Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Comunicação,
Mídia e Cultura •
Estudos Brasil Estados Unidos
EDITORA
UFMS
2018
Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação - INTERCOM
Conselho Curador
José Marques Melo
Anamaria Fadul
Antonio Carlos Hohlfeldt
Cicilia Maria Krohling Peruzzo
Gaudêncio Torquato
Margarida Maria Krohling Kunsch
Maria Immacolata Vassallo de Lopes
Manuel Carlos Chaparro
Sonia Virgínia Moreira
Vice-Presidente
Ana Sílvia Lopes Davi Médola
Diretor Financeiro
Fernando Ferreira de Almeida
Diretor Administrativo
Sonia Maria Ribeiro Jaconi
Diretora Científica
Iluska Maria da Silva Coutinho
Diretora Cultural
Adriana Cristina Omena dos Santos
Diretor Editorial
Felipe Pena de Oliveira
Diretora de Documentação
Ana Paula Goulart Ribeiro
Diretor de Projetos
Tassiara Baldissera Camatti
Copyright © 2018 dos autores dos textos cedidos para esta edição à Sociedade Brasileira
de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (INTERCOM) e à Editora da Universidade
Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS).
Reitor
Marcelo Augusto Santos Turine
Vice-Reitora
Camila Celeste Brandão Ferreira ÍtavoOrganização editorial
Sonia Virgínia Moreira e Daniela Cristiane Ota
Revisão
Sonia V. Moreira e Daniela C. Ota
Inclui bibliografía.
e-ISBN 978-85-8208-112-9 (e-book/pdf)
7 Apresentação
181 A digitalização das transmissões e o futuro do rádio como mídia publicitária no Brasil
Clóvis Reis
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos
Apresentação
Uma década de estudos
Brasil-Estados Unidos no campo da comunicação
Sonia V. Moreira (UERJ/Intercom) e Daniela Ota (UFMS)
A
história dos colóquios binacionais da Sociedade Brasileira de Estudos Interdisci-
plinares da Comunicação tem raízes no projeto pioneiro Estudo Comparado dos
Sistemas de Comunicação Social no Brasil e no México, idealizado e coordenado
por José Marques de Melo, que reuniu dez pesquisadores brasileiros e dez pesquisadores
mexicanos com investigação em campos específicos da Comunicação, em encontros no
Brasil (São Paulo) e no México (Guadalajara). A estrutura atual, que reúne a cada dois anos
pesquisadores selecionados em torno de temas comuns, teve início em 1992, com o I Coló-
quio Brasil-França, uma promoção conjunta Intercom-SFSIC (Societé Francaise des Sciences
de l’Information et de la Communication). Desde então, e ao longo dos anos, 11 países
compartilharam com o Brasil o formato que hoje é uma marca institucional da Intercom.
Os colóquios binacionais constituem espaços diferenciados para o debate científico, pois
seleciona um número constante de participantes (no máximo dez em cada país) com
contribuições relevantes para a pesquisa em Comunicação e campos conexos. O forma-
to do diálogo internacional entre pares permite apresentações mais longas e debates
aprofundados, nem sempre possível em eventos acadêmicos. A periodicidade bienal é
outra característica dos colóquios binacionais, sediados de modo alternado em cada um
dos dois países. No Brasil, os colóquios estão entre as atividades que antecedem o con-
gresso nacional anual da Intercom. Cada colóquio conta com dois coordenadores, um
pesquisador brasileiro e um pesquisador do país copromotor. São eles que respondem
pela seleção e organização da delegação de investigadores.
O Colóquio Brasil-Estados Unidos de Estudos da Comunicação se reúne regularmente des-
de a primeira edição em 2004. Para este primeiro volume do grupo Brasil-EUA foram se-
lecionados trabalhos de autores que participaram pelo menos duas vezes dos encontros
binacionais assim distribuídos ao longo do período de dez anos e seis colóquios: em 2004
na Universidade do Texas em Austin; em 2005 na Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(RJ); em 2008 na Universidade Tulane em Nova Orleans; em 2010 na Universidade de Caxias
do Sul (RS); em 2012 na Universidade de Paul em Chicago; e em 2014 em Foz do Iguaçu (PR).
O artigo que abre este volume foi apresentado em 2004 por Sonia V. Moreira, no 1º
Colóquio Brasil-Estados Unidos de Ciências da Comunicação, na Universidade do Texas
em Austin. Dos 40 papers foram selecionados para debater o tema Brazil and the USA:
Reviews and Perspectives on 50 Years of Academic Cooperation in the Field of Commu-
nication, 38 foram efetivamente apresentados naquele que foi o primeiro encontro do
Colóquio (13 pesquisadores brasileiros e 25 investigadores dos Estados Unidos). O texto
“Evolução das leis para radiodifusão, o caso brasileiro”, recupera alguns dados de con-
texto das leis que normatizam rádio e TV no Brasil, tal como se apresentavam em janeiro
de 2004, com ênfase no rádio. A pesquisa mostra que até aquele momento, no período
de 40 anos compreendido entre 1963 e 2003, assim como ainda hoje, a legislação para o
rádio e a televisão estava construída em expedientes capengas, incompletos ou parciais,
7
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos
visando manter minimamente atualizados regras e limites legais para a atuação desses
meios no período de vigência das concessões.
Em seguida, Mark Goodman, da Universidade do Estado do Mississipi, analisa como a
cultura de consumo contribuiu para que a economia dos Estados Unidos se tornasse a
maior do mundo. Para o autor, o preço tem sido alto considerando o senso de justiça do
século XXI: aquecimento global e gases de efeito estufa, economia baseada na impor-
tação de petróleo e trilhões de dólares em dívida nacional estão entre as consequências
colaterais de uma economia direcionada ao consumo e abastecida pelo consumo de
mídia. O artigo revê a história da rede de rádio e TV NBC e sua hegemonia cultural. Ao
comparar e contrastar a história da NBC com o papel da TV Globo no Brasil e no mundo,
ele observa que o impacto da TV Globo extrapola a sociedade brasileira ao desempenhar
papel relevante na criação de uma cultura hegemônica mundial.
Maria José Baldessar, Pedro Vieira Dellagnello e Giovanni Letti, da Universidade Federal de
Santa Catarina, discutem no seu artigo conjunto a busca de alternativas pelas empresas
de comunicação para vencer a crise de audiência/de confiança que se estabelece a partir
da década de 1990 e se acentua com a ascensão da internet e seu ferramental a partir dos
anos 2000. Ao entender o jornalismo como território, espaço simbólico institucionaliza-
do, no qual existem regras, costumes e senso de ética que regem a convivência interna,
estabelece que as bases históricas desse território estão nos métodos de produção e
de transmissão de informação, que evoluem conforme e/ou apesar do desenvolvimento
tecnológico. Discutem também como essas experiências resgataram o sentido de perten-
cimento comunitário ao desafiar os limites editoriais impostos pelas redes globalizadas.
Joseph D. Straubhaar, da Universidade do Texas em Austin, argumenta em seu artigo
que há diversas camadas de comercialização de gênero e proto-formatos de elementos
de programas de televisão, agora formatos franqueados comercialmente. Concorda que
algumas tradições na TV, como o melodrama, tendem a ser categorias amplas e abran-
gentes com longa história, anterior à televisão, como diz Martín Barbero (1993). Assim,
gêneros específicos da produção de TV, como a soap opera norte-americana e a teleno-
vela latino-americana, puderam se desenvolver dentro dessa tradição maior.
O artigo de Daniela Cristiane Ota e Mario Luiz Fernandes divulga os resultados da primei-
ra fase do projeto de pesquisa intitulado “Perfil da pequena imprensa de Mato Grosso
do Sul”. Disponível na internet desde 2011, o Portal de Mídia (www.portaldemidia.ufms.
br) agrega dados de 126 jornais localizados e catalogados em 44 municípios do estado.
Os autores analisam características como periodicidade, tiragem, nº de páginas, nº de
cidades onde os jornais circulam, período de surgimento dos jornais, formato e tipo de
impressão, entre outras particularidades.
Mike Griffith e Vicki Mayer, da Universidade Tulane em Nova Orleans, discorrem sobre o
projeto MediaNOLA, cujo objetivo era educar estudantes sobre as tradições locais, capa-
citando-os para serem produtores e mantenedores do conhecimento cultural. A preserva-
ção da cultura da cidade se tornou importante tópico de discussão após a passagem do
furacão Katrina em 2005. O projeto começou em 2009 com a intenção de fazer os estu-
dantes capturarem informações geográficas e históricas em websites diretamente relacio-
nados com a produção de mídia (editores, espaços musicais, estúdios de gravação etc.).
O texto de Alice Mitika Koshiyama, da Universidade de São Paulo, retrata o ensino de jorna-
lismo nos Estados Unidos e no Brasil a partir das histórias de Joseph Pulitzer e Cásper Libero,
sugerindo os dois proprietários de organizações jornalísticas como figuras representativas
8
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos
para a avaliação do campo de formação dos jornalistas nos dois países. Assim, a história
do empresário e jornalista Joseph Pulitzer mostra a sua importância para o jornalismo na
construção do capitalismo industrial dos EUA e como o seu legado permanece no ensino de
jornalismo ainda no início do século XXI. No Brasil, Alice Mitika identifica em Cásper Líbero,
o jornalista e empresário da imprensa paulistana que morreu em 1943 e deixou sua herança
em testamento para a Fundação da Escola Superior de Jornalismo Cásper Líbero.
O estudo de caso apresentado por John R. Baldwin aborda a cultura de modo amplo e
aplica definições da Tropicália, movimento musical com início no final dos anos 1960
no Brasil. O movimento foi, no princípio, vaiado pelo público e reprimido pelo regime
militar, mas eventualmente cresceu para representar as forças da globalização na cena
musical brasileira. Sua reflexão sobre temas e tensões culturais, bem como sobre o papel
da economia de mercado e o envolvimento do Estado na Cultura, o transformaram em
um estudo de caso privilegiado para a compreensão do conceito.
O objetivo do artigo de Gisely Valentim Vaz Coelho Hime é realizar uma breve reflexão
sobre a propagação da cultura norte-americana na imprensa brasileira no período Vargas,
com base em estudo sobre o vespertino paulistano A Gazeta, o jornal mais moderno do
Brasil no final dos anos 1930. Verifica como a publicação responde à Política de Boa Vizi-
nhança e ao Panamericanismo do governo de Franklin D. Roosevelt; o registro das visitas
de personalidades da sociedade dos Estados Unidos à Gazeta a partir de 1940; a realização
das conferências e filmes no auditório de A Gazeta; as missões de jornalistas brasileiros e as
viagens de Cásper Líbero, proprietário e editor do vespertino, aos Estados Unidos; e, final-
mente, o registro da propaganda da cultura norte-americana nas páginas do vespertino.
Samantha Joyce, do Saint Mary’s College na Califórnia, examina a série de televisão CSI:
Miami, que em 2006 recebeu o título de “programa de TV mais popular do mundo”. Um
estudo de audiência em 20 países estimou que 50 milhões de pessoas assistissem ao pro-
grama. No mesmo ano, um dos episódios teve como cenário o Rio de Janeiro. O objetivo da
pesquisa era o de revelar como o Brasil, tradicionalmente representado por meio de este-
reótipos, foi retratado na série. Samantha destaca que a preocupação com os estereótipos
na TV tem a ver com o resultado das apresentações, que pode incluir atitudes negativas do
público em relação a determinados grupos, dando força a estereótipos raciais e sexuais.
O artigo de Maria Luiza Cardinale Baptista, da Universidade de Caxias do Sul, adota um
conjunto de estratégias da cartografia para captar o sensível do real, o princípio da pai-
xão-pesquisa em Comunicação, a busca de ‘costura’ da trama entre os fenômenos ana-
lisados e o roteiro. Ela deixa claro que, longe de significar uma visão pueril ou um termo
carregado de ingenuidade, sem maior amadurecimento, para ela o ‘objeto paixão-pes-
quisa’ representa uma convicção: o sujeito só produz se deseja, se algo o mobiliza, o que
faz assim com que a paixão seja plena de dispositivos de mobilização.
Laura Robinson, da Universidade Santa Clara, na Califórnia, observa a construção de
categorias de identidade cosmopolita utilizadas para dar sentido às identidades das
vítimas do 11 de setembro. Sua referência são os estudos que mostram a importância
da internet como espaço de coleta de dados sobre narrativas de sofrimento (como em
Anderson, 2014). O capítulo segue essa tradição ao analisar as contribuições postadas
em fóruns oganizados por jornais emblemáticos no Brasil, na França e nos Estados
Unidos – O Estado de S. Paulo, Le Monde e The New York Times – na semana seguinte
aos ataques do atentado de 11 de setembro de 2001. Explora assim como os indivíduos
processaram uma identificação que criou categorias abrangentes de identidade a fim
de expressar solidariedade. A identidade cosmopolita apresentada no trabalho aponta
9
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos
10
Evolução das Leis para
Radiodifusão, o Caso Brasileiro1
Sonia Virgínia Moreira
Universidade do Estado do Rio de Janeiro / INTERCOM
E
sta apresentação recupera alguns dados sobre o contexto das leis para a radio-
difusão no Brasil, tal como se apresentavam em janeiro de 2004, com ênfase no
rádio. É, em parte, resultado de estudos realizados para pesquisa de doutorado na
Universidade de São Paulo, que teve entre os objetivos identificar e registrar o estabele-
cimento e o avanço das leis e das tecnologias do rádio no Brasil e nos Estados Unidos e,
assim, fazer uma análise comparada do meio de comunicação nos dois países.
A apuração complementar empreendida para este texto mostra que no período de 40 anos,
entre 1963 e 2003, a legislação para o rádio e a televisão foi construída com base em expe-
dientes capengas, incompletos ou parciais, visando manter minimamente atualizados regras
e limites legais para a atuação desses meios no período de vigência das concessões. Uma lei
geral para o conjunto da mídia continua como projeto a ser executado. Antes, precisa antes
ser debatido pela sociedade e aprovado pelo Legislativo para então se transformar em Lei
com a sanção do Executivo, representado pela figura do Presidente da República.
No âmbito parlamentar, a Câmara Federal registra desde a década de 1980 o crescimento re-
gular da parcela de deputados proprietários ou controladores efetivos de emissoras de rádio e
de televisão. Destacam-se nesse grupo que tem participação na mídia regional os deputados
evangélicos. A maioria deles chegou ao Congresso pela exposição pessoal em programas de
rádio em emissoras controladas por denominações religiosas e em canais de televisão pró-
prios ou com horário arrendado. Independente de tendência ideológica ou crença religiosa,
esses parlamentares encontram-se na mesma situação explícita de conflito de interesses. Ain-
da assim, seguem aptos a participar da formulação de leis para a mídia nacional.
No domínio do Executivo, a bandeira defendida pelos atuais gestores federais durante
a campanha presidencial, de mudanças inéditas na espinha dorsal da gestão pública
do País, não corresponde à concepção governamental demonstrada no campo da co-
municação eletrônica durante o primeiro ano de governo de Luiz Inácio Lula da Silva.
O Ministério das Comunicações, por exemplo, manteve-se na quota dos arranjos polí-
tico-partidários com a indicação para o cargo do deputado federal Miro Teixeira, sem
partido na época. A característica do Ministério como um posto partidário foi reforçada
em 2004 com a substituição de Teixeira por outro deputado federal da base aliada do
governo: Eunício Oliveira, do PMDB. Próspero empresário do Nordeste, o ministro em-
possado no dia 23 de janeiro era oficialmente dono de três emissoras de rádio: duas
no estado do Ceará e uma em Goiás. Não foi o primeiro ministro a ter entre as suas
propriedades canais radiofônicos fiscalizados por órgãos do Ministério que passou a
coordenar, uma situação bizarra garantida em lei.
1 Artigo apresentado no I Colóquio Brasil-EUA de Ciências da Comunicação. Universidade do Texas em Austin, 2004.
Sonia Virgínia Moreira
Breve Cronologia
Entre 1963 (utilizando como marco a instituição do Regulamento dos Serviços de Ra-
diodifusão) e 2003, com o anúncio pelo governo federal da adoção como critério para
distribuição de canais comunitários a localização das emissoras em um dos 600 muni-
cípios brasileiros atendidos pelo programa social Fome Zero, podem ser apontados os
seguintes elementos de uma linha do tempo que mostra a progressiva, e claudicante,
evolução das leis para a radiodifusão brasileira.
12
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos
13
Sonia Virgínia Moreira
14
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos
Quarenta anos depois da entrada em vigor do último texto exclusivo para o setor, a atu-
alização e adaptação das regras existentes traduzidas em capítulos de uma lei geral para
a radiodifusão, apesar de imprescindíveis mantêm-se indefinidas.
Entre os inúmeros e frequentes casos que confirmam a urgência para o aperfeiçoamento
legal são consideradas a seguir três circunstâncias distintas. Todas servem para definir
com exatidão em que pontos a existência de uma lei geral pode fazer diferença – se não
pela oportunidade, pelas consequências que podem gerar.
• Caso 1
A previsão: setores do empresariado da radiodifusão acreditam que a tecnologia do
rádio digital não deve demorar a ser implantada no Brasil. Existe interesse em melhorar
a qualidade da transmissão das emissoras, em especial as AM, maiores favorecidas com
a migração do padrão analógico. No caso da TV, a escolha de um padrão digital parece
mais próximo de um desfecho. A situação: caso aconteça em um futuro próximo, a
implantação do rádio digital poderá ocorrer no momento em que se define no Brasil
a participação estrangeira nos meios de comunicação. Os empresários estão abertos
tanto para a tecnologia quanto para os recursos externos, que aportam no Brasil no
momento em que as emissoras estão necessitando de implementos técnicos e finan-
ceiros. A questão: sem a disposição em lei da maneira como se dará a inauguração do
sistema digital, como ficarão a propriedade e o controle dos meios eletrônicos no Brasil?
• Caso 2
A previsão: projeto para regulamentar a regionalização da programação cultural, ar-
tística e jornalística nas emissoras de rádio e TV, uma proposta de emenda ao Artigo
221 da Constituição, tramita desde 1991 no Congresso. A pressão para que seja apro-
vada nova redação para o Artigo constitucional se intensificou em 2003, com apoio
inclusive do Ministério da Cultura. A situação: o processo de desconcentração da
economia brasileira torna cada vez mais forte o mercado regional. O Brasil passa por
um período de fortalecimento das unidades federativas, com os estados descobrindo
fontes de recursos naturais ou encontrando caminhos de consolidação regional. As
identidades dos “vários Brasis” apresentam-se renovadas, revigoradas e valorizadas.
A tendência da programação na mídia eletrônica é a de se adaptar ao novo cenário.
A questão: sem a disposição em lei das orientações a serem seguidas em relação à
produção e distribuição regional, como garantir que os canais de rádio e televisão
possam cumprir efetivamente a carga horária e a variação de conteúdo desejada?
• Caso 3
A previsão: em janeiro de 2004, o Ministério das Comunicações concedeu à Universi-
dade Federal de Minas Gerais o direito de ter a sua própria rádio. A portaria ministerial
autorizou um canal FM para uso exclusivamente educativo. A concessão só foi possível
porque a Universidade firmou um convênio com a Radiobrás, concessionária original,
para operar o canal. A situação: até então havia sido impossível à Universidade admi-
nistrar a sua própria rádio porque um artigo de lei promulgada em 1975 impede que
órgãos federais sejam concessionários diretos de serviços de radiodifusão. A questão:
durante quanto tempo ainda textos defasados de leis superadas continuarão a ser obs-
táculo para a evolução do rádio como instrumento socializador de informação, cultura e
educação? Ao impedir o acesso de instituições públicas de ensino superior às vantagens
15
Sonia Virgínia Moreira
de um meio simples, fácil, barato e com retorno certo, perdem a universidade e o públi-
co ao qual deveria ser devolvido o investimento pago na forma de impostos.
Esses são alguns dados recentes coletados na cobertura jornalística ocasional sobre te-
mas relativos às telecomunicações. O modo aleatório como o assunto chega ao público
é derivado do próprio tratamento dispensado à necessidade de revisão das leis no Brasil.
As considerações apresentadas neste texto levam à conclusão de que, no caso brasileiro,
a evolução das leis compreende desde a baixa consciência do eleitor sobre os atributos
essenciais a um bom legislador – que conduz ao Congresso representantes no mínimo
equivocados quanto ao significado do que seja assunto de interesse público – até a di-
ficuldade de acesso à informação pública. Em relação a este segundo ponto, apesar da
divulgação na site oficial do Ministério das Comunicações de um documento com cerca
de 500 páginas contendo a relação dos proprietários de emissoras de rádio e TV no Brasil
disponível no segundo semestre de 2003, ainda é muito difícil saber quem controla de
verdade a maioria dos canais em operação.
Referências
BALLERONI, Ana. “Panorama da Midia 2002/2003”. Seminário de Comunicação e Marke-
ting, 29 de abril de 2003.
CAMARGOS, Isadora. A era digital do rádio. Correio Brasiliense, 20 de janeiro de 2004.
“FRAGA comenta critérios para novos canais”. Sintonia Total, Ano 1, nº 6, 14 de outubro
de 2003, p. 5.
“GOVERNO autoriza criação da Rádio UFMG”. Universidade Federal de Minas Gerais,
Assessoria de Imprensa. Belo Horizonte, 20 de janeiro de 2004.
“GOVERNO oficializa concessão de 380 rádios ao Fome Zero”. Folha de S. Paulo, 8 de
outubro de 2003, p. A4.
JUNGBLUT, Cristiane. “Estréia no rádio ‘Café com o presidente’”. O Globo, 15 de novem-
bro de 2003, p. 8.
“INOVAÇÕES desafiam Anatel”. Especial JB. Jornal do Brasil, 14 de dezembro de 2003.
MANIFESTO pela Regionalização da Programação Cultural, Artística e Jornalística. Bra-
sília: Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), outubro de 2003.
MATTOS, Laura. “Governo usa Fome Zero como critério para distribuir rádios”. Folha de
S. Paulo, 6 de outubro de 2003, p. A4.
____________. “Cotado para Comunicações é dono de emissoras de rádio”. Folha de S.
Paulo, 6 de janeiro de 2004, p. A5.
“MERCADO & Demografia”. Mídia Dados 2003. São Paulo: Grupo de Mídia, dezembro
de 2004.
“MIRO investiga fraude nas concessões de rádio”. Sintonia Total, Ano 1, nº 3, julho de
2003, p. 3.
MOREIRA, Sonia V. Rádio em Transição – tecnologias e leis nos Estados Unidos e no Bra-
sil. Rio de Janeiro: Mil Palavras, 2002.
16
Radiodifusão e Cultura do Consumo1
Mark Goodman
Universidade Estadual do Mississippi
A
NBC (National Broadcasting System, ou Sistema Nacional de Radiodifusão) domi-
nou a mídia norte-americana durante os primeiros 25 anos do rádio. Esta domi-
nação levou à criação de uma cultura do consumo, que promoveu os interesses
econômicos da NBC e ajudou a indústria radiofônica a se tornar uma indústria de milhões
de dólares. A cultura do consumo contribuiu para que a economia dos EUA se tornasse a
maior do mundo. O preço tem sido alto, pelo menos no senso de justiça do século XXI.
Aquecimento global e gases de efeito estufa, uma economia baseada na importação de
petróleo, e trilhões de dólares em dívida nacional são alguns dos efeitos colaterais de uma
economia direcionada ao consumo, abastecida pelo consumo de mídia. No Brasil de hoje,
o Império da TV Globo ainda tem uma influência mais forte sobre a sociedade brasileira do
que a NBC teve no passado nos Estados Unidos. O alcance da TV Globo é mundial.
Uma revisão na história da NBC mostra a relação entre a dominação midiática e a hegemo-
nia cultural, pelo menos no caso norte-americano. Uma avaliação do alcance cultural e eco-
nômico da TV Globo pode revelar domínio semelhante sobre a cultura brasileira hoje. Este
artigo irá rever a história da NBC e como ela ganhou hegemonia cultural. Ao comparar e
contrastar a história da NBC para o papel da TV Globo hoje no Brasil e no mundo, é possível
observar que, em relação à TV Globo, o impacto da corporação vai muito além da socieda-
de brasileira, desempenhando um papel na criação de uma cultura hegemônica mundial.
1 Artigo apresentado no III Colóquio Brasil-EUA de Ciências da Comunicação. New Orleans, 2008.
Mark Goodman
ticos como “The Radio Monopoly”, algo como a máfia do rádio. Em janeiro de 1926, Hoover
enviou uma carta ao presidente Calvin Coolidge firmando sua oposição à linguagem anti-
-monopólio contida no projeto de lei de Wallace White. Hoover advertiu Coolidge que a dis-
posição anti-monopólio provavelmente “devastaria” a RCA, se esta viesse a ser condenada
pela Justiça como um monopólio de rádio. Ao invés de o secretário do comércio lidar com as
questões de monopólio, Hoover aconselhou Coolidge, que tais questões deveriam ser deixa-
das nas mãos dos tribunais de justiça. [1] Dill acreditava que a publicidade e as redes criaram
o melhor entretenimento do mundo. [2] White disse ao congressista William R. Green que
ele areditava que a regulamentação da publicidade seria um tipo de censura. [3] Durante o
período em que White negociava com Dill sobre uma versão de discussão do projeto de lei,
White permaneceu em contato com líderes da indústria. William Brown, vice-presidente e
procurador-geral da RCA, marcou uma reunião em outubro entre David Sarnoff, presidente
da NBC, e White. [4] White também solicitou uma reunião com Lloyd Espenschied, do setor
de Desenvolvimento e Pesquisa da American Telephone and Telegraph Co. (AT&T), a Com-
panhia Americana de Telefones e Telégrafos, para discutir o impasse entre White e Dill sobre
a criação da comissão de rádio no comitê de discussão. [5] White explicou sua filosofia em
um discurso de campanha, “Estamos vivendo em uma época de grandes complexidades
na qual o Governo toca os negócios e o indivíduo de mil maneiras inimagináveis nos dias
antes de ontem”. Estas mudanças sociais, continuou White, exigiam regulação governamen-
tal. [6] Em última análise, o presidente Calvin Coolidge assinou uma lei da que ele não gosta-
va. [7] O clamor público em 1926 pela regulação quase não tocou no papel da publicidade.
A linguagem da Lei do Rádio não parece ter uma relação causa-efeito na condução a uma
cultura do consumo. No entanto, McChesney apontou que na década de 1930, a base eco-
nômica da radiodifusão foi construída em torno de dólares da publicidade e as outras esta-
ções de rádio foram tiradas do ar. [8] Smulyan argumenta que quando o rádio aceitou a pu-
blicidade, também aceitou certas suposições sobre a publicidade, estabelecendo, assim, um
movimento na forma e no conteúdo da radiodifusão. “A publicidade forçou o rádio a apelar
para a audiência de massa, ao invés do público (ainda que bastante grande) especializa-
do”, explica Smulyan. O papel da programação era conectar o conjunto de anúncios. [9] En-
tão, o quanto crucial foi a Lei do Rádio de 1927 no desenvolvimento da cultura do consumo?
O sociólogo Christopher Lasch, autor de A Cultura do Narcisismo, acredita que os anos 1920
foram uma década de mudança cultural importante. [10] A cultura americana no século 19 es-
tava baseada em uma sociedade cristã, rural e agrícola. Durante os anos 1920, a cultura ame-
ricana evoluiu para uma cultura urbana midiática centrada na ideologia do consumo. Estas
mudanças culturais eram, obviamente, econômico, sociais e políticas. No entanto, as mudan-
ças mais importantes foram ideológicas. Os valores do consumo tornaram-se a ideologia do-
minante da sociedade americana, substituindo os valores do individualismo e independência.
Além esclarecer o registro histórico, determinar o papel do rádio na cultura do consumo
tem duas reflexões contemporâneas. Primeiro, grande parte da Lei do Rádio foi incorpo-
rada à linguagem da Lei das Comunicações de 1934, e muito dessa lei foi incorporada
na Lei das Telecomunicações de 1996. Simplificando, os pressupostos escritos na Lei do
Rádio permanecem como a pedra angular da regulação da radiodifusão hoje. Segundo,
o modelo econômico do rádio primitivo, tal como adaptado em 1960 para a televi-
são, continua a ser a pedra angular da economia de radiodifusão, apesar desse modelo
estar submetido a um desafio significativo. As pessoas estão optando em não ouvir ou
assistir anúncios e preferindo pagar taxas de assinatura para a televisão a cabo, iPhones,
iTunes e Netflix. Quanto melhor entendermos as origens do modelo de publicidade,
melhor podemos compreender a presente evolução/revolução digital na comunicação.
18
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos
19
Mark Goodman
a problemática sobre como gerar programação o suficiente para ficar no ar 24 horas por
dia, sete dias por semana, 365 dias por ano. [23] A NBC ofereceu uma solução por meio
da oferta de programas de alta qualidade. A FRC apoiou o modelo NBC. O FRC licenciou
emissoras que poderiam fornecer uma gama completa de programação e queria tirar as li-
cenças dos amadores e das pequenas empresas de radiodifusão. [24] A maneira mais fácil de
resolver as demandas de programação era se tornar um afiliado ou da NBC ou CBS, fundada
em 1928. As redes forneciam toda ou a maior parte da programação diária e pagava as difu-
soras pela execução de seus programas. Além disso, as redes dividiam o tempo de publicida-
de com as estações locais. Uma afiliada poderia ser paga pela rede pela execução da sua pro-
gramação, e gerar receita com a venda de publicidade. Em suma, um proprietário de estação
poderia deixar os dólares entrarem na estação. Ou, a estação independente poderia criar
seus próprios e dispendiosos programas e vender anúncios locais por menos dinheiro, visto
que poucas estariam ouvindo. A maioria dos donos de rádio seguiram os dólares das redes.
Como McChesney argumenta de forma eficaz, o FRC determinou que o interesse público era
melhor atendido pelas principais corporações de rádio. [25] Messere alega que a RCA estava
no comando do rádio após a aprovação da Lei do Rádio, e usou sua influência para promover
os seus objetivos econômicos. “[Os] membros do trust de rádio mantinham as estações de
rádio mais potentes, desenvolveram a cadeira da radiodifusão, e tinham o conhecimento de
engenharia para melhorar estas estações rápida e dramaticamente. A RCA se opôs às polí-
ticas de constituição e redistribuição que desfavoreciam as grandes estações e sua rede de
rádios.” [26] Como efeito, o critério do interesse público deixou as decisões da programação
para as redes, que revogaram essa responsabilidade para os anunciantes. Os anunciantes
não queriam associar seus nomes e seus produtos com a programação controversa. Em vez
disso, preferiram associar os seus nomes e produtos com a ideologia da classe média branca.
A ideologia apresentada pelas redes e até mesmo pelas estações independentes dependia
de receitas de publicidade que apresentassem valores coerentes com a cultura do con-
sumidor. Produtos poderiam ser comprados para resolver qualquer problema enfrentado
por um indivíduo. O entretenimento apresentava o problema como uma oposição biná-
ria, e os anúncios ofereceram as soluções ideologicamente corretas.
Finalmente, o papel do FRC contribuiu para o desenvolvimento de uma cultura do consu-
mo. O FRC foi designado para determinar o interesse público, conveniência e necessidade, um
conceito que Congresso deixou para o FRC definir. O primeiro conjunto de comissários do FRC
foram nomeados por Hoover e comissários posteriores pelo Congresso. O FRC era a comissão
de irmãos mais velhos a quem as emissoras tinham que responder.
O Congresso esperava que o FRC mantivesse vozes políticas radicais fora do ar. [27] O
Congresso não queria que evolução fosse discutida. [28] Obscenidade não deveria ser
permitida. [29] O Congresso não queria que rádio fosse usado como uma base de poder
para uma figura política. [30] O Congresso espera que o FRC usasse seu poder para servir
as necessidades de defesa da nação, para governar o rádio em momentos de emergên-
cia, e para educar o público sobre questões de interesse nacional. Em todas as situações,
sob o olhar vigilante do FRC, o rádio poderia ser usado para o entretenimento e para fins
publicitários, como já era utilizado.
A Cultura do Consumo
A década de definição da cultura do consumo foi a década de 1920. Vários fatores se
uniram para criar uma nova ordem social.
20
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos
Assim como a cultura do consumo tornou-se dominante em 1920, foi atrasada pela
Grande Depressão e depois da Segunda Guerra Mundial. A mudança cultural se tornou
uma revolução cultural de direito-pleno depois de 1945. A capacidade industrial criada
durante a Segunda Guerra Mundial despejava automóveis, geladeiras, máquinas de la-
var, e novas casas para veteranos voltando para os Estados Unidos com sua remuneração
militar. Suas novas esposas tinham salários significativos na economia de guerra, boa
parte disso devido ao racionamento em tempo de guerra. A televisão se tornou o princi-
pal meio na cultura americana em 1960, apresentando o estilo de vida de classe média
para milhões da noite para o dia. Para Lasch, o impacto cultural foi devastador. Lasch
descreve a cultura americana de 1970 da seguinte forma: “Desde que ‘a sociedade’ não
tenha futuro, faz sentido viver apenas para o momento e fixar nossos olhos no nosso
próprio ‘desempenho privado’, a fim de nos tornarmos conhecedores da nossa decadên-
cia, rumo à cultura da ‘auto-atenção transcendental’”. [31]
A cultura do narcisismo está baseada sobre a premissa de que todos os problemas pes-
soais podem ser resolvidos com a compra do produto correto. No entanto, quando o
creme para o rosto deixa de fazê-lo, o indivíduo tem que passar para o próximo produto,
e o próximo, e o próximo. Períodos momentâneos de satisfação do produto e felicidade
são seguidos por decepção, iniciando uma outra seqüência de procura-e-compra. Citan-
do Lasch: “O consumo promete preencher o vazio doloroso; daí a tentativa de cercar os
produtos com uma aura de romance, com alusões aos lugares exóticos e experiências vívi-
das; e com imagens de seios femininos a partir da qual todas as bênçãos fluem”(p. 72). “A
21
Mark Goodman
vida se apresenta como uma sucessão de imagens ou sinais eletrônicos, de impressões re-
gistradas e reproduzidas por meio de fotografia, filmes, televisão e dispositivos de grava-
ção sofisticados . A vida moderna é tão completamente mediada por imagens eletrônicas
que não podemos ajudar a responder aos outros como e se suas ações - e nossas próprias
- foram sendo gravadas e transmitidas simultaneamente para uma audiência invisível ou
guardados para um exame minucioso em algum momento futuro “(p. 47).
A sociedade está organizada em torno do consumo direcionado ao id (p. 177-178), expli-
ca Lasch. “À primeira vista, uma sociedade baseada no consumo de massa parece enco-
rajar a auto-indulgência em suas formas mais flagrantes. Considerada estritamente, no
entanto, a propaganda moderna busca promover nem tanto auto-indulgência quanto
auto- dúvida. Procura criar necessidades, para não preenche-las; gerar novas ansiedades
ao invés de dissipar as antigas” (p. 180). Em conclusão, “... nossa sociedade torna mais
e mais difícil encontrar satisfação no amor e trabalho, envolvendo o indivíduo com fan-
tasias manufaturadas de total gratificação” (p. 231).
Discussão
A Lei do Rádio de 1927 pôs fim ao caos técnico. Em seu lugar, a nova lei criou uma ma-
neira ideal para a publicidade de massa de produtos de consumo, tudo o que a nova
rede de rádio NBC precisava para ser bem sucedida. Usando o interesse público, conve-
niência e critério de necessidade, o FRC forneceu as licenças de rádio para as grandes
corporações para lucrassem, na melhor posição, com uma economia do consumo. Estas
corporações utilizaram seu acesso aos meios de comunicação para ensinar uma nova
ideologia dominante com base no consumo. A cultura de consumo ofereceu felicidade
às pessoas e refletiu glorificação por meio da compra de seu caminho como o novo estilo
de vida. Nós poderíamos nos tornar importantes com base no que nós possuímos e no
quanto parecemos ricos e glamurosos.
O que os meios de comunicação oferecem para suas audiências? American Idol é o nú-
mero um nos índices de público. As redes nos inundam com reality shows. As redes de
notícias são construídas a partir do entretenimento: Entertainment Tonight, Nancy Grace,
Larry King, Sean Hannity e Bill O’Reilly. Um programa a cabo e canal após o outro ofe-
recem o estilo de vida do consumidor: Travel Channel, QVC,Extreme Makeover, Food Ne-
twork, HGTV. Nós podemos assistir durante todo o dia golfe, futebol, esportes; podemos
sintonizar todos os dias história, animais, ou filmes. Toda essa programação está disponível
para nós porque alguém acredita que esses programas podem nos vender alguma coisa.
Notas
1. Herbert Hoover, Secretary of Commerce, to Everett Sanders, Secretary to the Pre-
sident, 1 February 1926. Box 490; Folder--Radio: Radio Correspondence, Press Re-
leases, Misc., 1926 Jan-April. Herbert Hoover papers, Herbert Hoover Library, West
Branch, IA.
2. Clarence Dill, 1938. Radio Law. Practice and Procedure. Washington, D.C.: National
Law Book Co, p. 116. Dill went on to argue that the networks did more to control
programming than the FCC, p. 117.
3. Wallace White to William R. Green, 14 January 1927. Wallace White Collection, File
50, Radio Legislation Folder, Library of Congress.
22
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos
4. William Brown to Wallace White, 26 October 1926. Wallace White Papers, Box 651,
Radio Miscellaneous. Library of Congress.
5. Wallace White to Lloyd Espenschied, 18 December 1926. Wallace White Papers, File
50, Radio Miscellaneous, Library of Congress.
6. Wallace White, 1926 Campaign Notes [handwritten]. Wallace White papers, Library
of Congress.
7. Mark Goodman, “Silent Cal’s Voice Echoes Through the Radio Act of 1927.” Presen-
ted at the National Communication Association conference, 2002.
8. Robert W. McChesney, 1993. Telecommunications, Mass Media & Democracy: The
Battle for Control of U.S. Broadcasting, 1928-1935. Oxford: Oxford University Press.
9. Susan Smulyan, 1994. Selling Radio: The Commercialization of American Broadcas-
ting, 1920-1934. Washington: Smithsonian Institution Press. P. 8-9.
10. Christopher Lasch, 1979. The Culture of Narcissism: American Life in An Age of Dimi-
nishing Expectations. New York: W.W. Norton & Company.
11. Congressional Record, 69th Congress, Session II, p. 1162.
12. Wallace White Papers, File 50, Radio Legislation folder, Library of Congress.
13. In the words of the New York Times, the radio signal almost anywhere on the dial
sounded like “the whistle of the peanut stand.” New York Times, 7 November 1926,
sec. xx, 18:1.
14. See Clifford J. Doerksen, 2005. American Babel: Rogue Radio Broadcasters of the
Jazz Age. Philadelphia: Penn State University Press.
15. Marvin R. Bensman, 2000. The Beginning of Broadcast Regulation in the Twentieth
Century. Jefferson, NC: McFarland & Co., p. 40.
16. Mark Goodman and Mark Gring, 2000. “The Ideological Fight Over the Creation of
the Federal Radio Commission in 1927.” Journalism History, 26(3): 120.
17. Eugene Lyons, 1966. David Sarnoff. New York: Harper & Row, p. 118.
18. Bensman, p. 153.
19. All page numbers in this section refer to Congressional Record, 69th Congress, Session II.
20. Congressional Record, 69th Congress, Session II, p. 4155, 12356, 12358, 12502-3,
5557.
21. Congressional Record, 69th Congress, Session II, p. 5480-5502, 5558, 5484, 2575.
22. For more on this point, see these articles. Donald G. Godfrey, “Senator Dill and the
1927 Radio Act,” Journal of Broadcasting, 23 (4 1979): 478. Louise Benjamin, “Working
It Out Together: Radio Policy From Hoover to the Radio Act of 1927,” Journal of Bro-
adcasting & Electronic Media, 42(2), (Spring 1998): 233. Donald G. Godfrey, “A Rhe-
torical Analysis of the Congressional Debates on Broadcast Regulation in the United
States, 1927” (Ph.D. Diss, University of Washington, 1975), 33. Frederick W. Ford, “The
Meaning of Public Interest, Convenience, or Necessity,” Journal of Broadcasting, 5
(Summer 1961): 207.
23. Erik Barnouw, 1966. A Tower of Babel: A History of Broadcasting in the United States,
Volume 1--to 1933, p. 126-128.
23
Mark Goodman
24
O Jornalismo como Território:
Hiperlocalismo e o Pertencimento
Comunitário1
Maria José Baldessar, Pedro Vieira Dellagnelo e Giovanni Letti
Universidade Federal de Santa Catarina
C
omo a internet e, nela o jornalismo on-line e todas as suas possibilidades, podem con-
tribuir para o estreitamento de laços comunitários e o estabelecimento de uma nova
agenda pública comunicacional, baseada na oferta de informações hiperlocais e de
interesse de públicos específicos? Essa talvez seja uma das grandes questões a serem enfren-
tadas por pesquisadores da área de comunicação. As experiências de jornalismo hiperlocal –
seja via redes sociais como o twitter, ou através de sites que privilegiam determinado espaço
geográfico – bairro, região e mesmo uma rua, são exitosas e estão tendo a capacidade de
desafiar os filtros editorias e econômicos das corporações de comunicação – a comprovação
dessa capilaridade está na criação de espaços idênticos dentro dessas corporações.
Apontada por muitos como a causadora da crise de audiência dos jornais impressos, a
internet tem demonstrado que não causou tal crise, e se apresenta como uma das alterna-
tivas viáveis para a recuperação da confiança do público. Ninguém discute o poder da rede
como repositório e disseminadora de informações, no entanto, muitos ainda se surpreen-
dem com a capacidade dela em resolver velhas questões, como o contato e as possibilida-
des de empatia com as audiências. Global e sem limites geográficos – tal como preconizou
McLuhan, a rede mostra que o localismo, e mesmo o hiperlocalismo, tem ressonância
no mundo informativo. A velha máxima “minha casa é o meu mundo” se materializa em
experiências exitosas como a do Texas Tribune e Patch.com, discutidas mais adiante, e se
apresenta como alternativa para o jornalismo recuperar sua audiência e a confiança.
A participação dos usuários é um componente fundamental da internet desde sua cria-
ção. A interação entre militares na ARPANET-5 dos anos 1960 evoluiu para trocas de
informações acadêmicas nos anos 1980 e na metade da década seguinte se difundiu
entre o público civil com a criação de interfaces gráficas e a popularização de fóruns e
do uso do e-mail e, mais tarde com a criação das redes sociais (Facebook, Orkut, Twitter
e outras) e todo o ferramental agregado às mesmas.
Contudo, quando tratamos da participação do público na cadeia de produção jornalística,
não se trata apenas da adoção de novas tecnologias ou dos desafios de promover a in-
clusão digital. É preciso observar esse processo como um fenômeno mais amplo, no qual
as massas de audiência passivas da televisão e do jornal se propõem a produzir e mediar
o conteúdo que recebem. Lemos (2006) observa que essas mudanças tecnológicas, assim
como as outras tantas pelas quais o jornalismo já passou, podem ser vistas como um sis-
tema cíclico de reorganização das relações entre as forças atuantes do mercado. De fato,
Bowman e Willis (2008), argumentam que o surgimento do telégrafo já foi considerado
1 Artigo apresentado no V Colóquio Brasil-EUA de Ciências da Comunicação. Chicago, 2012.
Maria José Baldessar, Pedro Vieira Dellagnello, Giovanni Letti
um concorrente que determinaria o fim do jornalismo há mais de cem anos. Mais recen-
temente, Ashford (1991) recorda que na metade do século passado, a televisão, com som
e imagem associados, também foi apontada como precursora do fim do jornal diário im-
presso. Apesar do alarmismo da época, os jornais sobreviveram a essas mortes anunciadas.
Mas não saíram ilesos, ou pelo menos iguais ao que eram antes, ao final desses processos.
Podemos pensar o jornalismo como um território, um espaço simbólico institucionalizado,
onde existe um conjunto de regras, costumes e um senso de ética que regem a convivência
dentro dele. As bases históricas desse território estão nos métodos de produção e transmis-
são de informações que evoluíram conforme e/ou apesar do desenvolvimento tecnológico.
Esse espaço é, também, um palco onde diferentes agentes compartilham interesses e deter-
minam suas condutas a partir do que percebem como suas funções e objetivos. Com o tempo
e o desenvolvimento de relações de poder, cria-se certo equilíbrio entre as forças atuantes ali.
A estabilidade desse território, porém, pode ser abalada com a entrada de novos fatores
(ou forças), tais como a concentração de poder ou a evolução de tecnologias da infor-
mação. Nesses momentos, novas possibilidades de atuação se materializam para insti-
tuições e indivíduos, criando oportunidades de revisão e re-mediação das relações de
poder. Quando essa situação ocorre, as novas circunstâncias tecnológicas impulsionam a
renovação de processos, hábitos e praticas dentro de contextos estabelecidos, podendo
alterar a função, os objetivos e a atuação em certos campos. A mudança acaba tendo
reflexo, ultimamente, nos produtos desse território, no caso os jornalísticos.
Para Belochio (2009) as alterações nos campos são rupturas nas relações estabelecidas
que, uma vez consolidadas, dão espaço a uma reorganização das relações entre os agentes
desse território. Ao fenômeno cíclico de quebras e reparações em um determinado campo,
Lemos (2006) dá o nome de des-re-territorialização. A ideia de uma audiência que aceita
o poder e os sentidos enviados pelo emissor passivamente, como no modelo clássico de
Shannon e Weaver (1963), já está ultrapassada na área dos estudos de comunicação. Hall,
como principal expoente dos estudos culturais da década de 1980, percebia a importância
do processo de recepção na comunicação e a complexidade de sua configuração. No caso
do jornalismo on-line, devemos ponderar o que leva então essa audiência complexa, que
se coloca como receptora e ao mesmo tempo produtora de conteúdo e significados, a
buscar um papel ativo na construção das informações na internet.
A estrutura social on-line se configurou de maneira diferente da relação polarizada emis-
sor-receptor, onde relações de poder eram muitos presentes. De fato, Brambilla (2005)
observa uma rede de conexões em espiral, onde cada usuário é um nó, atuando tanto
como receptor e emissor. Diversos fatores possibilitaram essa organização, entre eles o
barateamento e difusão dos sistemas de produção de conteúdo e de “pólos de edição”
seja pelo acesso mais comum à banda larga ou pelo uso de dispositivos móveis (BELO-
CHIO, 2009). Para Brambilla (2005), é o desenvolvimento dessas tecnologias da informa-
ção (TI) que interligam, e possibilitam novas conexões, entre esses nós da rede.
Nessa nova configuração social, talvez mais igualitária, o usuário pode se sentir mais
confortável e incentivado a participar ativamente da confecção e transmissão de infor-
mações. Existem, também, outras motivações que levam à interação na rede, alem da
mera possibilidade de agir e, uma delas, é o foco dessas redes e suas relações com o
local – preocupação primeira da audiência.
A definição desse local, porém, pode variar. Sobre o fenômeno chamado de glocalização,
autores como Robertson (1992) argumentam que as possibilidades de comunicação aber-
26
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos
tas pela internet permitem que pessoas com interesses específicos se conectem em escala
global e construam laços comunitários tão fortes quanto os locais, de vizinhança. Esses inte-
resses podem ser diversos. Mitchell (2009) dá o exemplo de grupos de imigrantes ligados ao
noticiário de seu país, onde os valores e informações compartilhados são definidos pelo local
nacional, mesmo que a quilômetros de distância. Existem ainda locais definidos, por exem-
plo, por uma torcida de futebol que, apesar de espalhada pelo mundo, cria um senso de
comunidade e consome as mesmas informações e questionamentos de quem mora ao lado
do estádio. Também há comunidades que requerem conhecimento prévio, como as cientí-
ficas, limitando sua difusão e estreitando seus laços (BURNS, SAUNDERS e WILSON, 2008).
Podemos, ainda, pensar os locais como os territórios descritos anteriormente por Belo-
chio (2009), ou seja, espaços institucionalizados onde se estabelecem laços e relações de
poder entre os participantes e existe um compartilhamento de ética, regras e costumes.
Quando um jornal foca esforços de cobertura em uma determinada comunidade local,
seja ela geográfica ou não, assume uma posição de relevância dentro desse território.
A partir do conhecimento prévio da área em que quer se especializar, o foco em deter-
minados locais nada mais é que a segmentação dos veículos, conclamada como uma
possível alternativa para o jornalismo em rede.
Para que se insira na comunidade é necessário contar com o apoio dela, isto é, da acei-
tação e participação dos seus membros. A utilização da força da massa (ou crowdsour-
cing) é não só um recurso estratégico, mas também uma necessidade para cobrir todas
as nuances das relações estabelecidas naquele local. Essa configuração de organização
jornalística, com foco estreito e participação do usuário, tem sido classificada sob a de-
finição vaga de hiperlocal. A categoria é atualmente utilizada para descrever qualquer
forma híbrida de jornalismo cidadão, comunitário ou alternativo, quando combinados
com recursos interativos, da Web 2.06, e/ou alguma orientação comunitária. Muito do
suposto potencial das mídias hiperlocais e sua projeção como o futuro da mídia deve-se
ao fato de que o termo representa muitos conceitos, adequados a muitas situações.
Um estudo de Metzgar, Kurpius e Rowley (2009), preparado para a divisão de jornalismo
no congresso de 2010 da International Communication Association, busca exatamente
definir um ponto de partida para a análise da hiperlocalidade. São mídias que promovem
o engajamento comunitário – seja pela participação na geração de conteúdo ou pelo
ativismo subsidiado pelas matérias – e também buscam a “energia” e suporte financeiro
necessários na própria comunidade. Na tentativa de estabelecer fronteiras, enumeram-
-se seis premissas: 1) as mídias hiperlocais têm bases geográficas, 2) orientação para a
comunidade, 3) produzem notícias originais, 4) são nativas da internet, 5) pretendem
preencher lacunas percebidas na cobertura de um assunto ou região ou, ainda, 6) pro-
mover o engajamento cidadão. Mesmo situadas dentre essas categorias, muitas organi-
zações podem ser enquadradas em diferentes níveis dessas seis categorias, dependendo
da estratégia adotada pelos seus gestores. O estudo conclui que o hiperlocalismo não
existe como um ponto fixo em nenhuma escala. É um composto de medidas em diferen-
tes parâmetros como a geografia e o engajamento cívico.
O desafio é determinar o papel, o escopo, e a missão desses portais. O papel se refere a
preencher a lacuna deixada pelas mudanças na mídia tradicional e na organização comu-
nitária. O escopo pode ser definido pelas necessidades da comunidade local e pelo desen-
volvimento das tecnologias que as tornam possíveis. A missão deve estar conectada com o
desenvolvimento de ferramentas que promovam a governança democrática, seja pela par-
ticipação dos cidadãos no processo de produção de notícias ou pelo engajamento cívico
27
Maria José Baldessar, Pedro Vieira Dellagnello, Giovanni Letti
28
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos
Uma revisão estratégica dos grandes jornais, a partir da metade da década de 2000, levou-
-os a apostarem novamente no mercado local, preocupados com a perda desse mercado
para a internet (CASTILHO, 2009). Porém, os estudos, e as iniciativas de mercado mais re-
centes têm apresentado o hiperlocalismo como uma prática nova que, apesar de ter muitas
raízes e características em comum, é independente destes conceitos. Diferentemente do
jornalismo cívico, não há um posicionamento claro dos meios em favor de causas comuni-
tárias. Os meios hiperlocais incentivam a participação do usuário, mas de forma separada
do conteúdo profissional, ou muitas vezes convocam os jornalistas/leitores para trabalhos
de freelancer remunerados, o que afasta esses meios de um ideal de jornalismo cidadão.
29
Maria José Baldessar, Pedro Vieira Dellagnello, Giovanni Letti
cobrar pelo conteúdo. Pode-se vender anúncios e outras oportunidades para anuncian-
tes nacionais que queiram atingir mais de uma comunidade de forma coordenada e
específica. Por outro lado, um dos grandes desafios das páginas locais é voltar a cativar
o pequeno anunciante local, que mantinha ou ainda mantém o jornalismo comunitário.
Ao recordar as seis características propostas por Metzgar, Kurpius e Rowley (2009) podemos
considerar que o Patch.com é claramente nativo da internet e um modelo de negócios somen-
te possível via rede. Tem elementos de demarcação geográfica bastante fortes, determinados
pela direção nacional. Quanto à orientação para a comunidade, a produção de notícias origi-
nais e as lacunas preenchidas na cobertura da mídia tradicional podem ser consideradas ra-
zoáveis. Existem esforços explícitos para contratar editores com fortes raízes locais e pressão
pela produção e cumprimento de metas semanais, mas o fator do capital humano disponível
pode justamente limitar esses aspectos. Apenas algumas das “filiais” do Patch – aquelas que
têm os melhores editores – conseguem produzir conteúdos originais e relevantes. Por último,
o estímulo ao engajamento cidadão é um ponto fraco da plataforma. Por não produzir ma-
térias investigativas, de cunho fiscalizador do governo local, em quantidades suficientes, a
iniciativa tem pouco impacto quanto à mobilização cívica por causas específicas.
Outro caso é o da iniciativa sem fins lucrativos Texas Tribune, lançada em 2009, em
Austin, no Texas. Com a utilização de diversas fontes de receita, a organização, garantiu
fundos para três anos de funcionamento, através de uma captação inicial, e busca agora
maneiras de ser auto-sustentável. A principal aposta e diferenciação do Tribune é de
oferecer ferramentas inovadoras na produção, apresentação e difusão das notícias de
interesse público no âmbito estadual. O que levanta o questionamento de se um meio
com esse foco amplo pode ser considerado hiperlocal. Apesar de que existem alguns
exemplos de páginas que tratam grandes regiões como hiperlocais, não há uma resposta
definitiva sobre a questão (METZGAR, KURPIUS E ROWLEY, 2009).
Podemos pensar o hiperlocalismo como o foco em um território bem demarcado e não
necessariamente geográfico, de acordo com o modelo proposto por Lemos (2006) e Be-
lochio (2009). O Tribune afirma que sua área de cobertura abrange todos os tópicos que
estão ligados diretamente ao orçamento estadual, como energia, segurança, educação,
saúde, entre outros. Outra característica manifesta da iniciativa é a da complementarie-
dade com outros meios, no caso locais e nacionais. O portal busca ser um suplemento
aos esforços de cobertura investigativa jornalística, distribuindo, inclusive seu conteúdo
para outros veículos. O objetivo final é incentivar o debate e participação informada dos
cidadãos na política, o que Castilho (2009) aponta como uma retomada de certos valo-
res do jornalismo cívico com a chegada da internet. A diferença, nesse caso, é de que não
há uma intenção de posicionamento do veículo no debate. Além disso, o financiamento
da organização vem de múltiplas fontes, grandes e pequenas, corporativas e individuais.
Há, ainda, a questão da natividade na internet, com a utilização de ferramentas que são
possíveis somente no meio on-line. É o caso de grandes bancos de dados com o salário
de cada cargo público estadual, ou os detalhes de cada representante eleito. Além de
uma biblioteca virtual que contém mais de 80 gigabytes de documentos do governo
como atas e pareceres (LANGEVELD, 2009).
Outro fator importante, segundo o estudo de Metzgar, Kurpius e Rowley (2009), é a pro-
dução de notícias originais e relevantes. Nesse quesito o veículo texano apresenta uma
grande de quantidade de conteúdo jornalístico profissional e investigativo. A composi-
ção da redação foi feita, principalmente, pela contratação de repórteres experientes e
renomados dos jornais tradicionais do estado. O editor-chefe e co-fundador, Evan Smith,
30
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos
Considerações
No nosso entendimento é impossível traçar um quadro teórico específico para definir
a hiperlocalidade de um meio, já que as diferenciações podem ser vistas como abor-
dagens de mercado ou critérios para excluir o veículo dessa classificação. Também não
existe sentido, ou métodos, para avaliar se um meio é mais hiperlocal que outro. Mas, ao
analisar exemplos concretos, podemos colocá-los frente a frente como uma maneira de
ilustrar a situação e os rumos desses veículos.
Com base no observado, três características são comuns nos casos tratados. A primeira,
e mais forte, é a natividade na internet: muitos dos recursos hiperlocais, e do senso de
comunidade que procuram despertar, são somente possíveis em um ambiente interati-
vo em rede. Em menor grau, temos a necessidade de preencher lacunas deixadas pela
mídia tradicional, que é o mercado onde as iniciativas podem procurar financiar seu
funcionamento, seja com fins de lucro ou não. E, ao final, os elementos de demarcação
geográfica, mais fracos no caso do Texas Tribune, mas muito presentes no Patch, como
forma de demarcar e mobilizar a comunidade atendida.
No entanto, essa constatação não é suficiente para estabelecermos um padrão para as inicia-
tivas hiperlocais ou uma caixa onde se possa agrupar todas. É útil no sentido de criar um filtro
mínimo para posterior análise mais aprofundada de cada iniciativa. Até por que, a própria
definição, pelos gestores, de um posicionamento hiperlocal não é um fim em si, mas uma
ferramenta para operar em uma área do mercado onde o consumidor exige um produto
específico. Essa segmentação pode ser vista em um contexto de aproximação dos veículos a
um interesse do público , no caso local, não atendido pela grande mídia generalista. Mitchell
(2009) e Giles (2010), por exemplo, incluem o movimento hiperlocal ao lado do jornalismo
31
Maria José Baldessar, Pedro Vieira Dellagnello, Giovanni Letti
ativista, por ambos se dedicarem à segmentação extrema, por uma causa, ou comunidade,
como maneiras de buscar receitas que sustentem, e remunerem a prática jornalística.
Referências
ASHFORD, Phillip. Newspaper Marketing Strategies. Disponível em: <http://dspace.mit.
edu/bitstream/handle/1721.1/13310/25142392.pdf?sequence=1> Acesso em: 30/09/2010
BELOCHIO, Vivian. Jornalismo digital e colaboração: sinais da desrreterritorialização. Es-
tudos em Jornalismo e Mídia, Ano VI, nº 2, Jul-dez. 2009, p. 203-216.
BOWMAN, Shayne; WILLIS, Chris. We Media: How audiences are shaping the future of
news and information. Disponível em: <http://www.hypergene.net/wemedia/downlo-
ad/we_media.pdf>. Acesso em 20 jun. 2010.
BRAMBILLA, Ana Maria. A reconfiguração do jornalismo através do modelo Open Sour-
ce. Revista FAMECOS, nº 13, 2005. Disponível em: <http://revistaseletronicas.pucrs.br/
ojs/index.php/famecos/article/viewFile/867/654> Acesso em: 20/10/2010
CASTILHO, Carlos Albano Volkmer. O processo colaborativo na produção de informa-
ções: gênese, sistemas e possíveis aplicações no jornalismo comunitário. Programa de
Pós-Graduação em Engenharia e Gestão do Conhecimento. Universidade Federal de San-
ta Catarina, 2009. 68 p. Dissertação [Mestrado]
CORRÊA, Elizabeth Saad; MADUREIRA, Francisco. Jornalista cidadão ou fonte de infor-
mação: estudo exploratório do papel do público no jornalismo participativo dos grandes
portais brasileiros. Estudos em Comunicação, v. 1, abr. 2010, p. 157-184. Disponível em:
<http://www.ec.ubi.pt/ec/07/pdf/correa-jornalista.pdf>. Acesso em: 22 out. 2010.
DORNELLES, Beatriz. Jornalismo “comunitário” em cidades do interior: uma radiografia
das empresas jornalísticas: administração, comercialização, edição e opinião dos leitores.
Porto Alegre: Sagra Luzzatto, 2004.
LANGEVELD, Martin. Texas Tribune: An impressive launch that feels web-native. Dispo-
nível em: <http://www.niemanlab.org/2009/11/texas-tribune-an-impressive-launch-tha-
t-feels-web-native/>. Acesso em: 25 out. 2010.
LEMOS, A. Ciberespaço e tecnologias móveis: processos de territorialização e desterritoriali-
zação na Cibercultura. Artigo apresentado no 15º Encontro Anual da Compós. Bauru, 2006.
METZGAR, Emily; KURPIUS, David; ROWLEY, Karen. Definig Hyperlocal Media: Proposing a
framework for discussion. Disponível em: <http://bit.ly/a1IKw9>. Acesso em: 10 out. 2010.
ROBERTSON, Roland. Globalization: social theory and global culture. London: Sage, 1992.
ROTHMAN, Tibby. Patch, the WalMart of news? Disponível em: http://www.laweekly.
com/2010-09-30/news/patch-the-walmart-of-news Acesso em: 25/10/2010
SHANNON, Claude Elwood; WEAVER, Warren. The mathematical theory of communica-
tion. Urbana: University of Illinois Press, 1963.
SHAPIRO, Carl; VARIAN, Hal R.. Information Rules: A Strategic Guide to the Network Economy.
Disponível em: <http://hbr.org/products/863X/863Xp4.pdf>. Acesso em: 22 set. 2010.
WOLPER, Allan. RIP, Civic Journalism. Editor & Publisher, Irvine, Califórnia, 14 abr. 2003,
p. 30, Disponível em: <http://wilsontxt.hwwilson.com/pdffull/03484/qr6wt/psa.pdf>.
Acesso em: 25 out. 2010.
32
Telenovelas no Brasil: de Roteiros
Viajantes a Gênero/Formato Nacional
e Transnacional1
Joseph D. Straubhaar
Universidade do Texas em Austin
A
criação e o fluxo globais de gêneros e formatos televisivos deveria ser concebida
como um processo fluido complexamente articulado, cujos efeitos de integração
não necessariamente eliminam diferenças culturais nem a diversidade, mas dão
contexto e limites à produção de novas formas culturais marcadas por uma especificida-
de local. A esse respeito, Ang (1996) observou:
O que se torna cada vez mais “globalizado” não é tanto o conteúdo cultural
concreto, mas, de forma mais importante e mais estrutural, os parâmetros e a
infraestrutura que determina as condições da existência de culturas locais. Pode-
-se entender isso, por exemplo, como a disseminação de um conjunto limitado
de convenções e princípios econômicos, políticos, ideológicos e pragmáticos que
governam e moldam as maneiras aceitas pelas quais a produção, a circulação e o
consumo de mídia são organizados no mundo moderno. (ANG, 1996: 153-154)
Gênero e Formato
Neste artigo, defendemos que há diversas camadas de gênero, comercialização de pro-
toformatos de elementos de programas, e atuais formatos licenciados comercialmente.
Algumas tradições de gênero, como o melodrama, tendem a ser amplas, categorias es-
truturantes que já têm uma longa história anterior à televisão (MARTÍN-BARBERO, 1993).
Gêneros específicos de produção de televisão, como a soap opera norte-americana e a
telenovela da América Latina podem se desenvolver dentro dessa tradição mais ampla.
Até gêneros mais específicos, como as novelas brasileiras socialmente engajadas ou de
época, em contraste com as telenovelas de Cinderela mexicanas (HERNÁNDEZ, 2001),
desenvolvem-se ou ascendem ao longo do tempo dentro dessas tradições de gênero.
Formatos de televisão são hoje frequentemente definidos como uma categoria paralela que
se vê nas formas de televisão empacotados para o comércio de franquias, o trânsito entre
culturas, e a adaptação localizada ou aplicação por parte das redes regionais, nacionais ou
locais. Formatos específicos são geralmente importados e adotados. Podem nutrir-se do
desenvolvimento de gênero, enxertado nas tradições mais antigas.
Neste estudo tendo a definir um formato como um pacote específico de produção, trans-
ferido de uma entidade de produção televisiva para outra, para ser adaptado em uma
versão local. Esta definição estrita é elaborada para facilitar a distinção entre formatos e
1Artigo apresentado no IV Colóquio Brasil-EUA de Ciências de Comunicação. Caxias do Sul (Rio Grande do Sul), 2010.
Joseph D. Straubhaar
34
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos
Gêneros
Jason Mittell (2004) argumenta que os gêneros devem levar em conta as particularidades do
meio (TV versus cinema), negociar entre a especificidade e a generalidade, desenvolver-se a
partir de genealogias discursivas (como o exame das novelas), ser compreendidos na prática
cultural e situados em sistemas maiores de hierarquias culturais e relações de poder. Diferen-
tes grupos – como críticos, produtores, anunciantes, distribuidores, programadores e público
– muito frequentemente estruturam categorias de gênero de modos muito diferentes (Feuer,
1992). Por exemplo: críticos normalmente visam à compreensão teórica, tanto das formas
culturais/textuais em si (MITTELL, 2004) quanto das práticas complexas entre a indústria e
o público. Jane Feuer (1992) chama o primeiro enfoque de estético e vê o segundo como
centrado em rituais culturais, produzindo compreensões comuns entre público e produtores.
Pela minha formação mais como cientista social que literário, tendo a inclinar-me para a se-
gunda definição. Em contraste com essas duas metas acadêmicas, os produtores utilizam as
categorias de gênero para tentar descobrir quais estruturas institucionais, como os gestores
de redes de TV e os anunciantes, deixarão produzir os programas que lhes interessem, geral-
mente ao mesmo tempo em que tentam satisfazer a audiência. Trabalhos de Timothy Havens
(2006) e Denise Bielby (2005) buscam examinar a função dos produtores e programadores
como intermediários industriais do gênero e do desenvolvimento e fluxo de programação.
Aqui, o objetivo geral é entender o crescimento destas compreensões mútuas entre público e
produtores, enquanto se buscam nelas padrões de gênero e de formato mais amplos.
Em particular, queremos enxergar a forma como um novo gênero televisivo, a telenovela,
se desenvolveu na interação com um gênero-base, a soap opera norte-americana; uma pri-
meira rodada de desenvolvimento de gênero híbrido em Cuba e outras partes da América
Latina; e a particularização nacional do novo gênero regional em países como o Brasil. Que-
35
Joseph D. Straubhaar
36
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos
A Tradição do Melodrama
As novelas no Brasil e em outros países da América Latina evoluíram claramente a partir de
programas no rádio anteriores e semelhantes. Mas não se desenvolveram apenas da ma-
triz radiofônica, outras tradições de ficção seriada também afetaram o desenvolvimento
do gênero da telenovela na região. Desde os feuilletons publicados em série na França e
a secular literatura de cordel brasileira, o gênero evoluiu em cada país da América Latina,
com certas peculiaridades (MARTÍN-BARBERO, 1993; ORTIZ & BORELLI, 1988), novamente
refletindo a complexidade tanto das origens quanto das adaptações de novelas.
Martín-Barbero (1993) mostra que as telenovelas se baseiam naquilo que este estudo cha-
ma de metagênero do melodrama, que chegou à América Latina a partir de raízes fincadas
em diversas formas precursoras de impressão, circos e saltimbancos, poesia popular de tra-
dição oral, teatro popular e profissional, radiodrama e radionovelas. Suas diferentes formas
se encontram em várias partes da América Latina, mas Martín-Barbero e outros autores,
como Nora Mazziotti (l993), encontram a evolução gradual de um conjunto de raízes melo-
dramáticas para o desenvolvimento das primeiras novelas de rádio e, depois, de televisão.
A tradição do feuilleton, ou folhetim, foi essencial, segundo muitos estudiosos (HERNÁNDEZ,
2001; MARTIN-BARBERO, 1988; ROWE & SCHELLING, 1991). Balzac e Dickens publicavam de
forma seriada obras muito populares nos jornais no século XIX. Muitos dos contos e romances
famosos, novelas da época, tinham um sentido de melodrama em seu apelo de gênero. Eles
ajudaram a construir um público de massas para o gênero melodramático, que determinou as
bases e os limites para o gênero telenovela (STRAUBHAAR, 2007). Alguns argumentam que as
séries impressas, por sua vez, conseguiram criar um público de massas para os jornais, o rádio
e a televisão (HERNÁNDEZ, 2001). Isto mostra como um lado da equação do desenvolvimento
de gênero (FEUER, 1992), o da expectativa do público, era desenvolvido ou preparado por
formas anteriores do melodrama, de maneira que as novelas de TV delas puderam derivar.
Os folhetins também contribuíram com clichês dramáticos específicos do gênero e formas
narrativas, como o gancho de suspense (cliff-hanger) no final de cada episódio, que leva
o leitor, ouvinte ou espectador a esperar o próximo capítulo para ver o que acontece. No-
velas e contos em série nos jornais, como as histórias populares francesas de Eugène Sue,
também introduziram uma característica atual fundamental: a absorção sistemática da re-
ação dos leitores no processo de escrita, o que Martín-Barbero (apud HERNÁNDEZ, 2001,
p. 56) chama de “permeabilidade às transformações da vida moderna” da telenovela.
Martín-Barbero também enfatiza as raízes locais do melodrama na poesia popular e no
teatro latino-americanos, embora elas também se hibridizem entre as tradições literá-
rias e dramáticas europeias, como o teatro popular da Revolução Francesa e as raízes
indígenas e africanas na origem (1987). No Brasil, estas eram muito visíveis na literatura
de cordel – folhetos impressos, baratos, pendurados em barbantes e vendidos em feiras
(SLATER, 1982). Estes folhetos populares frequentemente contavam histórias melodramá-
37
Joseph D. Straubhaar
ticas clássicas, lidas pelo público ou cantadas por repentistas e interpretadas por conta-
dores de histórias, o que proporcionou uma tradição de representação oral de histórias
que alimentou as radionovelas no Brasil, Cuba e em outros lugares (HERNÁNDEZ, 2001).
O melodrama cinematográfico circulou amplamente na região, sobretudo nos filmes da era
de ouro do cinema mexicano, nos anos 1940 e 1950 (MARTÍN-BARBERO, 1995). Estes melo-
dramas ajudaram a criar uma cultura urbana que via o gênero como algo normal, como uma
das primeiras grandes narrativas da vida moderna e do desenvolvimento ao qual tinham sido
expostos. Ajudaram a criar um gosto regional pelo gênero e suas formas narrativas.
Radionovelas
À medida que o rádio se desenvolvia na América Latina na década de 1920, os feuille-
tons, folhetins no Brasil e folletines nos países de língua espanhola, viviam um período
de grande popularidade entre os leitores. Em Cuba, por exemplo, livros e folhetins eram
lidos em voz alta para enroladoras de tabaco nas fábricas de charutos, o que desenvol-
veu estilos de leitura que influenciaram o radiodrama e as radionovelas (HERNÁNDEZ,
2001). Essa popularidade tendeu a levar o gênero seriado para o rádio, como uma forma
de teatro. Na Argentina e em outros países, as radionovelas foram chamadas simples-
mente de radioteatro durante muito tempo, até que o nome “radionovela” ficou asso-
ciado a um gênero mais específico do melodrama radiofônico.
As radionovelas se desenvolveram em uma série de países, incorporando ideias nacionais
e regionais da América Latina. Os programas nacionais de rádio na Argentina e em Cuba
são identificados por Hernández (2001) como fontes de ideias particularmente relevan-
tes; mas muitos países, incluindo o Brasil, tinham importantes tradições locais de teatro
e indústrias que facilitavam ideias, autores, atores, para o radiodrama e a radionovela.
No entanto, Cuba foi uma fonte particularmente importante dos roteiros de radionovelas
que circularam por toda a região. A CMQ, a emissora de rádio comercial líder em Havana nas
décadas de 1940 e 1950, “inundou” a América Latina com os scripts exportados (SINCLAIR,
1999), influenciando as produções de rádio de Azcárraga, fundador da Rede Televisa, que
criou as telenovelas dominantes no México (FERNÁNDEZ & PAXMAM, 2001). No Brasil, a
primeira radionovela, em 1941, foi uma adaptação de um texto cubano (MOREIRA, 1991).
Muitas das principais ideias comuns da América Latina sobre novelas de rádio e TV im-
portadas de Cuba por outros países também representavam uma influência indireta dos
Estados Unidos sobre o gênero. A forma comercial específica das radionovelas foi desen-
volvida pela primeira vez na Cuba pré-revolucionária, sob encomenda da Colgate-Palmo-
live, multinacional norte-americana que queria vender sabonetes. Ao ver como as soap
operas alcançavam o mercado de consumo feminino para seus produtos nos EUA, estas
empresas introduziram o gênero primeiro em Cuba, depois no resto da América Latina.
A reação do público foi grande e garantiu que os anunciantes fornecessem a verba para
a produção continuada e crescente das novelas em um número cada vez maior de países.
A Colgate e a Sidney Ross ajudaram a inventar a novela de rádio e mais tarde de TV em
uma operação pioneira em Cuba antes da Revolução, onde “a soap opera norte-ameri-
cana” era “traduzida e exportada” (KATZ, 1977: 117).
Alguns dizem que a telenovela latina não é mais que a transposição da ra-
dionovela norte-americana. Mas não apenas o rádio latino-americano já vi-
nha utilizando o formato da história seriada há muito tempo, como também
os jornais latino-americanos. Qualquer busca por programação barata para
38
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos
40
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos
como pelos concorrentes nacionais que tentam tanto imitar quanto distinguir-se den-
tro de cada mercado cultural nacional. Esses gêneros de novelas refletem consideráveis
adaptações nacionais do gênero regional, mas são todos fiéis às raízes melodramáticas.
41
Joseph D. Straubhaar
No passado, entre 1950 e 1967, antes de a Rede Globo chegar a ser tão podero-
sa, a programação era decidida metade pelos diretores e a outra metade pelos
desejos dos anunciantes. Por exemplo, a Gessy-Lever comprou o seriado Bonan-
za nos EUA e levou-o para a TV Tupi, em São Paulo, para patrocinar em 1956.
Foi a primeira série estrangeira a ser importada. Nas produções nacionais, como
as novelas, o papel dos anunciantes também era forte. Por exemplo, a agência
de publicidade [britânica] Lintas, em representação do grupo [norte-americano]
Unilever, queria chegar às donas de casa através das novelas, que são um veículo
mais econômico que o teleteatro [a forma principal de programação na época]
e tem maior apelo para as massas. Até 1965, a Lintas estava envolvida em todos
os aspectos das telenovelas: seleção de elenco e roteiro, pagamento dos atores
quando a emissora estava no vermelho, etc. Vários anunciantes diziam às emis-
soras o que queriam e conseguiam do seu jeito (FLORISBAL, entrevista, 1979).
42
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos
43
Joseph D. Straubhaar
Essas duas formas brasileiras de programação não só concorreram com as importadas dos
Estados Unidos, como cresceram rapidamente e de maneira constante em seus índices de
audiência ao longo dos anos 1960. A programação musical não aumentou sua cota, mas
mantinha a terceira posição entre os formatos e também recebia forte apoio da crítica.
Novelas e programas de auditório foram apontados por acadêmicos e críticos de jornal
(SODRÉ, 1972, p. 36; TÁVOLA, O Globo, 26 de março de 1974) como as mais importantes
formas de entretenimento da cultura popular na história recente do Brasil. Conquistaram
popularidade porque eram bons veículos para a cultura popular brasileira. Eram produ-
zidos amplamente porque eram populares e econômicos. Tunstall (1977, p. 176) assinala
que estes dois formatos básicos eram a “programação local autêntica” desenvolvida
em toda a América Latina “antes que começasse o fluxo de importações da televisão
norte-americana”, por volta de 1960. A telenovela e o programa de auditório evoluíram
consideravelmente durante essa década. Sua elaboração como formatos de programa
e o crescimento de sua popularidade refletiam uma visão essencialmente brasileira da
audiência e da cultura de massa que o público queria para entretenimento.
As telenovelas cresceram rapidamente em importância, sobretudo na década de 1960.
No final da década, que eram a forma de programação de televisão predominante no
Brasil, em termos da representatividade de seu conteúdo cultural, sua importância eco-
nômica dentro da indústria e seu provável impacto na audiência.
Aqui há um exemplo de como os programadores brasileiros pensavam o papel da nove-
la. A publicação Mercado Global (janeiro de 1976) citava José Bonifacio de Oliveira So-
brinho, o “Boni”, diretor de produção da TV Globo, que então trabalhava para a TV Rio:
A TV Rio não achava que seus programas de humor eram competitivos, en-
tão o diretor da emissora na época, Walter Clark, e eu decidimos testar no-
velas para alcançar o público. Pusemos no ar ‘Renúncia’, que havia sido um
sucesso no rádio. Fez bastante sucesso, mas eu já estava vendo ‘O Direito de
Nascer’ [Esta novela foi uma adaptação de uma telenovela clássica de Cuba
chamada El Derecho de Nacer – o direito de saber quem eram seus pais]. Foi
um episódio interessante. Ninguém queria a ideia, exceto Clark e eu... Para
transmitir o trabalho pronto foi a mesma briga: a TV Record era líder do
grupo ao qual TV Rio pertencia e a Record não queria produzir porque tinha
medo dos custos de produção e de que poderia ser um fracasso... A TV Rio e
a TV Tupi se uniram para transmitir”. (Sobrinho, [entrevista], 1976)
Na década de 1960, todas as principais emissoras tinham dado alguma contribuição para
o crescimento dos formatos de programa de apelo à massa. A TV Excelsior, a TV Tupi e a
TV Globo produziam novelas. Para as emissoras que tinham recursos a novela se tornou
o entretenimento dominante da televisão brasileira e provavelmente o produto mais
importante da cultura de massa e da indústria cultural brasileiras. A TV Tupi produziu-as
ao longo da década e a TV Bandeirantes começou a fazê-lo em 1979, quando já tinha co-
meçado a se constituir como uma rede. No entanto, como Rother (1978, p. 57) observa,
“o surgimento, o crescimento e o sucesso contínuos da telenovela foram inerentemente
vinculados à ascensão da TV Globo”. A revista Veja (out., 1976) afirmou que a “Globo
não inventou a novela, mas de seus estúdios veio a contribuição decisiva para a transfor-
mação da novela em um gênero quase cinematográfico nas dimensões de Hollywood e,
no entanto, mais tipicamente brasileiro em seu idioma, tramas e no ritmo de produção”.
tradicional, inclusive arcaica, com os meios de comunicação como revistas e a televisão, a indústria cultural, em uma exploração
44
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos
O ponto máximo de influência nas telenovelas brasileiras por outros programas da América
Latina chegou com O Direito de Nascer, sobre um jovem advogado tentando descobrir quem
eram seus pais. A história romântica inscrevia-se na tradição da novela melodramática, que o
Brasil compartilhou com outros países da América Latina (IstoÉ, 28 de fevereiro de 1979). Uma
das principais radionovelas cubanas, foi adaptada no Brasil como radionovela em 1959. Ape-
sar de ter tido um bom sucesso no rádio, a mesma história foi um sucesso estrondoso na tele-
visão em 1964 e 1965, reunindo os elementos da trama romântica, visual e de apelo à cultura
de massa que “consagrou o sucesso popular da telenovela” (PORTO E SILVA, entrevista, 1979).
Em 1964, os produtores da TV Excelsior examinaram o sucesso das novelas noturnas
regulares na Argentina e decidiram elevar sua produção para esse nível. Durante os pri-
meiros anos da década de 1960, assim como as radionovelas tinham sido, as novelas de
TV eram transmitidas em programação não-diária.
A telenovela aumentou rapidamente sua participação na audiência em São Paulo, de 2%
em 1963 para 12% em 1965, 13% em 1967 e 18% em 1969. Depois de uma estagnação
em 17% em 1971, a novela subiu para dominação total sobre todos os demais formatos
de programas, nacionais e importados, na década de 1970.
Os produtores de TV também começaram a aumentar a duração média das novelas, de
quatro a seis semanas para nove a dez meses, o que lhes permitia acumular audiências
consideráveis, mas preservando a necessidade de dispor de uma trama que leva a um clí-
max. Isto se deu em contraste marcado com as soap operas norte-americanas, cujas tramas
básicas de cada programa, tais como As the World Turns, podem durar mais de 20 anos.
No final dos anos 1960 a novela estava se convertendo rapidamente em um formato de
programa nacional muito particular no Brasil. As novelas pareciam sofrer pouca influên-
cia dos EUA em conteúdo e substância. Nenhum crítico observou influências argentina,
cubana ou mexicana tampouco, pelo menos depois dessa década.
Comentários dos autores de novelas indicam que eles sentem que os elementos essenciais de
suas tramas mantiveram-se constantes ao longo dos anos: o herói jovem e simpático, a mu-
lher reprimida com vontade de romper amarras sociais, os jovens amantes, a busca pela ver-
dadeira identidade do protagonista, ou um segredo de culpa, um vilão, tragédias, suspense e
45
Joseph D. Straubhaar
o final feliz (BRÁULIO PEDROSO, WALTER DURST, Jornal da Tarde, out. 14, 1970; PLINIO MAR-
COS, IstoÉ, fev. 28, 1979). Este é o material da ficção romântica em todo o mundo ocidental.
Na década de 1950 e princípios da de 1960, os detalhes do enredo ou do conteúdo manifesto
de algumas tramas de telenovela vinham de obras estrangeiras de ficção, mais ocasionalmen-
te depois dos anos 1970. Estas tramas eram quase sempre adaptadas por autores brasileiros.
Textos estrangeiros importados foram cada vez mais substituídos por temas puramente bra-
sileiros: a vida cotidiana nas classes baixa e média, temas históricos e regionais e alguns temas
da atualidade, como ecologia ou a aculturação de indígenas na vida urbana.
Uma telenovela em particular marcou um distanciamento da tradição melodramática e
iniciou a redefinição do gênero no Brasil: Beto Rockfeller, escrita por Bráulio Pedroso e
transmitida pela Rede Tupi em 1968 e 1969 (MATTELART & MATTELART, 1990; ORTIZ e
BORELLI, 1988; STRAUBHAAR, 1982). O texto saiu de uma cepa da cultura de massa que
era muito tipicamente brasileira, apesar do sobrenome do protagonista.
Beto Rockfeller escapava das tradicionais e artificiais atitudes dramáticas e padrões de fala la-
tino-americanos. Utilizava o diálogo coloquial típico do Rio de Janeiro. A estrutura dramática,
as estratégias narrativas e os valores de produção também se modificaram. Beto Rockfeller
era a história de um jovem de classe média que trabalhava para uma sapataria, mas que, com
charme e astúcia, misturava-se entre a classe alta, fazendo-se passar por um milionário. A
telenovela obteve índices de audiência muito altos, o que levou a rede a esticá-la para quase
13 meses, muito mais tempo que o habitual de 6 a 8 meses (FERNANDES, 1987).
A TV Globo, que até esse momento vinha seguindo um estilo tradicional das novelas,
com cenários exóticos e parcelas, viu o interesse da audiência em Beto Rockfeller e de-
fendeu o estilo. Neste processo, o gênero brasileiro se reformulou, distanciando-se do
modelo da América Latina.
Pouco a pouco, autores como Daniel Filho, Janete Clair e Dias Gomes se tornaram famo-
sos em nível nacional para escrever roteiros originais. Junto com outros que adaptaram
obras históricas e de ficção brasileira, os escritores brasileiros foram lentamente afas-
tando os roteiros e autores argentinos e mexicanos, paulatinamente “abrasileirando” o
meio (SÁNCHEZ, entrevista, 1978).
Alguns críticos, como Miceli (1972, p. 162-167), argumentaram que apesar da popula-
ridade e do apelo às massas de uma produção brasileira como Beto Rockfeller nenhum
produto da indústria cultural brasileira representava realmente uma cultura de massa
do Brasil. Para ele, as expressões culturais ou símbolos na televisão brasileira refletiam
só segmentos sociais fragmentados, como uma ideologia de elite muito penetrada por
ideias estrangeiras, uma ideologia de classe média de elementos autocontraditórios do-
minada pelas ideias refletidas da classe alta e expressões “rústicas” ou populares que,
quando articuladas, eram tipicamente reprimidas pelos outros grupos. Não enxergava
nenhum espaço para uma cultura de massa no Brasil que fosse mesmo relativamente
coerente ou nativa.
46
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos
Embora Beto Rockfeller tenha sido produzida pela TV Tupi e várias outras novelas de destaque
pela TV Excelsior em meados da década de 1960, a consolidação da telenovela como uma
expressão de sucesso (em audiência) da cultura de massa brasileira ocorreu com a TV Globo.
A Globo pagava bem no final dos anos 1960 para atrair os melhores atores, autores e
diretores do cinema e do teatro que passaram trabalhar em novelas (ROTHER, 1978, p.
57). Tornou-se uma prática comum para os atores e dramaturgos brasileiros trabalhar
em novelas, filmes e teatro, tudo em um mesmo ano. Isto levou a um notável nível de
qualidade nas telenovelas, economicamente gratificante para os artistas e autores e para
a Globo, que atraía enorme audiência e interesse dos anunciantes. No final da década,
a produção de novelas da Globo e da Tupi, que mantinha um público pequeno mas
respeitável, estava se tornando uma indústria cultural bastante estável, autocontida. Já
não precisava do tipo de apoio infraestrutural dos anunciantes norte-americanos (FLO-
RISBAL, entrevista, 1979) ou de orientação sobre os gostos e interesses da audiência dos
departamentos de pesquisa das agências de publicidade (DUAILIBI, entrevista, 1979).
A indústria da telenovela estava começando a estabelecer um conjunto coerente de va-
lores e símbolos para guiar e caracterizar o conteúdo de seus produtos no final dos anos
1960. Mas as novelas foram criticadas várias vezes entre 1964 e 1968 por mostrar violência
excessiva em horários em que crianças assistiam (O ESTADO DE S. PAULO, 22 de agosto de
1964; 9 de setembro de 1964, 15 de agosto de 1967). Também eram vistas como promo-
ção de materialismo e de valores de consumo (ARTUR DA TÁVOLA, O Globo, 3 de setembro
de 1974), que curiosamente não foram considerados como valores estrangeiros ou influen-
ciados por estrangeiros, senão como valores brasileiros passíveis de questionamento.
47
Joseph D. Straubhaar
zir novelas. Em 1974, a Record também deixou de produzi-las, restando apenas as redes
Tupi e Globo, que tinham bases econômicas nacionais de apoio. Dirigiram-se à “solução
fácil” de substituir programas importados por tentativas de criar suas próprias novelas.
Na virada da década de 1960 para 1970, a telenovela brasileira evoluiu lentamente a
partir do modelo latino-americano. Straubhaar (1982; 1984) descreveu uma “abrasileiri-
zação” do gênero em dois sentidos: uma quantidade significativa da produção nacional,
pois as novelas passaram a preencher três horas de horário nobre, em seis noites por
semana, e uma adaptação igualmente significativa do gênero ao refletir a cultura na-
cional. A Globo, em particular, investiu fortemente nos valores de produção, tais como
o uso de gravações externas que antes eram evitadas devido aos custos de produção.
Também promoveu uma modernização dos enredos, incluindo temas de atualidade e
apropriou-se de textos produzidos por autores, romancistas e dramaturgos brasileiros.
Neste processo a TV Globo criou o que denominou, em sua própria publicidade, de
“Padrão Globo de Qualidade” (HEROLD, 1986; LÓPEZ, 1995; STRAUBHAAR, 1982). Este
alto nível de qualidade da produção começou a diferenciar as telenovelas brasileiras, em
particular as da Globo, de outras na região e mais ainda da soap opera norte-americana.
Isto demonstra uma reconfiguração da novela brasileira não apenas em forma de gêne-
ro, mas a qualidade da produção, assim.
Em uma importante mudança estilística de algumas formas de telenovela, as brasilei-
ras são “obras abertas” ou um “gênero aberto” (MATTELART, 1990, p. 41). Durante a
produção, os criadores recebem informação direta e indireta dos espetadores e fãs,
produções teatrais, anúncios, imprensa de elite e popular, redes institucionais, institutos
de pesquisa de audiência e de marketing e outras forças sociais na sociedade, como a
Igreja Católica, o governo e grupos de ativistas (HAMBURGUER, 1999). Esta capacidade
de resposta à reação do público é mais forte nas telenovelas latino-americanas do que
em outras formas globais de melodrama. É particularmente notável no Brasil, onde a
Globo desenvolveu amplamente métodos de pesquisa, antecipação e acompanhamento
das preferências e reações do público (STRAUBHAAR 1984).
Este modo de produção foi influenciado pelas práticas de censura do regime militar,
que pouco a pouco obrigaram muitos autores a sair do teatro e do cinema e encontrar
refúgio na TV. A televisão se tornou um espaço no qual, mesmo se censurados, autores
conseguiam esgarçar os limites do aceitável na atmosfera repressiva da década de 1970.
As novelas não romperam por completo com suas raízes melodramáticas, mas incorpo-
raram uma voz nacional. Introduziram uma linguagem popular, o uso de coloquialismos
e personagens arraigados na vida cotidiana das metrópoles brasileiras. No entanto, este
processo era limitado pelo que se percebia como as expectativas do público-alvo. Klags-
brunn (1993, p. 19) considera que a incorporação da realidade nas novelas brasileiras não
era mais que uma imagem superficial dos problemas reais que afetavam o país: refletia
superficialmente, não conclusivamente, sobre aspectos e problemas sociais enfrentados
pela sociedade brasileira, como costuma ocorrer nos gêneros adotados para entreter
as massas. Não sendo nem a crítica social nem sugestões sobre o caminho a seguir os
objetivos principais da telenovela, já que isto afastaria um número significativo de espec-
tadores, os problemas sociais e políticos aparecem apenas em papel secundário.
Na década de 1970, a novela alcançou o programa de auditório como o arquétipo de
entretenimento da televisão “brasileira”, mas estes não desapareceram. Na maior parte
da década, tardes e noites de domingo foram dominadas por uma variação pré-grava-
da e habilmente produzida dos programas de auditório, por um veterano do gênero,
48
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos
Sílvio Santos, e o chamado Fantástico. Este último foi muito ilustrativo de como a TV
Globo abordava a programação. Em primeiro lugar, era bem organizado e produzido
com requintes. Em segundo, contava com uma ampla variedade de talentos caros e
uma diversidade de temas. Em terceiro, continha notícias e até reportagens em estilo de
documentário sobre assuntos públicos, muito apolíticos. Em quarto lugar, era orientado
em nível nacional, não paroquialmente focado no Rio de Janeiro ou em São Paulo.
As redes tornaram-se cada vez mais capazes de alcançar um público nacional, o que lhes
proporcionou maior fatia da programação nacionalmente produzida. Em relação à demanda,
o público queria cultura popular ou de massa, brasileira (novelas, programas de auditório, hu-
mor, futebol e música) e cada vez mais constituía uma massa de consumidores que poderiam
apoiar os anunciantes que pagavam pela programação que preferia.
O fato de que uma novela típica durava de oito a nove meses também permitiu aos
autores incorporar a reação do público no processo de escritura e de produção, depois
do planejamento inicial. Alguns temiam que isto aumentaria a influência das questões
de marketing no ajuste ao gosto do público. No entanto, certos críticos brasileiros viram
isto como um desenvolvimento positivo e afirmaram que esta qualidade particular esta-
belecia a novela à parte de outras formas dramatúrgicas, o que permitia um intercâmbio
mais genuíno entre autor e público (TÁVOLA, O Globo, 2 de setembro de 1974).
Em meados dos anos 1970, a Globo tinha perfis diferenciais de audiência para suas várias
novelas, às 18h, 19h, 20h e 22h (ROTHER, 1977, p. 58). As novelas foram definitivamente
aperfeiçoadas para atrair audiência particular de cada faixa do horário nobre. Autores eram
orientados pelos departamentos de pesquisa das emissoras e de agências de publicidade
na seleção de temas e personagens de maior apelo. Esta integração entre pesquisa e pro-
dução foi maior na TV Globo (SÁNCHEZ, entrevista, 1978; Veja, 6 de outubro de 1976), o
que ajudou a manter sua independência relativamente alta de avaliação da programação.
Rother (1977, p. 5) cita o diretor de pesquisa da TV Globo, Homero Sánchez:
O espectador médio das novelas no Brasil é uma mulher abaixo dos 40 anos,
casada, católica, com dois filhos e membro da classe média baixa... Come-
çamos às 18h com algo que fará que uma mulher pensar no tempo de suas
avós, algo puro e cheio de romantismo. Em seguida, às 19h chegamos com
algo um pouco mais leve e jovem [apelando também à grande quantidade
de crianças que assistem]. Rompemos para um pouco de ação às 21h... a essa
altura o homem já jantou, leu o jornal e relaxou um pouco, assim damos nele
um golpe de ‘Kojak’ ou ‘SWAT’ e depois às 22h mudamos para algo muito
adulto, para atrair tanto o homem quanto a mulher. É aí que temos a opor-
tunidade de experimentar um pouco com nossas novelas.
49
Joseph D. Straubhaar
50
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos
51
Joseph D. Straubhaar
Conclusão
Vários pontos podem ser observados em relação ao gênero e formato das telenovelas. Primei-
ro e principalmente, que data de 1950 o fluxo de exportação dos roteiros de telenovelas na
52
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos
América Latina – formatos e scripts, assim como autores e produtores, em movimento ante-
rior à explosão dos programas de televisão norte-americanos enlatados na década de 1960.
Isso demonstra que a ideia de compra e adaptação de elementos de produção, assim como
a produção de versões nacionais, é chave para a produção cultural híbrida (KRAIDY, 2005).
Também evidencia, até certo ponto, o predomínio da exportação de produtos culturais norte-
-americanos, assinalado em estudos pioneiros como o de Nordenstreng e Varis (1974). Assim,
localização e adaptação de elementos de formatos de importados de televisão compõem a
hibridização da televisão transnacional na América Latina desde a década de 1950.
Em segundo lugar, talvez o ponto mais interessante seja a evolução histórica do gênero da
telenovela na América Latina como um diálogo entre tradições culturais regionais e nacio-
nais. Quase todos os países, incluídos os produtores dominantes Brasil e México, mostram
elementos importados de formatos, roteiros e escritores, como o início com Cuba. Quase
todos os países da América Latina suficientemente grandes ou suficientemente ricos são pro-
dutores de telenovelas (STRAUBHAAR, 2007) arraigadas em elementos importados e em suas
próprias matrizes culturais, com a adaptação de gênero e de formatos a histórias culturais
específicas (ROWE & SCHELLING, 1991) para competir nos mercados nacionais. Isso demons-
tra que os gêneros e os formatos importados são importantes para guiar o desenvolvimento
da indústria cultural – ainda que em médio e longo prazos, considerando a globalização e a
hibridização, a adaptação cultural das formas importadas seja talvez inevitável.
Em terceiro lugar, as telenovelas continuam a ter grande circulação global como programas
exportados, principalmente na América Latina, e também dobraram a presença em outros
idiomas. Esta circulação de exportação pode ser grande, sobretudo com exemplos como Ugly
Betty, mas a literatura de contra-fluxo, como de Biltereyst e Meers (2000) mostra que o volu-
me real de exportações alcançou seu ponto máximo na década de 1990 e eainda é restrito se
comparado com o fluxo de exportação de programas dos Estados Unidos.
Em quarto lugar, em linha com a tendência de adaptação dos gêneros e formatos televisivos
como parte do fluxo largo prazo do desenvolvimento cultural híbrida (KRAIDY, 2005; PIE-
TERSE, 2004), cada vez mais se exporta formatos e roteiros de telenovelas e não programas
enlatados baratos. Essa pode representar uma nova forma de contrafluxo (THUSSU, 2007),
talvez com maior alcance, já que os Estados Unidos têm se mostrado resistentes à entrada
de programas enlatados, mas abertos à importação de ideias de gênero e formatos – mais
visível em relação a programas como os reality shows, em grande medida importados de
todo o mundo. O apetite dos Estados Unidos para a importação de formatos roteirizados
aumentou consideravelmente em 2008, seguindo a demanda consolidada de importação de
reality shows. Este serve como exemplo atual do alcance do fluxo dos formatos roteirizados
no âmbito dos países produtores. Talvez seja interessante também considerar os quase 60
anos de fluxos e adaptações de textos do gênero telenovela na América Latina, para entender
como o fluxo transnacional de gêneros roteirizados pode funcionar nas redes TVs nacionais e
regionais, assim como a forma pela qual tais fluxos são localizados e hibridizados.
Referências
BIELBY, D. D. and C. L. HARRINGTON. “Opening America? The Telenovela ization of U.S.
Soap Operas.” Television & New Media 6(4): 383-399. 2005.
BILTEREYST, D. and P. MEERS. “The international telenovela debate and the contra- flow
argument.” Media, Culture and Society 22(393-413), 2000.
53
Joseph D. Straubhaar
54
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos
ROWE, W. and V. SCHELLING. Memory and Modernity: Popular Culture in Latin America.
London, Verso, 1991.
SCHWOCH, J. The American Radio Industry and its Latin American Activities, 1939-1990.
Chicago, IL, University of Illinois Press, 1990.
SINCLAIR, J. Latin American television : a global view. New York, Oxford University Press,
1999.
SLATER, C. Stories on a String: The Brazilian Literatura de Cordel. Berkeley, CA, University
of California Press, 1982.
SODRE, M. A comunicação do grotesco. Petrópolis, Editora Vozes, 1972.
STRAUBHAAR, J. “The Development of the Telenovela as the Paramount Form of Popular
Culture in Brazil.” 138-50, 1982.
STRAUBHAAR, J. “Beyond Media Imperialism: Asymmetrical Interdependence and Cultu-
ral Proximity.” Critical Studies in Mass Communication(8): 1-11, 1991.
THUSSU, D. K., Ed. Media on the Move: Global Flow and Contra-Flow. New York Routle-
dge, 2007.
55
Joseph D. Straubhaar
56
A Pequena Imprensa
de Mato Grosso do Sul1
Daniela Cristiane Ota e Mario Luiz Fernandes
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
M
ato Grosso do Sul é um estado situado na região Centro-Oeste do Brasil, que conta
com 78 municípios e 165 distritos. Possui dois importantes biomas – Pantanal e Cer-
rado – e tem como base econômica atividades ligadas ao agronegócio. Segundo o
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) a população sul-mato-grossense no Censo
Demográfico de 2010 era de aproximadamente 2,5 milhões de habitantes.
Mato Grosso do Sul tem como limites os estados de Goiás (Nordeste), Minas Gerais (Leste),
Mato Grosso (Norte), Paraná (Sul) e São Paulo (Sudeste). Outra característica geográfica im-
portante é a fronteira com o Paraguai e a Bolívia. Historicamente, o Estado é um dos mais
novos do Brasil. Foi criado em 11 de outubro de 1977, por meio da Lei Complementar nº 31,
e instalado em 1979, pelo então presidente Ernesto Geisel.
Desde sua instalação, o Estado vem experimentando um acelerado crescimento em seus
aspectos econômicos e sociais. Movida por estes fatores, a mídia sul-mato-grossense
também passa por expressivo avanço. Nossa estimativa é de que entre 140 e 150 jornais
são editados no estado. Eles buscam atender a demanda de informação de 2,5 milhões
de habitantes com índice de alfabetização de 91,3% (IBGE 2010) e considerável renda per
capta, fatores que credenciam esses cidadãos a potenciais leitores.
No sistema de rádio são 132 emissoras comerciais – 74 FMs (Frequência Modulada), 56 OMs
(Onda Média), 02 OTs (Ondas Tropicais) – além de nove Educativas (FMs) e 76 Comunitárias
(FMs). Campo Grande, a capital, concentra 11,8% (26 rádios) desse total de emissoras. Entre
as seis principais cidades do estado que detém as maiores populações e indicadores eco-
nômicos essa concentração é de 28,7% (63 rádios).2 De acordo com a Agência Nacional de
Telecomunicações (Anatel), em fevereiro de 2011 Mato Grosso do Sul ainda contava com 29
canais em aberto para emissoras FM, cinco para OM e nove para Educativas.
Em televisão, são 15 emissoras comerciais de canal aberto e oito educativas. Neste siste-
ma de comunicação destacam-se alguns conglomerados regionais como a Rede MS de
Rádio e Televisão (afiliada à Rede Record), Rede Centro-Oeste de Rádio e TV (SBT), Rede
Mato-grossense de Televisão (Rede Globo) e TV Guanandi (Bandeirantes), entre outros.
De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD/IBGE – 2009), do
total de lares sul-mato-grossenses, 85,5% possuem aparelho de rádio, 96,9% de televi-
são, 92,8% de telefone fixo, 32,3% de microcomputadores e 24,8% de microcomputa-
dores com acesso à Internet. Esses índices colocam a informação, via meios eletrônicos,
ao alcance de praticamente toda a população.
1 Artigo apresentado no V Colóquio Brasil-EUA de Ciências da Comunicação. Chicago, 2012.
2 As cidades com o maior número de emissoras são: Campo Grande, a capital, com sete OMs, sete FMs, duas OTs; seis Comunitárias
e quatro Educativas; Corumbá com três FMs e quatro OMs, uma Educativa e duas Comunitárias; Dourados com três OMs, três FMs,
uma Educativa, uma Ondas Tropicais e duas Comunitárias; Três Lagoas com duas OMs, três FMs, uma Educativa e três Comunitá-
rias; Ponta Porã com duas OMs, três FMs e uma Comunitária; Coxim com duas OMs, uma FM e uma Comunitária.
Daniela Cristiane Ota e Mario Luiz Fernandes
E qual a estrutura dos pequenos jornais impressos de Mato Grosso do Sul? Em bus-
ca dessa resposta, estes pesquisadores colocaram em desenvolvimento do projeto de
pesquisa intitulado Perfil da pequena imprensa de Mato Grosso do Sul que tem como
objetivo diagnosticar este segmento de mercado quanto a: 1) Ordem estrutural – a) apu-
rar o número de pequenos jornais existentes no estado; b) levantar qual a estrutura da
pequena empresa jornalística; c) identificar as características do produto jornal; d) traçar
o perfil de seus jornalistas; e) identificar o perfil dos empresários do setor; 2) Ordem
conjuntural – a) avaliar o índice de crescimento destes veículos; b) identificar os fatores
sócio-econômicos e tecnológicos que contribuíram para este desempenho.
Como primeira fase desse projeto foi desenvolvido o Portal de Mídia (www.portaldemi-
dia.ufms.br) no qual estão postados os dados iniciais dos jornais localizados no estado.
Este paper tem como objetivo apresentar e interpretar esses esses primeiros dados que
foram o perfil mais geral da pequena imprensa de Mato Grosso do Sul. A rigor, o estado
não possui grandes jornais. Os dois principais, o Correio do Estado, tem uma tiragem de
apenas 17 mil exemplares dia, e O Estado, apenas 11 mil. Para efeito desse estudo, são
considerados como os dois maiores jornais e não foram enquadrados como objeto desta
pesquisa. Todos os demais jornais com linha editorial não segmentada, não institucio-
nais e com objetivos comerciais foram considerados.
Trata-se de uma pesquisa pioneira no estado e tem como relevância discutir construções
e desconstruções a respeito de um país de grandes dimensões como o Brasil, marcado
pela heterogeneidade, diversidade e contradições.
58
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos
Renato Ortiz (1999) e Alain Bourdin (2001) também citam que não é possível dar um con-
torno territorial preciso para o local/regional, uma vez que o mesmo se constitui em um
espaço onde as partes estão interconectadas. Dessa forma, os pesquisadores dizem que os
meios de comunicação que operam em nível local podem valorizar os sotaques e modos
de vida da população do entorno, observando múltiplas variáveis e atentando para fatores
como a proximidade, singularidade, diversidade e familiaridade, caracterizados abaixo:
O Portal de Mídia
A estrutura dos meios de comunicação de Mato Grosso do Sul, notadamente dos jornais
impressos, é uma incógnita. Quantos são, qual o montante de sua tiragem, quantos jor-
nalistas empregam, qual o faturamento e qual o alcance entre os leitores são algumas
das muitas questões sem respostas. O projeto de pesquisa Perfil da Pequena Imprensa de
Mato Grosso do Sul objetiva fazer o mapeamento desses jornais e traçar o perfil do setor.
O Portal reúne dados sobre a comunicação em geral e sobre o exercício da profissão de
jornalista. Agrega links de importantes sites da área como os de crítica de mídia, legislação
59
Daniela Cristiane Ota e Mario Luiz Fernandes
3 De acordo com o Censo Demográfico de 2010 do IBGE, os municípios são os seguintes: Ponta Porã (77.872 habitantes),
Três Lagoas (101.791), Corumbá (103.703), Dourados (196.035) e Campo Grande (786.797).
60
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos
Campo Grande, com seus 786 mil habitantes (potenciais leitores) e a maior concentração
de órgãos públicos e de empresas públicas e privadas (potenciais anunciantes), abriga o
maior número de jornais. Foram localizados 32 periódicos, do maior do estado, Correio
do Estado, com 17 mil exemplares dia, a publicações de bairros, de entidades, semaná-
rios entre outros. A cidade apresenta um fenômeno diferenciado no mercado editorial
brasileiro, que é a distribuição gratuita de jornais dominicais na avenida Afonso Pena.
São de 10 a 15 periódicos distribuídos a milhares de leitores que se deslocam pela manhã,
principalmente de carro, quase que exclusivamente para receber os jornais. Iniciado no
final da década de 80, o ritual já se tornou um programa habitual para muitos leitores.
Partindo para os indicadores constantes nas fichas dos jornais cadastrados no Portal,
emergem algumas características mais específicas destes veículos. A primeira delas é no
campo tecnológico. Dos 126 jornais, 70 (55,5%) possuem também uma versão online e
56 (44,5%) não. Como a maioria dos jornais na versão impressa (ver adiante) tem perio-
dicidade semanal e quinzenal, uma questão interessante a se pesquisar é a adequação
das pautas e dos conteúdos do online para o impresso e vice-versa, já que o jornalismo
online tem como uma das características a instantaneidade.
Outra característica de ordem tecnológica é a de que todos os jornais têm pelo menos
a capa e contra-capa coloridas. Muitos também apresentam algumas páginas coloridas
em seu interior. O sistema off-set e a cor têm contribuído para um grande avanço no
aspecto visual dos jornais, porém, o projeto gráfico de expressiva parcela deixa a desejar
quanto à legibilidade e hierarquização da informação. Falta uma melhor concepção es-
tética para que estes veículos obtenham mais qualidade visual.
A periodicidade dos jornais apresenta indicadores interessantes (quadro abaixo). Dos
126, 49 (38,8%) são semanários e 36 (28,6%) são quinzenais. Apenas 11 (8,7%) são diá-
rios. Essa é uma realidade que reflete a grande maioria da pequena imprensa distribuída
pelo interior do Brasil. Apenas como comparativo, segundo Fernandes (2003), dos 168
jornais que circulavam em Santa Catarina em 1999, 48% eram semanários e 19% eram
quinzenais. Esse indicador pode ser explicado em razão de fatores operacionais, dos
custos, da pouca intensidade dos fatos jornalísticos, do reduzido número de leitores e
de anunciantes nas pequenas comunidades. Nestes casos, a atualidade da notícia fica
circunscrita à periodicidade do veículo. Porém, tanto o semanário quanto o quinzenário,
em boa parte dos casos, parecem satisfazer a demanda do fluxo de informação local.
Como a maioria dos jornais não dispõe de gráfica própria, os custos com a impressão se
tornam elevados, o que dificulta a produção de um diário. Outro elemento complicador
é que, na maioria das vezes, a sede dos jornais é distante das gráficas, o que aumenta o
custo com o transporte e pessoal para levar e buscar o jornal. Mas o principal problema
é o reduzido mercado de anunciantes que na maioria dos municípios não propicia a sub-
sistência de jornais de maior porte. Como bem observa Marques de Melo (1973, p. 131),
“enquanto as cidades não atingem plena autonomia econômica e social, a imprensa será
sempre raquítica, ou, em alguns casos, inexistirá”.
Periodicidade
Periodicidade Nº de jornais %
Semanal 49 38,8
Quinzenal 36 28,6
Diário 11 8,7
Mensal 10 7,9
61
Daniela Cristiane Ota e Mario Luiz Fernandes
Periodicidade
Bi-semanal 05 3,9
Tri-semanal 01 0,8
A cada 10 dias 01 0,8
Não informado 13 10,3
Total 126 100
Portal de Mídia - www.portaldemidia.ufms.br
Ao contrário da região Sul do país onde a maioria dos jornais abraçou o formato tabló-
ide, em Mato Grosso do Sul 87 (69%) são standard e 39 (31%) são tablóides. Embora o
tablóide seja mais prático para a leitura, o standard ainda é considerado um formato que
transmite mais seriedade e também permite um projeto gráfico mais elaborado.
Como ocorre com grande parte dos jornais interioranos brasileiros, o período de sobre-
vida dessas empresas também é reduzido em Mato Grosso do Sul. O quadro a seguir
revela que 83 (65,8%) dos 126 atualmente em circulação surgiram entre 1996 e 2010,
um período de apenas 14 anos. Chama atenção também o fato de que dos jornais lan-
çados ente 1966 e 1970 já não há mais nenhuma circulação. Esse foi um dos períodos
mais duros da ditadura militar com a censura imposta aos meios de comunicação, mas é
provável que jornais tenham sido lançados até mesmo motivados pela própria ditadura,
como veículos de oposição ou situação. Porém, nenhum deles ainda perdura.
Tal definhamento suscita um outro interessante ponto de investigação e parece seguir
a tendência nacional das micro empresas onde, de cada 100, cerca de 70 fecham antes
de completar um ano de atividades. Muito em breve, menos da metade dos atuais 83
periódicos aqui destacados estarão fora de circulação. Além do fator econômico e da
falta de hábito de leitura dos brasileiros, agora há a forte concorrência com a Internet.
O índice de difusão dos pequenos jornais sempre foi uma incógnita, uma vez que não
são auditadas suas tiragens. Muitas vezes os números são elevados para impressionar o
mercado anunciante, o leitor e o concorrente. As informações levantadas nas fichas dos
jornais evidenciam que a maior faixa de tiragem está entre 1.001 e 3.000 exemplares
62
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos
com 36,5%. Como são jornais estritamente locais ou microrregionais cujas populações
são reduzidas, as tiragens também são pequenas. Além disso, acrescente-se o fato do
baixo de índice de leitura entre os brasileiros.
A segunda maior faixa, 15,1%, está entre três mil e cinco mil. O Correio do Estado (Cam-
po Grande), com tiragem declarada de 17.500 exemplares é único acima dos dez mil. Não
pode ser considerado um jornal de grande porte, mas é o maior de Mato Grosso do Sul.
No quadro a seguir, a distribuição dos jornais por faixa de tiragem.
Tiragem
Número de exemplares Nº jornais %
Até 1.000 exemplares 12 9,5
De 1.001 a 3.000 46 36,5
De 3.001 a 5.000 19 15,1
De 5.001 a 8.000 05 3,9
De 8.001 a 10.000 03 2,4
Acima de 10.000 01 0,8
Não informado 40 31,7
TOTAL 126 100
Portal de Mídia - www.portaldemidia.ufms.br
O quadro abaixo coloca em evidência o restrito alcance dos pequenos jornais quanto a
sua área de circulação.
Circulação
Quantidade de municípios nos quais circula Nº jornais %
De 1 a 5 62 49,2
De 6 a 10 24 19,0
Acima de 10 23 18,2
Não informado 17 13,5
TOTAL 126 100
Portal de Mídia - www.portaldemidia.ufms.br
Considerações
A pesquisa possibilitou a realização de um mapeamento inédito e bastante expressivo
dos jornais de Mato Grosso do Sul. Foram localizados 126 dos 140 a 150 que estimamos
existir no estado. Eles estão localizados em 44 municípios, o que evidência a falta de
jornais nos outros 34. Por outro lado, a média é de 2,8 jornais por município onde eles
existem, sendo que em vinte municípios circula apenas um jornal.
63
Daniela Cristiane Ota e Mario Luiz Fernandes
O projeto de pesquisa sobre o Perfil da pequena imprensa de Mato Grosso do Sul está na
sua fase inicial. Além do mapeamento, os jornais estão sendo visitados aplicados ques-
tionários junto aos empresários e jornalistas para diagnosticar a estrutura da empresa,
perfil do empresário, características do jornal e perfil do jornalista. Esse material mais
elaborado deve ser publicado em livro até o final do próximo ano.
Referências
ANATEL (2012). Agência Nacional de Telecomunicações. February Retrieved from
www.anatel.gov.br
BOURDIN, A. A questão local. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.
CAMPONEZ, C. Jornalismo de proximidade. Coimbra: Minerva Coimbra, 2002.
CASTELLS, M. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
CASTELLS, M. A era da informação: economia, sociedade e cultura, v. 1. São Paulo: Paz
e Terra, 2003.
COLLIER, M. J. Cultural identity and intercultural communication. In: Samovar, L. A. and Por-
ter, R. E. (ed.) Intercultural communication: a reader. Belmont: Wadsworth, p. 39-40, 1997.
FERNANDES, M. L. A força do jornal do interior. Itajaí: Univali, 2003.
HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 1998.
IANNI, O. Labirinto Latino Americano. Petrópolis: Vozes, 1997.
IANNI. Nacionalismo, regionalismo e globalismo. In: Bolaño, C. R. S. (Org.). Globalização
e Regionalização das Comunicações. São Paulo: Educ, 1999.
IBGE (2010). Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – Dados Demográficos, Censo
2010. Retrieved from www.ibge.gov.br
LÓPEZ GARCÍA, Xosé: “Medios locais do futuro e con futuro”, en Actas do II Coloquio
Brasil-Estado Español de Ciencias da Comunicación “Comunicación Audiovisual: investi-
gación e formación universitaria”. Santiago de Compostela: Universidade de Santiago de
Compostela, 1999.
PERUZZO, C. Mídia local, uma mídia de proximidade. Comunicação: Veredas nº 02,
novembro, 1993.
ORTIZ, R. Mundialização e Cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.
ORTIZ, R. Um outro território (2ª ed.). São Paulo: Olho d’Água, 1999.
ORTIZ, R. Cultura e sociedade global. São Paulo: Brasiliense, 1986.
Portal de Mídia (2012). Extraído de: www.portaldemidia.ufms.br
64
Reconstrução:
MediaNOLA em Chamas1
Mike F. Griffith, e Vicki A.Mayer
Tulane University – New Orleans
Introdução à MediaNOLA
D
epois da passagem do Furacão Katrina, a preservação da cultura de Nova Orleans
foi um dos mais importantes tópicos de discussão. Como instituição, a Tulane tinha
feito a transição para exigir que todos os estudantes de todas as classes comple-
tassem seus cursos de serviço público. Foi na intersecção destas pressões que o projeto
MediaNOLA surgiu. Nosso objetivo inicial era o de educar estudantes sobre as tradições
locais de Nova Orleans, treinando-os para serem produtores e guardiões de conhecimento
cultural. O que começou como um exercício de pesquisa regional e apresentação tornou-
-se um arquivo de ação humana e do processo que é como, ou até mais valioso, que as
informações enciclopédicas nele contidas.
Começamos o projeto MediaNOLA na primavera de 2009 com a intenção de fazer os estu-
dantes capturarem informações tanto geográficas quanto históricas em sites diretamente re-
lacionados com a produção de mídia (editores, espaços musicais, estúdios de gravação, etc.).
Esta noção limitada de “mídia” rapidamente mudou durante o curso dos próximos dois anos
na medida em que mais professores de diferentes disciplinas vieram para adicionar pesquisas
estudantis baseadas em tudo o que fosse local: de arquitetura e negócios a depoimentos
orais e história militar. Atualmente, “Mídia” na MediaNOLA que significa em latim “através
de”, o que mais se encaixa neste paradigma de cultura regional.
Mesmo com a drástica mudança de foco da MediaNOLA, nosso processo básico para
preencher o arquivo tem contado com a operacionalização da pesquisa digital e proces-
sos de escritas. Nosso processo básico para o projeto começou por treinar os estudantes
em processos e banco de dados que seriam necessários para fazer a pesquisa primária.
Ao mesmo tempo, teríamos que treiná-los no uso do MediaWiki (o mecanismo de có-
digo-fonte aberto que alimenta o Wikipedia). Finalmente, nós os ajudamos a fazer a
investigação necessária e capturar os dados de GIS (Sistema de Informações Geográficas)
para mapear historicamente o lugar.
No início deste projeto, era usado um sistema dividido. Tínhamos um MediaWiki per-
sonalizado que era hospedado localmente em servidores de Tulane, assim como um
ambiente compartilhado de informações geográficas (GIS) que foi construído em cola-
boração com um projeto semelhante da Universidade do Texas, em Austin. Esta divisão
levou a uma feliz duplicação de informações, nós capturávamos as histórias e coorde-
nadas básicas do Google Maps na MediaWiki, enquanto o GIS de níveis superiores de
mapeamento e pesquisa estava localizado no software companheiro. No fim de 2011,
nosso desenvolvedor desertou da fonte aberta para o setor comercial e levou uma boa
parte do trabalho do GIS com ele. Foi sorte termos duplicado os dados de coordenadas
quando nossos dados do GIS foram embora com este desenvolvedor.
Esta deserção nos deu a oportunidade de repensar nosso desenvolvimento local e a natu-
reza do relacionamento entre os dados do GIS e as histórias de mídia. Queríamos manter
os conjuntos de recursos da plataforma MediaWiki, enquanto construíamos a pesquisa
do GIS em cima dessas páginas Wiki2. Uma das maiores vantagens da MediaWiki é sua
habilidade para controlar versões de cada página no sistema. Todas as alterações são con-
2 Wiki é um conjunto de páginas interligadas, e cada uma delas pode ser visitada e editada por qualquer pessoa. Você pode editar
esta página, clicando no separador no início da página (ou no link no fim da página, dependendo do template que estiver usando).
66
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos
troladas por versão e usuário. Este recurso é útil para ver qual estudante contribuiu para
grande parte da informação, mas é também útil para acompanhar a forma como os estu-
dantes desenvolvem suas narrativas. Enquanto que inicialmente pensávamos que estáva-
mos construindo um repositório de documentação cultural, percebemos que estávamos
também construindo um registro vivo das respostas dos nossos alunos à pedagogia tec-
nológica, a pesquisa cultural/histórica e composição mediada.
Ao longo dos anos de trabalho neste ambiente desenvolvemos uma série de exercícios
pedagógicos para os estudantes. Um dos nossos projetos mais bem sucedidos é ter os es-
tudantes de graduação contribuindo para uma wiki que já existe para ver como a narrativa
geral muda sob a luz de novas evidências. O ambiente MediaNOLA requer este tipo de
colaboração. É improvável que um estudante em um semestre será capaz de contar qual-
quer tipo de história definitiva de qualquer objeto cultural, lugar ou prática. Mesmo que
fosse possível que os alunos coletassem e reunissem a grande maioria dos recursos disponí-
veis, essa história ainda seria contada por apenas uma perspectiva. Dentro da MediaNOLA
múltiplas vozes levam a múltiplas perspectivas. Nas seções a seguir, examinaremos algumas
das perspectivas pedagógicas e teóricas que definem a natureza deste espaço digital com
67
Mike F. Griffith e Vicki A.Mayer
A tensão primária no trabalho de Bush está entre o poder da memória e nossa capaci-
dade de aumentá-la. Para Bush a extensão tecnológica da memória é simplesmente um
meio através do qual podemos armazenar e recuperar informações que possam ser úteis
mais tarde. Bush descreve o prazer em desenvolver a arte do esquecimento.
3 Vannevar Bush, “As We May Think.” in The New Media Reader, ed. Noah Wardrip-Fruin and Nick Montfort, 47.
4 O Memex (amálgama de memory + index) foi uma máquina visionária imaginada para auxiliar a memória e guardar conhecimen-
tos. O cientista americano Vannevar Bush anunciou-a em 1945, no célebre artigo intitulado As We May Think.
5 Bush, “As We May Think,” 45.
6 Bush, “As We May Think,” 42.
68
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos
Isto deveria, antes de mais nada, lembrar-nos que o dito arquivo tecnológico
não determina mais, e nunca terá determinado, apenas o momento da gra-
vação de conservação, mas sim a própria instituição do evento arquivável.8
Derrida não vê memória como intercambiável com o arquivo por vários razões. Primeiro,
que o arquivo existe como um meio externo para o mecanismo interno da memória. Em
sua melhor forma o arquivo estará no futuro. Isto é, uma promessa de futuro.
Esta não é uma questão de um conceito de lidar com o passado que pode já
estar a nossa disposição, um conceito arquivável de arquivo. É uma questão
de futuro, a questão do futuro em si, a questão de uma resposta, de uma
promessa e uma responsabilidade para amanhã. O arquivo: se queremos sa-
ber o que isso vai significar, saberemos apenas em tempos que virão.9
A fascinação pelo arquivo esta relacionada com a experiência de uma promessa de fu-
turo combinada ao prazer de estase. Derrida vê esse prazer na estática como sendo “in-
dissociável do desejo pela morte.”10 A compulsão pelo esquecimento é ligada a uma ten-
dência para a autodestruição. Baseando-se profundamente na autobiografia de Freud,
Derrida imagina o arquivo é como uma força para compartimentar o que não se pode ser
confrontado mentalmente. Neste sentido, o mal do arquivo permite que uma sociedade
evite a responsabilidade ética que Bush advogou.
A dicotomia entre aumento e estagnação é fundamental para as humanidades digitais e
para a preservação digital de projetos como o MediaNOLA. O pressuposto fundamental
por trás destes projetos é que eles coletam e preservam artefatos culturais nele docu-
mentados. De várias formas, o projeto MediaNOLA está construindo um arquivo das
interações dos participantes com outras formas contemporâneas do arquivo, tais como
blogs, Flickr, e novos repositórios institucionais. Em uma volta recente para os arquivos
de rede, estudantes de várias classes têm materiais digitalizados em arquivos físicos para
7 Bush, “As We May Think,” 47.
8 Jacques Derrida, “Archive Fever: A Freudian Impression.” Diacritics 25 (1995): 18.
9 Derrida, “Archive Fever,” 27.
10 Derrida, “Archive Fever,” 14.
69
Mike F. Griffith e Vicki A.Mayer
Derrida nos conta que a criação do arquivo é a desconstrução da agência pessoal através
da abdicação da memória. A substituição tecnológica desta memória pode ser aumen-
tada, mas não é anamnese.
11 Derrida, “Archive Fever,” 14.
70
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos
A MediaNOLA e sua família de humanidades digitais não deve ser vista como uma preserva-
ção da cultura mas como um mapa contemporâneo da intersecção entre nossa compreen-
são da tecnologia e os materiais que estas mídias disponibilizam para nossa pesquisa. Parte
desta tensão pode ser vista nas abordagens de filtragem que vários projetos de humani-
dades digitais tomam. Este debate em andamento está relacionado à promessa de futuro
anteriormente discutida que é inerente no arquivo. Talvez não saibamos o que estamos cap-
turando e um filtro dirigido esta apenas disponibilizando uma banda pequena de conteúdo
que será inútil ao futuro. É óbvio que este debate sobre a largura da banda estende-se não
apenas ao conteúdo, mas à nossa capacidade de fazer uso significativo do arquivo.
Wendy Chun faz excelente uso desta tensão em seu artigo “O Contínuo Efêmero, ou o Fu-
turo é uma Memória” (“The Enduring Ephemeral, or the Future Is a Memory”). Para Chun
a ideia cultural de memória digital esta baseada num processo de degeneração negado.
Chun vê este processo de memória digital como mais dinâmico que Derrida ou Bush. Desde
que memória digital é definida por este processo de degeneração deferida, a duração do
conteúdo é mantida separada do meio. Enquanto a informação contida em mídias mais an-
tigas sofriam de uma degeneração linear bastante previsível, um parte do conteúdo na Inter-
net está em um estado relativo de fluxo. O conteúdo de mídia emergente pode nem sempre
estar disponível ou pode não estar acessível no mesmo local. Curiosamente, a Internet como
existe agora é baseada em um sistema localização. Uma parte do conteúdo é atribuído um
endereço que se relaciona à sua existência em um determinado servidor em um endereço
de IP específico. Ter apenas o endereço não garante a presença do conteúdo em questão.
Estas páginas não estão de fato mortas, mas tampouco vivas; a comemora-
ção apropriada requer maior esforço. Estas lacunas ou este esqueleto não
visualiza apenas o fato que nossas constantes regenerações afetam o que é
regenerado, mas também como estas lacunas - a irreversibilidade da lógica
causal programável - abre a rede como arquivo para um futuro que não iria
ser uma simples memória aprimorada do passado.13
12 Wen dy Chun, “The Enduring Ephemeral, or the Future Is a Memory,” Critical Inquiry 35 (2008): 167.
13 Chun, “The Enduring Ephemeral,” 169.
71
Mike F. Griffith e Vicki A.Mayer
cultural. Segundo, devemos lutar contra a degeneração do conteúdo digital que criamos
para preservar este espaço. Cada vez que esta degeneração digital é interrompida o proces-
so altera a memória reconstituída. Esta conclusão faz o trabalho das humanidades digitais
arquivar tanto sobre a coerência da memória digital quanto sobre o conteúdo de arquivo.
O resultado desta ordem é um “arquivo de sombra” que simultaneamente cria e ordena in-
divíduos dentro de um espaço social. É importante então que Sekula amarre a imagem fo-
tográfica ao aparecimento do trabalho de policiamento e o estabelecimento de uma nova
elite cultural durante o final do século dezenove. Sua implicação é que o arquivo é uma
ferramenta hegemônica; seus sistemas de ordenação reforçam a ordem social. Até mesmo
arquivos criados para resistir à ordem social apoiará a lei de classificação, de acordo com
Sekula. Ele usa o exemplo do livro de Ernest Cole, House of Bondage, que documenta as
práticas de Apartheid da África do Sul para organizar e documentar seus sujeitos por raça.
Enquanto foi criado como uma crítica a estas práticas, a polícia Sul Africana acaba o
cooptando como um index do real sistema de ordem racial. Este é um arquivo que -
mesmo que compartilhe um meio com o arquivo que é documentado - conduz para na
verdade criar um arquivo do processo de arquivamento dominante. É claro que ainda
devemos considerar o fato que a autoridade e a legitimidade deste arquivo de segunda
ordem são diretamente herdadas através do mais antigo impulso imperial do meio.
Sob a luz destes conceitos de arquivo podemos ver uma utilidade na “instituição do evento
arquivável”, de Derrida. Até agora vimos que um arquivo pode ser uma simples consolida-
ção de uma autoridade cultural específica ou uma entidade mais complexa capaz de enfra-
quecer a expressão dominante de uma autoridade cultural. Deleuze e Guattari levam este
14 Gilles Deleuze and Felix Guattari, A Thousand Plateaus (Minneapolis: University of Minnesota Press, 1987), 3.
15 Allan Sekula, “The Body and the Archive,” October 39 (1986): 10.
72
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos
evento além com seu conceito da natureza rizomática do arquivo. Para Deleuze e Guattari
a multiplicidade de assemblagens mediadas presentes na cultura contemporânea nos le-
vou a indivíduos além das classificações rudes inerentes nos arquivos discutidos até aqui.
73
Mike F. Griffith e Vicki A.Mayer
As práticas estabelecidas dos participantes são então filtradas através da prática acadê-
mica e pedagógica que estabelecemos para a gestão do sítio.
A MediaNOLA extraiu suas categorias originais do Austin Memory Project, um site, ago-
ra extinto, que conseguiu dados em categorias de distinção cultural formulada por Pierre
Bourdieu.19 Estas categorias, como lojas de livros e cafés, formaram a base para a análise
de Bordieu sobre a reprodução de classes sociais francesas no final dos anos 1970. A Me-
diaNOLA então subsiste pela lei do que pode ser dito sobre Nova Orleans colocando estes
conteúdos em seus locais e práticas apropriadas, ditas a indexar outra ordem social. Não é
surpresa descobrirmos que algumas categorias seriam difíceis de preencher. De fato a loja
de livros e o café não tem entradas. Não é que estes locais não existam na história regional,
mas que eles não indexam ao sistema da ordem social por disciplina ou distinção. O que
se seguiu foi caos de arquivo. Professores e alunos seguiram um estilo “na hora certa” de
arquivar fazendo categorias baseadas no conteúdo ao invés de em qualquer lógica biblio-
tecária abrangente. Enquanto entradas da guerra civil sobre o Antigo Sul e uma série de
submarinos eram arquivados como “marcos” na pressa de ter as coisas colocadas na rubrica
das categorias, outras categorias, como “pesca” eram basicamente feitas sob encomenda
por um pedaço vago de conteúdo wiki. Além disto, as marcações de artigos nunca foram
reguladas, produzindo uma cacofonia de associações entre autor, seus colegas, e o profes-
sor. Estas características exigiram a assistência de um arquivista profissional para ajudar a
reorganizar o sítio de acordo com classificações que poderiam ser melhor reconhecíveis aos
especialistas, mas também suplantar a autoridade dos estudantes sobre seus trabalhos.
A ordem e o caos operam em conjunto através de práticas estudantis e guarda docente.
O que parece comandar a maneira com o que o membro docente diz a uma classe como
ordenar seu trabalho colide com outras classes ensinadas usando outros sistemas de ordena-
mento disciplinar. Por exemplo, a inclinação dos alunos de história em direção ao “evento”
como base de ordem 20 [xvii] assenta-se desconfortavelmente com a investigação de tipos de
negócios não lucrativos dos alunos de comunicação em uma ala da cidade. O valor pedagó-
gico do sítio não se dá em forçar alunos a um canal estreito na criação de seus nódulos. Cada
classe que se engaja com a MediaNOLA o faz de uma perspectiva pedagógica diferente. Os
membros docentes que utilizam o sítio fazem-no estrategicamente no desenvolvimento de
suas aulas, mas o arquivo é criado através de engajamentos táticos dos estudantes dentro
deste espaço. Este espaço tático permite aos estudantes criarem o que Deleuze e Guattari
chamam de “mapas” em oposição aos “traços” vazios do arquivo estático.
O que distingue o mapa do traçado é que ele é inteiramente orientado para uma
experimentação no contato com o real [...] O mapa é aberto e conectável em
todas suas dimensões; é destacável, reversível e suscetível a constante mudança.
Pode ser rasgado, revertido, adaptado a qualquer tipo de montagem, retraba-
lhado por um indivíduo, grupo ou formação social. Pode ser desenhado em uma
parede, concebido como peça de arte, construído como uma ação política ou
como uma meditação [...] Um mapa tem múltiplas entradas, oposto ao traçado,
que sempre volta ‘ao mesmo’. O mapa relaciona-se com performance, enquanto
o traçado envolve uma ‘competência’ alegada.21
Os nódulos no mapa que a MediaNOLA está construindo não pode ser ressuscitado com
o acúmulo de bens de arquivos. Estes nódulos só podem ser criados como parte de uma
negociação contínua entre os participantes criando as páginas, a prática cultural das fer-
19 Pierre Bourdieu, Distinction, (Boston: Harvard University Press, 1984) 6-7.
20 Veja por exemplo, Hayden White, “The Historical Event,” Differences 19 (2008): 9-34.
21 Deleuze and Guattari. A Thousand Plateaus, 12-3.
74
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos
O arquivo de Foucault é o espaço em que cada discurso existe. Não é um ambiente está-
tico do qual o propósito é a preservação de declarações anteriores válidas. Neste ponto
Derrida e Foucault concordam. Enquanto Derrida vê o arquivo como criando a “institui-
ção do evento arquivável,” Foucault vê o arquivo como permitindo a declaração-evento
em sua raiz. Para ambos os teóricos é difícil criar uma postura crítica de dentro da estru-
tura de um arquivo ativo culturalmente.
A análise do arquivo, então, envolve uma região privilegiada: uma vez perto de
nós, e diferente da nossa existência presente, é a fronteira do tempo que cerca
nossa presença, beira-a, e que a indica em sua alteridade... A descrição do arqui-
vo implanta suas possibilidades (e o domínio de suas possibilidades) com base no
próprio discurso que acaba de deixar de ser nosso; seu limite de existência é esta-
belecido pela descontinuidade que nos separa do que não podemos mais dizer.24
Esta perspectiva conta com a análise vinda de fora do arquivo. O que Derrida e Foucault
ignoram é o impacto que novas formas de mediação têm em remarcar o conteúdo do
arquivo. Com as novas ferramentas de mídia agora disponíveis, estes eventos arquiváveis
anteriormente estáticos tornaram-se os materiais crus de sistemas emergentes de comu-
nicação. Há uma mudança entre os arquivos materiais onde nossa pesquisa é feita e o
arquivo dinâmico onde os nódulos são sintetizados.
Henry Jenkins vê a emergência de espaço de rede criando novos momentos de expressão
através do desenvolvimento de cultura remisturada. Ao agrupar grupos afins, indiví-
duos são capazes de criar significados através da contextualização e descontextualiza-
ção do conteúdo de arquivo.
22 Michel Foucault, The Archaeology of Knowledge. (New York: Random House, 1972), 129-30.
23 Michel Foucault, The Archaeology of Knowledge, 127.
24 Michel Foucault, The Archaeology of Knowledge, 130.
75
Mike F. Griffith e Vicki A.Mayer
76
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos
para corresponder os interesses sociais imediatos do grupo. Entradas sobre filmes, bares e
clubes de música projeta a atual popularidade destes objetos e espaços entre universitários
em direção ao passado. A curadoria social coletiva deste conteúdo nem sempre revela algo
do local original explorado, mas também fala sobre o contexto social em que a restauração
ocorre. Quando examinadas ao longo do tempo os projetos de humanidades digitais estão
criando arquivos que indicam a importância social/cultural dos espaços culturais arquiva-
dos no processo acadêmico que tenta gravá-los e preservá-los.
Conclusão
O meio não é de modo algum a média; ao contrário, é onde as coisas tomam velocidade. En-
tre as coisas que não designa uma relação localizável indo de uma coisa para a outra e então
novamente de volta, mas uma direção perpendicular, um movimento transversal que varre
um e o outro para longe, uma corrente que mina seus bancos e toma velocidade no meio.27
Quando estabelecemos o projeto MediaNOLA nossa preocupação inicial era documen-
tar as relações complexas entre a cidade de Nova Orleans e o legado dos sítios quando
muito de sua herança cultural foi criada. Ao que o projeto cresceu para incorporar as
iniciativas pedagógicas de outros parceiros, o arquivo virou uma entidade diversa com
problemas relacionados ambos a geração e consistência do conteúdo. Um arquivo desta
natureza está constantemente lutando com o fluxo geral da Internet como um todo
assim como a evolução contínua da abordagem pedagógica para o processo de arquivo.
A natureza deste arquivo não está nas ligações entre conteúdos, mas sim no coletivo social
que monta e mantém estes links. Um arquivo de humanidades digitais não pode se regenerar
sem esta participação coletiva. Apenas contabilizando o tempo que usamos para administrar
aspectos pedagógicos assim como tecnológicos deste projeto, pode parecer que a razão que
muitas destas iniciativas de arquivos falham é sua dependência em um ou em um pequeno
grupo de indivíduos para que mantenham sua memória digital intacta. Para a MediaNOLA o
desafio tem sido achar um equilíbrio entre a pesquisa em que os alunos estão interessados
em fazer e a manutenção diária que é necessária para a saúde do site. O resultado deste ato
de equilíbrio é um sítio que está sempre em estado de mudança. Este fluxo vai além do con-
ceito de Chun de uma memória digital reescrita como parte de sua restauração. A natureza
fundamental do sítio muda ao que novos projetos começam e antigos são deixados para trás.
O sucesso do sítio é que ele tem sido flexível o suficiente para permitir que estudantes man-
tenham um papel chave no processo de arquivo. Isto se torna evidente ao que a MediaNOLA
move-se entre binários de aumento e estagnação, ordem e caos, e recitação e participação.
A melhor posição que um arquivo de humanidades digitais pode ocupar é o espaço de
interstício entre o espaço cultural do sujeito e a prática cultural de geração de arquivo.
Esta geração é um processo multivalente. No primeiro nível, o arquivo é mediação gerada
entre o arquivista individual e as várias mídias que contém o conteúdo primário do sujei-
to. Estas mídias são processadas através da prática cultural e acadêmica contemporânea
do arquivista dentro do arquivo de mídia emergente. Uma vez que esta “memória” ou
“momento de arquivamento” tenha sido criado, ele se torna sujeito do processo de dege-
neração e regeneração que Chun argumenta em seu trabalho. O processo regenerativo
nas humanidades digitais é movido por colaboração social e mudança de prioridades
culturais. Este fluxo contínuo é exacerbado pelos limites temporais arraigados de trabalho
acadêmico. Cada novo grupo de estudantes carrega novas prioridades e novos relacio-
77
Mike F. Griffith e Vicki A.Mayer
namentos com a mídia que irá finalmente afetar a visão institucional geral do arquivo.
Projetos de humanidades digitais de sucesso devem manter este espaço do meio.
Os arquivos que estamos criando não são fontes históricas estritamente. Desde que mu-
dança e regeneração são aspectos fundamentais da sua sobrevivência, a história destes
arquivos apresenta um registro de nossas relações que mudam com novas formas de mídia
assim como a natureza das relações entre a comunidade acadêmica e a autoridade local
que tentamos arquivar. A chave aqui é participação. Quando estudantes, acadêmicos e
membros da comunidade não estão todos apenas contribuindo para a criação do arquivo
memória, mas também considerando as relações entre seus espaços culturais e a presença
da mídia emergente, são nestes momentos de colaboração que o arquivo de humanida-
des digitais torna-se significativo. Sem uma presença social que constantemente recodifica
significado, tudo o que temos construído são arquivos mortos para serem esquecidos em
servidores abandonados. A chave para estes projetos é a vital representação da autoridade
local e o questionamento contínuo da mediação que planeja criar estes nódulos.
Notas
[i] Vannevar Bush, “As We May Think.” in The New Media Reader, ed. Noah Wardrip-
-Fruin and Nick Montfort, 47.
[ii] Bush, “As We May Think,” 45.
[iii] Bush, “As We May Think,” 42.
[iv] Bush, “As We May Think,” 47.
[v] Jacques Derrida, “Archive Fever: A Freudian Impression.” Diacritics 25 (1995): 18.
[vi] Derrida, “Archive Fever,” 27.
[vii] Derrida, “Archive Fever,” 14.
[viii] Derrida, “Archive Fever,” 14.
[ix] Wendy Chun, “The Enduring Ephemeral, or the Future Is a Memory,” Critical Inquiry
35 (2008): 167.
[x] Chun, “The Enduring Ephemeral,” 169.
[xi]Gilles Deleuze and Felix Guattari, A Thousand Plateaus (Minneapolis: University of
Minnesota Press, 1987), 3.
[xii] Allan Sekula, “The Body and the Archive,” October 39 (1986): 10.
[xiii] Deleuze and Guattari. A Thousand Plateaus, 4.
[xiv] Deleuze and Guattari. A Thousand Plateaus, 8.
[xv] Interestingly, Deleuze and Guattari wrote A Thousand Plateaus in 1980, a good fifte-
en years before Derrida’s “Archive Fever”. While Derrida was writing on the cusp of the
Internet’s explosion into everyday life, Deleuze and Guattari have a better understanding
as to what the proliferation of mediated forms will mean for the archival construction
of cultural memory.
[xvi] Pierre Bourdieu, Distinction, (Boston: Harvard University Press, 1984) 6-7.
[xvii] See for example, Hayden White, “The Historical Event,” Differences 19 (2008): 9-34.
78
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos
79
Mike F. Griffith e Vicki A.Mayer
80
Ensino de Jornalismo Brasil-EUA:
o Legado de Pulitzer nos Tempos
do Capitalismo Financeiro1
Alice Mitika Koshiyama
Universidade de São Paulo
O
conhecimento do passado pode nos inspirar, oprimir ou libertar. Ao propor uma
história de personagens escolhemos nossos heróis ou vilões. Mas, ao mesmo
tempo, definimos, no caso da história do jornalismo, as figuras representativas
para uma avaliação do campo, sobre formação de jornalistas.
A escolha de Joseph Pulitzer dos EUA e de Cásper Líbero do Brasil para inspirar nosso per-
curso sobre o ensino de jornalismo não foi aleatória. São personagens significativos para
a história da profissão de jornalista, bem sucedidos em seus negócios e preocupados
em formar novos quadros profissionais. Jornalismo é uma profissão com mitos e ídolos
presentes nos meios de comunicação de massa e que atrai personagens com diferentes
perfis intelectuais e morais. E que tem uma tradição de negócios e também de militância
e que é parte do exercício do poder e da política e um meio presente no estado demo-
crático de direito e em luta contra os regimes autoritários e ditatoriais.
Trata-se de profissão que precisa ser aprendida e pode ser ensinada. Como e onde são
questões ainda polêmicas, embora haja uma suficiente experiência prática e acadêmica
para alimentar debates e permitir a instalação e desenvolvimento de cursos em nível de
graduação e de pós-graduação, no Brasil e nos Estados Unidos.
É uma profissão que tem uma especificidade, hoje posta em questão na cultura dos
meios de comunicação, pela promiscuidade de interesses do trabalho jornalístico com
áreas como publicidade, relações públicas, mercadologia, além das constantes tentati-
vas para se domesticar as ações do campo do jornalismo propriamente dito. Práticas an-
tes identificadas como atividades impróprias de jornalistas, hoje são identificadas como
aceitáveis atividades de mercado. É o caso da distinção entre jornalismo e assessoria de
imprensa no Brasil, que até os anos oitenta do século passado eram atividades distintas
pertencentes a sindicatos profissionais diversos.
É uma ma profissão também colhida pela reestruturação produtiva no capitalismo, tendo
conseqüências para o mercado de trabalho e para a formação de futuros profissionais.
Mas, o que é jornalismo? – perguntam os pesquisadores, os professores e os próprios
jornalistas, ao se verem na situação de defini-lo. Vários autores avaliaram a bibliografia
produzida sobre o tema para colocá-la sob perspectiva crítica. Dentre eles, destacamos
Maurício Tuffani (2005). Seu trabalho – “Diploma de Jornalismo. Regulamentação deve
1 Artigo apresentado no V Colóquio Brasil-EUA de Ciências da Comunicação. Chicago, 2012.
Alice Mitika Koshiyama
82
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos
Um ano após o seu falecimento, em 1912, foi criada a Columbia School of Journalism. No
mesmo ano, surgiu a revista Columbia Journalism Review, que veicula temas referentes ao
exercício da profissão e o seu ensino, um eficiente instrumento para a formação permanen-
te de profissionais novos e aperfeiçoamento de antigos quadros. E um corpo de administra-
dores se encarrega de outorgar, a partir de 1917, o prêmio Pulitzer para jornalistas. O curso
de jornalismo, o prêmio Pulitzer e a publicação da revista de jornalismo são procedimentos
construídos para manter um clima permanente de atenção para as questões da profissão.
O legado de Pulitzer permanece no século XXI, quando, mais uma vez, jornalistas profis-
sionais e professores expõem a crença no ensino de jornalismo e buscam reavaliar como
formar jornalistas preparados para enfrentar as mudanças na sociedade norte-america-
na. Debatem sobre o modo de fazer um melhor trabalho, criticam seus procedimentos,
buscam opiniões que os desafiam, estão convencidos da utilidade dos estudos em uma
universidade. Mas sabem que a escola precisa atender as demandas dos potenciais jor-
nalistas de hoje. Dentre os textos de professores da Universidade, temos um trabalho crí-
tico, equilibrado e abrangente em suas proposições, o de Brent Cunnigham – “Em busca
2 No original em inglês: “Our Republic and its press will rise or fall together. An able, disinterested, public-spirited press,
with trained intelligence to know the right and courage to do it, can preserve that public virtue without which popular
government is a sham and a mockery. A cynical, mercenary, demagogic press will produce in time a people as base as itself.
The power to mould the future of the Republic will be in the hands of the journalists of future generations.”
83
Alice Mitika Koshiyama
84
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos
85
Alice Mitika Koshiyama
3 Notamos que em 2015, quase todos os cursos da USP incentivam seus alunos a fazerem disciplinas optativas em outros
cursos da universidade, abrindo os currículos, estimulando uma formação mais diversificada.
86
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos
B) Concepção do currículo como instrumento que expressa uma concepção mundo, uma
visão do trabalho sobre uma área. Do ponto de vista operacional, um currículo explicita os
interesses do corpo docente sobre as suas possibilidades de ensino. Em relação aos alunos,
é um roteiro para direcionar o trânsito rumo ao diploma, abrindo ou fechando caminhos.
Até a vigência do currículo implantado nos anos noventa, a formação do curso de Jorna-
lismo era feita inteiramente na ECA, com uma constante manifestação dos alunos sobre
a insuficiência e a fragmentação da proposta de ensino.
C) Análise do currículo vigente: princípios, operação e alguns resultados. O currículo implan-
tado nos anos noventa foi pensado a partir de uma análise do jornalismo como um trabalho
que exige do profissional uma sólida formação ética, política e técnica, sendo uma ativida-
de fundamental na sociedade democrática. Este projeto de currículo dos anos noventa pla-
nejou a formação de jornalistas com conhecimentos diversificados e projetos de carreiras
para suprir às múltiplas necessidades da sociedade brasileira, das corporações jornalísticas a
organizações não governamentais – em que temos jornalistas formados na ECA-USP.
A proposta implantada avaliou as possibilidades do sistema USP considerando as variá-
veis: alunos, docentes, aprendizagem e mercado de trabalho.
1. Neste currículo, os potenciais jornalistas, alunos da ECA, que ao entrar na escola,
chegam com um repertório de conhecimentos e interesses heterogêneos, são es-
timulados a participar da construção do seu conhecimento, usando a estrutura da
USP. Foi pensado um currículo para otimizar os recursos da USP a favor da capacida-
de individual de cada aluno que entra no Curso de Jornalismo. Por isso, o currículo
obriga à freqüência de disciplinas obrigatórias no Departamento e optativas, parte
na ECA e parte na Universidade de São Paulo. Esta obrigatoriedade de transitar pela
Universidade permite a cada aluno montar seu currículo final personalizado.
2. Para os professores que atuam no Curso de Jornalismo, o currículo com a obrigato-
riedade dos alunos freqüentarem, em suas optativas, outras áreas da ECA e outras
unidades da USP trouxe uma possibilidade de organizar o seu campo de atuação de
um modo mais racional. Foi possível dimensionar os limites de cada disciplina e, ao
mesmo tempo, estimular os alunos a buscarem, em outras áreas da Universidade, no-
vas abordagens. O corpo docente do Departamento de Jornalismo não carrega mais a
responsabilidade de uma missão impossível, a de oferecer toda a formação necessária
para o futuro jornalista.
3. Houve também uma transformação na relação dos alunos com a aprendizagem. O
contato com metodologias de trabalho de outras áreas de conhecimento na univer-
sidade, que não jornalismo e comunicação, traz uma dimensão mais abrangente da
relação do jornalismo com sociedade e reforça a compreensão das necessidades da
formação profissional ministrada no Departamento.
4. No mercado de trabalho, os alunos de Jornalismo da ECA, que se empenharam em suas
formações com as possibilidades do currículo vigente, tiveram as vantagens de concorrer
com currículos personalizados, valorizados no confronto com os currículos de profissio-
nais formados em outras propostas, desenvolvidas em condições mais limitadas.
Concluímos que a história das experiências concretas com diferentes projetos curricula-
res, que vivenciamos ao longo da nossa carreira docente, e principalmente a experiência
do currículo do Curso de Jornalismo vigente que comentamos, oferece significativos
argumentos em defesa da manutenção da abertura do currículo da área para outras
87
Alice Mitika Koshiyama
formações da USP, ressalvando que é uma proposta que valoriza os nossos alunos e as
nossas possibilidades como instituição de ensino.
(...)
Accardo afirma que ”basta entregar as rédeas do poder jornalístico nas redações aos
homens e mulheres geralmente qualificados como “excelentes profissionais”, o que sig-
nifica que nunca deixaram de dar provas de sua adesão a uma visão de mundo cujas
crenças fundamentais compartilham, explícita ou implicitamente, com seus patrões.”
(ACCARDO, 2000). São esses profissionais que fazem “um recrutamento destinado a
impedir a entrada de raposas no galinheiro ou de hereges na missa”, afirma o autor. Ele
descreve um sistema integrado que funciona permanentemente:
No Brasil, jornalistas que integram o mercado de trabalho devem enfrentar as novas rea-
lidades, conforme mostram diversos estudos de campo, dos quais destacamos o estudo
88
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos
de Jorge Cláudio Ribeiro (1994), que examinou a introdução dos sistemas informatizados
nas redações de O Estado de S. Paulo e Folha de S. Paulo, e de José Roberto Heloani
(2003), psicólogo social e do trabalho, que fez um estudo de campo com jornalistas que
atuam em redações, rádios e televisões sobre as múltiplas e extensas jornadas de traba-
lho imprescindíveis para a sobrevivência financeira. Temos nesse contexto, uma degrada-
ção e precarização das condições de trabalho de todos trabalhadores.
Vivemos na infoera, que Zuffo especifica: “a era da informação que está mudando os valores
da sociedade e o relacionamento humano.” Nesta época temos bens que são intangíveis, não
quantificáveis, como o software, temos um excesso de informação cada vez mais intenso que
o nosso cérebro precisa selecionar o mais importante e útil para nós e descartar o excesso.
Os estudos devem formar para lidar com as mudanças constantes, “cursos superiores
que tenham uma base sólida, calcada em humanidades e artes, que desenvolva a capa-
cidade de saber o que quer, onde encontrar e como selecionar o que precisa” propõe
Zuffo. Cursos rápidos serão para conhecimentos mais técnicos e específicos. Todos deve-
rão fazer constantes cursos de complementação e atualização, online, com orientadores
especialistas. E a educação será permanente, pois o conhecimento adquirido terá que ser
constantemente atualizado.
89
Alice Mitika Koshiyama
Nos Estados Unidos, o acesso à profissão não depende da posse de um diploma espe-
cífico de jornalista. Sem reserva de mercado para os detentores de diplomas, existe a
permanente avaliação dos problemas da profissão pela academia e pelos jornalistas em
atividade e a valorização dos estudos universitários. Há um consenso sobre a necessida-
de de preparação para que alguém exerça a profissão com competência. Conhecimentos
e experiências de vida importam para o jornalista de hoje e do futuro, o que significa as-
sumir novas concepções de educação, a partir da compreensão das condições do mundo
no processo de reestruturação produtiva do capitalismo e da mudança de valores, com
os paradigmas da globalização e da perda dos direitos dos trabalhadores e da infoera.
Nesta sociedade o ensino universitário de jornalismo deve constantemente avaliar os
modos mais adequados para atender aos estudantes oferecendo-lhes orientações e es-
colhas em seus currículos e respeitando as opções de estudos. Como assinalam as pro-
postas curriculares de Brent Cunningham, da Universidade de Columbia, e as do curso de
Jornalismo da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, o ensino
respeita a possibilidade de enfrentar as rápidas transformações do mundo.
Concluímos ser essencial respeitar os princípios aplicados na construção do currículo
que dialoga com as concepções de um mundo em veloz transformação de paradigmas
na cultura, no mundo do trabalho e nos processos de aprendizagem. Teremos contínuas
transformações nos conteúdos e nos modos de ensinar diante do desafio de propor um
jornalismo para as demandas de informação de um estado democrático de direito.
Referências
ABRAMO, Perseu. “Jornalismo profissão específica ou atividade geral?”, Folha de S. Pau-
lo, 02/10/1987 e reproduzido em http://novo.fpabramo.org.br/content/jornalismo-profis-
sao-especifica-ou-atividade-geral. Última consulta em 20/05/2015.
ACCARDO, Alain. “A estranha ética dos jornalistas”. Le Monde Diplomatique, edição bra-
sileira, ano 1, no. 4, traduzido por Rúbia Prates. 01/05/2000. Em: http://www.diplomati-
que.org.br/acervo.php?id=277. Última consulta: 15/05/2015.
CUNNINGHAM, Brent. Teoria & Prática. “Em busca da escola perfeita de Jornalismo”. Traduzi-
do pela redação. Observatório da Imprensa, no. 198, 13/11/2002. Em:http://www.observato-
riodaimprensa.com.br/news/showNews/da131120021.htm. Última consulta 20/05/2015.
EMERY, Edwin & Michael Emery. The Press and America: An Interpretative History of
Mass Media. 5th. Ed., New Jersey: Prentice Hall, 1984.
FACULDADE Cásper Libero. Em: http://casperlibero.edu.br/. Última consulta em 30/05/2015.
HELOANI, José Roberto Montes. Mudanças no Mundo do Trabalho e Impacto na Quali-
dade de Vida do Jornalista. São Paulo: Fundação Getúlio Vargas, NPP – Série Relatórios
de Pesquisa – Relatório no. 12/2003.
HIME, Gisely. A Hora e a Vez do Progresso. Cásper Líbero eo Exercício do Jornalismo nas
Páginas d’A Gazeta. Dissertação dse Mestrado. São Paulo: ECAUSP, 1997.
JULIEN, Claude. O Império Americano (trad. Fernando de Castro Ferro). Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1970.
90
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos
91
Alice Mitika Koshiyama
92
Reconsiderando Cultura,
Contracultura e Nação Por
Meio das Lentes da Tropicália1
John R. Baldwin
Universidade de Illinois (Normal, IL.)
H
avia eletricidade no ar, durante o fantástico III Festival de MPB (Música Popular
Brasileira), em 1967, no Rio de Janeiro, quando Caetano Veloso se preparou para
cantar sua canção “Alegria, Alegria”, acompanhado pelo grupo argentino, Beat
Boys (Veloso, 2002). Os artistas foram vaiados no palco. Tais vaias não eram incomuns
nos festivais de rock brasileiros: os aficionados da Jovem Guarda – leiam-se Roberto Car-
los e seus colegas cantores de músicas românticas - ou os fãs de Chico Buarque e outros
compositores de MPB, muitas vezes, vaiavam artistas de outros estilos musicais (Dunn,
2001a; Napolitano, 2001). No decorrer dos próximos anos, Veloso, seu parceiro musical,
Gilberto Gil, e outros, como Tom Zé, Gal Costa, José Capinan, Torquato Neto e os Mutan-
tes, deram início a uma experiência musical de curta duração chamada Tropicália, que
brincou com a forma e a função da música brasileira (Dunn, 2001b; Sá Rego & Perrone,
sd). Em dezembro de 1968, então sob o regime militar, a polícia foi aos apartamentos
de Veloso e Gil, prendeu-os, interrogou-os, levando-os ao exílio na Inglaterra (Dunn,
2001a). A Tropicália, no entanto, a tudo superou. Ambos retornaram ao Brasil, alguns
anos mais tarde, e continuaram a compor; ironicamente, Gil serviu como Ministro da
Cultura, retirando-se para continuar sua música produção musical, somente em 2007.
Pastemagazine.com (Joynt, 2008), comemorando 40 anos de “ruptura estratégica” por
meio da Tropicália, observa que algumas das inovações promulgadas pelo movimento
-tais como guitarra elétrica -, naquele momento, podem ter parecido imperialismo
cultural, mas hoje são frequentes em “artistas de diferentes hemisférios... as trocas
influências etnomusicais (p. 72)”. Artistas como David Byrne, Beck e Paul Simon refe-
renciam os tropicalistas. Artistas posteriores, como os Paralamas do Sucesso (França,
2003) tomam emprestado com liberalidade influências afro-caribenhas e raízes temá-
tico-musicais latinas, citando (mesmo que de passagem) a inspiração de músicos como
Gilberto Gil. Em suma, a Tropicália teve um impacto duradouro sobre a música brasi-
leira contemporânea. O nascimento, supressão e sobrevivência da Tropicália constitui
um estudo de caso vital não só para a compreensão da cultura, mas da cultura jovem,
da contracultura e do conflito cultural.
Pode-se indagar como a Tropicália relaciona-se com Cultura e conflito cultural. Talvez as
vaias à banda fossem apenas uma marca de lealdade a ela e a prisão, o simples resultado
por tecerem sobre o regime militar algum comentário fora dos limites. Uma compreen-
são mais profunda tanto sobre a recepção inicial, quanto sobre a deportação dos canto-
res pode nos dar algumas pistas.
1 Artigo apresentado no IV Colóquio Brasil-EUA de Ciências da Comunicação. Caxias do Sul (Rio Grande do Sul), 2010.
John R. Baldwin
No III Festival de MPB, antes mesmo que Veloso entrasse no palco, a multidão já vaiava
furiosamente (Veloso, 2002): em primeiro lugar, porque os argentinos Beat Boys partici-
pavam de um festival de música brasileira; segundo, porque vestiam roupas de plástico
cor de rosa em vez dos habituais smokings; e sobretudo, conforme menção em tantos
livros que cobrem o evento (por exemplo, Napolitano, 1991; Perrone, 1989), porque a
banda usava guitarras elétricas. Até este momento, a música brasileira tinha sido ar-
ticulada como meramente acústica e alguns festivais tinha mesmo proibido Veloso e
sua guitarra elétrica completamente (Murphy, 2006). Já em relação à prisão, o grupo
Tropicália era notório entre as novas bandas da época pela falta de uma crítica política
aberta ao regime. A opção dos tropicalistas por evitar a crítica política direta provocou
contra eles profunda dissensão por parte do movimento MPB (Música Popular Brasileira),
integrado por artistas como Chico Buarque e Geraldo Vandré. Christopher Dunn (2001a),
um dos maiores escritores sobre o movimento Tropicália no idioma Inglês, observa que,
mesmo hoje, as pessoas têm dúvidas a respeito dos motivos da prisão e deportação de
Gil e Veloso, embora concorde com Veloso ao sugerir que, mais do que pela oposição
ao regime militar, a Tropicália teria minado as próprias estruturas da música brasileira
e da estrutura social – o movimento teria se tornado um fenômeno caro e sensível aos
corações brasileiros, como uma expressão fundamental da Identidade Nacional. Sendo
assim, a Tropicália entrara em conflito tanto com as vanguardas contemporâneas de
música popular, quanto com o regime militar.
Vemos agora que as vaias da multidão e as barras da cela de prisão estavam ligadas não pela
musicalidade pobre ou protesto político (por si só), mas pela definição de gosto (cultural) e
discursos de identidade nacional. Mas será que isso constitui um conflito cultural? Neste en-
saio, assumo que a resposta a esta pergunta depende em parte de como se define Cultura e
sugiro que Cultura é um termo polivalente. Além disso, afirmo que, na maioria das vezes, o
caso Tropicália é estudado segundo uma das definições do termo, mas que, de fato, sua com-
plexidade nos permite explorar a variedade de definições de Cultura já disponíveis para nós.
Esta abordagem “padrão” para Cultura reinou suprema durante anos. Mas como Bal-
dwin e outros (2006) argumentam em Culture Redefining, Cultura é um “sinal, um
vaso vazio esperando que pessoas - acadêmicos e comunicadores do cotidiano - preen-
cham-no com sentido (p. 4)”. Por meio de um olhar para o desenvolvimento da noção
de Cultura, os autores observam que as primeiras definições de Cultura se relacionam
com o sentido de “cultivo” - baseado na noção de cultivo, do Latim colere, para lavrar
a terra (p. 5) -, muitas vezes traduzido como um elevado sentido de classe ou de de-
senvolvimento moral e educacional.
94
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos
Cientistas sociais vêem esta definição como elitista, sugerindo que todos os grupos pro-
duzem Cultura. Em uma análise temática (sincrônica) do termo (signo) Cultura, tendo
encontrado 313 definições em diversas disciplinas, Baldwin et al. (2006) mostram que
alguns antropólogos vêem Cultura, como estruturas mentais que levam a artefatos e
comportamento, e outros como estruturas e artefatos e comportamento. Alguns es-
tudiosos de Comunicação vêem a Cultura em termos de padrões de símbolos e signifi-
cados, e muitos escritores populares a definem como “grupos” de pessoas. A maioria
dos escritores modernos procuram inclusive definições, que incluam co-culturas étnicas,
culturas de identidades de orientação sexual ou de gênero, contraculturas e até mesmo
culturas organizacionais.
Este uso mais amplo da Cultura acaba por ser apenas uma extensão da definição de Kro-
eber-and-Kluckhonesque para um conjunto mais diversificado de grupos. Muitos já não
vêem a Cultura como uma bagagem mental, comportamental, de artefatos, passada de
geração em geração, mas como um processo contínuo de co-construção comunicativa
(à la interacionismo simbólico). E um número crescente assume uma postura crítica ou
pós-moderna em relação à Cultura. Por exemplo, Donald e Rattansi (1992) afirmam que
a Cultura não pode ser entendida simplesmente como crenças religiosas ou rituais cul-
turais, mas pelo modo como são “produzidos por meio de sistemas de significado, pelas
estruturas de poder e pelas instituições em que são implantados” (p. 4). Moon (2002)
caracteriza Cultura como uma “contestada zona em que diferentes grupos lutam para
definir questões em favor de seus próprios interesses” (p. 16). Em um ensaio dialógico
entre cinco estudiosos de comunicação intercultural, que relacionam entre as definições
de Cultura a noção do termo como “estrutura dominante ou hegemônica” (p. 230),
Wenshu Lee apresenta: “Conceituar Cultura constitui sua própria política e deve ser con-
textualizado/situado com compromisso ético/moral” (pp. 228-229). Raymond Williams, o
escritor sobre estudos culturais, define Cultura como “um modo particular de vida, que
expressa determinados significados e valores não só na arte e na aprendizagem, mas
também nas instituições e comportamento comum” (p. 43). O’Sullivan e seus colegas
(1983) estendem esse foco nas instituições para incluir tanto instituições como significa-
dos que por elas socialmente “produzidos e reproduzidos”, incluindo mas não limitando
a reprodução por meio de cultura de massa: “A Cultura é agora vista como determinante
e não apenas uma parte determinada da atividade social e, portanto, é uma esfera sig-
nificativa para a reprodução das desigualdades de poder” (p. 59). (Ver Apêndice para as
categorias de definição de Cultura).
Em suma, podemos concluir com O’Sullivan et al. (1983) que:
É minha opinião que a maioria das definições modernas se aplicam a Tropicália, e que
sua análise por meio de várias definições ilustra seu uso como um estudo de caso para
entender abordagens modernas para Cultura, contracultura e cultura da juventude. Além
disso, como vemos e definimos Cultura terá implicações para os métodos que escolhe-
mos para a investigação social, para intervenções que implementamos na esfera social e
para a ética da nossa comunicação dentro e entre (contra) culturas.
95
John R. Baldwin
96
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos
E Tom Zé, “um dos membros mais experimentais do círculo Tropicália”, canta ironicamente
em “Parque Industrial”, que “o avanço industrial vem trazer nossa redenção” (Murphy,
2006, p. 47). A brincadeira pós-moderna e desdém pela convenção musical claramente
não se encaixam na “cultura” da elite de refinamento, educação e progresso moral.
Em relação à censura à Tropicália e ao exílio de seus líderes, Veloso (2002) afirma que os
militares viram o movimento como anárquico e Dunn (2001a) conclui que “ficou claro
que as performances irreverentes do grupo tropicalista alarmaram as autoridades mili-
tares, mesmo que a crítica dos artistas ao Brasil moderno, nas letras de música, tenha
passado, em grande parte, despercebida” (p. 147). Se a Cultura, então, refere-se à “con-
tinuidade de valores e gostos que foram tradicionais em uma sociedade” (Martin, 1970,
p. 15), então, a Tropicália violou essa noção, tanto para o público ouvinte quanto para a
elite governante, na Brasil da década de 1960.
97
John R. Baldwin
absurdo com o mundano. Veloso (2001) cita Andrade, a propósito do Brasil: “Meu país
sofre de incompetência cósmica” (p. 44) - refletindo uma noção frequentemente citada
de que o Brasil era um país em busca de um firme senso de identidade nacional e de
sua afirmação. A Tropicália refletiu temas mais profundos do que a tradição brasileira: a
identidade nacional mais tradicional e ambivalente, a tensão entre as classes e o ecletis-
mo de um país bem adaptado a adaptar ideias e artefatos de outros.
Ao revelar as tensões da identidade e da sociedade brasileira, a Tropicália aproveitou a
identidade bricolagem do Brasil - preto, branco, mulato, mestiço, indígena, rico, pobre,
urbano, rural. A Tropicália misturou os artifícios “estrangeiros” de instrumentos elétricos
já adotados pela Jovem Guarda com os velados temas políticos da MPB. Refletia os te-
mas pós-modernos do lúdico e desfocado gênero da poesia concreta (onde a forma e a
disposição das palavras na página é tão importante quanto o verso e o ritmo da poesia)
e do movimento tropicalista na arte e drama ( Dunn, 2001a). E adicionou tudo isso a uma
“revolução” crescente na cultura popular brasileira (Basualdo, 2005).
O desafio de mitologias tradicionais brasileiras, incluindo os mitos do modernista e progres-
sismo industrial e da então chamada “democracia racial” do Brasil (Chidester & Baldwin,
no prelo) - o que Joynt (2008), como mencionado, chama de “estratégica ruptura” - indica
uma mudança proposta nos aceitáveis comportamentos/normas, crenças e valores de uma
cultura, e, pela mudança na forma e estrutura musical, nos artefatos também. Se isto é uma
mudança proposta para a cultura como um todo, um novo rumo para o Brasil, uma nova
direção - a linha evolutiva - para a música somente (Dunn, 2001) ou simplesmente uma nova
direção para a juventude do Brasil não se sabe ao certo. Nesse sentido, Dunn observa que
Caetano e Gil tornaram-se “líderes exilados de um movimento cultural amplamente conside-
rado como o momento inaugural de uma contracultura brasileira” (p. 172), concentrado ago-
ra mais na desilusão política e expressão pessoal. Expor isso mudou, embora não totalmente
a direção, enfatizando aspectos como minorias raciais e sexuais e encaixando bem com as
novas sensibilidades de desbunde e curtição (Dunn, 2001b, p 81), como exemplificado pelos
“Doces Bárbaros”, com Gal Costa e Maria Bethânia em 1976, quando cantaram canções com
referências ao Candomblé. Mas como uma visão estruturalista contempla a cultura, não
estaríamos preocupados com a tensão entre a contracultura e a cultura, mas simplesmente
com a compreensão dos valores ou ideias da cultura como enquadrado na música. Ou seja,
poderíamos analisar a Tropicália como uma lente para uma melhor compreensão da Cultura.
Os autores, porém, divergem sobre para qual Cultura devemos olhar. Alguns podem usá-la
para entender a cultura de um grande grupo de pessoas, tais como a cultura brasileira das
décadas de 1960 e 1970 (Gudykunst & Kim, 2003). Outros preferem usá-la como uma janela
para alguma cultura menor, como a definida pela sexualidade, etnia, faixa etária (especial-
mente aplicável aqui) ou alguma outra identidade de grupo (Collier, 2003).
Em suma, então, a Tropicália representa tanto uma continuidade quanto uma ruptura da
Cultura brasileira no sentido de um padrão de crenças, valores, comportamento e assim por
diante, isto é, o “modo de vida” que Williams (1981) descreve. Em termos de continuidade,
os artistas procuraram abraçar as noções brasileiras de diversidade e ecletismo (isto é, o ca-
nibalismo cultural) - o sentido da globalização que sempre caracterizou a cultura brasileira
- e refletir alguns elementos da vida cotidiana, não vistos em outro movimento de música
popular (apesar da MPB ter buscado esta mesma meta). Os artistas ainda abraçaram um
sentimento de nacionalismo, incorporando, nem sempre com ironia, as formas tradicionais
de música brasileira, como a Bossa Nova. No entanto, eles se separaram dos mitos tradi-
cionais da democracia racial, observando que o Brasil, na verdade, tem desigualdade racial
(Dunn, 2001a; Sovik, 2004); do mito da “Ordem e Progresso”, mesmo representado na
98
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos
99
John R. Baldwin
como “um elemento definidor da brasilidade ou identidade brasileira” (p. 10), mas o sam-
ba moderno foi negociado entre o samba do Morro - os sambas das encostas pobres - e os
sambas de Carnaval (Murphy, 2006); e o próprio samba veio a figurar na política nacional
para criar o mito multicultural do Brasil como uma “democracia racial” (Levine, 1984). A
Bossa Nova trouxe conflitos entre aqueles que queriam inaugurar elementos do cool jazz
americano e aqueles que sentiram que isso violava a brasilidade do gênero (Napolitano,
2001). E a cena de rock da MPB tornou-se abundante, não só com a política entre o yêy”ye
da Jovem Guarda e os cantores de esquerda da MPB que sentiram que a JG foi ao mesmo
tempo “alienada” das reais questões políticas de seu tempo, mas também que erradamen-
te abraçou expressões musicais internacionais (de Ulhoa Carvalho, 2005).
A Tropicália misturou visões de público competitivas: os cantores da MPB a viram como do
povo - o povo, como uma força política a levantar-se contra um Estado injusto; a Jovem
Guarda tratou-o simplesmente como o Público - o público comprador de discos (Napolitano,
2001). Os tropicalistas misturaram esses dois pontos de vista, para o desgosto de muitos
críticos sociais. Roberto Schwartz, um crítico cultural de esquerda da época, sentiu que a
indefinição “entre a crítica e a integração social” poderia levar ao conformismo ou poderia
levantar complexos, questões sociais difíceis. Mas da Tropicália especificamente, ele criticou:
Vemos claramente isso no caso da música popular brasileira em geral. Com a ascensão da
MPB, houve uma mudança repentina nas compras de discos brasileiros. Anteriormente, as
compras brasileiras eram predominantemente de importados, mas, na década de 1960, hou-
ve uma inversão, com os brasileiros, mesmo nos dias de hoje, gastando 70% de seu orçamen-
to para música em artistas brasileiros. Este fato leva Liv Sovik (2002) a notar que o “consumo
100
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos
de produtos culturais foi igualado à ação política” (p. 99). Napolitano (2001) descreve a eco-
nomia política por trás do aumento do samba como um símbolo nacional e internacional do
Brasil (ligado à transmissão de rádio e à política da boa vizinhança), atrás do elo da Bossa Nova
com a indústria da televisão e, finalmente, por trás da ascensão da MPB e da Jovem Guarda
nas mãos de empresas de TV em primeiro lugar, uma vez que promoveram as festas que soli-
dificaram e cristalizaram a identidade “nacional” do rock brasileiro, seguida pelas gravadoras.
Como parte dessa mediação, as próprias identidades - identidades da juventude, identida-
des afro-brasileiras, identidades nacionais - tornaram-se um “espetáculo midiático”, um item
de consumo popular (Canclini, 1995), e as culturas se tornaram um “híbrido” pós-moderno
por assim dizer, emprestando elementos fragmentados de diferentes setores. A Tropicália,
como uma forma precoce e evidente de “globalização” da música brasileira, promoveu a
exportação de música e incorporação de elementos da música de outras culturas. Mas como
importação e exportação sempre existem, segundo Canclini, “em condições desiguais entre
o atores variados e poderes que intervêm dentro dela” (p. 130). Sendo assim, para Velosian
(2001) o Brasil ver-se-ia sempre através dos olhos dos outros, comparando-se com os outros
(ver mesmo argumento em Stepan de 199, no que se refere às ideologias de “branqueamen-
to” no Brasil), mas o hibridismo representaria uma forma de pós-colonialismo (Drzewiecka &
Halualani, 2006; Hegde & Shome, 2006), de resistência (através de canibalismo) de influências
internacionais que procuram colonizar música e cultura brasileira.
A Tropicália foi definitivamente um movimento artístico, ecoando as crenças ideológicas
dos autores, em termos de oposição ao governo, mas também a resistência dos dogmas
cansados de nacionalismo musical brasileiro:
Mas ainda havia um motivo de lucro. Caetano afirmou: “Acredito que a necessidade de co-
municação com as massas é o próprio responsável por inovações musicais” (em Basualdo,
2005b, p. 21). Neste sentido, a Tropicália diluiu ou quebrou a distinção entre o público e
o povo (Napolitano, 2001), isto é, entre a música como “alienada”, no sentido marxista, a
partir dos problemas reais da vida cotidiana (alienado) e socialmente engajada em mudança
ativa da sociedade (engajado; Harvey, 2002). Da mesma forma, a Tropicália desafiou outras
dicotomias e dualismos, como aquele entre “nacional” e “internacional”, classe e kitsch, tra-
dição e modernidade. Isto, junto com o estilo pastiche, tanto musicalmente como liricamente,
marcou a Tropicália como uma forma verdadeiramente pós-moderna, evoluindo em um mar
de formas musicais relativamente consistentes (e modernistas), como MPB e Jovem Guarda.
Em suma, se vemos a Cultura como um desafio entre as forças ideológicas que se esforça,
uma contra a outra, para determinar o significado, então, podemos perceber a Tropicália
de maneira diferente. Não seria simplesmente uma “fase” na “evolução” da Cultura ou da
música, mais do que uma representação direta de algum padrão de pensamento ou compor-
tamento de uma cultura ou contracultura. Pelo contrário, seria um desafio - neste caso, bas-
tante deliberado, embora nem sempre explícito - contra alguma forma de ideologia do grupo
estabelecido. Não seriam simplesmente os valores e comportamentos, mesmo de um grupo
contracultural, mas estes em oposição a algum grupo de cultura dominante. Se tratarmos a
101
John R. Baldwin
Conclusão
Em suma, os estudiosos contestam calorosamente o que exatamente é Cultura hoje, como
um termo acadêmico. Baldwin et al. (2006) argumentam que a forma como se define o
conceito é muito importante, uma vez que irá impactar o que estudamos, como podemos
estudá-lo e o que fazemos com o conhecimento. Ou seja, ele tem implicações para as
abordagens metodológicas e pragmáticas para o fenômeno. Se tomarmos uma visão de
Cultura como moral elevada ou forma artística, ao considerarmos a Tropicália, como Favo-
retto (1979) ou os resumos habituais da internet do movimento ou de suas influências, nós
nos limitaremos a elogiar pelo alto nível as virtudes criativas do movimento - o ápice da
música brasileira naquele período. Essa visão, no entanto, trata a Tropicália apenas como
arte, e ignorando sua tentativa de ruptura política e cultural nos impediria de examinar
o quão bem atingiu tais objetivos ideológicos. A partir da perspectiva estruturalista da
Cultura, gostaríamos de analisar a música ou entrevistar os músicos para entender o que
a música está dizendo sobre uma contracultura em particular ou sobre a própria cultura
nacional às vésperas de 1970, no Brasil. Quais valores abraça? Quais comportamentos pro-
move? Se tomássemos uma visão processual, veríamos a Tropicália mais como um alvo em
movimento, assumindo as diferenças nos autores e de álbum para álbum, música para mú-
sica, observando como o movimento tanto influencia quanto é influenciado por (no sen-
tido da estruturação) alguns grupos culturais ou contraculturais. Com muitos fenômenos
sociais, a antiga abordagem pode levar mais a métodos quantitativos e resultados genera-
lizáveis sobre alguma cultura ou alguma comparação de valores entre culturas, e a última
abordagem levaria a questionamento mais humanista e qualitativo. No que se refere a
uma forma musical, no entanto, a abordagem metodológica de análise pode ser a mesma,
mas as conclusões tiradas e a forma como as moldamos seria diferente. Pontos de vista
críticos, incluindo as ramificações do pós-modernismo e pós-estruturalismo, investigariam,
em vez disso, as tensões ideológicas entre a Tropicália e outras formas musicais e ideolo-
gias políticas, ou mesmo as tensões discursivas nos e entre os Tropicalistas, não buscando
uma representação consistente de seu trabalho, mas um representação fragmentada que
admita a subjetividade do observador interpretar a obra (Conquergood, 1991).
Onde definições estruturais, processuais e críticas mais diferem é talvez no sentido ético e
pragmático de cada qual. Normalmente, as definições estruturais e processuais procuram
observar o fenômeno em seu próprio direito, procurando ser livre de valores. Aborda-
gens críticas podem inquirir mais sobre como o objeto da investigação leva à práxis. Em
relação à Tropicália, a investigação social tradicional seria simplesmente contextualizá-la
para compreendê-la, tanto quanto faríamos em relação a algum outro fenômeno folclóri-
co. A este respeito, muitos musicólogos analisariam o movimento para compreender sua
criatividade, talvez até mesmo perguntando como ele poderia informar os novos estilos
102
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos
musicais criativos. O estudioso da crítica cultural faria perguntas mais amplas sobre se
ou por que a Tropicália levou a uma verdadeira reforma social e, além disso, se o rock ou
outra música popular teria qualquer eficácia a este respeito. Aqui, podemos perguntar se
a música brasileira deve resistir a formas internacionais para permanecer exclusivamente
brasileira ou se qualquer tentativa nesse sentido apenas nos leva a ideologias tradicionais
da música e da cultura nacional e são, portanto, a sua maneira, opressivas.
Por qualquer definição escolhida, podemos ver que a Tropicália, o movimento da música
popular brasileira dos anos 1960 e início dos anos 1970, oferece um interessante estudo de
caso para a compreensão da Cultura, mesmo de definições concorrentes do termo. O que é
difícil, quando se inclui a cultura popular e a influência do Estado na definição de Cultura, é
encontrar espaços de diálogo. Parece que, com o passar do tempo, os Tropicalistas observa-
ram que o movimento foi por fim aceito e os cantores retornaram do exílio. No futuro, pode
recair sobre os trabalhadores culturais (1) o ônus de perceber o papel que a representação
mediada desempenha na produção e reprodução dos valores e identidades culturais; (2) de
trabalhar para fazer as bases ideológicas de tal representação mais aparentes, de modo que
as pessoas em seu cotidiano aumentem as escolhas sobre quais ideologias e quais identi-
dades aceitam; e (3) de tratar com produtores de mídia (por exemplo, músicos, produtores
de filmes) e administradores culturais (por exemplo, agências governamentais), as opções
disponíveis para a negociação de complexidades culturais como as criadas pela Tropicália.
Por fim, embora talvez um caso obscuro de conflito cultural, a emergência da e a repressão
à Tropicália exemplificam o valor de uma visão mais complexa da Cultura, que leve em conta
valores, comportamentos e também as estruturas sociais e artefatos simbólicos.
Referências
ADORNO, T. W. The culture industry (Ed. and intro by J. M. Bernstein). London: Rout-
ledge, 1991.
ALVARENGA, O. Música popolare brasiliana [Popular Brazilian music]/ (Trans. C. Bisello).
Milan, Italy: Sperling & Kupfer, 1953.
BALDWIN, J. R., FAULKNER, S. L, HECHT, M. L., & LINDSLEY, S. L. (Eds.). Redefining cultu-
re: Perspectives across the disciplines. Mahwah, NJ: Lawrence Erlbaum Associates, 2006.
BASUALDO, C. (Ed.). Tropicália: A revolution in Brazilian culture (1967-1972). (Trans. A.
Lorez, R. Nascimento, & C. Dunn). São Paulo: Cosac Naify, 2005a.
BASUALDO, C. Tropicalia: Avant-garde, popular culture, and the culture industry in Bra-
zil. In C. Basualdo (Ed.), Tropicália: A revolution in Brazilian culture (1967-1972 (pp. 11-
28). (Trans. A. Lorez, R. Nascimento, & C. Dunn). São Paulo: Cosac Naify, 2005b.
BÉHAGUE, G. The beginnings of musical nationalism in Brazil. Detroit: Information Coor-
dinators, Inc. (Detroit Monographs in Musicology, no. 1), 1971.
BORGES, M. Os sonhos nao envelhecem: Historias do Clube da Esquina [Dreams do not
grow old: Histories of the Clube da Esquina]. Sao Paulo: Geração, 1996.
CHIDESTER, P. J., & Baldwin, J. R. (in press). Shattering myths and ruffling feathers: Bra-
zil’s Tropicália movement. In L. Shaw (Ed.), Song & Social change in Latin America.
COLLIER, M. J. Understanding cultural identities in intercultural communication: A ten-
step inventory. In L. A. Samovar & R. E. Porter (Eds.), Intercultural communication: A
reader (pp. 412-429). Belmont, CA: Wadsworth, 2003.
103
John R. Baldwin
COLLIER, M. J., HEGDE, R. S., LEE, W., NAKAYAMA, T. K., & Yep, G. A. Dialogue on the
edges: Ferment in communication and culture. In M. J. Collier (Ed.), Transforming commu-
nication about culture: Critical new directions (pp. 219-280). Thousand Oaks: Sage, 2002.
DOLORES, M. Travessia: A vida de Milton Nascimento [Journey: The life of Milton Nasci-
mento]. Rio de Janeiro: Editora Record, 2006.
DONALD, J., & RATTANSI, A. Introduction. In J. Donald & A. Rattansi (Eds.), ‘Race,’ culture
and difference (pp. 1-18). London: Sage, 1992.
DRZEWIECKA, J. A., & HALUALANI, R. T. (2006). The structural-cultural dialectic of dias-
poric politics. Communication Theory 12, 340-366.
DUNN, C. Brutality garden: Tropicalia and the emergence of Brazilian counterculture.
Chapel Hill: University of North Carolina, 2001a.
DUNN, C. Tropicalia, counterculture, and the diasporic imagination in Brazil. In C. A.
Perrone & C. Dunn (Eds.), Brazilian popular music & globalization (pp. 72-95). New York:
Routledge, 2001b.
FAVARETTO, C. Tropicália: Alegoria, alegria [Tropicália: Allegory, joy]. São Paulo, Brazil,
Kairós, 1979.
FISKE, J. Cultural studies and the culture of everyday life. In L. Grossberg, C. Nelson, & P.
Treichler (Eds.), Cultural studies (pp. 154-173). New York: Routledge, 1992.
FRANÇA, J. Os Paralamas do Sucesso: Vamo batê lata. São Paulo, Brazil: Editora 34, 2003.
GARCÍA, N. Consumidores y ciudadanos: Conflictos multiculturales de la globalización [Con-
sumers and citizens: Multicultural conflicts of globalization]. Mexico D.F.: Grijalbo, 1995.
GUDYKUNST, W. B., & KIM, Y. Y. Communicating with strangers: An approach to inter-
cultural communication (4th ed.). Boston: McGraw-Hill, 2003.
HARRISON, F. Culture: A dialogue. In I. Gregor (Ed.), Culture and anarchy: An essay in
political and social criticism (pp. 268-281). Indianapolis: Bobbs-Merril, 1971.
HARVEY, D. The condition of postmodernity: An enquiry into the origins of cultural
change. Oxford, UK: Basis Blackwell, 1989.
HARVEY, J. J. Cannibals, mutants, and hipsters: The Tropicalist revival. In C. A. Perrone
& C. Dunn (Eds.), Brazilian popular music & globalization (pp. 106-122). New York: Rout-
ledge, 2002.
HEDGE, R.S., & SHOME, R. Postcolonial approaches to communication: Charting the ter-
rain, engaging the intersections. Communication Theory, 12, 249-270, 2006.
JOYNT, M. (Aug., 2008). Strategic rupture: 40 years of Tropicália. Pastemagazine.com, p. 72
Kroeber, A. L., & Kluckhohn, C. (1952) .Culture: A critical view of concepts and definitions.
Cambridge: Harvard University Press. Levine, R. M. (1984). Elite intervention in urban
popular culture in modern Brazil. Luso-Brazilian Review, 21(2), 9-22.
MARTIN, D. Fifty key words in sociology. Richmond, VA: John Knox, 1970.
MAYORA RONSINI, V. V. Mercadores de sentido: Consumo de mídia e identidades juvenis
[Merchants of meaning: Media consumption and youth identities]. Porto Alegre, Brazil:
Editora Meridional, 2007.
104
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos
McGOWAN, C., & PESSANHA, R. The Brazilian sound: Samba, bossa nova, and the pop-
ular music of Brazil. New York: Billboard Books, 1991.
MOON, D. G. Thinking about ‘culture’ in intercultural communication. In J. N. Martin, T.
K. Nakayama, & L. A. Flores (Eds.), Readings in intercultural communication: Experiences
and contexts (2nd ed., pp. 13-21). Boston: McGraw Hill, 2002.
MURPHY, J. P. Music in Brazil: Experiencing music, expressing culture. New York: Oxford Uni-
versity Press, 2006.
NAPOLITANO, M. “Seguindo a canção: Engajamento politico e industria cultural na MPB
(1959-1969) [Following the song: Political engagement and cultural industry in MPB
(1959-1969). Sao Paulo: Annablume, 2001.
ORTIZ, R. Revisitando la noción de imperialismo cultural [Revisiting the notion of cultural im-
perialism]. In R. Ortiz et al. (Eds.). Comunicación, cultura y globalización [Communication,
culture, and globalization (pp. 46-62). Bogotá: Cátedra UNESCO de Comunicación, 2002.
PERRONE, C. A. Masters of contemporary song: MPB 1965-1985. Austin: University of
Texas, 1989.
PERRONE, C. A., & DUNN, C. (Eds.). Brazilian popular music and globalization. New York:
Routledge, 2001.
SÁ REGO, E. de, & PERRONE, C. A. (n. d.). MPB: Contemporary Brazilian popular music.
Albuquerque,, NM: The Latin American Institute, University of New Mexico.
SCHREINER, C. Música brasileira: A history of popular music and the people of Brazil.
(Trans. M. Weinstein). New York: Marion Boyers, 2002.
SCHWARTZ, R. Misplaced ideas: Essays on Brazilian culture. (Ed. with introduction by J.
Gledson). London: Verso, 1992.
SOVIK, L. Globalizing Caetano Veloso: Globalization as seen through a Brazilian pop
prism. In C. A. Perrone & C. Dunn (Eds.), Brazilian popular music & globalization (pp. 96-
105). New York: Routledge, 2002.
SOVIK, L. We are family: Whiteness in the Brazilian media. Journal of Latin American
Cultural Studies, 13(3), 315-325, 2004.
STEPAN, N. L. The hour of eugenics: race, gender, and nation in Latin America. Ithaca,
NY: Cornell University Press, 1991.
STREET, B. V. Culture is a verb. In D. Graddol, L. Thompson, & M. Byram (Eds.), Language
and culture (pp. 23-43). Clevedon: Multilingual Matters [British Association of Applied
Linguistics], 1993.
De ULHOA CARVALHO, M. Tupi or not tupi MPB: Popular music and identity in Brazil. In In
D. J. Hess & R. A. DaMatta (Eds.), The Brazilian puzzle (pp. 159-179). New York: Columbia
University Press, 2005.
VIANNA, H. The mystery of the samba: Popular music and national identity in Brazil. (Ed.
& trans. J. C. Chasteen). Chapel Hill: University of North Carolina Press, 1999.
WILLIAMS, R. The analysis of culture. In T. Bennett, G. Martin, C. Mercer, & J. Woollacott (Eds.),
Culture, ideology and social process: A reader (pp. 43-52). London: Open University, 1981.
105
John R. Baldwin
Notas
Temas de Definições de Cultura
ESTRUTURA /PADRÕES
Modo de vida: a acumulação total de [lista de elementos], estilo de vida; “Mais do que
a soma de traços”. Nota: Coloque nesta categoria também se a noção de Cultura é sim-
plesmente em termos de “diferenças” gerais entre grupos.
Estrutura cognitiva: pensamentos, crenças, suposições, significados, atitudes, preferên-
cias, valores, padrões; a expressão de processos inconscientes, interpretações.
Estrutura do comportamento: comportamento, “cola normativa”, padrões de regras,
técnicas, disposições, costumes, conjunto de habilidades, padrões de comportamento,
hábitos, ações, práticas concretas, cerimônias, rituais.
Estruturas de significação: sistemas de símbolos, linguagem, processos discursivos e de
comunicação, sistema de transferência de pensamentos, sentimentos, comportamentos.
Estruturais relacionais: relações com os outros, o sistema de orientação.
Organização social: as formas organizacionais, instituições políticas, instituições legais
(por exemplo, as leis, crime & punição), religião como instituição.
A “estrutura” ou “abstração” feitas por pesquisadores para descrever grupos de pessoas.
FUNÇÕES
Fornece guia e um processo de aprendizagem, adaptação ao mundo, sobrevivência.
Oferece às pessoas um sentimento comum de identidade/pertença ou da diferença em
relação a outros grupos.
Expressão de valor (propósito expressivo).
Função de estereótipos (finalidade avaliativa).
Fornece meios de controle sobre outros indivíduos e grupos.
PROCESSOS
Prática etc., um “verbo”, bem como um substantivo [alterar para verbo]
De diferenciação de um grupo de outro.
Da tomada de sentido, produzindo significado baseado em grupo, ou de dar vida a sig-
nificado e forma.
De processar “matérias-primas da vida”, de lidar com o mundo social.
De se relacionar com os outros.
De dominar, estruturação de poder.
Da transmissão de um modo de vida.
106
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos
PRODUTO
Produto de atividade significativa [mais ampla do que representacional]: arte, arquite-
tura.
Produto de representação/ significação: artefatos, “textos” culturais mediatizados ou
não etc.
REFINAMENTO:
“Civilização”
Progresso Moral: estágio de desenvolvimento que divide civilizados de selvagens; estudo
da perfeição, civilização.
Instrução: cuidado com o desenvolvimento da mente; refinamento (por exemplo, de
uma pessoa).
Esforços exclusivamente humanos a partir de quaisquer das categorias acima que distin-
guem seres humanos de outras espécies.
MEMBRO DE GRUPO
País.
Variações sociais entre os componentes da sociedade pluralista contemporânea; identi-
dade.
PODER/IDEOLOGIA
Domínio político e ideológico: Cultura dominante ou hegemônica [definições críticas].
Fragmentação dos elementos [definições pós-modernas].
De
Baldwin, J. R., Faulkner, S. L., Lindsley, S. L., & Hecht, M. L. (In Press). Redefining culture:
Perspectives across the disciplines. Mahwah, NJ: Lawrence Erlbaum.
107
John R. Baldwin
108
A Propagação da Cultura Norte-
americana no Jornalismo Brasileiro
dos Anos 19301
Gisely Valentim Vaz Coelho Hime
Faculdades Metropolitanas Unidas - São Paulo
N
a virada dos anos 1930 para os 1940, o vespertino paulistano A Gazeta, de proprie-
dade do jornalista Cásper Líbero, tornou-se a publicação mais moderna do Brasil,
do ponto de vista editorial, gráfico e administrativo, sintonizada com os principais
avanços na área, observados nos Estados Unidos e na Europa. Trata-se de um momento de-
licado na vida do País. Após uma década de um governo centralizador, com um projeto de
modernização fundamentado no espírito nacionalista, Getúlio Vargas oscila entre os países
Aliados e os do Eixo, com os quais se identifica ideologicamente, em negociações em busca
de financiamento e expertise necessários à sua implementação. Cásper Líbero tem participa-
ção ativa neste cenário de diversas formas: integra comissões de negociações político-econô-
micas; realiza conferências sobre a imprensa brasileira e, sobretudo, sua empresa; promove
conferências, reunindo empresários e intelectuais brasileiros e estrangeiros, em debates sobre
as temáticas mais pertinentes àqueles tempos. Nessa perspectiva, A Gazeta torna-se espaço
privilegiado de observação da gradativa influência da cultura norte-americana no País.
Se, durante muito tempo, era quase que obrigatório para a elite brasileira enviar os filhos
para completar os estudos na Europa, na década de 1940, ela descobre que os Estados
Unidos também podem ser uma opção bastante atraente. E o próprio país é responsável
por essa mudança. As bolsas de estudo em aviação integram um grandioso projeto de in-
tercâmbio universitário, largamente divulgado nas páginas d’A Gazeta.
A 13 de junho de 1941, por exemplo, o jornal registra a partida de uma delegação bra-
sileira, num intercâmbio promovido pela União Cultural Brasil-Estados Unidos. Entre as
dez moças e os doze rapazes que a compõem estão quatro paulistas: Décio de Almeida
Prado – que viria a se tornar um dos grandes intelectuais brasileiros –, Maria Conceição
Ribeiro, Francisco Soares Camargo e Henrique Lindenberg Filho.
O programa americano, contudo, não se restringe apenas ao Brasil. Em 18 de agosto
daquele ano, A Gazeta anuncia o custeio da viagem de 30 estudantes latino- americanos
e, em 8 de dezembro, divulga o oferecimento de 25 bolsas para a América Latina, nos
cursos de aviação, indústria têxtil, automóveis, construção, tração e serviços públicos,
química e física, jornalismo, economia, educação, saúde pública, engenharia (química,
elétrica, radiotécnica, comunicação), negócios e mercado, administração pública, serviço
social, instrução bibliotecária e música.
O programa também se dirige a professores. Em 16 de setembro, registra-se a viagem de
uma comitiva de professores e alunos da Escola Luiz de Queirós, de Piracicaba (interior
1 Artigo apresentado no IV Colóquio Brasil-EUA de Ciências da Comunicação. Caxias do Sul (Rio Grande do Sul), 2010.
Gisely Valentim Vaz Coelho Hime
de São Paulo), a convite das autoridades americanas. Além disso, tanto oferece cursos
em nível universitário, quanto de extensão – como registra matéria publicada no dia 19
do mesmo mês. Essa matéria, aliás, destaca o curso de português para estrangeiros,
criado naquele país, pela União Cultural Brasil-Estados Unidos.
O incentivo ao intercâmbio cultural era apenas um dos fatores da Política de Boa Viz-
inhança, plano que orientou o relacionamento do Governo Roosevelt com os governos
centro e sul-americanos no início da década de 1940. Como caracteriza Moniz Bandeira,
“a Boa Vizinhança correspondia à necessidade de manter em calma o quintal enquanto
se pelejava nas ruas (BANDEIRA, 1978: 247)”.
Enquanto a Segunda Guerra ensaia os primeiros passos, os Estados Unidos, apesar de
sua posição de neutralidade, iniciam a preparação de um plano logístico militar. Tal pla-
no esconde-se em propostas de cooperação econômica, que incluem o envio de capitais
e técnicos para ajudar na exploração da borracha, das fibras, dos óleos vegetais, do
manganês e do minério de ferro. Como os países europeus - principalmente Alemanha
e Inglaterra -, os Estados Unidos têm consciência da importância de se controlar as fon-
tes de matérias-primas que existem na América Latina para galgar posições políticas e
econômicas no então conturbado contexto mundial.
Na verdade, com a explosão da Segunda Guerra, os americanos buscarão intensificar a
presença junto à exploração das reservas brasileiras de matéria-prima, uma vez que essa
presença já se faz sentir desde meados da década de 1920, quando o Governo Efigênio
Sales divide o Estado do Amazonas em oito zonas para a exploração de minérios, entre-
gando seis à American Brazilian Co., Canadian Co. e The Amazon Co., todas pertencentes
ao mesmo grupo financeiro (BANDEIRA, 1978: 213).
Em 1927, também se instala na Amazônia o grupo Ford, ao obter a concessão de um mil-
hão de hectares de terra para o estabelecimento de uma ou várias empresas, que explo-
rariam a borracha nativa, com a obrigação de plantar apenas 1.200 seringueiras, ou seja,
uma seringueira a cada mil hectares (VERÍSSIMO, 1935: 43). Pode-se perceber que, já
nesses tempos, o Governo brasileiro era muito generoso com os americanos. Tão gener-
oso que permitia ainda à Companhia Ford Industrial do Brasil utilizar quedas d’água para
energia elétrica, construir represas, açudes, campos de aviação e estradas- de-ferro e de
rodagem, navegar por conta própria o Amazonas e seus afluentes, pesquisar minérios
para efeito de preferência das lavras, estabelecer serviços de comunicações telefônicas e
radiotelefônicas, levantar fábricas, fundar bancos e efetuar todas as operações de crédi-
to, criar e manter polícia de segurança (VERÍSSIMO, 1935: 51-54 e REIS, 1965: 156). Tudo
isso, gozando da isenção de todos os impostos existentes ou que porventura viessem a
existir por 50 anos. Não é preciso explicar porque a região tornou-se conhecida como a
Fordlândia (BANDEIRA, 1978: 213).
Nesse panorama, intensifica-se o relacionamento comercial entre Brasil e Estados Unidos,
contudo - deve-se ressaltar -, sem que o Brasil quebre as parcerias que mantém com a In-
glaterra e a Alemanha. Aliás, o Governo Federal se utilizará do bom entendimento com os
alemães para conquistar posições nas negociações com os americanos. Em 1938, devido
ao acordo de compensação estabelecido com a Alemanha, o Brasil importa 25% deste
país, enquanto os índices americano e inglês atingem 24,2% e 10,4%, respectivamente.
Contudo, a partir de 1939, respaldadas por essa nova política de posicionamento no mer-
cado mundial, as exportações americanas para o Brasil começam a crescer, suplantando
os índices alemães. Já em 1939, constituem 33,5% das importações brasileiras, em 1940,
sobem para 51,8% e, em 1941, atingem 60,3% (BANDEIRA, 1978: 249).
110
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos
111
Gisely Valentim Vaz Coelho Hime
112
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos
113
Gisely Valentim Vaz Coelho Hime
gentina, Chile, Peru, Bolívia, Colômbia, América Central, México, Antilhas; 125 mil dólares
para inquéritos sobre a opinião pública, por meio de contrato com a American Social Servey
Inc., que estabelece inquéritos especiais no Brasil, Argentina, Chile, México, Peru, Colômbia,
Venezuela e Estados Unidos; 150 mil dólares para continuar o trabalho em 1942; 1,05 mil-
hão de dólares para o melhoramento das instalações de rádio a fim de obter material para
irradiação; para estímulo e execução de projetos para irradiações em ondas curtas para a
América Latina e para irradiação em ondas longas em cada república; para a preparação de
programas especiais de treino básico nas línguas das Américas.
A Gazeta registra a chegada da comissão americana, uma semana antes do previsto, e en-
fatiza os objetivos do grupo - estudar diretamente o trabalho desenvolvido pelos serviços
de cooperação norte-americana e obter conhecimento detalhado dos problemas do Brasil
e de outras nações americanas - objetivos estritamente ligados à Política de Boa Vizinhança
(A Gazeta, 21 de agosto de 1941). Contudo, esse tão propagado interesse pela realidade e
cultura brasileiras acaba se traduzindo em propaganda da cultura americana, no sentido
de despertar um processo de “americanização”, do que em verdadeiro intercâmbio cultural
- apesar dos jornais proclamarem o contrário. Como ressalta Moniz Bandeira, o Brasil tor-
na-se cada vez mais americano. Só não assimila, porém, a sua forma de democracia política,
gerada no movimento pela independência, de 1776 a 1783 (BANDEIRA, 1978: 215).
As conferências de Pacheco e Silva, Jorge Americano e Cásper Líbero sobre a vida intelec-
tual nos Estados Unidos, realizada a 17 de julho de 1941, no auditório d’A Gazeta, refle-
tem o clima de exaltação da cultura americana que se instaura por aqui, nesses tempos.
Promovido pela União Cultural Brasil-Estados Unidos, em conjunto com o vespertino, o
evento é conseqüência direta da recente viagem dos três a esse país. Aliás, a partir de
então, a dupla de patrocinadores promoverá a exibição de uma série de documentários,
sempre sobre o mesmo tema: hábitos e costumes do povo americano, o que demonstra
a franca adesão do vespertino à propaganda dos Estados Unidos.
É a abertura para a experiência das outras nações que legitima o discurso de Boa Vizinhança,
de cooperação entre os países latino-americanos, de mútuo interesse - ainda que totalmente
forjada. Pelos freqüentes elogios à ação americana e pela sua intensa participação nos proje-
tos de intercâmbio, A Gazeta parece não se dar conta disso. A edição do dia 8 de dezembro
de 1941, por exemplo, destaca como uma das grandes preocupações da política de Pana-
mericanismo fazer propaganda do Brasil nos Estados Unidos. O Departamento de Imprensa
e Propaganda (DIP) estaria cooperando na edição de livros sobre o Brasil, sem procurar in-
fluenciar em juízos e opiniões sobre a nossa atualidade política. Ele forneceria elementos de
informação, material fotográfico, contatos pessoais, acesso a arquivos públicos e estabeleci-
mentos oficiais. Por outro lado, estaria aumentando o interesse da cinematografia americana
pelo Brasil. Em fevereiro de 1942, Orson Welles vem ao Rio de Janeiro para filmar o carnaval
e, posteriormente, realizar um documentário. Em dezembro, Clyde Elliott, da Monogram Pic-
tures, filma películas de aventura em Mato Grosso e Amazonas. John Dored, camera-man da
Paramount, há seis meses no Brasil, já filmou 47 reportagens para o jornal da companhia.
Victor Jurgens, operador do jornal The March of the Time - exibido semanalmente na Rádio
City Music Hall e nos Cineacs dos Estados Unidos - produziu dois documentários sobre as prin-
cipais realizações sociais e administrativas de Vargas. O DIP e a cadeia de jornais Scripps-How-
ard, além da Moore McCormack, Panair, Copacabana Palace Hotel e Ford Motor Company
patrocinam as Embaixatrizes da Boa Vontade, um concurso de beleza.
Progressivamente Cásper alarga seu círculo de relações na sociedade norte- americana.
Em 1942, visitam A Gazeta praticamente todas as personalidades americanas que pas-
114
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos
sam pelo Brasil, como o jornalista William Wieland, assistente especial do embaixador
dos Estados Unidos junto ao Governo brasileiro (20 de março), e S. Habib, diretor da
Metro Goldwyn Mayer do Brasil (23 de maio). Também Nelson Rockefeller, que vem ao
Brasil para acompanhar de perto o funcionamento de seu programa, entrevista-se com
Cásper, durante sua estada na capital da República (10 de setembro). Dois dias depois, já
em São Paulo, aproveita para visitar A Gazeta.
A aproximação dos jornalistas brasileiros com os Estados Unidos realmente intensifica-se
no segundo semestre de 1942. Sob a chefia de Alfredo Pessoa, diretor da Divisão de Di-
vulgação do DIP, parte uma missão jornalística com destino a Londres e, posteriormente,
Washington. São convidados Miguel de Arco e Flexa (pel’A Gazeta), Mario Martins (pel’O
Radical), Danton Jobim (pelo Diário Carioca) e Joaquim Ferreira (pel’O Globo) (A Gazeta,
6 de outubro de 1942). Ao chegar em Londres, Arco e Flexa saúda o Brasil pelo microfone
da BBC. No dia seguinte, os jornalistas são recebidos pelo presidente Churchill, a quem
entregam um busto, em nome do Governo brasileiro. Dois meses depois, já em Washing-
ton, são recebidos por Rosalyn Roosevelt.
Em novembro do mesmo ano, Cásper é convidado pelo embaixador americano a visitar
os Estados Unidos. Segundo o jornalista, “era desejoso do Governo Norte- Americano
que todo o trabalho de preparação para a guerra fosse testemunhado por jornalistas
brasileiros que, assim, poderiam sentir de perto o esforço total e a total capacidade de
produção dos Estados Unidos (A Gazeta, 2 de agosto de 1943)”. A viagem é marcada
para maio de 1943. Integram o grupo André Carrazoni, Rodolpho da Mota Lima, Be-
lizário de Souza, Romeu Ribeiro e Hugo Barreto, do Rio de Janeiro; Joaquim Ottoni Silvei-
ra Camargo, Elias Antonio Pacheco Chaves Neto e Cásper Líbero, de São Paulo; Arlindo
Pasqualini, do Rio Grande do Sul; Ernesto Simões Filho e Wilson Lins, da Bahia; e Edgard
Godoy da Matta Machado, de Minas Gerais.
Além de visitar as principais redações de jornais, empresas e escolas de aviação, o grupo vai
ao arsenal de guerra norte-americano, em diferentes Estados. As impressões causadas nos
brasileiros não poderiam ser melhores, como registra a série de artigos assinados por Cásper
e publicados nas páginas d’A Gazeta, em julho e agosto de 1943. Sob o título, “Impressões
de uma viagem”, os artigos versam sobre os mais diversos assuntos, tais como geografia bra-
sileira, pobreza do Nordeste e geografia das Guianas (a propósito da vista aérea que se tem
do avião a caminho para os Estados Unidos); Panamericanismo; transporte fluvial, ferroviário,
rodoviário e aéreo; escola de aviação; a participação da mulher na guerra; o milagre da água
na Califórnia; treinamento militar; desenvolvimento industrial; democracia e cidadania. Inde-
pendente do assunto, porém, todos os artigos referem-se aos Estados Unidos como exemplo
a ser seguido pelas demais repúblicas americanas, pois,
115
Gisely Valentim Vaz Coelho Hime
116
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos
a nossa amizade com os Estados Unidos constitui sempre a base mais firme e
tradicional de nossa política externa. Os Estados Unidos são os nossos maiores
fregueses, o maior comprador do nosso principal produto de exportação - o café,
que não paga direitos de entrada nos portos norte-americanos. Devemos ao ca-
pital americano contribuições notáveis ao nosso progresso e à nossa economia.
Não é o que demonstram os números. As exportações de café caem ano a ano. Se em 1933,
representam 73% sobre o valor em ouro das vendas, em 1934, chegam a apenas 61%, em
1935, atingem 51%, em 1936, 45%, e em 1937, 42%. É indiscutível qual o lado da balança
beneficiado pelo Tratado de Reciprocidade Brasil- Estados Unidos. Enquanto caem as expor-
tações de café, as importações de produtos americanos crescem consideravelmente. Para se
ter idéia, tomando como base os níveis de 1933, aumentam 64,80%, em 1936, e 130,8%, em
1937, enquanto as exportações brasileiras registram o incremento de 23,44 e 46%, respecti-
vamente (BANDEIRA, 1978: 248). A explicação é simples, como nos faz ver Moniz Bandeira:
117
Gisely Valentim Vaz Coelho Hime
E assim, com a intensificação dos negócios entre os dois países, os brasileiros dependem cada
vez mais dos americanos. De 1921 a 1927, o Brasil recorre às praças de Londres e Paris para
realizar operações financeiras, apenas duas vezes, concentrando os grandes empréstimos na
praça de Nova York. Por isso, em 1928, o Brasil já deve aos Estados Unidos mais de 20% do
total dos financiamentos (106.970.000 libras e 333.577.000 francos) que recebeu da Ingla-
terra e da França (BANDEIRA, 1978: 221), num valor de 152.800.000 dólares. A mudança de
posicionamento, contudo, não é peculiar ao Brasil, mas comum aos demais países da América
Latina. Ela reflete o deslocamento do centro financeiro mundial de Londres para Nova York.
Referências
BANDEIRA, Moniz. Presença dos Estados Unidos no Brasil (dois séculos de história), (2ª
ed.). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.
HIME, Gisely V. Vaz Coelho. A Hora e a Vez do Progresso - Cásper Líbero e o Exercício do
Jornalismo nas Páginas d’A Gazeta. São Paulo, dissertação de mestrado, (ECA/USP), 1997.
LOBATO, Monteiro. América - Os Estados Unidos de 1929. São Paulo: Editora Brasiliense, 1948.
MOTA, Carlos Guilherme e CAPELATO, Maria Helena. História da Folha de S.Paulo: 1921-
1981. São Paulo: Impres, 1981.
REIS, Arthur Cezar F. A Amazônia e a Cobiça Internacional (2ª ed.). Rio de Janeiro: Edino-
va Ltda., 1965.
Vargas, Getúlio. Diário, São Paulo: Siciliano / Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1995.
118
Brasileiros do Horário Nobre – ou o
que a CBS me Ensinou Sobre o Brasil1
Samantha Joyce
Saint Mary’s College, Califórnia
E
m 2006, a série de televisão CSI: Miami recebeu o título de “programa de TV mais
popular do mundo2”. Em um estudo de Ratings em 20 países, estimou-se que 50
milhões de pessoas assistiam ao show. O objetivo daquele estudo foi encontrar o
programa mais bem sucedido em todo o mundo em termos de atrair telespectadores
(Gorgan, 2006). Naquele mesmo ano, um dos episódios ocorreu no Rio de Janeiro, Brasil.
Então, o objetivo da atual pesquisa foi o de revelar como o Brasil, tradicionalmente repre-
sentado através de estereótipos (Fitz, 2005, p. 1) foi retratado. A grande preocupação com
os estereótipos na TV é que o resultado dessas representações pode ser a aquisição de
atitudes negativas para com determinados grupos pelo público e a solidificação de estere-
ótipos raciais e sexuais (Seiter, 1986, pp.7-8). A análise semiótica revelou três temas prin-
cipais: “O Brasil exótico e sem lei”; a “A ideologia do “Nós contra eles’” e a “ Ideologia da
supremacia tecnológica”, onde o acesso Americano à tecnologia de ponta os coloca como
países “modernos e eficientes” contrapondo-o aos “primitivos e retrógrados outros”.
Antes de me aprofundar na análise do episódio em questão, é importante destacar al-
guns dos maiores desafios enfrentados por pesquisadores da area de televisão e cultura
em definir seu objeto de estudo: O que é exatamente a cultura e como é que vamos de-
finir televisão? Para este trabalho tomo como parâmetro a definição de John Fiske (1987,
1991): A televisão é um portador/provocador de significados e prazeres e a cultura é vista
como a geração e circulação dessa variedade de significados e prazeres no seio da socie-
dade. A “televisão como a cultura” é uma parte importante da dinâmica social em que a
cultura é vista como a geração e circulação de todos os significados e prazeres dentro da
estrutura social e mantém-se em um processo interminável de produção e reprodução.
A definição descrita anteriormente é ampla, desse modo, pesquisadores ainda amplas e,
portanto, ainda tem dificuldade em definer seu objeto de estudo. Por exemplo: estudar
o Cosby Show. Pode-se entender como estudar um episódio de uma temporada; incluir
ou não os comerciais (segundo as idéias de flow/fluxo de Raymond Williams); estudá-
-lo em tempo ou em reprises e assim por diante. Ainda que ampla, a definição de TV
proposta por Fiske (1987, 1991) de um “circulador de significados” é um bom ponto de
partida para entendermos este fenômeno, especialmente para a semiótica. Dessa forma,
podemos entender o que Fiske descreve como significados socialmente produzidos ou
como Hall (1980) os descreveu: leituras preferenciais, negociadas e de oposição.
1 Artigo apresentado no V Colóquio Brasil-EUA de Ciências da Comunicação. Chicago, 2012.
2 A popularidade do show ainda está sendo forte. Em 14 de março de 2011, a CSI Miami superou as classificações de 18-49
adultos em uma noite que viu principalmente declínios no horário nobre da transmissão. Por exemplo, The Amazing Race
da CBS caiu um décimo de ponto vs. a semana anterior para uma classificação de 2.6 adultos de 18 a 49 anos. Undercover
Boss pegou um ataque ascendente contra as repetições ABC aumentando 7% contra a semana anterior, para um 2.9 adultos
18-49 anos. CSI Miami mostrou um aumento surpreendente, um aumento de 17% em relação à semana anterior para uma
classificação de 2,7 adultos de 18 a 49 anos (ver Gorgan, 2006, março de 2011).
Samantha Joyce
120
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos
121
Samantha Joyce
víduos, pode ser deturpados, sem um único personagem ser estereotipado (Shohat &
Allen, 1994, p. 201). Além disso, não há nenhum personagem brasileiro especificamente
brasileiro neste episódio, embora o argumento pode ser feito de que o perdonagem seja
o próprio Brasil, ou o Rio de Janeiro, que está representando o país como um todo.
No início do show, o personagem principal, Horatio Caine, revela que “Nós estamos indo para
o Brasil”. E segundos depois, ele está de joelhos aos pés do Cristo Redentor. Ao se levantar
lentamente com um ângulo de camera de baixo para cima, os códigos de produção parecem
indicar o seu poder sobre a cidade aos seus pés. Aqui, o público entende que a grande “Brasil”
é substituído por “Rio”. Mas por que eles estão na América do Sul? Os dois melhores amigos
CSIs - Horatio, o chefe (David Caruso) e Eric Delko (Adam Rodriguez) seu ajudante, vão para
o Rio de Janeiro em busca Antonio Riaz , um traficante de drogas responsável pela morte de
Marisol. Marisol era a mulher de Horatio e irmã de Delko. Por razões inexplicáveis, Riaz que
fala espanhol (sua nacionalidade não é clara), e obviamente não é um brasileiro, é mantido
em uma prisão brasileira. O ICS saber que Riaz será deixar ir da prisão - um erro evidente co-
metido pela despreparada polícia do Rio de Janeiro - que os CSI devem corrigir. Além disso,
Raymond (irmão de Horácio), um policial infiltrado no mundo do narcotráfico que está traba-
lhando no Rio, está desaparecido a mando de Riaz (Nayar, & Chapelle, 2006).
As imagens ensolaradas e brilhantes, e a música festiva e das primeiras cenas são substitu-
ídas por cenas com iluminação chiaroscuro. Sons de correntes e gritos podem ser ouvidos
enquanto vemos uma tela split-screen revelando Riaz andaando emu ma fila na cadeia, e
Delko, conversando com um oficial brasileiro na prisão, que revela para ele que o traficante
de drogas está prestes a ser livre. Delko está chocado, uma vez que ele “matou [sua] a minha
irmã”. Mas o policial revela que devido a problemas burocráticos Riaz está deslizando através
das lacunas. O oficial brasileiro diz: “Sinto muito”, mas Delko, o policial americano, prenuncia
o que está fadado a acontecer: “não sente tanto quanto você irá sentir” (Nayar, & Chapelle,
2006). Após essa revelação, é claro que os americanos serão “forçados” a tomar as rédeas da
situação. E logo que Riaz sai da prisão, ele vê Horatio do outro lado da calçada e diz: “Eu acho
que você não sabe como é que isto vai acabar, Caine”. No entanto, Horatio responde que ele
“sabe exatamente como isso vai acabar”. E um ônibus passa entre os dois, fazendo Horatio
desaparecer, como se ele fosse uma aparição da mente de Riaz; o que também pode ser lido
como uma indicação dos poderes supra-naturais de Horatio (Nayar, & Chapelle, 2006).
Em seguida, colagens adicionais de atrações turísticas do Rio aparecem, e agora Horatio e
Delko estão em frente ao renomado Teatro Municipal. Neste momento, Delko pergunta:
“Para onde está se dirigindo Riaz” E Horatio responde: “Meu palpite é uma das favelas (ele
diz ‘favelas’em portugês mesmo)”, que de acordo com a Delko são “as partes mais perigosas
da cidade; barracos construídos nas encostas dos morros, e os policiais dizem Riaz é como se
fosse o prefeito de uma deles “. Na realidade, a possibilidade de um imigrante não se sabe de
onde estar no comando de uma favela no Rio é pouco provável. Além disso, a generalização
evidente de que todas as favelas são completamente fora lei e perigosas é um estereótipo. Em
seguida, Horatio está na casa de seu irmão com a cunhada Yalina e pergunta para ela se Ray
nunca vai para as tais favelas. Yalina diz: “as drogas ...” como se os dois fossem inevitavelmen-
te ligados e, neste momento, Horatio vê umas botas rústicas e enlameadas de Ray e procura
provas forenses na sola: uma pequena folha! Horatio tira uma foto com seu celular de alta
tecnologia e imediatamente manda por email para o laboratório em Miami.
Não é difícil perceber que há um claro contraste entre a tecnologia de ponta do civilizado
e primeiro mundo e as botas rústicas usadas no Brasil. Além disso, somos apresentados a
cenas de satélite da Terra viajando do Brasil para os EUA, chegando ao prédio dos CSI Miami
122
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos
- uma estrutura de vidro moderna, onde CSIs revelam que o computador irá revelar exata-
mente de onde a folha veio, o que poderia indicar o paradeiro de Ray. Neste momento, Cal-
leigh Duquesne (Emily Procter), a chefe interina pergunta ao especialista de computação:
“Como está o Brasil?” enquanto o policial aponta para a imagem da planta em seu compu-
tador ele explica que: “A planta é a Drosera Vollosa. A coisa é carnívora e por isso estamos
olhando para o rosto de um assassino”, enquanto o público vê a planta encapsulamento e
devorndo um inseto. Já que Calleigh refere-se a planta como o “Brasil”, podemos entender
que ela supostamente representa o Brasil: uma misteriosa floresta selvagem, com plantas
assassinas que se alimentam de bichos (Nayar, & Chapelle, 2006).
Esta representação restrita de ‘brasilidade’ pode ser descrita como o que Shohat & Al-
len (1994) definem como um “fardo de representação”: ou o princípio semiótico que faz
com que uma coisa, ação, comportamento, valor ou preferência de uma pessoa ou grupo
cultural seja imediatamente generalizado como típico de uma essência (p. 183). Calleigh
está perplexa: “Isso é interessante. Ela pode ser encontrada no Rio? E o policial responde:
“Eu duvido. É nativa da floresta tropical”. Então Calleigh liga para Delko em seu telefone
celular, e pergunta sobre o Rio. Delko responde que é “bonito, mas não poderia se mais
diferente de Miami, exceto pelo o clima… A cada esquina há um arranha-céu e uma mon-
tanha. Favelas com muito pouco poder, já tivemos duas ações policiais só hoje “, diz ele.
“Mas e o povo?”, pergunta Calleigh. “As pessoas são ótimas!” “Elas estão simplesmente
em todos os todos os lugares?”, pergunta Calleigh. E um Delko intrigado responde: “Não,
isso é interessante! Onze milhões de pessoas e parece menos populoso que Miami. É como
se eles estivessem esperando por alguma coisa “. “Pelo quê?”, aergunta Calleigh curiosa.
“Eu não sei e eu não sei se eu quero descobrir” (Nayar, & Chapelle, 2006).
Então, com este gancho de suspense, que sugere que os brasileiros devem estar escon-
didos esperando algum tipo de guerra às drogas, Calleigh muda de assunto e revela que
ela “tem más notícias. A planta que eles descobriram é a Drosera Vollosa e isso significa
Riaz está trabalhando fora da cidade “Mas, para sua surpresa, Delko responde:”. Eu es-
queci de te dizer, o Rio tem uma floresta urbana, que é ao lado de uma favela”. Calleigh
é então convencida de que o laboratório de Miami foi capaz de ajudar a investigação e
desliga o telefone (Nayar, & Chapelle, 2006).
Como podemos ver até agora, a ciência e tecnologia americana desempenham um papel
importante na série CSI duplamente: dentro da narrativa, bem como em técnicas de pro-
dução do show. Assim, percebe-se que o programa não desvia-se de outros programas
policiais nda TV, onde a tecnologia, a ciência, a bravura da polícia assim como habilidades
dedutivas que são corroboradas por dispositivos de laboratório de ponta assumimem um
papel de destaque. O que é particularmente intrigante sobre este episódio é a sua contra-
posição a uma estrutura “primitiva”: o próprio Brasil (supostamente). De fato, como O’Don-
nell (2007) aponta, o show em si e o papel proeminente da ciência forense tem tido uma
enorme influência sobre as escolhas profissionais dos jovens - o principal público do show.
Por exemplo a pesquisa afirma que: “a West Virginia University tinha três alunos em 2001,
mas, em 2005, tinha 400. Desde que CSI entrou no ar, houve 10.000 inscrições para os car-
gos de polícia científica no Departamento de Polícia de Las Vegas “(p. 216).
Além disso, cada episódio da franquia CSI reforça ideologias específicas que culminam
em uma óbvia: A ideologia consumista capitalista. O sucesso do show o torna um veículo
perfeito para propaganda. Além disso, todos os tipos de paraphernalia com o logo CSI
são vendidas em lojas e na web. A ideologia da “lei e ordem”; e do “bem contra o mal” é
também apresentada ao longo da ideologia da tecnologia como um marcador definitivo
123
Samantha Joyce
124
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos
salvar Ray Jr. Yalina e Horatio encontraram paraphernalia de se fazer cápsulas de heroínas
misturadas aos pertences de Ray Jr: luvas de látex, fita. A trama agora é uma cópia perfeita
do filme Maria Cheia de Graça (2004) – um filme colombiano e não brasileiro, que lida com
os problemas específicos do tráfico de heroína naquele país (Nayar, & Chapelle, 2006). Mas
o que isso importa? Colômbia, México, Brasil. Tudo parece ser o mesmo ao Sul do Equador.
Antes de deixar o Sul, Horatio e Delko se deparam cara a cara Com Riaz. Com samba como
pano de fundo, Riaz exibe dois canivetes e começa a dançar/lutar (algo reminicente da capo-
eira) com os policiais americanos. Horatio salva o dia ao esfaquear Riaz até a morte com sua
própria faca. E no que o bandido cai no chão, Horatio olha para o corpo, a partir de cima.
Atrás dele, a estátua do Cristo Redentor, de braços abertos está em destaque no quadro.
Horatio olha para o Cristo em close e parece aliviado - finalmente a morte de Marisol está vin-
gada e eles podem voltar para casa. Os policiais simplesmente saema pé deixando o cadáver
para trás, em plena luz do dia, sem nenhuma consequencia (Nayar, & Chapelle, 2006).
Momentos depois, na cena seguinte, como de se esperar, já de volta a Miami, Horatio
é consegue salvar Ray Jr., agora sob a custódia de Diego Matos, um outro traficante de
drogas. Nesta cena de faroeste clássica - um duelo - os dois atiram um em direção ao
outro, ao mesmo tempo, mas Horatio ganha. E ao dar adeus a Yalina e Ray Jr. Horatio os
lembra de que “eles terão sempre uma família em Miami”. A família, a lei e a ordem são
então restauradas (Nayar, & Chapelle, 2006).
É importante ressaltar o fato de que a série CSI não usa técnicas de representação este-
reotipadas somente para retratar os Latinos. Um olhar mais atento sobre a série revela
o que nenhuma quantidade de efeitos especiais e de aparatos tecnológicos promovido
pelp CSI é capaz de esconder: a representação conservadora de gênero, classe e raça
no seu elenco original e recorrente. Isso não é nenhuma surpresa, já que Laura Mulvey
sugeriu que conservadorismo é mais frequentemente do que não, a própria essência do
espetáculo visual - ao chamar a atenção para o superficial e efêmero, mantendo as mes-
mas e antigas estruturas operativas. Então, segue uma divisão hierárquica do programa:
Enquanto o show parece ser uma série justa no quesito ‘oportunidade igual’ o “ com um
elenco colorido, a estrutura narrativa revela o seu verdadeiro conservadorismo com o
fálico e branco tenente Horation Craine (David Caruso) ajudado pela linda e loira Calleigh
Duquesne (Emile Procter). Os dois estão no topo e comandam uma “equipe diversificada
composta de homens e mulheres Latinos. E a pessoa que faz o “trabalho sujo” - o CSI
que faz autópsias e que lidar com os cadavers é Khandi Alexander é uma mulher negra.
Conclusões
Platéias latino-americanos há tempos lidam com sua própria imagem sendo representada por
outros, exibidas em suas telas, e amplamente exportadas para outros mercados (Marambio
& Tew, 2006, p. 123). CSI é um show americano, e sendo assim, a sensibilidade em torno dos
estereótipos e distorções de brasileiros e brasilidade surge da impotência desse grupo em
controlar sua própria representação. Esta análise textual de CSI-Rio serviu como um ponto
de partida para entender como a brasilidade foi retratada, especialmente através de mitos.
O mundo de fantasia da televisão “faz mais do que proporcionar entretenimento: ele
estrutura uma crença no que é possível no mundo real (Shayon, p.24). Sendo assim, de
acordo com o programa, o Brasil é um retiro para chefões de drogas, a terra em que as
plantas carnívoras prosperam; é densamente povoado, mas as pessoas tem com medo
de sair às ruas e se escondem à espera de “algo” acontecer. O Brasil também é repleto de
125
Samantha Joyce
126
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos
Referências
BERG, L. R.; WENNER, L. A.; BRUCE E GRONBECK. Critical Approaches to television. Houghton
Mifflin, 2003.
FITZ, E. Brazilian narrative traditions in a comparative context. New York: The Modern
Language Association, 2005.
FISKE, J. Television Culture. Great Britain: Routledge, 1987FISKE, J. Television, polysemy
and popularity. In R. K. Avery & D. E. Eason (Eds.), Critical perspectives on media and
society (pp. 346-364). New York: The Guilford Press, 1991.
GORGAN, J. (2006). ‘CSI’, the Most Popular Show in the World. Retrieved October, 16,
2007 from http://news.softpedia.com/news/039-CSI-039-the-Most-Popular-Show-in-
-the-World-31540.shtml
GORMAN, B. (March, 14, 2011). TV Ratings Sunday: ‘CSI: Miami’ surge leads CBS win;
‘Secret Millionaire’ Falls; ‘Simpsons,’ ‘Bob’s Burgers’ hit low. TVBytheNumbers.com. Re-
trieved March 15, 2011 from http://tvbythenumbers.zap2it.com/2011/03/14/tv-ratings-
-sunday-csimiami-surge-leads-cbs-win-while-secret-millionaire-tumbles/85588
HALL, S. “Encoding/decoding.” In S. Hall, D. Hobson, A. Lowe, & P. Willis (Eds.), Culture,
media, language: Working papers in cultural studies, 1972-79 (pp. 128-38). London: Hu-
tchinson, 1980.
KOHAN, J. (Writer), & SEIDELMAN, S. (Director). The power of the female sex [Television
series episode]. In D. Starr, (Producer). Sex and the City. New York: Home Box Entertein-
ment, 1998.
LIPPMAN, W. Public Opinion. New York: Mcmillan, 1922.
MARAMBIO, J. L. & TEW, C. The promised land: Resonance and dissonance of Hollywood’s
portrayals of Latin Americans in film. Studies in Latin American Popular Culture, 26: 119-139.
MULVEY, L. Visual and other pleasures. Bloomington, IN: Indiana Up, 1989.
MULVEY, L. (1990). Visual pleasure and narrative cinema. In P. Evans (Ed.), Issues in fe-
minist film criticism. Indiana University Press [Electronic version]. Retrieved April 5, 2004
from http://www.richmond.edu/~Imcwhort/restricted/Mulvey.html
NAYAR, S. (Writer), & CHAPELLE, J. (Director). (2006). Rio. [Television series episode]. In S.
Nayar & E. Devine, (Producer). CSI Miami. Columbia Broadcasting System.
O’DONELL, V. Television Criticism. Los Angeles: Sage, 2007.
OLIVER, M. B. (2006). Stereotypes about race and crime can do irreparable harm. Patriot
News, [Electronic Version]. Retrieved, October, 16, 2007 from http://www.pennlive.com/
columns/patriotnews/review/index.ssf?/base/opinion/1158950417138160.xml&coll=1
PAGE, J. A. The Brazilians. Perseus Books, 1995.
RADWAY, J. A. Reading the romance: Women, patriarchy, and popular literature. Chapel
Hill: University of North Carolina Press, 1991.
SAUKKO, P. Doing research in cultural studies. An introduction to classical and new me-
thodological approaches. Thousand Oaks, CA: Sage Publications, 2003.
SEITER, E. (1986). Stereotypes and the media. A reevaluation. Journal of Communication,
36 (2), 14-27.
SHOHAT, E. & ROBERT S. Unthinking Eurocentrism. New York: Routledge, 1994.
SHAYON, R. L. Can TV overcome? Saturday Review, 29, p. 24, 1966.
127
Samantha Joyce
128
A Cartógrafa, a Escrita e os Jovens:
Marcas de Subjetividades e das Mídias1
Maria Luiza Cardinale Baptista
Universidade de Caxias do Sul
U
ma das conclusões mais fortes da metodologia é certamente esta: não
faz sentido buscar a cientificidade por ela mesma, porque método é ape-
nas instrumento. Faz sentido, isto sim, fazer ciência para conseguirmos
condições objetivas e subjetivas mais favoráveis de uma história sempre mais hu-
mana. É um absurdo sarcástico jogar fora da ciência o que não cabe no método.
Se a ciência se der a isto, não passará de algo mesquinho. (Pedro Demo, 1989)
Uma cartógrafa estuda os mapas e relata suas transformações. Assim, abro um espaço
para resgatar o processo e refletir sobre a mutação e a processualidade, que caracteri-
zam, tanto o processo de escrita quanto o de pesquisa. Cada vez mais, percebo imbrica-
ções entre o processo de escrita e o de investigação. As considerações que trago sobre a
pesquisa, neste sentido, são também válidas para a escrita, em especial, para a produção
da escrita científica, o registro de uma ‘viagem investigativa’, que precisa ser narrada,
meticulosamente, com os cuidados inerentes à linguagem da Ciência.
Apresento, então, um conjunto de estratégias, que dizem respeito à prática de cartógrafa,
que tenho adotado na produção da pesquisa e que muito têm me ajudado na construção de
relatos de investigação como este. Fundamento-me, para tanto, em Rolnik (1989, p. 66) e na
compreensão de que o método cartográfico é aquele se faz “[...] juntamente com as paisa-
gens, cuja formação ele acompanha”. Rolnik explica que a prática do cartógrafo diz respeito
às estratégias de formações do desejo no campo social e que o sujeito que se dispõe a tal
prática “[...] leva no bolso: um critério, um princípio, uma regra e um breve roteiro de preocu-
pações – este, cada cartógrafo vai definindo e redefinindo para si, constantemente” (ROLNIK,
1989, p. 69). Nesse sentido, parto com um critério de busca de aberturas para a captação
sensível do real, um princípio que é o da paixão-pesquisa em Comunicação, uma regra que é
a busca de ‘costura’, busca de encontro com os ‘nós’ da trama dos fenômenos analisados, e o
roteiro, que procuro apresentar, mesmo que resumidamente, neste texto.
Entendo a pesquisa como um ‘jogo de escolha múltipla’. Por mais referências e conheci-
mento que se tenha, cada pesquisador faz uma determinada configuração de escolhas, na
composição do seu universo de pesquisa. Escolhas que perpassam todas as instâncias, todas
as fases. Escolhas que se fazem necessárias o tempo todo. Quer dizer, um outro pesquisador
sempre vai poder analisar a produção e pensar que escolhas diferentes poderiam ter sido
feitas. Isso porque a composição do universo de referências é diferente, o tempo é diferente.
Há sempre variáveis que fazem da experiência de uma pesquisa algo singular, como vivência
e como processo de aprendizado, de apreensão do mundo. Nesse sentido, há um texto pre-
1 Artigo apresentado no IV Colóquio Brasil-EUA de Ciências da Comunicação. Caxias do Sul (Rio Grande do Sul), 2010.
Maria Luiza Cardinale Baptista
cioso de Buber (1974), que me parece excelente para ilustrar o desafio com o qual se depara
o pesquisador contemporâneo.2 O texto trata das múltiplas possibilidades de se considerar
uma árvore, o que pode ser sentido como uma metáfora para as múltiplas possibilidades de
se apreender, de se considerar qualquer ‘objeto’ de estudo e até de se repensar a condição/
relação objeto-sujeito da pesquisa. O repensar essa relação tem implicações profundas em
todas as dimensões da pesquisa e, claro, nos seus aspectos metodológicos.
130
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos
Comunicação, como um dos sustentos existenciais. Trago para compartilhar pistas de um co-
nhecimento que venho produzindo, contaminado de emoção assumida. Sim, porque vivemos
muito tempo produzindo saber com a emoção escondida e, mais que isso, negada, como se
fosse crime ou, pelo menos, força negativa, que se opõe à razão positiva.
O abandono da dimensão emocional é criticado, entre outros autores, por Restrepo,
quando este aborda o que chama de analfabetismo afetivo. Ele resgata uma palavra
interessante, splacnisomai, do original grego do Novo Testamento. Essa palavra “[...]
corresponde à conjugação de um verbo desaparecido no século II a III de nossa era e que
hoje poderíamos traduzir literalmente como ‘sentir com as tripas’.” (RESTREPO, 1998,
p.30). Fico pensando. É isso. Sentir com as tripas. É preciso um sentimento visceral que
nos coloque em movimento, também na pesquisa.
131
Maria Luiza Cardinale Baptista
tismo afetivo a que nos levaram um império burocrático e generalizador que desconhece
por completo a dinâmica dos processos singulares”. O autor lembra que nossas cogni-
ções são determinadas por fenômenos de dependência e interdependência, por cruza-
mento de gestos e corpos, o que evidencia que “[...] é impossível continuar excluindo a
afetividade do terreno epistemológico [...]”.
Já Edgar Morin (1991, p.12) se refere a uma “inteligência cega”, ensinando que existe
uma nova cegueira, ligada ao uso degradado da razão. Sua fala remete ao quanto avan-
çamos, em termos de conhecimentos sobre o mundo físico, biológico, psicológico, socio-
lógico, e, mesmo, no espectro de métodos de verificação empírica e lógica. Apesar disso,
ele convida a admitir que “[...] por toda parte, o erro, a ignorância, a cegueira, progridem
ao mesmo tempo que os nossos conhecimentos”.
132
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos
O terceiro critério envolve a compreensão de que não há partes, mas padrões numa teia
inseparável de relações. Portanto, as relações é que são fundamentais. Nesse sentido, te-
mos a compreensão de que uma das grandes dificuldades é o processamento adequado
dos dados obtidos, no que tange ao seu cruzamento. Há muitas pesquisas, com excelen-
te nível de dados coletados, mas com grandes deficiências no que tange à explicitação
das suas relações. Temos aqui, então, a demanda de um esmero na descrição dos dados,
de modo a apresentá-los na sua complexidade.
Fundamental, como critério sistêmico, a ruptura com a concepção tradicional de objetivi-
dade científica. Nesse sentido, as opções metodológicas implicam em aberturas para ex-
trapolar a captação do concreto. Implicam na ousadia de se posicionar perante o processo,
explicitando o ‘lugar’ de onde ele foi construído.
O quinto critério da visão sistêmica nos fala sobre a compreensão do limite de todas as con-
cepções e de todas as teorias científicas. Isto nos leva, na questão metodológica, a repensar
a instância teórica, principalmente a tendência de adoção cega de visões de mundo, incor-
porando-as integralmente às peculiaridades de um objeto construído – que envolve, pela sua
construção, especificidades, difíceis de serem contempladas por apenas uma visão teórica.
O próximo critério está relacionado à lógica processual - a estrutura do sistema, vista como
manifestação de processos subjacentes. Em síntese, temos aqui o desafio de abordagem dos
fenômenos em sua dinâmica, como processo de vida, considerado em suas mais complexas
dimensões. Do ponto de vista do desafio metodológico, este critério relaciona-se diretamen-
te ao seguinte, qual seja, o caráter efêmero/mutação - compreensão dos sistemas abertos,
que precisam de um contínuo fluxo de matéria e de energia, extraídas do seu ambiente.
A despeito da perspectiva estruturalista, o texto de Lopes (1990, p. 82), reforça essa ar-
ticulação dinâmica, espécie de campo de forças, em que se constitui a pesquisa. Quanto
à questão da objetividade, no entanto, a autora a defende, como algo jamais alcançado,
mas pretendido.
A objetividade é entendida como limite ao qual se tende e a que nunca se chega termi-
nantemente [...] do ponto de vista metodológico, o campo de pesquisa seja concebido
como articulação dinâmica de diferentes instâncias e de diferentes fases que determi-
nam um espaço no qual a pesquisa é apanhada num campo de forças, submetida a
determinados fluxos, a determinadas exigências internas.
Como campo dinâmico, a pesquisa se configura como estrutura e como processo. [...] Um
outro critério considera a dimensão de entropia (desordem) nos sistemas. Herdamos nes-
tes séculos decorrentes da Revolução Científica, nestes tempos de Revolução Pós-Indus-
trial, um arsenal de saber e de descobertas tecnológicas que difundiram a informação e o
conhecimento amplamente. A facilidade de acesso às informações, a uma enorme quanti-
dade de informações, mais estonteia que esclarece. O desafio aqui, então, é o desenvolvi-
mento da capacidade de convivência com o caos informacional. Os dados obtidos em uma
investigação são muitos, múltiplos, não controláveis totalmente e, pela grandiosidade de
seu volume, muitas vezes “entopem” o sujeito, a pesquisa. Travam o processo. Metodolo-
gicamente, aqui, o desafio é ficarmos atentos ao que Morin6 (1991, p. 89) chama de “recur-
são organizacional”, muito bem representado pelo autor pela metáfora do redemoinho.
Por fim, pode-se acrescentar um aspecto decorrente dos critérios – mas não menos im-
portante. Defini este aspecto da seguinte maneira: a ciência se sensibiliza. Na medida em
6 Este autor é uma referência importante quanto à flexibilização do processo de busca de conhecimento, considerando a
incerteza como algo inerente.
133
Maria Luiza Cardinale Baptista
que o sujeito cientista tem que captar o real também a partir de dimensões sutis, sensí-
veis, abstratas, dos fluxos que o compõem, que compõem os universos da significação,
a demanda extrapola o reducionismo objetivista.
Operacionalização da Cartografia
Coerente com esses pressupostos gerais epistemológicos e teóricos, o estudo dos proces-
sos de escrita dos jovens adultos envolveu dispositivos heterogêneos. Primeiro, uma gran-
de cartografia bibliográfica, visando vislumbrar a produção já existente acerca das seguin-
tes ‘trilhas’: pressupostos científicos, comunicação, subjetividade, processos de escrita,
linguagem, pós-moderno, jovem adulto e tecnologia. Ao mesmo tempo que a bibliografia
inicial era cartografada, foi realizado o trabalho de leituras e fichamentos, de acordo com
as priorizações que foram sendo feitas e refeitas, à medida da necessidade de aprofunda-
mento teórico. Os textos foram discutidos em seminário teórico com o orientador, e em
grupo de estudo sobre Recepção e sobre Violência em Televisão, sempre com coordenação
do professor doutor Mauro Wilton de Souza, da ECA/USP.
A partir do referencial teórico, foi possível realizar também um trabalho de elaboração de
linhas de tempo: história dos meios de comunicação, história da escrita, que pude contra-
por com a da história da humanidade (grande marcos). Este levantamento possibilitou- me
visualizar sincronicidades entre as três linhas, ajudando a compreender a importância e
transformações decorrentes do dispositivo comunicacional ‘escrita’.
Além de livros pesquisados, é importante ressaltar aqui a grande contribuição de informa-
ções obtidas junto a periódicos - com destaque para os jornais Zero Hora, de Porto Alegre,
Folha de S. Paulo, de São Paulo. Foi realizada coleta e análise de textos sobre as trilhas,
com uma grande quantidade de textos, classificados sob a rubrica ‘escrita’, apresentando
reportagens e entrevistas com autores consagrados nacional e internacionalmente. Nestes
textos, os referidos autores abordam seus processos de escrita e temáticas as mais diver-
sas, como a dificuldade dos jovens com a escrita ou a relação entre palavra e imagem.
Para trabalhar a composição da amostragem, tenho pensado três campos de delimita-
ções necessárias. A amostragem bibliográfica, referente a tudo o que se encontra escrito
sobre o assunto; a material, envolvendo informações a partir de suportes; e a pessoal, os
sujeitos envolvidos diretamente na coleta planejada. Como amostragem material, posso
referir também os textos analisados no trabalho de orientação de Trabalho de Conclusão
de Curso. Na época da pesquisa, havia mais de 70 monografias de conclusão de curso
orientadas7, às quais somam-se textos de projetos de pesquisa e de projetos de iniciação
científica. Além destes, considero importante ainda o trabalho de supervisão de artigos,
projetos de pesquisa, monografias, dissertações e teses, de outras áreas8.
Antes do trabalho direto com a amostragem do estudo de casos, foi realizada uma sonda-
gem com 120 alunos dos cursos de Comunicação Social e de Letras, da Universidade Lutera-
na do Brasil (ULBRA), de Canoas, RS, através de um levantamento que consistiu no seguinte:
os alunos foram convidados, em disciplinas de Língua Portuguesa, a produzir três textos –
um sobre sua história de vida, outro sobre o seu cotidiano e outro sobre a sua relação com a
escrita. Por fim, as pessoas envolvidas diretamente na pesquisa - os casos analisados - foram
7 Em 2010, este número chegou a 181.
8 Refiro-me aqui ao trabalho de supervisão de processos de escrita que deu origem e, ao mesmo tempo, se transformou
com a produção da pesquisa. Trata-se de um trabalho desenvolvido profissionalmente, que se aproxima ao de orientação,
mas, no caso, é uma orientação da ‘escrita científica’, que se produz no acolhimento e acompanhamento de sujeitos em pro-
cessos de escritura de textos científicos nas mais diversas áreas: Comunicação, Psicologia, Psiquiatria, Medicina, Engenharia,
Geografia, Urbanismo, Matemática, Administração de Empresas, Agronegócios, Educação, Serviço Social.
134
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos
135
Maria Luiza Cardinale Baptista
obter ainda mais espontaneidade nas respostas. Pauta para entrevista específica: relação
com a escrita; histórico dessa relação – momentos marcantes; relato do cotidiano – o que
faz no dia-a-dia; relação com meios de comunicação (quais utiliza, quais mais gosta...);
ambiente vida – como é o lugar onde mora, onde estuda/escreve, com quem mora; rela-
ções familiares – descrição das pessoas e do vínculo; relações tribais – descrição das tribos
e do vínculograndes desejos – pelo menos três; grandes medos; relação com o mercado de
trabalho – Já trabalha? Alguma dificuldade? Preocupações? Relação com chefia?; relação
com o estudo. Gosta ou não: Que tipo de matéria gosta mais?; relação com leitura. Gosta
ou não? Livros, revistas, internet...?; apresentação pessoal, diferenciais, marca...; como se
sente quando tem que entregar um texto que escreveu...?
Apesar da ênfase da análise sobre a expressão/inscrição linguístico-escrita, a observação
sistemática buscou relações com outros tipos, outras formas de inscrição. Isso é coerente
também com o conceito amplo de escrita-inscrição, que foi trabalhado. Foram observados
e questionados, no processo, os seguintes aspectos: iconográfico - relativo à produção tex-
tual, envolvendo inscrição/expressão através de imagens; sonoro – expressão através de sons
em geral, particularmente manifestações e/ou relação com produções musicais. Considero
aqui que as manifestações sonoras para inscrição do sujeito podem utilizar ou não suportes
midiáticos. (CD, fita magnética...); corporal – expressão através de aspectos relacionados ao
corpo. Observados aqui desde características físicas, vestuário, adereços/enfeites, emblemas
totêmicos, movimentação (caminhar, gestual, dança....); linguístico-oral – expressão verbal
não inscrita em suporte midiático material. Veiculação direta, sem mediação de tecnologias
comunicacionais, interação direta/imediata com o receptor, expressão efêmera; linguístico-
-escrito – expressão verbal inscrita em suporte midiático. Não necessita da interação física e
direta com o receptor. Expressão/inscrição que permanece no tempo e tem a possibilidade de
vencer o espaço (distâncias) que, muitas vezes, separam emissor e receptor do texto.
Há ainda algumas especificidades que puderam ser consideradas, no aspecto lingüísti-
co-escrito: monólogo – texto escrito para si mesmo. Ex. Agendas diárias, poesias, textos
rascunhos. Tipo de texto pessoal, sem intenção de compartilhar; diálogo – texto escrito
para uma outra pessoa, em particular. Ex: cartas, mensagens via internet; tribal – texto
escrito para compartilhar em grupo restrito, do trabalho, da escola, de amigos, em gru-
pos de discussão pela internet; midiático – texto escrito para ser veiculado por meios de
comunicação de massa, mediado e inscrito em um suporte midiático.
Como se pode observar, tanto entrevista como observação sistemática constituem-se
em instrumentos complexos de coleta. Não houve, diante disso, a pretensão de um
processamento quantitativo dos dados obtidos, até porque isso seria incoerente com a
proposta de abordagem de uma amostra pequena, em um trabalho qualitativo. Existiu,
no entanto, a preocupação de uma ‘escuta’ e seleção criteriosas das informações, bem
como o de um relato que correspondesse à seriedade e dedicação com que informações
tão significativas foram obtidas. Nesse sentido, alguns cuidados foram tomados, no es-
tabelecimento de estratégias de descrição.
Optei por apresentar relatos dos trechos significativos das entrevistas, entremeados por
considerações minhas, que resultam das observações das entrevistas. Os trechos foram
apresentados por escrito, como ‘texto de fala’, quer dizer, não houve adaptações, corre-
ções. Acredito que isso possibilita a apreensão de um pouco do ritmo de cada um. Uma
fala do pesquisado chamado de Salvatore, por exemplo, adaptada para a escrita perde-
ria informações importantes sinalizadas pelas intercalações, quebras... pelos resmungos
de fala que ele produz e que eu procurei reproduzir.
136
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos
Identifiquei com reticências as hesitações dos entrevistados e com reticências entre pa-
rênteses as supressões de trechos de textos, considerados não significativos. Os trechos
de fala estão identificados com aspas e itálico, por se tratarem da ‘fala do Outro no Meu
texto’. Diferente das citações dos autores, no entanto, mesmo os trechos longos citados
não estão em recuo gráfico, para diferenciar das citações escritas.
Para efeito da descrição dos dados das entrevistas e observação sistemática, utilizei um ro-
teiro, de modo a apresentar preferencialmente na mesma sequência as informações sobre
os diversos casos analisados. Digo preferencialmente porque, ao optar pelo estilo de texto
mais literário, tratando cada caso como o de um ‘personagem’, escolhi também o caminho
de uma produção mais solta, mais fluida, que não permitiria a obrigatoriedade de sequ-
ência. Os casos foram descritos todos sob pseudônimos, para preservar a identidade dos
pesquisados, o que foi acordado com os sujeitos da pesquisa. Seus nomes foram escolhi-
dos em um elenco de nomes italianos, por uma opção pessoal. Depois, o material passou
pelo tratamento de ‘discussão’, com cruzamento, em quadros, com o referencial teórico.
Considerações Finais
A cartografia mostrou-se como método adequado, para a pesquisa com os jovens adultos.
A investigação permitiu considerar que os seus processos de escrita expressam, claramen-
te, a dimensão de multiplicidade, hipertextualidade e complexidade de processos contem-
porâneos. Processos de relações subjetivas, de interações de subjetividades, processos de
comunicação-trama. As grandes pistas, para a potencialização desse processo, parecem
apontar no sentido da necessidade de flexibilização das regras e estabelecimento de estra-
tégias mais lúdicas, mais prazerosas, na constituição das relações e da escrita, bem como a
ampliação da compreensão da influência das mídias no processo de inscrição.
Outro aspecto é que é difícil o sujeito colocar-se em relação em contexto caótico de
exacerbação da demanda idealizada, por parte de um mercado medíocre, falso e in-
fantilizador. A aceleração cotidiana coloca o sujeito em busca de uma busca constante,
em processos de constante substituição das demandas e ofertas de satisfação. Sofis-
ticados recursos e dispositivos envolvem-no com ofertas sedutoras, de encantamento
do mundo, de entregas supostamente totais. Trata-se de um sujeito desejante que não
escreve, também porque seu desejo não se inscreve, não tem tempo de amadurecer. A
psicotecnologia decorrente do forte vínculo com televisão e computador, por exemplo,
é emblemática dessa aceleração fluxo do desejo, que não se realiza.
Aliada ao cotidiano caótico, a trama de mídia disputa o sujeito, em um esgarçamento,
‘esticando’ o ego até não aguentar mais. Em troca disso, por trás da trama de mídias, a
trama empresarial capitalista com a produção de ‘bens materiais’ propõe a substituição
constante de necessidades existenciais por produtos de alta geração e sofisticados recur-
sos tecnológicos. Trama em que o jogo dos interesses põe o sujeito correndo, às pressas,
‘buscar seu lugar no futuro’. O sujeito inscreve-se, assim, apressadamente, afoitamente...
não goza o suficiente o processo. Não tem tempo de sentir... o processo... de escrita.
A contemporaneidade apresenta, então, a multiplicidade como marca intrínseca. Múltiplas
relações, múltiplas associações, aceleradas pela velocidade cada vez maior dos processos de
interação. Redes midiáticas, de sofisticados dispositivos e de artifícios que tentam aproximar
as pessoas na distância. ‘Tão longe dos olhos, tão perto do coração’. Nem sempre. Infeliz-
mente, pelo que relato na pesquisa a subjetividade contemporânea, em muitas situações, vale
mais a inversão da bela frase para ‘tão perto dos olhos, tão longe do coração ou tão longe
dos olhos, tão longe do coração’. Vínculos à distância. Rápidos encontros fortuitos mediados
137
Maria Luiza Cardinale Baptista
Referências
BAPTISTA. Maria Luiza Cardinale. Emoção e Subjetividadena Paixão-pesquisa em Comu-
nicação. Desafio e Perspectivas Metodológicas. n. 4, 2001. Disponível em: http://www.
uff.br/mestcii/marialuiza.htm. Acesso em: 14 jul. 2010.
______. Paixão-Pesquisa: o Encontro com o Fantasminha Camarada. Textura, Canoas,
ULBRA, n. 1. 1999/2.
BUBER, Martin. Eu e Tu. 2. ed. revista, São Paulo: Moraes, 1974.
CAPRA, Fritjof. A Teia da Vida. Uma Nova Compreensão dos Sistemas Vivos. 9. ed. São
Paulo: Cultrix, 1997.
______. O Ponto de Mutação. A Ciência, a Sociedade e a Cultura Emergente. 12 ed. São
Paulo: Cultrix, 1991.
CREMA, Roberto. Introdução à Visão Holística. Breve Relato de Viagem do Velho ao
Novo Paradigma. São Paulo: Summus, 1989.
DEMO, Pedro. Metodologia Científica em Ciências Sociais. 2. ed. São Paulo: Atlas, 1989.
LIMA, Edvaldo Pereira. “Da Escrita Total à Consciência Planetária”. In: Criatividade e No-
vas Metodologias. São Paulo: Peirópolis, 1998.
LOPES, Maria Immacolata Vassalo. Pesquisa em Comunicação. Formulação de um Mode-
lo Metodológico. São Paulo: Loyola, 1990
MATURANA, Humberto. Emoções e Linguagem na Educação e na Política. Belo Horizon-
te: UFMG, 1998.
MEDINA, Cremilda; GRECO, Milton (orgs.). Novo Pacto da Ciência 3. Saber Plural. O Discurso
Fragmentalista da Ciência e a Crise de Paradigmas. São Paulo: ECA/USP/CNPq, 1994.
______. Entrevista. O Diálogo Possível. São Paulo: Ática, 1986.
MORIN, Edgar. O método 4. As idéias, habitat, vida, costumes, organização. Porto Ale-
gre: Sulina, 1998.
______. O pensamento em ruínas. In: A decadência do futuro e a construção do presen-
te. Florianópolis: UFSC, 1993.
______. Introdução ao Pensamento Complexo. São Paulo: Instituto Piaget, 1991.
______. Para sair do século XX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
RESTREPO, Luís Carlos. O Direito à Ternura. Rio de Janeiro: Vozes, 1998.
ROLNIK, Suely. Cartografia Sentimental. São Paulo: Liberdade, 1989.
SARAMAGO, José. Ensaio sobre a Cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
SOUSA SANTOS, Boaventura. Um discurso sobre as ciências. 2. ed. Porto/Portugal: Afron-
tamento, 1997.
138
Sofrendo Longe e Perto.
Cosmopolitismo como
Trabalho de Identidade1
Laura Robinson
Universidade Santa Clara, Califórnia
A
partir de dados empíricos sobre os espaços do discurso digital no Brasil, na Fran-
ça e nos Estados Unidos, este capítulo analisa o uso de enquadramentos univer-
sais e transnacionais de identidade no processo de identificação com aqueles
que sofreram em consequência do atentado de 11 se setembro de 2001. Mais especifica-
mente, este análise trabalha com três perguntas: Qual foi o alcance do posicionamento
cosmopolita usado para classificar o sofrimento de outras pessoas como digno de com-
paixão? Que formas de trabalho identitário facilitaram a empatia como sofrimento des-
sas pessoas? Que tipo de contextos culturais influenciaram a forma como os indivíduos
identificaram semelhanças ou eliminaram os limites entre eles e aqueles que sofriam?
Para responder a essas perguntas, este capítulo analisa a construção de categorias de
identidade cosmopolita utilizadas para dar sentido às identidades das vítimas do 11 de
setembro. Para fazer essas conexões, a análise explora como os indivíduos processaram
uma identificação que criou categorias abrangentes de identidade como forma de ex-
pressar solidariedade. A análise da identidade cosmopolita aqui apresentada aponta
para o potencial do trabalho inclusivo de identificação, no qual o sofrimento dos outros
é compartilhado. Como o caso brasileiro nos mostra, quando tal pensamento predomi-
na, a “humanidade” se revela como categoria principal de identidade.
Assim, este capítulo contribui para a literatura sobre cosmopolitismo. Muitas vezes, o
pensamento cosmopolita refere-se ao “cosmopolitismo moral” definido como o “ideal
moral de uma comunidade humana universal” (Kleingeld e Brown, 2011). No entanto,
as identidades cosmopolitas existem em um continuum e permitem que indivíduos se
identifiquem com uma variedade de comunidades supranacionais. Mais precisamente,
as identidades cosmopolitas produzem empatia quando os observadores fazem cone-
xões entre eles e aqueles que sofrem. Além disso, ao longo do continuum, as identidades
cosmopolitas podem ser transnacionais e se basearem em semelhanças que unem os
cidadãos de diferentes estados-nação. Em uma concepção mais ampla, as identidades
cosmopolitas podem ser totalmente universalistas e ter o poder de competir em impor-
tância com as identidades nacionais (Jameson, 1982). Quando os indivíduos que defen-
dem uma posição cosmopolita consideram-se cidadãos do mundo, o sofrimento de toda
a humanidade se torna igualmente relevante e digno de solidariedade. Vemos assim que,
ao contrário de boa parte da literatura das ciências sociais que assume que o Estado-
-nação é a categoria de identidade dominante (Beck 2000), as identidades cosmopolitas
também podem ser grande relevância.
1 Artigo apresentado no VI Colóquio Brasil-EUA de Ciências da Comunicação. Foz do Iguaçu (Paraná), 2014.
Laura Robinson
Dados e Métodos
Estudos mostram a importância da internet como espaço de coleta de dados sobre narrati-
vas de sofrimento (Anderson, 2014). Este capítulo segue essa tradição ao analisar o discurso
em três países, em fóruns oganizados por jornais emblemáticos no Brasil, na França e nos
Estados Unidos: O Estado de S. Paulo, Le Monde e The New York Times. Parte de um projeto
maior (Robinson 2005, 2008 e 2009), o quadro de amostragem é o universo das contribui-
ções postadas nos três websites na semana seguinte aos ataques. De 11 de setembro a 17
de setembro de 2001, leitores publicaram 2.905 posts em “Uma nação desafiada”, do The
New York Times, 2.264 posts em “Os ataques do 11 de setembro nos Estados Unidos”, do Le
Monde, e 1.119 posts em “A primeira guerra do século”, de O Estado de S. Paulo.
Os dados neste capítulo se referem a mensagens expressando solidariedade com as
vítimas, suas famílias e/ou preocupação com o sofrimento coletivo. Portanto, os dados
incluem apenas posts que abordaram especificamente esses temas, analisados através
de codificação repetida e recodificada. Comecei usando codificação aberta para demar-
car categorias analíticas. Na sequência, fiz anotações iniciais centradas nos principais te-
mas identificados na codificação aberta, antes de proceder à codificação específica para
refinar as categorias analíticas. As etapas de codificação focada e de notas integradas
embasaram a análise dos dados.
Cosmopolitanismo Universalista
Os cosmopolitas brasileiros se identificam com aqueles que sofrem como membros da
família humana, independente de qualquer outra categoria de identidade. O caso brasi-
leiro oferece um exemplo de cosmopolitismo na forma mais bem acabada de universali-
zação. Para os cosmopolitas brasileiros, o sofrimento de todos os membros da humani-
dade é igualmente relevante:
“Não temos o direito de sacrificar qualquer vida humana por motivos polí-
ticos ou outras ideologias. O terrorismo é um grande erro. Lamento e rezo
pelos mortos nesse triste ato para que eles possam ter paz“.
140
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos
manidade para se juntar a aqueles que sofrem: “A humanidade assistiu (...) aqueles seres
humanos inocentes de tantas nações que foram assassinados nesse dia horrível e ines-
quecível”. Além disso, eles estendem a empatia para parentes e amigos: “Fico terrivel-
mente triste com os entes queridos daqueles que morreram”. Outro acrescenta: “Sinto
terrivelmente as mortes dessas pessoas e gostaria de dizer às suas famílias que só Deus
pode medir a profundidade e a intensidade da sua dor, indignação e tristeza”. Tanto nas
referências às próprias vítimas como aos seus entes queridos, os brasileiros cosmopolitas
enfatizam a humanidade como o único aspecto marcante nas identidades das vítimas.
Imagine o desespero das famílias procurando por seus parentes. São vidas
e vidas perdidas. Quantos pais, homens da família, morreram – pessoas que
nunca pensaram em opressão política. Devemos chorar por essa tragédia,
assim como devemos chorar por pessoas que morrem por causa da violência
no Brasil... Somos todos humanos... certo?
Terrivel? Brutal? Nós, seres humanos, precisamos parar e refletir sobre tudo o
que aconteceu, está acontecendo e acontecerá sobre o mal criado pelos seres
humanos, precisamos entender e parar e pensar em nós mesmos e usar nosso
livre-arbítrio, de cada um de nós para mudar o mundo.
Se o mundo continua egoísta, perverso, e continua a fechar os olhos para a
pobreza, a dor etc., o fim estará próximo, muito pior do que pensamos! Mas
há tempo; todos podemos mudar. Meus pensamentos vão para as vítimas.
141
Laura Robinson
Cosmopolitanismo Transnacional
Voltando à instância francesa, à primeira vista o trabalho de identidade é semelhante ao
discurso no fórum brasileiro, mas um exame mais atento revela diferenças importantes.
Como os correspondentes brasileiros, os cosmopolitas franceses vinculam as vítimas do
11 de setembro a vítimas de outras tragédias, como o atentado terrorista em Paris:
Os autores não escolheram seu alvo para destruir um marco americano; eles
queriam e decidiram destruir o maior número de vidas humanas, independen-
temente de serem cristãos, muçulmanos ou judeus. Todos que estavam nas
torres do WTC e ao redor delas. Não pouparam ninguém.
142
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos
relação aos três minutos de silêncio observados na União Europeia para honrar as vítimas
na sexta-feira seguinte ao 11 de setembro. Os cosmopolitas franceses descrevem os três
minutos de silêncio como uma expressão da união franco-americana:
Outro ecoa: “Hoje os franceses observaram três minutos de silêncio em memória das vítimas
dos ataques e asseguro-lhe que pude constatar a emoção nos rostos das pessoas à minha
volta”. Outros cosmopolitas franceses também destacam a nacionalidade francesa nas suas
expressões de solidariedade transnacional: “A verdadeira França parou por três minutos hoje
para honrar os seus mortos... A verdadeira França ficou profundamente chocada com os ata-
ques... Nos sentimos realmente atacados. A verdadeira França está com você”.
Em vez da “humanidade”, os franceses adotam um cosmopolitismo mais transnacional
baseado em valores democráticos compartilhados. A solidariedade dos cosmopolitas
franceses com esse sofrimento se manifesta como uma atribuição do patrimônio de-
mocrático que compartilham com os Estados Unidos enquanto cidadãos da república
francesa: “Eu aprovo inteiramente a moção de apoio do Presidente da República e do
Primeiro-Ministro aos Estados Unidos; em casos de uma grave crise como essa, as demo-
cracias devem esquecer suas diferenças e se manter unidas contra os seus adversários”.
Aqui é importante notar o uso da palavra adversários usados para definir aqueles que co-
meteram os atos de terror, em particular atos terroristas que se configuram tendo como
alvo ideais democráticos ou o Estado democrático: “Os valores democráticos nos permi-
tem superar nossas fraquezas, nossas contradições e nossa covardia. Hoje eu escolhi meu
campo e eu apoio o povo americano. - Um cidadão comum.” A ênfase francesa na demo-
cracia indica que essa forma de cosmopolitismo está enraizada em valores transnacionais
compartilhados, bem como em um senso comum compartilhado de vulnerabilidade ao
terrorismo: “Eu acredito que muitas pessoas neste fórum mostraram sua solidariedade
com os americanos porque eles estão conscientes de que, ao atacar os americanos, são
atacados os modos de vida e os valores que nós, franceses, compartilhamos.” As expres-
sões francesas de solidariedade transnacional se baseiam mais na diluição das divergên-
cias de fronteiras entre a França e os Estados Unidos enquanto “democracias” do que
entre todos aqueles que integram a “humanidade”. Aos olhos dos cosmopolitas france-
ses, o sistema francês é a realização dos objetivos e dos valores ocidentais que servem de
modelo para outras nações, como os Estados Unidos. Os cosmopolitas franceses que ex-
pressam solidariedade com as vítimas o fazem, portanto, com base no seu compromisso
compartilhado com a democracia, como escreve esta cosmopolita: “Este CRIME deve ser
simplesmente condenado. Compaixão e indignação. DEMOCRACIA.”
143
Laura Robinson
nem simultaneamente o objeto da empatia como próximo à pátria: “... eu acho imperativo
que nós permaneçamos junto dos nossos irmãos e irmãs americanos neste momento de crise,
firmemente comprometidos com os ideais democráticos que nos unem além das fronteiras
religiosas e étnicas”. Para esses americanos, a unidade nacional é fundamental mesmo quan-
do aplicada paralelamente a estruturas de identidade transnacionais:
Nos dias que se seguiram aos ataques, os americanos foram levados, pela força do trau-
ma cultural, a se situarem antes de tudo como americanos que também fazem parte de
coletividades maiores. Quando os americanos citam estruturas de identidade suprana-
cionais, eles geralmente o fazem referindo-se à identidade nacional.
Esses americanos foram acompanhados nos fóruns por centenas de cidadãos de outras na-
ções que expressavam ali a sua solidariedade. Quando o fórum teve início na manhã de 12
de setembro, uma enxurrada de empatia internacional fluiu para o fórum. Como um dos
participantes explicou, “registrar-me nesse quadro de mensagens do The New York Times
foi a única forma que encontrei para me comunicar com alguns moradores de Nova York
a partir de uma pequena cidade no norte da Inglaterra”. Esses cosmopolitas internacionais
se apresentaram como unidos simbolicamente às vítimas em Nova York, Washington D.C.,
Pensilvânia e em todo o país. Eles entraram no fórum “...para permitir que os habitantes
de Nova York e da América saibam que não estão sozinhos”. A frase “vocês não estão so-
zinhos” aparece repetidamente: “Eu simplesmente quis dizer a todos os que lêem isso que
vocês não estão sozinhos... e digo mais uma vez que vocês não estão sozinhos”.
Mesmo assim há diferenças importantes nos cosmopolitas internacionais que participa-
ram do fórum americano. De modo semelhante ao discurso no fórum francês, os cosmo-
politas europeus e a “Anglosfera” (Vucetic, 2011) estavam mais propensos a confiar em
esquemas de identidade cosmopolitas transnacionais baseados nos conceitos de “demo-
cracias” ou de mundo “livre”. Um deles disse: “Este ataque não foi apenas na América,
foi um ataque a todas as pessoas boas, simplesmente pessoas do mundo livre”. Essas
referências ao “mundo livre” se aproximam muito mais do discurso transnacional do
fórum francês, do que do cosmopolitismo universalista dominante no fórum brasileiro.
Como escreveu este cosmopolita australiano:
144
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos
Outro cosmopolita espanhol declara: “Tempo para uma Coalizão de Democracias contra
o Terrorismo... Temos um inimigo comum e nos deixe trabalhar.” Em nome da sua famí-
lia, um cosmopolita alemão acrescenta:
Conclusões
Em todos os casos os cosmopolitas trabalham com a identidade para vincular simbolicamen-
te as vítimas do 11 de setembro com coletividades maiores. Dito isto, há diferenças impor-
tantes a serem consideradas as estruturas de identidade em jogo. Os cosmopolitas brasilei-
ros oferecem uma forma de cosmopolitismo completamente inclusiva. No caso brasileiro,
a “humanidade” se baseia em estruturas identitárias cosmopolitas que incluem todos os
indivíduos unidos na “luta cotidiana pelo que é melhor” como integrantes da grande família
humana. Ao usar “humanidade” como categoria mais importante de identidade, eles fazem
com que o sofrimento de qualquer ser humano seja igualmente digno de empatia e ressal-
tam a convicção de que todos os integrantes da humanidade compartilham a dor uns dos
outros. Mais abrangentes, os brasileiros estabelecem conexões entre os que sofreram no 11
de setembro e fazem comentários mais longos sobre o que significaria ser um humano. Estes
resultados repercutem pesquisa anterior, que apontou a relevância dos sistemas universais
145
Laura Robinson
Referências
Anderson, R. (2014). Human Suffering and the Quality of Life: Conceptualizing Stories
and Statistics. New York: Springer Books.
146
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos
Beck, U. (2000). The Cosmopolitan Perspective: Sociology of the Second Age of Moder-
nity. British Journal of Sociology, 51(1), 79-105.
Burdick, J. (1996). Looking for God in Brazil. Berkeley: University of California Press.
Jameson, F. (1982). The Political Unconscious: Narrative as a Socially Symbolic Act. Itha-
ca: Cornell University Press.
Jenkins, B. (2000). French political culture: homogenous or fragmented? In W. Kidd and
S. Reynolds (Eds), Contemporary French Cultural Studies (pp. 111-126). New York: Oxford
University Press Inc.
Kleingeld, P., & Brown, E. (2011). Cosmopolitanism. In E. N. Zalta (Ed), The Stanford
Encyclopedia of Philosophy. http://plato.stanford.edu/archives/spr2011/entries/cosmopo-
litanism/. Accessed June 3, 2013.
Pew-Templeton Global Religious Futures Project (2013). Brazil’s Changing Religious
Landscape. (July 18, 2013). http://www.pewforum.org/2013/07/18/brazils-changing-re-
ligious-landscape/. Accessed July 19, 2013.
Robinson, L. (2009). Cultural Tropes and Discourse: Brazilians, French, and Americans
Debate September 11, 2001. The International Journal of Communication, 3.
Robinson, L. (2008). The Moral Accounting of Terrorism: Competing Interpretations of
September 11, 2001. Qualitative Sociology, 31(3), 271-285.
Robinson, L. (2005). Debating the Events of September 11th: Discursive and Interactional
Dynamics in Three Online Fora. The Journal of Computer-Mediated Communication, 10(4).
Vucetic, S. (2011). The Anglosphere: A Genealogy of a Racialized Identity in International Rela-
tions. Stanford: Stanford University.
147
Laura Robinson
148
Fronteiras da Globalização:
Polifonia, Identidade, Estado-Nação1
Ada Cristina Machado da Silveira
Universidade Federal de Santa Maria - Rio Grande do Sul
O
artigo sintetiza resultados de um estudo sobre as relações entre Comunicação e
Estado, detido no que aqui se denomina terras de fronteira do Brasil Meridional.
Enquanto espaço limítrofe do Estado nacional, o território lindeiro mediado entre
o extremo sul do Brasil, Uruguai e Argentina, observa a idiossincrasia de haver forjado as
culturas gaúcha e/ou missioneira, compartilhadas entre as três nações. A análise aponta
para a riqueza comunicacional do Estado brasileiro do Rio Grande do Sul, tomado como
referência paradigmática das fronteiras brasileiras. Abordando as noções de fronteira e
de periferia nacional, o texto caracteriza uma malha de comunicação que articula o nível
local e o internacional, antecipadora das condições da globalização.
[...] para inúmeros atores, e de forma cada vez mais evidente, os lugares e
regiões fronteiriços são valorizados não por sua posição marginal, mas por
seu caráter conectivo e interativo. Partindo desta hipótese, o que nos interessa
aqui é analisar, através de um exemplo empírico, a densidade e a diversidade
das interações que tem lugar na fronteira (MACHADO, 2003, Online...)
Culturalmente, as fronteiras podem ser entendidas como membranas através das quais
as pessoas, bens e informações podem circular, podendo ser aceitas ou não pelo Esta-
do. Na definição dos antropólogos Thomas M. Wilson e HastingsDonnan (1998, p. 5) “as
fronteiras são registros espaços temporais das relações entre comunidades locais e entre
Estados”. Apoiando-se em diversos outros autores, Wilson e Donnan distinguem três ele-
mentos constitutivos da noção de fronteira: a linha limítrofe, a qual simultaneamente per-
mite separar e unir os Estados-nação; as estruturas físicas do Estado que visam demarcar
e proteger a linha de fronteira, composta de pessoas e de estruturas enraizadas profunda-
mente no território nacional; e as zonas territoriais, cujas variadas dimensões se alargam
a partir e através de fronteiras, dentro das quais as pessoas negociam uma variedade de
comportamentos e significados associados a sua pertença a nações e a Estados.
Fronteiras vivas no argot militar alude aqueles territórios permeáveis e à mercê de múl-
tiplos embates. Historicamente, constituem-se em territórios ameaçados de saques e
espoliações de parte da banda inimiga. Tais terras arrasadas frequentemente sofreram e
continuam padecendo de rejeições culturais e políticas, dada sua condição de ser contí-
guas ao Estado nacional, ainda que culturalmente possam ser distintas dele. Esquecem-
-se muitos que a permanente tensão é raiz geradora do hibridismo cultural fronteiriço,
capaz de proceder a acumulações sui generis. Os territórios fronteiriços observam regras
diversas quanto a aspectos como o uso do solo, circulação de pessoas e mercadorias,
propriedade de empresas de produção primária e, em alguns casos, de privilégios fiscais.
150
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos
151
Ada Cristina Machado da Silveira
Situado no paralelo 30 da latitude sul, o Estado tem ao sul à República Oriental do Uruguai,
que se situa em alguns dos mais conflituosos 1.003 quilômetros de linha de fronteira da his-
tória do Brasil. Dela, dois terços foram demarcados considerando-se acidentes geográficos,
como elementos fluviais de lagoas e rios (GOLIN, 2015). O outro terço foi ganho num corpo a
corpo hoje evocado por uns marcos de pedra cravados esparsamente e depois estabelecidos
por linhas geodésicas. O turbulento Oceano Atlântico está ao leste, com 622 quilômetros
de litoral de praias de areias de difícil aporto. A oeste, outro litoral; os 724 quilômetros das
barrancas do caudaloso Rio Uruguai estabelecem uma divisa natural com a República Argen-
tina. Dos quatro lados do losango, apenas um lado conta com fronteira brasileira. São os 958
quilômetros de limites com o Estado de Santa Catarina, situado ao nordeste do Estado sulista.
As condições geopolíticas e o histórico de ocupação contribuíram para que, no contexto
de afirmação dos Estados nacionais do Cone Sul, as vozes que se alçaram como gran-
des representantes da sociedade de fronteira forjaram práticas cuja análise pressupõe
categorias que instituem a realidade servindo-se do poder de revelação e de construção
exercido através da objetivação do discurso.
152
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos
a uma versão anterior de uma ordem executiva ou um instrumento estatutário, que deve ser discutido e votado em ambas
as casas do Congresso Nacional: a Câmara dos Deputados e Federal Senado.
153
Ada Cristina Machado da Silveira
154
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos
que respeita a suas relações internacionais. A relação dialética entre a atividade de comuni-
cação realizada em íntimo compromisso com o nível local e aqueles interesses identificados
como internacionais faculta a convergência de posições inerente à geopolítica.
O agenciamento de ideias, conceitos e imagens historicamenteapropriados pelo fazer midiáti-
co indica uma orientação principal no trato da constituição identitária no sul do Brasil, defini-
da por um padrão de discurso eprotagonizado por uma certa voz, a fronteiriça. As narrativas
midiáticas que a expressam toma a identidade como umaconstrução consagrada, fechada,
estabelecida, com significados firmadosdoutrinariamente. A noção de identidade desenvol-
vida pela voz fronteiriçaassenta sua base principal no imaginário da formação dos Estados-
-nação doCone Sul. O movimento cultural tradicionalista gaúcho encarregou-se, nodecorrer
do século XX, de destacar as autoridades abalizadas para falar destaidentidade que, desta
forma, atua como um discurso fundador, dada suacondição de antecessora das demais vozes.
Vários temas virtualmente convertidos em pautas recorrentes nosmunicípios da malha
de comunicação das terras de fronteira são perceptíveis.Atentando ao propósito semio-
lógico apontado por Milton Pinto (1999, p. 27) de explicar o porquê de “dentro de todos
os textos passíveis de citação [...] só alguns dentre eles, bem determinados, são citados,
recorrentemente, no texto produzido”, procedemos à identificação das vozes reconhecí-
veis enquanto lugares de fala específicos.
A instrumentalização da identidade como dispositivo de poder não é uma imposição
exclusiva da mídia nas terras de fronteira pois há muitos outros agentes atuando naquele
espaço, estipulando regras e ordenamentos e evidenciando sentidos. Mas ela o assumiu
e continua assumindo como sua tarefa precípua e sua principal manifestação é registra-
da pelas competências da voz fronteiriça.
No Sul do Brasil, a voz reconhecida como fronteiriça apresenta-se como aquela maisvin-
culada ao estereótipo prevalente do gaúcho no Brasil. Ela concorre, no entanto, com re-
presentações vinculadas à voz da etnicidade. Sua presença se justifica porvários fatores.
Trata-se de uma voz faz ressoar sentidos estabilizados por uma ordem significante que foi
pré-estabelecida pela voz fronteiriça. Os sentidos mobilizados por ela tendem a responder
indiretamente ao discurso da voz fronteiriça, apontando para outros valores étnicos. Suas
propriedades discursivas encontram-se em materiais simbólicos tão distintos como podem
ser a promoção de um forte sotaque que soa a italiano ou alemão, ou mesmo a expres-
sar-se em outros idiomas/dialetos, além de ostentar distintos repertórios linguísticos.O
movimento de seu discurso avança num multiculturalismo que ainda não se estabilizou. A
aparição da voz étnica nas representações midiáticas dá lugar a um jogo de perspectivas.
Sua exótica aparição atesta que ela busca recuperar-se do apagamento simbólico que o
discurso dominante impôs a grupos sociais de imigração a partir do século XIX no sul do
Brasil. Ainda que sua materialidade seja pouco expressiva ou depreciada no cenário cul-
tural e, especificamente, midiático, sua condição é claramente emergente. Seu principal
efeito consiste em desnaturalizar a rede de sentidos institucionalizada pela voz fronteiriça
dominante. rompendo com a imaginária unidade de representação da identidade do gau-
chismo, perfilando-se como mais uma orientação do dizer identitário. Ela acusa a incom-
pletude da identidade cultural sulina e recupera sentidos do multiculturalismo excluídos
pela fixação do estereótipo. Atuam nesse projeto o reconhecimento de práticas linguísti-
cas diversas, como o Portunhol e o Portuguaranhol (WEBER; STURZA, 2015).
Uma outra voz, a de mercado responde diretamente à determinação capitalista que
orienta e limita certa produção de representações midiáticas. A voz de mercado atua,
via de regra, procedendo à mera colagem de materiais reconhecidos como significantes
155
Ada Cristina Machado da Silveira
156
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos
Nota
O texto resultou das atividades do projeto de pesquisa “Terras de Fronteira. A variedade
das estratégias de comunicação no Brasil Meridional”. Integraram o projeto de pesquisa
como bolsistas de Iniciação Científica entre 2001-2015: Leandro Stevens, Aliandra R. L.
Barlete, Lindamir E. Adamczuk e Micheli Seibt.
Referências
BANDEIRA, J. A. M. O expansionismo brasileira e a formação dos estados na Bacia do
prata. São Paulo/Brasília: Ensaio/EDUNB, 1995.
BRASIL. Ministério da Integração Nacional. Programa de Desenvolvimento da Faixa de
Fronteira. Brasília: Ministério da Integração Nacional, 2005.
CASTELLO, I. R.; HAUSEN, Ê. C.; LEHNEN, A. C. et al. (Orgs.).Práticas de integração nas
fronteiras:temas para o Mercosul. Porto Alegre: EDUFRGS/ICBA, 1995.
157
Ada Cristina Machado da Silveira
158
A vida em 700 palavras: Os
Obituários do The New York Times
e da Folha de S.Paulo1
Monica Martinez
Universidade de Sorocaba – São Paulo
A Experiência Estadunidense
P
ertencente à The New York Times Company, o diário The New York Times foi fundado
em 18 de setembro de 1851 por George Jones e Henry Jarvis Raymond, sendo que este
último também participou da fundação da Associated Press em 1856. Em O Reino e o
Poder, o jornalista Gay Talese, que trabalhou no jornal por nove anos, de 1956 a 1965, lembra
a (...) “gloriosa história do Times, que sobrevive desde a década de 1850, enquanto tantas
outras publicações (como o The Saturday Evening Post, as revistas semanais Life e Look e o
diário New York Herald Tribune) não resistiram à invasão da televisão, aos crescentes custos
de produção e à mudança de valores da sociedade moderna” (TALESE, 2000, p. II).
Em 1896, quando (Adolph) Ochs comprou o jornal, sua circulação paga diá-
ria estava abaixo de 9 mil exemplares, menos do que vendia com dez dias de
vida, em 1851. Quando da morte de Ochs, em 1935, a circulação diária era de
465 mil exemplares. Esse número quase dobrou desde então e aconteceram
várias mudanças para melhor, mas em muitos aspectos o Times continua a
ser o jornal de Ochs, seu santuário, e suas palavras de sabedoria são reverbe-
radas por velhos experientes ainda sob sua influência [...] seu credo – “Dar as
notícias com imparcialidade, sem medo ou favor”.
O New York Times era uma mistura atemporal de passado e presente, um mo-
derno reino medieval no interior da nação, com suas próprias leis e valores parti-
culares e com líderes que se sentiam responsáveis pelo bem-estar do país, porém
menos inclinados a mentir do que os estadistas e os generais. O Times era a
bíblia, surgindo a cada manhã com uma visão da vida que milhares de leitores
aceitavam como se fosse a realidade, com base na simples teoria de que o que
aparecia no Times devia ser verdade, e essa fé cega transformava em monges
muitos homens do jornal. [...]. Afinal, o New York Times cresceu com o país du-
rante as duas grandes guerras, prosperou com ele e ambos estavam igualmente
comprometidos com o capitalismo e a democracia, e o que era ruim para a nação
era, com frequência, igualmente ruim para o Times. (TALESE, 2000, 18-19).
O jornal foi seriamente atingido pela crise econômica de 2008 e pelo avanço da Internet.
Com o aumento do acesso ao conteúdo disponibilizado digitalmente, e como uma forma
de aumentar as receitas, desde março de 2011 o jornal lançou pacotes de assinatura di-
gital, passando a cobrar o acesso ao conteúdo digital de usuários frequentes. O usuário
eventual possui uma quota de até 20 artigos que podem ser acessados por mês, sem
custo. O esforço rendeu frutos e criou uma cultura de cobrança chamada pay wall, em-
pregada hoje por jornais de tudo o mundo, como a Folha de S.Paulo no Brasil.
Quanto à sua estrutura atual, o jornal é organizado em três seções. A primeira delas, cha-
mada News, inclui os obituários entre editorias como Internacional, Nacional, Nova York,
Saúde e Tecnologia. A segunda, Opinião, contém editoriais e cartas ao editor, entre outras.
Já a terceira, Features (coberturas especiais), é dedicada a seções de artes, cinema, viagem
etc., além das revistas, como a The New York Times Magazine.
Obituários é uma seção importante. Na versão online do jornal é possível pesquisar
obituários desde 1851. É o caso da rainha Victória, que subiu ao trono britânico em
1837 e faleceu no dia 23 de janeiro de 1901, aos 81 anos.
O livro The Obits (MCDONALD, 2010), editado pelo jornalista responsável pela editoria
de obituários, William McDonald, é organizado de maneira semelhante à qual os obituá-
rios são publicados no jornal. Isso é, as notícias de falecimento são inseridas na editoria
na qual o perfilado se inseria em vida. No livro, os perfis são distribuídos nas editorias
de Arts & Design (Artes e Design), Business and The Economy (Negócios e Economia),
Letters (Letras), Music (Música), Public Affairs (Assuntos Públicos), Social Activism and
Religion (Movimentos Sociais e Religião), Sports (Esportes), Stage and Screen (Teatro e
Cinema) e, finalmente, Other Notables (Outros Notáveis).
Na introdução da obra, MacDonald diz que aproximadamente 55.5 milhões de pessoas
morrem no mundo por ano – o tamanho da população da Itália –, sendo que apenas mil
delas são anunciadas no NYT2:
Segundo ele, não há uma fórmula fixa para a seleção, embora haja critérios. Um deles é
fama, caso do ator Tony Curtis (1925-2010). São bem-vindos os realizadores, como o bio-
químico Eugene Goldwasser (1922-2010), cujas pesquisas possibilitaram a criação de uma
droga para tratar a anemia. Interessam representantes de grupos cujas contribuições foram
esquecidas ou ignoradas, como Violet Cowden (1916-2011), integrante do Women Airforce
2 Daqui em diante, o jornal The New York Times será identificado pelas iniciais NYT.
3 Do original: […] we confine ourselves to writing about people who made a difference in the large stage – people, we think,
who will command the broadest interest. If you made news in life, the rule of thumb goes, chances are your death is news,
too (…) Like deans of admission, we sift through the candidates, study their curriculum vitae, read their letters of reference
and sort the prospects into piles: yes, no, maybe. (An entirely separately, smaller and somehow poignant batch is composed
of material submitted by fully breathing obituary themselves, asking us to keep them on file for that inevitable day). We also
do our own homework: we investigate, research as ask around before deciding yes, no or maybe. We seek only to report
deaths and to sum up lives, illuminating why, in our judgment, those lives were significant – why, that is, we’ve choosen
them. The justification for the obituary is in the story it tells.
160
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos
Service Pilots (WASP), grupo feminino da força aérea americana na Segunda Guerra Mun-
dial. Segundo MacDonald, os jornalistas desta editoria estão sempre “ansiosos para escre-
ver sobre heróis ou heroínas desconhecidos, olhamos para todos que aparecem em nosso
caminho, nunca descartando qualquer um” (MCDONALD, 2010, p. xv, tradução nossa) 4.
A Experiência Brasileira
Três títulos, a Folha da Noite (fundada em 1921), a Folha da Manhã (1925) e a Folha da
Tarde (1949) foram fundidos em 1º de janeiro de 1960, dando início ao jornal Folha de
S. Paulo ou, como é chamado informalmente, à Folha. Editado na cidade de São Paulo,
trata-se do jornal brasileiro atualmente com maior circulação paga, com média diária
de 332.354 exemplares em janeiro de 2014 segundo a Associação Latino-Americana de
Publicidade (Alap)5. O jornal passou por quatro fases:
De Olival Costa e Pedro Cunha, nos anos (19)20, a Octaviano Alves de Lima,
proprietário do jornal de 1931 até 1945, a Folha ganhou dimensões que a
colocariam no debate político mais vivo do período. De fato, de uma visão
urbana e fiscalista, circunscrita aos horizontes de frações da classe média
paulistana, o jornal viria a adquirir um vigor dado pelos projetos de classe de
uma ‘burguesia afazendada’ – para usar a expressão de Cunha Motta – mais
voltada para os interesses da lavoura. Nesta fase, Rubens do Amaral pontifi-
cará, exercitando sua formação de futuro udenista...
De 1945 a 1962, o jornal será dinamizado por uma nova concepção, mais
moderna, urbana e empresarial, capitaneado por José Nabantino Ramos. Na-
bantino Ramos fará retornar o jornal ao seu estilo fiscalista e modernizador.
Nessa fase, o jornal de classe média assumirá seus contornos mais nítidos,
tendo por pano de fundo os dilemas que a Guerra Fria carreava para este
imponderável ‘Terceiro Mundo’. O ‘4º. Poder’, caro a Nabantino, era testado
no ‘Terceiro Mundo’, expressão esta que se fortaleceria ao longo do período,
também fruto da Guerra Fria – guerra surda entre os dois mundos polarizados
pelos Estados Unidos (admiração maior de Nabantino) e pela União-Soviética.
O quarto momento iniciar-se-á após a greve de 1961, quando o grupo Frias-Cal-
deira assume em 1962 a direção da empresa, imersa em grave crise financeira.
A lenta recuperação do empreendimento, as iniciativas na esfera da distribui-
ção (reorganização administrativa, novas frotas etc.), propiciarão acúmulo de
capitais que permitirão o salto tecnológico que se dará entre 1967 e 1974. (...)
Neste quarto momento, a formulação de um projeto mais claro de jornal
será tarefa relativamente recente, situada por volta de 1974. O processo de
‘distensão’ política do país, iniciado por Geisel, guarda íntima relação com
essa fase da história da Folha: a procura de um espaço político democrático
– sempre nos marcos da ideologia liberal – passará a ser a pedra de toque do
jornal. (MOTA; CAPELATO, 1980: III-IV).
Essas transições, é claro, não foram sempre feitas de forma pacífica. Em A Regra do Jogo,
de Cláudio Abramo, o jornalista Mino Carta relata um dos episódios mais dramáticos
4 Do original: “[...] eager to write about unsung heroes or heroine, we look at everyone that comes our way, never dismiss-
ing anyone out of hand [...]” (MCDONALD, 2010, p. xv).
5 A Folha de S. Paulo foi o primeiro em circulação nacional no período de 1986-2010, quando, segundo dados do Instituto
Verificador de Circulação (IVC), o jornal perdeu a liderança para o diário popular Super Notícia, de Belo Horizonte (Minas
Gerais). Em 2014, o IVC (Instituto Verificador de Circulação) alterou o critério de levantamento para refletir o crescimento
das edições digitais e o jornal paulistano reconquistou a liderança.
161
Monica Martinez
Embora evidentemente a FSP publique obituários desde sua fundação, em 1960, este es-
tudo se concentra na implantação, em 30 de outubro de 2007, da seção Mortes, publica-
da no caderno Cotidiano, escrita até 18 de agosto de 2008 pelo jornalista William Vieira.
Tanto os obituários da FSP quanto os do NYT são frutos de modelos de jornalismo
que divergem em alguns pontos, mas que convergem em outros. Em estudo sobre o
tema, o jornalista e docente Carlos Eduardo de Lins e Silva cita o estudo de Siebert,
Peterson e Schramm, de 1956, para apontar os quatro modelos jornalísticos:
(...) o libertário, que teria sua expressão máxima nos EUA; o de responsabili-
dade social, como se pratica na maior parte dos países da Europa Ocidental;
o autoritário, com seus exemplos mais claros nos países do Terceiro Mundo;
e o comunista, nas sociedades socialistas.
O Brasil faz um jornalismo que se guia atualmente pelos princípios e parâme-
tros da escola libertária. Mas como aconteceu com sua formação econômica,
também no caso do jornalismo ele se insere num modelo sem que no interior
da sociedade houvessem realizados as condições que, nos EUA, tornaram
lógico o aparecimento deste tipo de jornalismo e não de outro. Há um século
a sociedade americana desfruta de um público razoavelmente homogêneo
que consome jornais em escala suficiente para que os produtores de bens
materiais tenham interesse em veicular por seu intermédio as mensagens
publicitárias que irão expandir o mercado para seus produtos. As barreiras
do analfabetismo foram superadas quase por completo, as classes médias
cresceram a ponto de se transformarem em maioria absoluta da população e
tudo isso aconteceu há mais de cem anos (SILVA, 1991, p. 57-58).
162
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos
nos Estados Unidos e a ascensão da chamada nova classe média no Brasil, que ampliou
o poder consumidor de um segmento significativo da população.
Contudo, e apesar das diferenças socioeconômicas desses dois países, tanto os leitores do
NYT quanto os da FSP parecem estar interessados no que o jornalista estadunidense Walter
Lippmann (1889-1974) já receitava em carta ao editor Horace Greeley (1811-1872). “Começo
com uma clara concepção de que o assunto que mais profundamente interessa ao ser hu-
mano médio é ele próprio; depois disso ele está mais preocupado com seus vizinhos. Ásia e
Togo estão muito longe destes neste aspecto” (LIPPMANN, 2010, p. 283).
Esse rol conteria, igualmente a morte, bem como os obituários, inclusive os de jornalistas
encarregados de dar essas más notícias aos leitores. É o caso do perfil de Alden Whitman,
considerado o pai dos obituários do NYT, escrito por Gay Talese (TALESE, 2004, p. 478-494).
Metodologia de Pesquisa
O corpus desse estudo comparativo entre obituários brasileiros e estadunidenses
consiste em sete obituários publicados na FSP de 30 de outubro de 2007 (quando a
seção Mortes é lançada, a 6 de novembro do mesmo ano) e 21 obituários publicados
no mesmo período no NYT. Todos foram colhidos por meio digital.
2. Frequência
A seção Mortes da FSP publica um óbito por dia. Isso se deve ao fato de que as notícias do
falecimento de personalidades são publicadas em outras editorias do jornal. Já no NYT os
obituários são identificados como tal, embora não sejam publicados em um lugar específi-
co, mas nas editorias às quais os perfilados estariam naturalmente ligados, como Esportes
e Artes, entre outras. No período analisado (30/10 a 6/11/2007), foi publicada uma média
de três obituários no jornal estadunidense, ou seja, três vezes mais do que a média da FSP.
3. Gêneros
No período analisado, houve incidência maior de obituários de mulheres na FSP (38%)
em relação ao NYT (10%). Em ambos estudos, contudo, ressalta-se a predominância
das histórias masculinas em relação às femininas. Não se notou, no jornal brasileiro,
nenhuma menção explícita ou implícita a homossexuais. Já no caso estadunidense há o
relato de uma lutadora profissional cujos “cinco casamentos terminaram em divórcio (...)
e viveu por muitos anos com Katie Glass”. Este dado biográfico é transmitido de forma
informativa, sem julgamento ou interpretação moral sobre a vida sexual da falecida.
163
Monica Martinez
Mulher (2)
10% Mulher (3)
38%
Homem (5)
62%
Homem (19)
90%
4. Faixa Etária
No período analisado, a expectativa de vida nos EUA era de 78,2 anos, enquanto no Brasil era
73,5 anos (dados de 2011). A média da faixa etária dos obituários publicados no NYT foi de 79
anos, sendo que o falecido mais novo possuía na ocasião 41 anos e o mais idoso, 104. Além
desse, houve um segundo centenário, com 101 anos. Não houve uma diferença significativa
em relação ao estudo brasileiro, que registrou no período uma média etária de 74,5 anos.
Não há notificações de mortes de crianças, adolescentes nem suicidas em ambos casos.
Um dado que chama a atenção é a apresentação da idade. No caso estadunidense a idade é
expressa no título. No brasileiro, a idade é mencionada na última linha da matéria. Como se
sabe, no formato jornalístico tradicional, da pirâmide invertida, o final da mensagem é consi-
derado o menos importante. Este dado sugere que o brasileiro ainda se vê como uma nação
constituída por jovens, ainda que os dados estatísticos apontem o envelhecimento gradual
da população devido a fatores como a redução da mortalidade infantil e o aumento da ex-
pectativa de vida. O dado, portanto, sugere uma sociedade que não tem uma tradição de se
preparar para o envelhecimento e reluta em assumi-lo, o que é expresso simbolicamente na
prática de se colocar este dado na última linha possível do relato jornalístico. A expectativa
de vida nos EUA é de 78,2 anos, enquanto que a brasileira é de 73,5 anos (dados de 2011).
164
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos
no período. Com isto, é possível notar um padrão maior nos textos do jornal brasileiro e uma
discreta variação de acordo com o estilo de cada jornalista estadunidense.
Um exemplo é o jornalista com mais textos publicados no período, Douglas Martin, cujo
estilo prima pela visão crítica. É o caso do obituário do barítono Robert Goulet, publicado
em 31/10/2007. Após apontar as conquistas profissionais do cantor, Martin pontua: “Ainda
assim, Mr. Goulet deixou a impressão de que poderia ter sido mais do que foi. Para um ator
de musicais (de voz) suave, ele chegou tarde, depois de Elvis e antes dos Beatles. Em 1961,
o New York Daily News Magazine chamou-o de ‘o homem que poderia ajudar a esmagar
o rock’n’roll.’ Mas esta era uma tarefa impossível. (MARTIN, 2007a, tradução nossa).”7
Essa visão crítica pode ser igualmente encontrada na pesquisa brasileira. No obituário de
Elizabeth Hart, o jornalista William Vieira ressalta: “Por mais de 15 anos ela recebeu elogios
por sua pronúncia e entonação, e críticas, por traduzir cada detalhe da cerimônia, inclusive
as piadas. Aos poucos tornou-se mais sintética.” (VIEIRA, 2007). O que é alvo de julgamen-
to do trabalho da intérprete: “Dizem os críticos mais ácidos que, com o passar dos anos,
dava para ouvir o som local do teatro onde acontece o Oscar”. (VIEIRA, 2007).
Autores
2
0
) ) ) ) ) ) ) ) ) ) ) ) )
4% 4% 9% (9
%
(5
%
(5
%
(5
%
(5
%
(5
%
(5
%
(5
%
(5
%
(5
%
(2 (1 i( s r s
in in es
n n
ro
a
lle dy sk
y
rc
e
es es
so so al
m
ne
ar
t te ev r er
r
Fu Li
t a Pr Ti
m
ds H te d Bu eP n Pe d
s
M
ol i s Pe An an D as Ke nk y te r k
la G nn J. i
ny om y
Fr
a em ci
a Yo
g d e ck ar nd r
ou ar D on Ja M o Th Je so ew
is th Ra As N
D ch Al An e
Ri Th
Ao tratar a questão, o jornalista brasileiro Matinas Suzuki Jr., que organizou e escreveu o
prefácio de O livro das vidas:obituários do New York Times, afirma: “Os jornais (...) abandona-
ram o antigo preceito de mortuis nil nisi bonum – dos mortos, só falar bem – e começaram a
dedicar mais linhas para o lado menos honroso das biografias (SUZUKI JÚNIOR, 2008, p. 304).
De toda forma, em ambos os jornais predomina a prática de enfatizar o significado da vida
do morto, quase como se o obituário fosse uma homenagem póstuma. Daí no caso brasileiro
não ser rara a reprodução destes textos em blogs, publicações de classe ou corporativas –
sempre com o devido crédito ao autor e à publicação. O fato de o primeiro jornal em circula-
ção do país publicar a nota de falecimento parece ser uma credencial da grandeza do morto.
Já a espirituosidade é decididamente uma marca estadunidense notada em particular
nos textos do jornalista Douglas Martin. Ele se alinha à tradição do bem humorado
7 “Still, Mr. Goulet left a sense that he might have been more than he was. For a suave musical theater performer, he arrived
late, just after Elvis and just before The Beatles. In 1961, the New York Daily News Magazine called him ‘just the man to help
stamp out rock’n’roll.’ But it was an impossible assignment.”
165
Monica Martinez
Robert McG. Thomas Jr., que escreveu 657 obits para o NYT (SUZUKI JÚNIOR, 2008,
p. 309). No obituário do cantor de música country Porter Wagoner, de 30 de outubro
de 2007, Martin cita um affair entre o cantor e a cantora Dolly Parton que teria ren-
dido várias manchetes de tablóides. “Um (tablóide) relatou que a esposa do senhor
Wagoner encontrou-o na cama com a senhorita Parton e atirou em ambos. ‘Não foi
assim’, disse o senhor Wagoner ao The Tenessean em 2000 (‘com uma piscadela’, disse
o jornal). ‘Ela sequer atingiu Dolly.’” (MARTIN, 2007b, tradução nossa)8
Outro exemplo é o fecho do obituário do barítino Robert Goulet, de 31 de outubro de
2007: “(...) Mesmo com problemas de saúde, ele ria de si mesmo. Quando ele sofreu uma
cirurgia por causa de um fêmur partido em meados dos anos 1990, perguntou ao cirurgião
se ele seria capaz de dançar após a intervenção. O doutor disse que sim. ‘Isso é bom,’, disse
o senhor Goulet, ‘porque eu não sabia dançar antes.’” (MARTIN, 2007a, tradução nossa)9.
Esse bom humor não é encontrado nos obituários brasileiros. Talvez isso se deva, em par-
te, à herança da visão religiosa ibérica católica, bastante conservadora. Como diz Matinas
Suzuki Jr, o organizador de O livro das vidas: “A cultura brasileira não lida bem (com a mor-
te). Na nossa tradição católica e latina, a morte é vista como silêncio e dor”(COSTA, 2012).
Gráfico 3 – Distribuição dos obituários nas editorias do The New York Times
Editorias
U.S. (2)
10%
Sports (4)
19% NY & Region (4)
19%
8 “One reported that Mr. Wagoner´s wife had found him and Ms. Parton in bed and had shot both. ‘There wasn’t nothing to
that’, Mr. Wagoner told The Tennessean in 2000 (‘with a wink’, the newspaper said). ‘She didn’t even hit Dolly.’”
9 “(...) But even with health problems, he could laugh at his own expense. When he had surgery on a split femur in the mid-
1990s, he asked the surgeon if he would be able to dance afterward. The doctor said yes. ‘That´s good,’, Mr. Goulet said,
‘because I couldn’t dance before.’”
166
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos
No caso brasileiro não há a divisão por editorias, mas a distribuição de acordo com a profissão
sugere uma predominância de profissionais liberais, que são o público principal do jornal.
Empresário (1)
12,5%
Residência
Brasília (1)
12,5%
Estrutura do Texto
Usando como exemplo o obituário do escritor Frank Kermode (MCDONALD, 2010, p. 29), o
padrão do NYT em geral demanda título (Autodidata das Letras10), um primeiro parágrafo
que sintetiza a vida e obra da pessoa (“Frank Kermode, que ascendeu das origens simples
para se tornar um dos críticos mais respeitados e influentes da Inglaterra, morreu em 17 de
agosto em sua casa em Cambridge, Inglaterra. Ele tinha 90 anos.”).11. Esta abertura, que
“qualifica e dá tempero à vida”, foi introduzida por Robert McG. Thomas Jr. (1939-2000), que:
10 Self Made Man of Letters.
11 Frank Kermode, who rose from humble origins to become one of England´s most respected and influential critics, died
on Aug. 17 at his home in Cambridge, England. He was 90).
167
Monica Martinez
Considerações
A escolha por apresentar personagens não midiáticos, que de alguma forma contribuí-
ram para sua comunidade em detrimento de estrangeiros, não chega a ser surpreenden-
te em vista das diferentes formações sociais do Brasil e dos Estados Unidos.
Há na formação dos Estados Unidos um componente de que a nação foi formada pelos
founding fathers, indivíduos letrados de boa condição econômica que emigraram em
busca de condições mais favoráveis para expressar seus ideais (TOCQUEVILLE, 2010). Por
extensão, e sobretudo a partir da Segunda Guerra Mundial, o país puxa a si o protago-
nismo de manter o sistema democrático vivo em nível mundial. Essa perspectiva ideoló-
gica está marcada na linha editorial do NYT desde suas origens e ainda o norteia, a julgar
pela fala do editor responsável pelos obituários, William MacDonald.
Não é por acaso que 14% das notícias de falecimento sejam de personagens mundiais.
Contudo, mesmo entre as locais, há protagonistas desse ideário de uma nação que se vê
12 “His death was announced by The London Review of Books, which he helped created and to which he frequently contributed”.
13 “In addition to Bob Dana, of Kenmore, he is survived by a daughter, Marti Knodel, of Orchard Park, N.Y.; four grandchil-
dren; and four great-grandchildren. His wife, Helen, died in 1985”.
168
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos
como importante no cenário geopolítico mundial, como o obituário do último dos 12 com-
petidores que ganharam medalhas no atletismo nas Olimpíadas de 1936, desacreditando
a teoria de Adolf Hitler de supremacia da raça ariana. John Woodruff, cujo obituário foi
publicado em 1 de novembro de 2007, era negro, bem como cinco outros vencedores (LIT-
SKY, 2007). Há também a história da holandesa Johtje Vos, naturalizada americana, que
salvou 36 judeus de serem mandados para campos de concentração quando a Holanda foi
invadida por Hitler (HEVESI, 2007). Nesse contexto, o obituário mais curioso é o do piloto
Paul W. Tibets Jr. que, a bordo do Enola Gay, no dia 6 de agosto de 1945, jogou a bomba
atômica sobre Hiroshima, no Japão, causando a morte de 70 mil pessoas e ferimentos em
outras 50 mil, numa cidade que tinha até então 250 mil habitantes. Apesar de a matéria
ser bem informativa, ela é encerrada com a seguinte frase: “Eu via minha missão como a
de salvar vidas (...). Eu não havia bombarbeado Pearl Harbour. Eu não havia começado a
Guerra, mas eu iria terminá-la.” (PETERSON, 2007, tradução nossa). 14
No livro It Used to Be Us (2011), o colunista de assuntos internacionais do NYT, Thomas Fried-
man, sugere que uma das possíveis causas do declínio econômico americano seria a falta de
um oponente forte, como o representado pela União Soviética no período da guerra fria. O
curioso é que, dos três obituários de estrangeiros no período analisado, dois são provenien-
tes da antiga União Soviética: o do espião Aleksandr Feklisov, morto aos 93 anos (MARTIN,
2007), e do coreógrafo Igor Moiseyev, aos 101 – ambos russos (ANDERSEN, 2007).
Dividir o título de império do mundo com outra nação pode ter sido difícil para os EUA,
enquanto a dicotomia de poder da Guerra Fria durou, mas há em alguma medida o reco-
nhecimento póstumo concedido pelos jornalistas responsáveis pelos obituários a esses
dois antagonistas de valor no cenário mundial das artes da espionagem e da dança, res-
pectivamente. O terceiro obituário, de Khun Sa, considerado então o rei das drogas do
Golden Triangle (triângulo formado por Laos, Tailândia e Miamar), não é escrito de forma
a incensar o morto (FULLER, 2007). Prova, talvez, de que a batalha contra as drogas, na
visão estadunidense, está longe de chegar a um fim.
Na parte brasileira do estudo há o obituário de um ex-pracinha da Força Expedicionária
Brasileira que lutou ao lado dos aliados na Itália na Segunda Guerra Mundial. Apesar da
menção a uma medalha ganha na luta contra os alemães, não há uma reflexão maior
sobre o papel da nação brasileira na guerra. Em vez de ressaltar a visão histórica, o obi-
tuário destaca a repercussão pessoal que participar daquele conflito causou na vida do
indivíduo (VIEIRA, 2007a). O historiador Sérgio Buarque de Hollanda (1902-1982) aponta
essa ausência de orgulho pátrio e a ênfase na vida do clã familiar em detrimento do co-
munitário na formação do povo brasileiro (2006).
Essas visões diferentes sugerem que os textos dos obituários estadunidenses empregam
histórias exemplares como uma forma de representação simbólica de uma nação que se
vê como uma liderança na manutenção de certos valores mundiais. Já no caso brasileiro,
essa noção não está na matriz da tradição católica portuguesa, que ao ocupar o país
no século XVI, privilegiava uma forma de vida baseado na ousadia individual e não no
trabalho duro, sem a visão comunitária da fundação de associações e dos cuidados com
a nova pátria que marca a tradição protestante puritana (HOLANDA, 2006). Não é de
se estranhar, portanto, que essa visão ensimesmada, voltada ao próprio umbigo, ainda
ecoe nos obituários brasileiros. Ainda que, seja necessário ressaltar, ela também tenha
seu ponto forte ao destacar anônimos ou heróis do cotidiano em vez de heróis midiáti-
cos como no caso estadunidense.
14 “I viewed my mission as one to save lives (...). I didn’t bomb Pearl Harbour. I didn’t start the war, but I was going to finish it.”
169
Monica Martinez
Referências
ABRAMO, Cláudio. A regra do jogo: o jornalismo e a ética do marceneiro. São Paulo:
Companhia das Letras, 1999.
ANDERSEN, Jack. Igor Moiseyev, 101, Choreographer, Dies. Obituaries. The New York
Times, 3 nov. 2007, Arts & Style. Disponível em: <http://www.nytimes.com/2007/11/03/
arts/dance/03moiseyev.html?scp=2&sq=November+3%2C+2007+Obituary&st=nyt>
Acesso em: 13 fev 2012.
COSTA, Luciano Martins. Reportagem + biografia + arte = obituário. Observató-
rio da Imprensa. São Paulo: 19 fev 2008, edição 473. Disponível em: <http://www.
observatoriodaimprensa.com.br/news/view/reportagem_biografia_arte_obituario >
Acesso em: 23 fev 2012.
FOLHA ONLINE. Agência de notícias divulga obituário de Steve Jobs. Folha de S. Paulo.
Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/informatica/ult124u438938.sht-
ml>. Acesso em: 23 fev. 2011.
FRIEDMAN, Thomas; Mandelbaum, Michael. That Used To Be Us: how America fell be-
hind in the world it invented and how we can come back. New York, Farrar, Straus and
Giroux, 2011.
FULLER, Thomas. Khun Sa, Golden Triangle Drug King, Dies at 73. Obituaries. The New
York Times, 5 nov. 2007, World. Disponível em: <http://www.nytimes.com/2007/11/05/
world/asia/05khunsa.html?scp=4&sq=November+5%2C+2007+Obituary&st=nyt>
Acesso em: 13 fev 2012.
GOLDSTEIN, Richard. Sam Dana, 104, Oldest Former N.F.L. Player, Is Dead. Obituar-
ies. The New York Times, 1 nov. 2007, Sports. Disponível em: <http://www.nytimes.
com/2007/11/01/sports/football/01dana.html?scp=2&sq=November+1%2C+2007+O-
bituary&st=nyt> Acesso em: 13 fev 2012.
PETERSON, Alison J. Paul W. Tibbets Jr., Pilot of Enola Gay, Dies at 92. Obituaries. The
New York Times, 2 nov. 2007. Disponível em: <http://www.nytimes.com/2007/11/02/obi-
tuaries/02tibbets.html?scp=4&sq=November+2%2C+2007+Obituary&st=nyt> Acesso
em: 13 fev 2012.
HEVESI, Dennis. Johtje Vos, Who Saved Wartime Jews, Dies at 97. Obituaries. The New York
Times, 4 nov. 2007, NY & Region. Disponível em: <http://www.nytimes.com/2007/11/04/
nyregion/04vos.html?scp=1&sq=November+4%2C+2007+Obituary&st=nyt> Acesso
em: 13 fev 2012.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
LIPPMANN, Walter. Opinião pública. Petrópolis/RJ: Vozes, 2010.
LITSKY, Frank. John Woodruff, an Olympian, Dies at 92. Obituaries. The New York Times,
1 nov. 2007, Sports. Disponível em: <http://www.nytimes.com/2007/11/01/sports/others-
ports/01woodruff.html?scp=4&sq=November+1%2C+2007+Obituary&st=nyt> Acesso
em: 13 fev 2012.
MARTIN, Douglas. Aleksandr Feklisov, Soviet Spy, Dies at 93. The New York Times, 2
nov. 2007. Disponível em: <http://query.nytimes.com/gst/fullpage.html?res=940DE0D-
81539F931A35752C1A9619C8B63&scp=2&sq=November+2%2C+2007+Obituary&s-
t=nyt> Acesso em: 13 fev 2012.
170
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos
__________ Robert Goulet, the Suave Baritone, Is Dead at 73. Obituaries. The New York
Times, 31 out. 2007a, Arts & Style. Disponível em: <http://www.nytimes.com/2007/10/31/
arts/music/31goulet.html?scp=7&sq=October+31%2C+2007+deaths&st=nyt>. Acesso
em: 13 fev 2012.
__________ Robert Wagoner, Singer, Dies at 80. Obituaries. The New York Times, 30
out. 2007b, Arts & Style. Disponível em: <http://www.nytimes.com/2007/10/30/arts/mu-
sic/30wagoner.html?scp=1&sq=october%2030,%202007%20obituary&st=cse> Acesso
em: 2 fev 2012.
MARTINEZ, Monica. Jornada do herói: estrutura narrativa mítica na construção de histó-
rias de vida em jornalismo. São Paulo: Annablume/Fapesp, 2008.
MARTINS, Ana Luiza; LUCA, Tania Regina. História da imprensa no Brasil. São Paulo:
Contexto, 2008.
MCDONALD, William (editor). The obits: the New York Times annual 2012. New York,
Workman Publishing, 2011.
MOTA, Carlos G.; CAPELATO, Maria H. História da Folha de S.Paulo (1921-1981). São Pau-
lo: Impress, 1980.
SEVCENKO, Nicolau. “O rosto do mundo”. In: Primeira página. Folha de S. Paulo 1921-
1998. São Paulo: Publifolha, 1999.
SILVA, Carlos E. Lins da. O adiantado da hora: a influência americana sobre o jornalismo
brasileiro. São Paulo: Summus, 1990.
SODRÉ, Nelson Werneck. História da imprensa no Brasil. São Paulo: Intercom/Porto Ale-
gre: EDIPUCRS, 2011.
TALESE, Gay. Fama & anonimato. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
_________ O reino e o poder: uma história do New York Times. São Paulo: Companhia
das Letras, 2000.
TOCQUEVILLE, Alex. A democracia na América. São Paulo: Folha de S. Paulo, 2010.
VIEIRA, William. Elisabete Hart, a eterna voz do Oscar. Seção Mortes. Folha de S.Paulo,
30 out 2007. Caderno de Cotidiano. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/
cotidian/ff3010200713.htm>. Acesso em: 7 jan. 2015.
Vieira, William. Gratagliano, o pracinha. Seção Mortes. Folha de S. Paulo. 5 nov. 2007a.
Caderno de Cotidiano. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/
ff0411200710.htm>. Acesso em: 5 jan 2012.
171
Monica Martinez
172
Comunicação Comunitária:
Transformação Social e
Metodologias de Avaliação1
Fernando Oliveira Paulino, Marcelo X.A. Bizerril,
Juliana Soares Mendes, Leyberson Pedrosa e Mel Bleil Gallo
Universidade de Brasília
E
m 2001, depois de um período de greve acadêmica na Universidade de Brasília,
professores e estudantes se mobilizaram para garantir a continuidade das ativida-
des de uma rádio comunitária criada para debater e informar a sociedade sobre as
demandas educacionais dos servidores. A mobilização resultou na fundação da Ralacoco
(Rádio Laboratório de Comunicação Comunitária), uma iniciativa radiofônica com princí-
pios comunitários. Por conta de o estúdio ser localizado na Faculdade de Comunicação,
diversos estudantes e professores da área se juntaram.
Fundamentalmente, a Ralacoco respondeu à uma necessidade de práticas laboratoriais
e experimentais de rádio e estimulou a consciência acadêmica em torno da importância
de se promover o diálogo entre universidade e sociedade. Em seguida, um grupo de pes-
soas ligadas à iniciativa propôs à mesa diretora da Faculdade de Comunicação uma dis-
ciplina na qual estudantes de áreas diversas (tais como Biblioteconomia, Serviço Social,
Letras e Literatura e Geografia) poderiam se matricular para executar reflexões e ações
que propusessem transformações sociais e o desenvolvimento comunitário. Tal conceito
de desenvolvimento é baseado em Amartya Sen (2000), que considera as possibilidades
de intersecção deste conceito com liberdade e, consequentemente, a capacidade das
pessoas de escolherem a vida cujas razões considerem válidas.
A primeira aula da então recém criada disciplina — Comunicação Comunitária — teve lugar
no primeiro semestre de 2002. Entre 2002 e 2012, aproximadamente 600 estudantes univer-
sitários (a maioria de Comunicação, Biblioteconomia, Serviço Social, Letras e Literatura e Ge-
ografia) participaram em oficinas, apresentações musicais, produções de vídeo, transmissões
de rádio e outras atividades em diferentes comunidades, tais como Varjão, Mesquita e São
Roque de Minas. O projeto atualmente se foca em Planaltina — região administrativa do Dis-
trito Federal do Brasil — juntamente com diversos parceiros e reeditores sociais (TORO, 1997).
Dentre eles, existe atuação conjunta dos universitários com a Rádio Comunitária Utopia FM,
o Projeto Canto Livro, e a Associação dos Amigos do Centro Histórico, o Centro de Integração
Esporte, Arte e Cultura estão entre as organizações locais que colaboraram.
Tais parcerias tem contribuído para o desenvolvimento de diversos produtos de mobiliza-
ção social — a maioria em Planaltina e Varjão —, tais como: spots de rádio e o CD de rap
“Proteja-se, use camisinha”, com apoio da STD, do Programa Nacional do HIV e da Secre-
taria de Saúde do Distrito Federal; spots de rádio e CD de rap “Aconteça o que acontecer,
use camisinha”, com apoio da Secretaria de Saúde do Distrito Federal; spots de rádio e
1 Artigo apresentado no V Colóquio Brasil-EUA de Ciências da Comunicação. Chicago, 2012.
Fernando O. Paulino, Marcelo X.A. Bizerril, Juliana . Mendes, Leyberson Pedrosa, Mel B. Gallo
CD de rap “Existe cura para a tuberculose e hanseníase, se informe”, com apoio da Escola
Superior de Ciências da Saúde, da União dos Profissionais de Rádio, da Fundação Damien e
do Programa de Controle à Tuberculose; o curta-metragem “Um olhar sobre o Varjão”, es-
crito por moradores do Varjão; spots de rádio para divulgar atividades da campanha Abril
Indígena, com o apoio do Instituto de Estudos Socioeconômicos; spots de Rádio promo-
vendo direitos à saúde, à educação ambiental, à comunicação e à cultura; o kit audiovisual
“Trilhas Sociais” (www.trilhassociais.com) com CD Rom, 2 CDs de áudio e um DVD com
vídeos promovendo direitos à saúde, à educação ambiental, à comunicação e à cultura.
Avaliação Atual
As atividades de Comunicação Comunitária são permanentemente avaliadas por meio
de encontros de estudantes e professores, registros em diários de campo, relatórios de
oficinas com jovens participantes e mecanismos de análise em sala de aula (tais como
provas e outros exercícios). Os encontros são importantes para se encontrar pontos co-
muns e para o compartilhamento de informações entre integrantes do projeto. Além
de haver pelo menos dois encontros anuais com os participantes centrais do projeto
— professores, pesquisadores, tutores e estudantes bolsistas —, cada grupo de estu-
dantes tinha autonomia para promover seu próprio encontro ao longo do semestre. Por
exemplo, a equipe responsável pela revitalização do Museu Histórico e Artístico de Pla-
naltina se junta para planejar ações quase quinzenalmente, enquanto o grupo focado na
mobilização social dos arredores da Faculdade UnB Planaltina da Universidade de Brasília
174
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos
teve importantes interações com os moradores da Vila Nossa Senhora de Fátima quando
desenvolveram diagnóstico do impacto da criação da UnB na vida do bairro.
Os diários de campo foram introduzidos em 2006 como um requisito — tal como as pro-
vas — para que os alunos fossem avaliados e aprovados na disciplina. São muito úteis para
registrar o histórico de ações e para executar uma análise comparativa das atividades de-
senvolvidas. No entanto, às vezes os estudantes não conseguem entregar o documento ou
deixam para produzi-lo ao final do semestre (quando sua visão do projeto já se transfor-
mou). Não obstante, é muito importante criar um catálogo de diários de bordo que possa
ser facilmente acessado por qualquer participante de Comunicação Comunitária.
Os relatórios de oficinas são desenvolvidos quando os estudantes promovem cursos para
jovens (para estimular o debate sobre saúde, meio ambiente e comunicação). Os jovens
participantes podiam comentar e avaliar as aulas. Esse retorno possibilitou o melhora-
mento do curso.
Entre os mecanismos de avaliação em sala de aula, estão as provas, artigos e a avaliação
escrita final da disciplina Comunicação Comunitária. Esses dispositivos são importantes
para permitir ao professor conhecer os interesses de cada estudante, bem como o que
cada um aprendeu ao longo do semestre. A avaliação escrita final reúne opiniões e
comentários que conduzem a transformações em projetos do Programa Comunicação
Comunitária, tais como já ocorreram: novas visões sobre os conteúdos em sala de aula
ou a ideia de haver um tour pela cidade antes de os estudantes começarem a trabalhar
nas ações de mobilização social, em Planaltina.
A equipe de Comunicação Comunitária também produz pôsteres e artigos científicos
que são essenciais para divulgar o projeto e analisar o monitoramento e a avaliação
dos registros (como anteriormente descrito). Além disso, alguns artigos escritos como
requisito para a especialização em Comunicação são significativos para o planejamento,
monitoramento e para o processo de avaliação na qual o Programa busca aperfeiçoar
sua metodologia de forma sistemática.
Buscando construir um método de avaliação para o Programa Comunicação Comunitá-
ria, a presente investigação se valeu de referências literárias acerca de pesquisas partici-
pativas. O projeto divide espaço com, e toma como princípios fundamentais, as noções
de investigação participativa. Barbier (2004) explica que esse tipo de pesquisa almeja o
surgimento de capacidades, de solidariedade e de responsabilidades, elementos funda-
mentais para a comunicação em vistas da transformação social e da promoção de saúde.
175
Fernando O. Paulino, Marcelo X.A. Bizerril, Juliana . Mendes, Leyberson Pedrosa, Mel B. Gallo
176
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos
Conclusões
Práticas avaliativas são essenciais para modificar e melhorar os processos de mobilização
social, assim como para adaptar os produtos comunicacionais à realidade e às necessidades
da comunidade de Planaltina. Como o Progarma Comunicação Comunitária é baseado na
ideia de igualdade e na intenção de promover o encontro entre conhecimento acadêmico e
popular, a pesquisa participativa é a chave para o estudo do monitoramento e da avaliação.
A pesquisa literária acerca da pesquisa de ação nos mostrou que avaliação pode medir
resultados, mas é também um momento privilegiado para produzir conhecimento de
grupo e para compartilhar informações e atingir um consenso. Embora a visão interna
seja muito útil para o propósito de avaliação, convidados — tais como especialistas,
doadores, agentes governamentais, organizações do setor privado e profissionais da mí-
dia — podem oferecer uma nova perspectiva para o projeto e pensar em novos estágios
para o desenvolvimento do planejamento e da avaliação.
Da mesma forma, uma vez que indicadores matemáticos podem identificar resultados
(e produtos) sem necessariamente como se constituir como ferramenta de avaliação de
transformações sociais (e de quanto o projeto se aproxima de seus objetivos principais),
a avaliação deve destacar a interpretação e os dados qualitativos. Não obstante, indica-
177
Fernando O. Paulino, Marcelo X.A. Bizerril, Juliana . Mendes, Leyberson Pedrosa, Mel B. Gallo
dores são fundamentais para permitir a comparação e para estimular ações de prestação
de contas, bastante valorizadas em projetos que recebem apoio financeiro público.
Referências
BARBERO, Jesús Martín. Ofício de cartógrafo: travessias latino-americanas da comunica-
ção na cultura. São Paulo: Edições Loyola, 2002.
BARBIER, René. A pesquisa-ação. Brasília: Líber Livro Editora, 2004 (Série Pesquisa em
Educação, v.3).
BORDO, Orlando Fals. Aspectos teóricos da pesquisa participante: considerações sobre
o significado e o papel da ciência na participação popular. In: BRANDÃO, Carlos Rodri-
gues (org). Pesquisa Participante. São Paulo: Brasiliense, 1999.
BRANDÃO, Carlos Rodrigues(org.) Pesquisa participante. São Paulo: Brasiliense,1999
CARDOSO, Ruth C. L. Aventuras de antropólogos em campo ou como escapar das ar-
madilhas do método. In: CARDOSO, Ruth C. L. (org) A aventura antropológica: teoria e
pesquisa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986. pp.95-106. Communitarian Communication
Project website: www.comcom.fac.unb.br Communitarian Communication Facebook
Profile: www.fb.com/comcomunb
DURHAM, Eunice R. A pesquisa antropológica com populações urbanas: problemas e pers-
pectivas. In:CARDOSO, Ruth C. L. (org) A aventura antropológica: teoria e pesquisa. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1986. pp.17-34.
FOOTE-WHYTE, Willian. Treinando a observação participante. In: ZALUAR, Alba. Desvendan-
do máscaras sociais. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1980. FRANCO, Augusto de. Capital so-
cial. Brasília: Millennium, 2001.
FRANCO, Fernando Silveira. Monitoramento participativo: das práticas agroecológicas im-
plantadas no entorno da Reserva Mata do Sossego dentro do Projeto Doces Matas. In: MMA.
Monitoramento e avaliação de projetos: métodos e experiências. MMA, Brasília: 2004
FREIRE, Paulo. Extensão ou comunicação? Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
FREIRE, Paulo. Criando métodos de pesquisa alternativa: aprendendo a fazê-la melhor
através da ação. In: BRANDÃO, Carlos Rodrigues. (org.) Pesquisa participante. São
Paulo: Brasiliense, 1999.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.
GANDIN, Danilo. A prática do planejamento participativo na educação e em outras
instituições, grupos e movimentos dos campos cultural, social, político, religioso e go-
vernamental. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.
GEERTZ, Clifford. Uma descrição densa por uma teoria interpretativa da cultura. In: A
interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989, pp.13-41.
GRABMAN, Lisa Howard; SNETRO, Gail. How to mobilize communities for health and
social change. Baltimore: Health Communication Partnership, 2003.
MALINOWSKI, Bronislaw. Introdução: tema, método e objetivo desta pesquisa. In: Argo-
nautas do Pacífico Ocidental: um relato do empreendimento e da aventura dos nativos
nos arquipélagos da Nova Guiné Melanésia. São Paulo: Abril Cultural, 1984, pp. 17-34.
178
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos
MEDINA, Cremilda de Araújo. Entrevista: o diálogo possível. São Paulo: Ática, 1986.
NOGUEIRA, Oracy. A entrevista. In: Pesquisa social: introdução às suas técnicas. São
Paulo: Companhia Editora Nacional, 1968, pp.111-120.
OLIVEIRA, Rosiska Darcy de; OLIVEIRA, Miguel Darcy de. Pesquisa social e ação educa-
tiva: conhecer a realidade para poder transformá-la. In: BRANDÃO, Carlos Rodrigues.
(org.) Pesquisa participante. São Paulo: Brasiliense, 1999.
PEIRANO, Mariza. A favor da etnografia. In: A favor da etnografia. Rio de Janeiro, Re-
lume Dumará, [s.d.], pp.31-57.
PERUZZO, Cicilia. Comunicação nos movimentos populares: a participação na constru-
ção da cidadania. 3 ed. São Paulo: Vozes, 2004. 342 p. Programa Comunicação Comu-
nitária website: www.comcom.fac.unb.br Programa Comunicação Comunitária perfil no
Facebook: www.fb.com/comcomunb
SCHAUN, Ângela. Educomunicação Reflexões e Princípios. Rio de Janeiro: MAUAD,
2002. SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das
Letras, 2000
SILVA e SILVA, Maria Ozanira. Refletindo a pesquisa participante. In: BRANDÃO, Carlos
Rodrigues(org.) Pesquisa participante. São Paulo: Brasiliense, 1999.
TORO, Bernardo. Mobilização Social: Uma Teoria para a universalização da cidadania.
In MONTORO, T. (org).
179
Fernando O. Paulino, Marcelo X.A. Bizerril, Juliana . Mendes, Leyberson Pedrosa, Mel B. Gallo
180
A Digitalização das Transmissões
e o Futuro do Rádio como Mídia
Publicitária no Brasil1
Clóvis Reis
Universidade Regional de Blumenau – Santa Catarina
F
atores de origem tecnológica historicamente provocam impactos na distribuição
dos recursos destinados à propaganda, tal e como ocorreu no Brasil na década de
1940, com a consolidação do rádio como meio para veiculação de anúncios; em
1970, com a ascensão da televisão; em 1990, com o avanço da televisão por assinatura;
e mais recentemente com a chegada da internet.
Nesse sentido, a inauguração das transmissões digitais supõe uma revitalização do meio
rádio, ampliando as perspectivas do seu emprego como mídia publicitária, assim como
as possibilidades de participação no bolo publicitário. O novo sistema de transmissão au-
menta a área de cobertura, melhora a qualidade do áudio e propicia a oferta de serviços
de valor agregado, com o apoio de textos e imagens.
As mudanças agregam novos elementos à linguagem radiofônica, promovem o surgi-
mento de outros formatos de anúncio, criam espaços diferenciados para a inserção de
propaganda e incrementam as oportunidades de negócios para as emissoras, as agên-
cias de publicidade e os anunciantes.
O presente artigo analisa os impactos que a digitalização produzirá na propaganda vei-
culada no meio rádio. O trabalho começa com uma revisão sobre a evolução histórica da
propaganda, passa pela descrição da atual distribuição de investimentos no setor publi-
citário do Brasil, segue com uma avaliação das perspectivas abertas com a inauguração
das transmissões digitais e finaliza com uma reflexão sobre as implicações do avanço
tecnológico na linguagem radiofônica e nos formatos de anúncio.
1 Artigo apresentado no III Colóquio Brasil-EUA de Ciências da Comunicação. New Orleans, 2008.
Clóvis Reis
182
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos
183
Clóvis Reis
na rua, nas lojas, etc.) oferece ao anunciante a oportunidade de um contato com o con-
sumidor justamente quando ele sai para as compras e está mais suscetível às sugestões.
Pérez-Latre (2000) observa que, assim, o rádio consegue condicionar a escolha do pro-
duto e da marca. Como o efeito da propaganda se degrada com a passagem do tempo,
o anúncio radiofônico impacta o consumidor com a maior proximidade temporal possí-
vel ao momento da compra.
Tal característica constitui um diferencial positivo num cenário de saturação publicitária,
no qual as diferentes mídias concorrem pela atenção do consumidor. Efetivamente, a
proximidade temporal é uma vantagem publicitária que o rádio oferece em relação a
outros meios, como a televisão, o jornal e as revistas. Somente a mídia exterior e a pro-
paganda no ponto-de-venda competem com o rádio na diminuição do tempo entre a
exposição aos anúncios e o ato de compra.
Outro benefício decorrente da digitalização é a possibilidade de que os anúncios no rá-
dio empreguem textos e imagens, rompendo a fugacidade da propaganda radiofônica
e assegurando maior perenidade às mensagens. Hoje, o rádio compete com outras ativi-
dades para captar a atenção do ouvinte, e nem sempre obtém êxito, porque há ocasiões
em que o meio é um mero ruído de fundo, ao qual não se presta muita atenção. Com
a utilização de textos e imagens no display do aparelho receptor, haverá um reforço da
banda sonora do anúncio, favorecendo a efetividade da mensagem publicitária.
Ainda que Schulberg (1992, p. 5) defina o rádio como “o teatro da mente”, não há como
ignorar a especificidade técnica de um meio que atualmente carece de imagens. Esta
limitação constitui a sua principal desvantagem para a emissão de anúncios num merca-
do em que a identificação das marcas é crucial para o êxito comercial dos anunciantes.
Hoje, o rádio é “unimídia”, é não-visual, e necessita de uma linguagem que evoque ima-
gens visuais para tornar tangíveis aos ouvintes os produtos que anuncia. O ingresso na
era digital permite a superação da falta de imagens. O rádio se desloca de uma realidade
“unimídia”, na qual conta apenas com o som, para um universo multimídia, agregando
novos elementos de linguagem com os quais se complementa (Martínez-Costa, 2001).
Com a confirmação das novas perspectivas de atuação publicitária, se prevê ainda que o
rádio fortaleça a sua posição não apenas como suporte para a veiculação dos anúncios,
mas efetivamente adote um novo modelo de negócio. Desse modo, o seu âmbito de
ação como ferramenta promocional se conjugaria com a sua ascensão como canal de
distribuição de mercadorias e venda de produtos.
Com a convergência tecnológica e a fusão de mídias como o rádio, a televisão, o jornal,
a Internet, o computador pessoal, a máquina fotográfica, os videogames, o telefone ce-
lular, etc., aumentam as possibilidades de interação entre o ouvinte e a emissora, criando
mais oportunidades para a propaganda e os anunciantes. A nova realidade midiática e
mercadológica permitirá, por exemplo, que o ouvinte encomende um CD no momento
em que a emissora veicule uma música na sua programação.
Além disso, com o emprego das tecnologias para a interação com a audiência, o ouvin-
te acessará os espaços publicitários em momentos que não são predeterminados pela
emissora, mas que se ajustam melhor à sua disponibilidade de tempo ou interesse.
Assim, minimizam-se as conseqüências da fugacidade característica da propaganda
radiofônica analógica e se contribui para a perenidade das ações de comunicação co-
mercial no meio rádio.
184
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos
185
Clóvis Reis
Considerações
A comunicação de marketing está mudando. Uma das causas da transformação é o
avanço tecnológico, que oferece novas possibilidades de contato entre a empresa e o
consumidor, consolidando expressões como comunicação holística, comunicação total e
comunicação 360 graus.
O novo marco de atuação repercutiu nas estratégias publicitárias, no planejamento
de mídia e nas técnicas criativas, supondo uma nova orientação dos anunciantes em
relação à mídia. Hoje, se estima que entre 50% e 70% do orçamento de comunica-
ção das empresas se destine às ações não convencionais de propaganda.
A reorientação dos anunciantes repercutiu na distribuição dos investimentos realizados
em mídia. Se na década de 1950 o rádio detinha uma das maiores fatias do bolo publici-
tário, atualmente a sua cota participação no mercado gira em torno de 4%.
Nesse sentido, a inauguração das transmissões digitais supõe uma revitalização do meio rá-
dio, ampliando as perspectivas do seu emprego como mídia publicitária. O sistema amplia
a área de cobertura, melhora a qualidade do áudio e propicia a oferta de produtos com
valor agregado, graças ao emprego de textos e imagens. A digitalização incorpora novos
elementos à linguagem radiofônica e possibilita o surgimento de novos formatos de anúncio,
derivados de modalidades provenientes do telefone celular e eventualmente da televisão e da
Internet, criando espaços diferenciados para a inserção da propaganda e incrementando as
oportunidades de negócios para as emissoras, as agências de publicidade e os anunciantes.
A transição definitiva do rádio para um novo modelo de negócio ocorrerá com a unifica-
ção tecnológica das mídias, que permitirá uma convergência total entre rádio, televisão,
jornal, Internet, telefonia móvel, computador pessoal, máquina fotográfica, reprodutor
de música e de vídeos, videogame, GPS, etc.
Nesse cenário, o futuro do rádio como mídia publicitária implica o fim da relação com o
anunciante baseada exclusivamente na inserção comercial, passando pela criação de novos
relacionamentos comerciais, a oferta de serviços de valor agregado e o comércio eletrônico.
186
Comunicação, Mídia e Cultura: Estudos Brasil • Estados Unidos
Referências
AGÊNCIAS & ANUNCIANTES. São Paulo: Meio & Mensagem, mai. 2014.
DEPARTMENT OF ADVERTISING – UNIVERSITY OF TEXAS AT AUSTIN. Thoughts about the fu-
ture of advertising. Disponível em: <http://advertising.utexas.edu>. Acesso em: 15 set. 2001.
LEITE, M. L. Rádio, uma voz que vai de um fim a outro fim do mundo. In: BRANCO, R. C.;
MARTENSEN, R. L.; REIS, F. (org.). História da propaganda no Brasil. São Paulo: Queiroz,
1990, p. 225-236.
MARTÍNEZ-COSTA, M. P. Un nuevo paradigma para a la radio. Sobre convergencias y
divergencias digitales. In: MARTÍNEZ-COSTA, M. P. (ed.). Reinventar la radio. Actas de
las XV Jornadas Internacionales de la Comunicación. Pamplona: Eunate, 2001, p. 57-63.
MARTÍNEZ-COSTA, M. P. El proceso de escritura de la información radiofónica. In: MAR-
TÍNEZ-COSTA, M. P (coord.). Información radiofónica. Barcelona: Ariel, 2002, p. 97-119.
MERAYO PÉREZ, A. La construcción del relato informativo radiofónico. In: MARTÍNEZ-
-COSTA, M. P (coord.). Información radiofónica. Barcelona: Ariel, 2002, p. 59-96.
OLMO, J. S. Nueva radio para nuevos tiempos con nuevos modos entre nuevos medios.
Valencia: Fundación Universitaria San Pablo, 1998.
ORTRIWANO, G. S. A informação no rádio. São Paulo: Summus, 1985.
PÉREZ-LATRE, F. J. Planificación y gestión de medios publicitarios. Barcelona: Ariel, 2000.
PRADO, E. Estructura de la información radiofónica. Barcelona: ATE, 1981.
REIS, C. Propaganda no rádio: Os formatos de anúncio. Blumenau: Edifurb, 2008.
RUSSEL, J. T.; LANE, W. R. Kleppner´s advertising procedure. Englewood Cliffs: Prentice
Hall, 1993.
SCHULBERG, B. Publicidad radiofónica. Cidade do México: McGraw-Hill, 1992.
187
Clóvis Reis
188