de mobilização
social da universidade e surgiram algumas fontes de recursos financeiros. Em 2008,
o projeto recebeu recursos do Ministério da Educação e também do Ministério da
Cultura para desenvolver atividades de promoção da saúde, da cultura, da educação
ambiental e do direito à comunicação. Em 2009, o Ministério da Cultura contribuiu
para ações que visavam o Centro Histórico de Planaltina e a revitalização do Museu Ar-
tístico da cidade. Como um projeto de caráter institucional, o Programa Comunicação
Comunitária tem promovido e valorizado encontros entre representantes dos poderes
públicos e reditores, valorizando o ato de prestar contas e por conta disso professores
e estudantes redigem relatórios que enviam a parceiros e à própria universidade. Tais
registros são fundamentais para monitorar e avaliar as atividades desenvolvidas.

Avaliação Atual
As atividades de Comunicação Comunitária são permanentemente avaliadas por meio
de encontros de estudantes e professores, registros em diários de campo, relatórios de
oficinas com jovens participantes e mecanismos de análise em sala de aula (tais como
provas e outros exercícios). Os encontros são importantes para se encontrar pontos co-
muns e para o compartilhamento de informações entre integrantes do projeto. Além
de haver pelo menos dois encontros anuais com os participantes centrais do projeto
— professores, pesquisadores, tutores e estudantes bolsistas —, cada grupo de estu-
dantes tinha autonomia para promover seu próprio encontro ao longo do semestre. Por
exemplo, a equipe responsável pela revitalização do Museu Histórico e Artístico de Pla-
naltina se junta para planejar ações quase quinzenalmente, enquanto o grupo focado na
mobilização social dos arredores da Faculdade UnB Planaltina da Universidade de Brasília

174
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos

teve importantes interações com os moradores da Vila Nossa Senhora de Fátima quando
desenvolveram diagnóstico do impacto da criação da UnB na vida do bairro.
Os diários de campo foram introduzidos em 2006 como um requisito — tal como as pro-
vas — para que os alunos fossem avaliados e aprovados na disciplina. São muito úteis para
registrar o histórico de ações e para executar uma análise comparativa das atividades de-
senvolvidas. No entanto, às vezes os estudantes não conseguem entregar o documento ou
deixam para produzi-lo ao final do semestre (quando sua visão do projeto já se transfor-
mou). Não obstante, é muito importante criar um catálogo de diários de bordo que possa
ser facilmente acessado por qualquer participante de Comunicação Comunitária.
Os relatórios de oficinas são desenvolvidos quando os estudantes promovem cursos para
jovens (para estimular o debate sobre saúde, meio ambiente e comunicação). Os jovens
participantes podiam comentar e avaliar as aulas. Esse retorno possibilitou o melhora-
mento do curso.
Entre os mecanismos de avaliação em sala de aula, estão as provas, artigos e a avaliação
escrita final da disciplina Comunicação Comunitária. Esses dispositivos são importantes
para permitir ao professor conhecer os interesses de cada estudante, bem como o que
cada um aprendeu ao longo do semestre. A avaliação escrita final reúne opiniões e
comentários que conduzem a transformações em projetos do Programa Comunicação
Comunitária, tais como já ocorreram: novas visões sobre os conteúdos em sala de aula
ou a ideia de haver um tour pela cidade antes de os estudantes começarem a trabalhar
nas ações de mobilização social, em Planaltina.
A equipe de Comunicação Comunitária também produz pôsteres e artigos científicos
que são essenciais para divulgar o projeto e analisar o monitoramento e a avaliação
dos registros (como anteriormente descrito). Além disso, alguns artigos escritos como
requisito para a especialização em Comunicação são significativos para o planejamento,
monitoramento e para o processo de avaliação na qual o Programa busca aperfeiçoar
sua metodologia de forma sistemática.
Buscando construir um método de avaliação para o Programa Comunicação Comunitá-
ria, a presente investigação se valeu de referências literárias acerca de pesquisas partici-
pativas. O projeto divide espaço com, e toma como princípios fundamentais, as noções
de investigação participativa. Barbier (2004) explica que esse tipo de pesquisa almeja o
surgimento de capacidades, de solidariedade e de responsabilidades, elementos funda-
mentais para a comunicação em vistas da transformação social e da promoção de saúde.

Monitoramento e Avaliação Participativos


Segundo Carlos Rodrigues Brandão (1999), a pesquisa participativa tem um compromis-
so intelectual com as classes populares. Dessa forma, Brandão sugere que os pesquisa-
dores se questionem sobre quais interesses podem estar por trás do conhecimento que
produzem. O método participativo também levanta questões acerca do papel do objeto
de pesquisa. Afinal de contas, se todas as pessoas influenciam no estudo e as classes
populares devem ser empoderadas pelo processo de análise, todos devem ser tratados
como sujeito – ainda que seus papéis na pesquisa sejam diferentes.
Brandão reconhece seis princípios metodológicos de avaliação participativa: 1. Autentici-
dade e comprometimento; 2. Anti-dogmatismo; 3. Retornos sistemáticos ao projeto; 4.
Retornos sistemáticos a intelectuais orgânicos envolvidos no projeto; 5. Processo de ação

175
Fernando O. Paulino, Marcelo X.A. Bizerril, Juliana . Mendes, Leyberson Pedrosa, Mel B. Gallo

– reflexão – ação; 6. Simplicidade e técnicas de diálogo. Maria Ozanira da Silva e Silva


(1999) explica que há muitos modelos diferentes de pesquisa participativa. No entanto,
a identificação dos objetivos e funções da investigação é muito importante para garantir
seu caráter participativo. Para Silva e Silva (1999), essa qualidade poderia ser assegurada
pelo papel desempenhado pelo estudo no desenvolvimento do projeto, pela participação
de uma classe popular na análise, ou pela contribuição do pesquisador na iniciativa.
René Barbier (2004) também enfatiza diversas abordagens da pesquisa participativa,
também conhecida como pesquisa-ação. Esse método deveria ser ainda mais realista,
produzir reflexão para autocrítica e avaliar resultados a partir da opção de não enfatizar
conceitos de racionalidade, objetividade e verdade absoluta. O estudo valoriza a inter-
pretação e o conhecimento prático — que pode fazer surgir novas práticas coletivas.
Uma vez que o Programa Comunicação Comunitária é baseado em uma ideia de mobili-
zação social como ato voluntário e livre (TORO, 1997), professores e estudantes buscam
novos métodos participativos que possam criar uma prática sistemática para monitorar
e avaliar as atividades desenvolvidas.

Metodologia de Avaliação: Fórum na Semana Universitária de Mobilização Social


Baseado na metodologia da pesquisa participativa, o Programa Comunicação Comunitária
tem proposto e realizado Fóruns Avaliativos, que é desenvolvido durante a Semana Universi-
tária da UnB (www.semanauniverstiaria.unb.br). O Fórum tem avaliado os diferentes proces-
sos que se deram no Programa e os produtos comunicacionais desenvolvidos.
Considerando a recomendação de Lisa Grabman e Gail Snetro (2003) de contar com uma
mistura de membros internos e externos na equipe avaliativa, o projeto tem buscado convi-
dar especialistas para o Fórum, detre eles, doadores, agentes governamentais, organizações
do setor privado e profissionais da mídia. Alguns dos convidados são: Casa Brasil (Programa
Governamental pela Inclusão Digital), NESP (Núcleo de Estudos em Saúde Pública), Utopia FM
(Rádio Comunitária de Planaltina), estudantes, líderes comunitários e jovens que participaram
em ações do projeto. Os participantes externos podem emprestar uma perspectiva nova para
o projeto, bem como pensar novos passos para o desenvolvimento do planejamento e da
avaliação. Os participantes internos são importantes porque conhecem bastante o programa
e podem melhor interpretar comportamentos e atitudes pessoais.
No entanto, “é obviamente inviável que todos participem de todos os estágios da avalia-
ção” (GRABMAN; SNETRO, 2003:184) e, por isso, participantes externos são convidados
para avaliar os produtos, enquanto participantes internos se dedicarão à avaliação dos
processos do Programa Comunicação Comunitária.
A questão guia da avaliação dos produtos é: “Como é possível melhorar os produtos do Pro-
grama Comunicação Comunitária — garantindo princípios relacionados aos direitos humanos
— para que sejam mais úteis para serem veiculados e para grupos de mobilização social em
Planaltina e fora dela?”. A questão guia e permanente da avaliação dos processos é: “O que
deveríamos mudar no projeto Comunicação Comunitária — considerando conteúdo, fases,
parcerias e estrutura geral — para nos aproximarmos ainda mais de nossos objetivos?”.
Uma árvore de objetivos (FRANCO, 2004: 70) é apresentada aos participantes, que po-
dem arranjar seus elementos, estabelecer a hierarquia dos objetivos definidos e contri-
buir com novos objetivos. Os participantes externos receberão a árvore de objetivos es-
tabelecidos para as ações que resultam nos produtos. Participantes internos trabalharão

176
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos

com a árvore de objetivos que inclui os seguintes tópicos: consolidar e intensificar um


espaço de visão crítica das práticas comunicacionais e do atual cenário da mídia brasilei-
ra; desenvolver e fortalecer a responsabilidade social dos estudantes universitários; con-
tribuir para melhorar a qualidade de vida das comunidades trabalhadas (Planaltina e Var-
jão) usando a Comunicação como uma ferramenta de mobilização social e de debate das
dificuldades da comunidade; ampliar o esforço para aumentar o acesso à comunicação.
Depois de estabelecida a árvore de objetivos, os participantes têm discutido indicadores
para cada objetivo ; Aqui, informo a sugestão de ter orçamentos . Embora o projeto
tenha estabelecido indicadores antes da produção de DVDs, CDs e livros, as definições
estavam mais focadas nos resultados e não indicavam claramente influências, efeitos ou
impactos nas transformações sociais e na saúde. Por exemplo, as ações financiadas pelo
Ministério da Cultura indicavam “matricular 50 jovens participantes em atividades de
promoção à cultura”. O número era muito importante no final do projeto para mensurar
sua efetividade, mas não é importante para descobrir não só que o que foi feito, mas
como foi alcançado. Portanto um método qualitativo é a melhor abordagem para a ava-
liação e os participantes serão convidados a reescrever os indicadores.
Uma vez que os objetivos e indicadores estejam estabelecidos, os participantes externos
receberão os produtos para analisar e oferecer sugestões baseadas nos critérios estabe-
lecidos. Os participantes internos trabalharão um indicador por vez e seus comentários
se balizarão pelas seguintes perguntas (GRABMAN; SNETRO, 2003: 194); O que acon-
teceu (o projeto atingiu o indicador)? Quais elementos do projeto funcionaram e não
funcionaram? O que ainda falta ser feito? Qual é a sua visão para o futuro? Como sua
capacidade cresceu ao longo do projeto? O que pode ser melhorado e como?
Ao final, tudo (árvore de objetivos, indicadores e debate) é registrado e um relatório final
é anualmente sistematizado com ações propostas para melhorar o projeto Comunicação
Comunitária. Um encontro com participantes internos será necessário para incluir suges-
tões no planejamento para 2012-2013 e um relatório condensado estará disponível para
os participantes externos.

Conclusões
Práticas avaliativas são essenciais para modificar e melhorar os processos de mobilização
social, assim como para adaptar os produtos comunicacionais à realidade e às necessidades
da comunidade de Planaltina. Como o Progarma Comunicação Comunitária é baseado na
ideia de igualdade e na intenção de promover o encontro entre conhecimento acadêmico e
popular, a pesquisa participativa é a chave para o estudo do monitoramento e da avaliação.
A pesquisa literária acerca da pesquisa de ação nos mostrou que avaliação pode medir
resultados, mas é também um momento privilegiado para produzir conhecimento de
grupo e para compartilhar informações e atingir um consenso. Embora a visão interna
seja muito útil para o propósito de avaliação, convidados — tais como especialistas,
doadores, agentes governamentais, organizações do setor privado e profissionais da mí-
dia — podem oferecer uma nova perspectiva para o projeto e pensar em novos estágios
para o desenvolvimento do planejamento e da avaliação.
Da mesma forma, uma vez que indicadores matemáticos podem identificar resultados
(e produtos) sem necessariamente como se constituir como ferramenta de avaliação de
transformações sociais (e de quanto o projeto se aproxima de seus objetivos principais),
a avaliação deve destacar a interpretação e os dados qualitativos. Não obstante, indica-

177
Fernando O. Paulino, Marcelo X.A. Bizerril, Juliana . Mendes, Leyberson Pedrosa, Mel B. Gallo

dores são fundamentais para permitir a comparação e para estimular ações de prestação
de contas, bastante valorizadas em projetos que recebem apoio financeiro público.

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180
A Digitalização das Transmissões
e o Futuro do Rádio como Mídia
Publicitária no Brasil1
Clóvis Reis
Universidade Regional de Blumenau – Santa Catarina

F
atores de origem tecnológica historicamente provocam impactos na distribuição
dos recursos destinados à propaganda, tal e como ocorreu no Brasil na década de
1940, com a consolidação do rádio como meio para veiculação de anúncios; em
1970, com a ascensão da televisão; em 1990, com o avanço da televisão por assinatura;
e mais recentemente com a chegada da internet.
Nesse sentido, a inauguração das transmissões digitais supõe uma revitalização do meio
rádio, ampliando as perspectivas do seu emprego como mídia publicitária, assim como
as possibilidades de participação no bolo publicitário. O novo sistema de transmissão au-
menta a área de cobertura, melhora a qualidade do áudio e propicia a oferta de serviços
de valor agregado, com o apoio de textos e imagens.
As mudanças agregam novos elementos à linguagem radiofônica, promovem o surgi-
mento de outros formatos de anúncio, criam espaços diferenciados para a inserção de
propaganda e incrementam as oportunidades de negócios para as emissoras, as agên-
cias de publicidade e os anunciantes.
O presente artigo analisa os impactos que a digitalização produzirá na propaganda vei-
culada no meio rádio. O trabalho começa com uma revisão sobre a evolução histórica da
propaganda, passa pela descrição da atual distribuição de investimentos no setor publi-
citário do Brasil, segue com uma avaliação das perspectivas abertas com a inauguração
das transmissões digitais e finaliza com uma reflexão sobre as implicações do avanço
tecnológico na linguagem radiofônica e nos formatos de anúncio.

A Evolução Histórica da Propaganda


Até a década de 1990, os manuais de marketing definiam a propaganda como uma mensa-
gem paga por um patrocinador identificado e distribuída através de meios de comunicação
de massa (Russel; Lane, 1993). Este conceito é bastante restritivo, porque separa as diversas
ferramentas do mix promocional (propaganda, promoção de vendas, relações públicas, etc.)
como se não admitisse que as ações se somam e se complementam. Além disso, não conside-
ra as diferentes atividades que a comunicação de marketing inclui na atualidade.
Com efeito, a criação e a gestão da propaganda mudaram. Algumas das transformações
mais importantes tiveram como causa o advento das novas tecnologias de comunicação, o

1 Artigo apresentado no III Colóquio Brasil-EUA de Ciências da Comunicação. New Orleans, 2008.
Clóvis Reis

desenvolvimento das técnicas de segmentação, a oferta de produtos e serviços em atenção


a demandas personalizadas e a consolidação da comunicação integrada de marketing, que
propõe uma melhor coordenação na relação da empresa com os seus diversos públicos.
Com este propósito, a propaganda incorporou estratégias e táticas de uma ampla gama
de esforços promocionais. Entre as novas ferramentas se integraram o marketing di-
reto e interativo (mala direta, telemarketing e telesserviços), o marketing relacional, o
marketing promocional (animação no ponto-de-venda, jogos promocionais, realização
de eventos e distribuição de brindes publicitários), o marketing esportivo, o marketing
com causa social, o patrocínio, etc. Estima-se que, hoje, as empresas destinem às ações
não convencionais entre 50% e 70% do orçamento de comunicação.
Definitivamente, trata-se de uma nova concepção da propaganda, porque às suas ações ha-
bituais se agregaram funções que antes se situavam em outros campos do marketing (De-
partment of Advertising, University of Texas at Austin, 2001, http://advertising.utexas.edu).
O novo marco de atuação repercutiu com intensidade nas estratégias publicitárias, em
geral, e no planejamento de mídia e nas técnicas criativas, em particular. Além disso,
supôs uma nova orientação dos anunciantes em relação aos meios de comunicação.
Como conseqüência das mudanças econômicas, tecnológicas e sociais que impulsiona-
ram esta nova concepção da propaganda, e para fortalecer a sua posição no mercado,
os anúncios no rádio também se renovaram. O meio passou a buscar soluções de co-
municação mais adequadas às necessidades dos anunciantes e esta atuação produziu
uma evolução da propaganda, que incorporou diferentes matizes para se adaptar a uma
realidade de mercado que se apresenta dinâmica e flexível.
As transformações deram origem a um novo repertório de relatos publicitários, habi-
tualmente denominados formatos de anúncio, que inclui a renovação das ações tradi-
cionais e a incorporação de modalidades híbridas de comunicação comercial. Esta ten-
dência impulsionou a emissão de mensagens que misturam conteúdos promocionais,
informativos e de entretenimento.
A inauguração das transmissões digitais supõe um novo impacto para o rádio, amplian-
do as perspectivas do seu emprego como mídia publicitária e permitindo que o meio
recupere a cota de participação no mercado publicitário. Em médio prazo, com a efetiva
convergência tecnológica e uma maior interação com o ouvinte, se prevê que o setor
experimente um novo modelo de negócio.

A Distribuição dos Investimentos Publicitários


No Brasil, os investimentos publicitários realizados em mídia somam ao redor de R$ 32
bilhões, valor que corresponde a cerca de 1% do PIB do país (Agências & Anunciantes,
2014). A distribuição dos recursos entre os meios ocorre da seguinte forma: a televisão
detém uma participação de 66,5%; os jornais ficam com 10,1% da verba; as revistas com
5,5%; a televisão por assinatura com 4,9%; a Internet com 4,4% e o rádio com 4%. O
restante do investimento se distribui entre mídia exterior, guias e listas, e cinema.
A maior parcela de investimentos publicitários no Brasil vem dos setores de Comércio e Va-
rejo; Higiene Pessoal e Beleza; Serviços ao Consumidor, Veículos, Peças e Acessórios; Merca-
do Financeiro e Seguros. Os maiores anunciantes do país são Unilever (limpeza e alimentos),
Casas Bahia (varejo), Genomma (beleza), Caixa (banco) e Ambev (bebidas). Geograficamen-
te, os investimentos se concentram no Estado de São Paulo, que detém 40% dos recursos
destinados ao investimento em mídia publicitária (Agências & Anunciantes, 2014).

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Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos

Na maioria das campanhas nacionais, com grandes orçamentos de comunicação, o rádio


assume um papel complementar nos planos de mídia, com o objetivo de agregar freqüên-
cia, multiplicar a força dos outros meios e relembrar as suas mensagens. Em geral, os anún-
cios têm a finalidade de criar imagem de marca, dar a conhecer um produto, informar a
realização de um evento ou promover uma venda. Para isso, os anunciantes empregam um
repertório de relatos publicitários circunscrito a alguns formatos de difusão mais freqüente,
como o spot, o jingle e a assinatura de patrocínio. Já nas campanhas de âmbito local ou
regional, o rádio desfruta de um peso maior no mix de mídia dos pequenos anunciantes,
prestando-se aos mais diversos objetivos publicitários. Nesse caso, destacam-se os anúncios
inseridos durante os programas, com o emprego de uma ampla variedade de modalidades
derivadas do formato genericamente denominado de testemunhal (Reis, 2008).
Entretanto, a condição do rádio como coadjuvante na distribuição dos recursos publici-
tários contrasta com o vigor que o meio demonstrou no passado, antes do surgimento
de mídias como a televisão, a televisão por assinatura e a Internet. Na década de 1940, o
rádio ocupava o segundo posto no ranking dos investimentos, atrás apenas dos jornais. O
rádio detinha uma cota de participação de 26% na divisão da verba destinada aos meios,
enquanto a soma alocada para os jornais correspondia a 38% do total (Leite, 1990).
A supremacia do rádio no mercado publicitário se estendeu até o surgimento da televisão.
Nas décadas de 1960 e 1970, a televisão se popularizou e reduziu a influência, a audiência
e uma fatia significativa do bolo publicitário do rádio. Nessa época, a cota de participação
do rádio nos investimentos publicitários caiu pela metade, baixando para 13,2% (Ortriwa-
no, 1985). A queda se manteve durante os anos 80 e o rádio entrou na década de 1990
com apenas 4,8% de participação no mercado. Com o avanço na oferta de serviços de
televisão por assinatura e a consolidação da Internet, a redução se acentuou, promovendo
uma reconfiguração na divisão dos investimentos publicitários realizados em mídia.
O histórico confirma a relação de dependência que existe entre os avanços tecnológicos,
o advento de novas mídias publicitárias e a distribuição da verba destinada à propa-
ganda. Por outro lado, gera a expectativa de que a digitalização reverta a tendência de
queda do rádio na divisão do bolo publicitário. O novo sistema de transmissão permite
a exploração de novas possibilidades de linguagem e formatos de anúncio, favorecendo
a transição para um modelo de mercado no qual o rádio assuma maior protagonismo
tanto no mix de mídia quanto no próprio mix de marketing dos anunciantes.

As Perspectivas Abertas com a Digitalização


A digitalização das transmissões melhora a qualidade do áudio e aumenta a área de cobertu-
ra geográfica do rádio, permitindo que os anúncios publicitários tenham um maior alcance,
um custo proporcionalmente mais baixo para a veiculação e uma maior freqüência de in-
serções. O alcance é a porcentagem ou o número total de pessoas expostas a um plano de
propaganda durante um determinado período. Ao atingir mais ouvintes, a tendência é de que
se reduza o custo por mil (CPM) das inserções, uma medida que compara os preços dos meios
para a emissão de propaganda. Mantendo uma tabela de tarifas comparativamente atrativa
para as agências e os anunciantes, o rádio enseja o incremento na freqüência das veiculações,
o que por sua vez potencializa as chances de que o público-alvo tenha contato com o anúncio.
Além disso, com a melhoria na qualidade do áudio, o rádio fortalece a sua audiência
móvel, permitindo que numa campanha publicitária o consumidor seja impactado em
qualquer lugar ou instante. A audiência do rádio durante o dia e fora de casa (no carro,

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Clóvis Reis

na rua, nas lojas, etc.) oferece ao anunciante a oportunidade de um contato com o con-
sumidor justamente quando ele sai para as compras e está mais suscetível às sugestões.
Pérez-Latre (2000) observa que, assim, o rádio consegue condicionar a escolha do pro-
duto e da marca. Como o efeito da propaganda se degrada com a passagem do tempo,
o anúncio radiofônico impacta o consumidor com a maior proximidade temporal possí-
vel ao momento da compra.
Tal característica constitui um diferencial positivo num cenário de saturação publicitária,
no qual as diferentes mídias concorrem pela atenção do consumidor. Efetivamente, a
proximidade temporal é uma vantagem publicitária que o rádio oferece em relação a
outros meios, como a televisão, o jornal e as revistas. Somente a mídia exterior e a pro-
paganda no ponto-de-venda competem com o rádio na diminuição do tempo entre a
exposição aos anúncios e o ato de compra.
Outro benefício decorrente da digitalização é a possibilidade de que os anúncios no rá-
dio empreguem textos e imagens, rompendo a fugacidade da propaganda radiofônica
e assegurando maior perenidade às mensagens. Hoje, o rádio compete com outras ativi-
dades para captar a atenção do ouvinte, e nem sempre obtém êxito, porque há ocasiões
em que o meio é um mero ruído de fundo, ao qual não se presta muita atenção. Com
a utilização de textos e imagens no display do aparelho receptor, haverá um reforço da
banda sonora do anúncio, favorecendo a efetividade da mensagem publicitária.
Ainda que Schulberg (1992, p. 5) defina o rádio como “o teatro da mente”, não há como
ignorar a especificidade técnica de um meio que atualmente carece de imagens. Esta
limitação constitui a sua principal desvantagem para a emissão de anúncios num merca-
do em que a identificação das marcas é crucial para o êxito comercial dos anunciantes.
Hoje, o rádio é “unimídia”, é não-visual, e necessita de uma linguagem que evoque ima-
gens visuais para tornar tangíveis aos ouvintes os produtos que anuncia. O ingresso na
era digital permite a superação da falta de imagens. O rádio se desloca de uma realidade
“unimídia”, na qual conta apenas com o som, para um universo multimídia, agregando
novos elementos de linguagem com os quais se complementa (Martínez-Costa, 2001).
Com a confirmação das novas perspectivas de atuação publicitária, se prevê ainda que o
rádio fortaleça a sua posição não apenas como suporte para a veiculação dos anúncios,
mas efetivamente adote um novo modelo de negócio. Desse modo, o seu âmbito de
ação como ferramenta promocional se conjugaria com a sua ascensão como canal de
distribuição de mercadorias e venda de produtos.
Com a convergência tecnológica e a fusão de mídias como o rádio, a televisão, o jornal,
a Internet, o computador pessoal, a máquina fotográfica, os videogames, o telefone ce-
lular, etc., aumentam as possibilidades de interação entre o ouvinte e a emissora, criando
mais oportunidades para a propaganda e os anunciantes. A nova realidade midiática e
mercadológica permitirá, por exemplo, que o ouvinte encomende um CD no momento
em que a emissora veicule uma música na sua programação.
Além disso, com o emprego das tecnologias para a interação com a audiência, o ouvin-
te acessará os espaços publicitários em momentos que não são predeterminados pela
emissora, mas que se ajustam melhor à sua disponibilidade de tempo ou interesse.
Assim, minimizam-se as conseqüências da fugacidade característica da propaganda
radiofônica analógica e se contribui para a perenidade das ações de comunicação co-
mercial no meio rádio.

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Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos

As Mudanças na Linguagem e no Formato dos Anúncios


Os elementos que formam parte da linguagem radiofônica analógica são a palavra, a mú-
sica, os efeitos sonoros e o silêncio. Cada um desses elementos expressivos é em si mesmo
extremamente rico. Quando combinados, perdem a unidade conceitual, se exerce uma
interação modificadora, que dá como resultado um novo conceito, o de linguagem radio-
fônica, cuja totalidade se percebe como algo superior à soma das partes (Prado, 1981).
Ainda que a palavra ocupe uma função de grande relevância, não se pode afirmar que
é efetivamente a parte mais importante da linguagem radiofônica. Palavras, músicas,
efeitos e silêncios resultam igualmente significativos. Todos são elementos sonoros ne-
cessários para potencializar as possibilidades expressivas do meio (Merayo Pérez, 2002).
Nesse sentido, se pode dizer que a linguagem radiofônica se situa entre o texto escrito e
o oral, porque baseia a sua carga expressiva tanto na palavra como em outros elementos
sonoros e não-sonoros. A mensagem participa tanto das condições de produção dos
textos escritos como da forma dos textos falados e não lidos (Martínez-Costa, 2002).
O ponto de partida é o fato de que o rádio é, atualmente, exclusivamente sonoro. Di-
ferentemente da televisão, do cinema, das revistas, dos jornais, da Internet e da mídia
exterior, o rádio não tem imagens. Toda a sua possibilidade de comunicação se funda na
capacidade de transformar a realidade física em imagens mentais. Por esta razão, Olmo
(1998) afirma que o rádio é o meio que permite ver com os ouvidos.
Tais condições conformam algumas características que distinguem o rádio de outros meios
e que, em conseqüência, impõem um marco próprio de funcionamento para a propagan-
da radiofônica. Neste caso, a estratégia criativa tem que se ajustar a ditas condições para
que o anúncio alcance o seu objetivo publicitário.
Com a transmissão digital, a linguagem radiofônica incorpora o texto escrito e a ima-
gem, o que lhe outorga uma nova configuração como meio de comunicação e mídia pu-
blicitária, e lhe confere características próprias de suportes como a televisão, o cinema, a
Internet, etc. Em síntese, surge um novo meio, que ultrapassa a sua condição “unimídia”
para alçar-se a uma esfera multimídia.
Assim como o rádio influenciou as rotinas produtivas na chegada da televisão ao Brasil, agora
serão os meios visuais que auxiliarão o rádio na exploração do novo repertório de elementos
da linguagem radiofônica, instituindo um marco de atuação publicitária inédita neste meio.
Efetivamente, o emprego do texto escrito e da imagem constitui um novo âmbito de ca-
racterização para a identificação e a descrição dos relatos publicitários veiculados no rádio.
Os novos elementos da linguagem radiofônica criam outras perspectivas para a exploração
das técnicas criativas, das estratégias de inserção dos anúncios, do modo de emissão das
mensagens (ao vivo, gravado, exclusivamente sonoro, conjugado com texto ou imagem,
etc.), da duração dos comerciais e da sua mescla a conteúdos de outra natureza, como pro-
dutos editoriais, de serviços e utilidade pública, de entretenimento, de venda direta, etc.
A inter-relação dos novos elementos estruturais da linguagem radiofônica resultará em
diferentes formatos de anúncio. Assim, abre-se o leque para a constituição de um novo
repertório de relatos publicitários, hoje basicamente limitado a um conjunto de cinco
ou seis modalidades (spot, jingle, assinatura de patrocínio, testemunhal, “reportagem”
ou “entrevista” publicitária, e programete), das quais derivam estruturas vinculadas em
maior ou menor grau a essa gama de formatos principais.

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Com a incorporação do texto escrito e da imagem na tela do aparelho receptor, se am-


pliaria significativamente a atual matriz de formatos, com o emprego de modalidades
similares aos anúncios veiculados nos aparelhos de telefone celular. Entre os novos for-
matos, se incluiriam “letreiros” (estáticos, intermitentes ou em movimento), “cartões”,
sobreimpressões de logomarca, patrocínio a serviços ou a informações extras sobre os
produtos ou os programas, animações gráficas e, eventualmente, pequenos vídeos com
baixa resolução de imagem. Os anúncios seriam exibidos simultaneamente aos progra-
mas, nos intervalos comerciais ou como espaços autônomos de propaganda, dentro da
nova realidade que o advento do rádio digital cria para a propaganda.
Num momento seguinte, o avanço das tecnologias de interação permitirá o emprego de
mensagens dirigidas e personalizadas, de acordo com o perfil do ouvinte. Além disso,
com a futura incorporação do GPS aos receptores, haverá a possibilidade de emissão de
um anúncio oferecendo um determinado produto justamente no momento em que o
consumidor passe pelas redondezas de um ponto-de-venda, a exemplo do que ocorre
no caso da propaganda veiculada nos telefones celulares. Uma ação dessa natureza
reforçaria uma das principais características do rádio como mídia publicitária, isto é, a
proximidade temporal entre a exposição à mensagem comercial e o ato da compra.

Considerações
A comunicação de marketing está mudando. Uma das causas da transformação é o
avanço tecnológico, que oferece novas possibilidades de contato entre a empresa e o
consumidor, consolidando expressões como comunicação holística, comunicação total e
comunicação 360 graus.
O novo marco de atuação repercutiu nas estratégias publicitárias, no planejamento
de mídia e nas técnicas criativas, supondo uma nova orientação dos anunciantes em
relação à mídia. Hoje, se estima que entre 50% e 70% do orçamento de comunica-
ção das empresas se destine às ações não convencionais de propaganda.
A reorientação dos anunciantes repercutiu na distribuição dos investimentos realizados
em mídia. Se na década de 1950 o rádio detinha uma das maiores fatias do bolo publici-
tário, atualmente a sua cota participação no mercado gira em torno de 4%.
Nesse sentido, a inauguração das transmissões digitais supõe uma revitalização do meio rá-
dio, ampliando as perspectivas do seu emprego como mídia publicitária. O sistema amplia
a área de cobertura, melhora a qualidade do áudio e propicia a oferta de produtos com
valor agregado, graças ao emprego de textos e imagens. A digitalização incorpora novos
elementos à linguagem radiofônica e possibilita o surgimento de novos formatos de anúncio,
derivados de modalidades provenientes do telefone celular e eventualmente da televisão e da
Internet, criando espaços diferenciados para a inserção da propaganda e incrementando as
oportunidades de negócios para as emissoras, as agências de publicidade e os anunciantes.
A transição definitiva do rádio para um novo modelo de negócio ocorrerá com a unifica-
ção tecnológica das mídias, que permitirá uma convergência total entre rádio, televisão,
jornal, Internet, telefonia móvel, computador pessoal, máquina fotográfica, reprodutor
de música e de vídeos, videogame, GPS, etc.
Nesse cenário, o futuro do rádio como mídia publicitária implica o fim da relação com o
anunciante baseada exclusivamente na inserção comercial, passando pela criação de novos
relacionamentos comerciais, a oferta de serviços de valor agregado e o comércio eletrônico.

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A via de mão-dupla da interatividade também supõe a reaprendizagem de antigas for-


mas de relação no diálogo do rádio com o ouvinte, condição fundamental para que o
meio conserve a sua importância social e a presença no mercado. A intimidade do rádio,
o diálogo one-to-one com a audiência, tem grande importância para o anunciante, espe-
cialmente nos tempos atuais, nos quais a segmentação adquire valor particular.
No rádio, o locutor é um amigo que aconselha, que fala no volume e no tom adequa-
dos, o que estabelece uma audiência cativa e outorga à programação radiofônica uma
aparente individualização. Nesse mundo pós-mídia de massa, o rádio é o “meio pessoal
definitivo”, como o define Schulberg (1992, p. 1), ou o “mais pessoal dos meios de mas-
sa”, como chamam Russel e Lane (1993, p. 226).

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