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METAFÍSICA I

CURSOS DE GRADUAÇÃO – EAD


Metafísica I – Prof. Dr. Stefan Vasilev Krastanov

Stefan Vasilev Krastanov é autor do livro Nietzsche: pathos artís-


tico versus consciência moral. É professor adjunto de filosofia da
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS. Possui dou-
torado em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos – UFS-
Car. Além disso, é graduado, pós-graduado e mestre em Filosofia
pela Universidade de Sofia, na Bulgária. Desde o ano de 2002, atua
como professor universitário, principalmente nas áreas da História
da Filosofia, Estética e Metafísica, além de ser autor de vários ma-
teriais para cursos de graduação na modalidade EAD.
e-mail: stefanve@terra.com.br

Fazemos parte do Claretiano - Rede de Educação


Stefan Vasilev Krastanov

METAFÍSICA I
Caderno de Referência de Conteúdo

Batatais
Claretiano
2013
© Ação Educacional Claretiana, 2012 – Batatais (SP)
Versão: dez./2013

110 K91m

Krastanov, Stefan Vasilev


Metafísica I / Stefan Vasilev Krastanov – Batatais, SP :
Claretiano, 2013.
192 p.

ISBN: 978-85-67425-73-3

1. Metafísica na Antiguidade. 2. Metafísica Medieval. 3. Metafísica


Moderna. I. Metafísica I.

CDD 110

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Coordenador de Material Didático Mediacional: J. Alves

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Camila Maria Nardi Matos Felipe Aleixo
Carolina de Andrade Baviera Filipi Andrade de Deus Silveira
Cátia Aparecida Ribeiro Paulo Roberto F. M. Sposati Ortiz
Dandara Louise Vieira Matavelli Rodrigo Ferreira Daverni
Elaine Aparecida de Lima Moraes Sônia Galindo Melo
Josiane Marchiori Martins
Talita Cristina Bartolomeu
Lidiane Maria Magalini
Vanessa Vergani Machado
Luciana A. Mani Adami
Luciana dos Santos Sançana de Melo
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SUMÁRIO

CADERNO DE REFERÊNCIA DE CONTEÚDO


1 INTRODUÇÃO.................................................................................................... 7
2 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO....................................................................... 11

Unidade 1 – METAFÍSICA NA ANTIGUIDADE


1 OBJETIVOS......................................................................................................... 43
2 CONTEÚDOS...................................................................................................... 43
3 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE................................................ 44
4 INTRODUÇÃO À UNIDADE................................................................................ 44
5 QUE É METAFÍSICA?.......................................................................................... 45
6 PROBLEMA ONTOLÓGICO................................................................................ 47
7 METAFÍSICA NO PENSAMENTO PLATÔNICO................................................... 59
8 METAFÍSICA DE ARISTÓTELES.......................................................................... 68
9 NEOPLATONISMO E SUA METAFÍSICA............................................................. 79
10 QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS......................................................................... 83
11 CONSIDERAÇÕES.............................................................................................. 85
12 E-REFERÊNCIAS................................................................................................. 86
13 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................................... 86

Unidade 2 – METAFÍSICA MEDIEVAL


1 OBJETIVOS......................................................................................................... 87
2 CONTEÚDOS...................................................................................................... 87
3 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE................................................ 88
4 INTRODUÇÃO À UNIDADE................................................................................ 88
5 CRISTIANISMO: DE FATO HISTÓRICO A FENÔMENO METAFÍSICO................ 92
6 PROBLEMAS METAFÍSICOS NA OBRA DE SANTO AGOSTINHO...................... 98
7 PROBLEMAS METAFÍSICOS NO PENSAMENTO DE BOÉCIO........................... 114
8 A METAFÍSICA EM ORÍGENES........................................................................... 120
9 DIALÉTICA MEDIEVAL....................................................................................... 123
10 A ESCOLA DE CHARTRES E O "RENASCIMENTO DO SÉCULO 12".................. 127
11 TOMÁS DE AQUINO E A SUA CONCEPÇÃO ONTOLÓGICA............................. 133
12 AS PROPOSTAS METAFÍSICAS DE AVICENA, AVERRÓIS................................. 141
13 SÃO BOAVENTURA............................................................................................ 143
14 JOÃO DUNS SCOT.............................................................................................. 146
15 OS PROBLEMAS METAFÍSICOS EM WILLIAM DE OCCAM.............................. 151
16 QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS......................................................................... 157
17 CONSIDERAÇÕES.............................................................................................. 159
18 E-REFERÊNCIAS................................................................................................. 159
19 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................................... 160
Unidade 3 – METAFÍSICA MODERNA
1 OBJETIVOS......................................................................................................... 161
2 CONTEÚDOS...................................................................................................... 161
3 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE................................................ 162
4 INTRODUÇÃO À METAFÍSICA DA MODERNIDADE.......................................... 162
5 DESCARTES: A METAFÍSICA COMO GARANTIA DO CONHECIMENTO
SEGURO.............................................................................................................. 163
6 SPINOZA: A METAFÍSICA À MANEIRA DOS GEÔMETRAS............................... 169
7 LEIBNIZ: O MELHOR DOS MUNDOS POSSÍVEIS.............................................. 180
8 QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS......................................................................... 189
9 CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................... 191
10 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................................... 192

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Caderno de
Referência de
Conteúdo

CRC

Ementa––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Abordar conceitos que vão desde os mais simples até os mais extensos, como é o
caso do Ser. A compreensão do Ser, suas implicações e seus atributos constituem-
-se no principal objeto da Metafísica, o qual também se estende à Ontologia, à Cos-
mologia e à Teodiceia, constituindo, dessa forma, uma teia de conhecimentos essen-
ciais à apropriação do conhecimento filosófico em sua totalidade.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

1. INTRODUÇÃO
O que será que queremos dizer com o termo "metafísica"?
Durante a História da Filosofia, muitas foram as formas de compre-
ensão sobre a Metafísica. De forma geral, esse termo designa uma
disciplina da Filosofia, ou seja, um campo de especulação filosófi-
ca, como a Lógica ou a Ética, por exemplo. Mas qual seria o objeto
de especulação da Metafísica, visto ser ela uma disciplina filosó-
fica? A Metafísica compreende um campo de atuação específico
que têm um objeto de investigação que lhe é próprio.
8 © Metafísica I

Ao longo deste estudo, você irá perceber que, apesar de se-


rem várias as questões levantadas pelos filósofos metafísicos, exis-
te algo, isto é, uma característica que unifica essas questões numa
complexa rede de conhecimento e investigação a que chamamos
Metafísica. Essa característica é algo que foge à experiência física e
pode ser, até mesmo, independente dela. Nesse sentido, dizemos
que a Metafísica investiga algo que está para além da física ou que
transcende a experiência sensorial e que, muitas vezes, está na
base ou fundamenta a própria experiência empírica do mundo.
A Metafísica busca compreender as causas últimas ou o fun-
damento da realidade como um todo. A própria existência é uma
questão metafísica. Por exemplo, se você pergunta: "porque algo
existe e não o nada?" ou "Deus existe?", está fazendo questões de
caráter metafísico.
Outras questões também assumem um caráter metafísico.
Por exemplo, se você perguntar pelo ser de algo abstrato, como
a humanidade. Será que existe algo como a humanidade ou ela
é apenas uma convenção arbitrária, um nome apenas? Sempre
que perguntamos pelo ser de algo, estamos nos referindo há algo
metafísico. Dessa forma, poderíamos dizer que a Metafísica é a
ciência que estuda o ser e as suas características e também a pró-
pria possibilidade da existência de algo que é, ou seja, a própria
existência.
Para uma melhor reflexão sobre os temas tratados neste
CRC, sugerimos a leitura do texto a seguir, no qual o autor apre-
senta as principais características da Metafísica.

A Natureza da Metafísica – Algumas Reflexões Históricas–––––––


O termo "metafísica" surgiu como título de uma coletânea de textos de Aristóte-
les escritos no século 4 a.C. O título "Ta Meta ta Phusika", que significa "o que
vem depois dos escritos sobre a natureza", só foi dado por Andrônico de Rodes
no século 1 a.C. Aristóteles chamava sua disciplina de Filosofia Primeira ou Teo-
logia. Em alguns trechos, afirma que seu objetivo é o conhecimento das causas
primeiras. Sua meta é a apreensão da verdade, que é compartilhada pela mate-
mática e pela ciência. Mas enquanto a ciência se volta para a natureza e para a
© Caderno de Referência de Conteúdo 9

estrutura das substâncias materiais, a Metafísica estuda a substância imaterial.


A causa primeira, para Aristóteles, é Deus ou o Movente Imóvel.
Aristóteles também define a Metafísica como o estudo do "ser enquanto ser".
Assim, ela é uma ciência universal, que considera todos os objetos que há, ou
seja, ela enfoca os objetos das ciências particulares e da matemática, mas sob
outra perspectiva, aquela do ser enquanto ser, das coisas enquanto existentes.
Central a esse projeto está o delineamento das categorias fundamentais. Aristó-
teles tinha consciência da tensão entre duas concepções da Metafísica: a busca
das causas primeiras e o estudo do ser enquanto ser. Ele argumentou que elas
se identificariam.
Essa concepção dupla da Metafísica foi herdada pela Idade Média e também
pelos racionalistas do continente europeu nos séculos 17 e 18. Esses racionalis-
tas ampliaram o escopo da Metafísica para incluir os fundamentos da Física, a
distinção entre seres vivos e inanimados, o que é único no ser humano, o que en-
volve a relação entre mente e corpo e a questão do livre arbítrio. Para justificarem
sua definição mais ampla de Metafísica, os racionalistas tomaram o objetivo da
Metafísica como o estudo do ser em todas as suas perspectivas. Christian Wolff
(1729) articulou essa distinção de maneira clara: em primeiro lugar, a Metafísica
Geral estuda o ser enquanto ser, e, dentre as Metafísicas Especiais, haveria a
Cosmologia, que estuda o ser enquanto coisa mutável, a Psicologia Racional,
que estuda o ser de seres racionais, como os humanos, e a Teologia Natural,
que estuda o ser de Deus.
Outra diferença entre a metafísica aristotélica e a dos racionalistas modernos
é que a primeira é relativamente conservadora, próxima do senso comum, ao
passo que racionalistas como Baruch Spinoza e Gottfried Leibniz montaram
sistemas metafísicos bastante especulativos e contraintuitivos. E foi justamente
esse caráter abstrato e especulativo da Metafísica que se tornou alvo da crítica
dos empiristas britânicos, como, por exemplo, David Hume (1739). Immanuel
Kant também criticou o projeto metafísico, argumentando que não temos aces-
so direto às coisas em si, mas apenas ao conteúdo sensorial estruturado pelo
entendimento. As teses que o metafísico deseja defender vão além dos limites
do conhecimento humano. Em lugar dessa "metafísica transcendente", Kant de-
fende uma "metafísica crítica", cujo objetivo não é descrever uma realidade que
transcenda a experiência sensorial, mas o delineamento dos traços mais gerais
de nosso pensamento e conhecimento.
Esse projeto de metafísica crítica foi retomado no século 20 por Robin G. Collingwood
(1940), Stephen Körner (1974), Nicholas Rescher (1973) e Hilary Putnam (1981-
1987). Peter Strawson (1959) inicia seu livro Individuals, defendendo, também,
que o objeto da Metafísica é a descrição de nossos esquemas conceituais, mas
ele passa, depois, a uma abordagem mais próxima do aristotelismo. Segundo
esses autores, a Metafísica seria um projeto "descritivo", cujo objetivo é a carac-
terização do quadro conceitual do nosso corpo, de representações por meio das
quais concebemos o mundo e dos seus princípios reguladores. Dentro dessa
concepção de Metafísica enquanto esquema conceitual, há os que veem tais
esquemas como imutáveis, e outros que os veem como "mudando com revolu-
ções científicas e culturais". Para estes, a tarefa da Metafísica é comparativa: ela
busca mostrar as diferentes formas que entram em jogo nos diferentes esque-
mas, os quais desempenharam, historicamente, um papel em nossas tentativas
de retratar o mundo.

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10 © Metafísica I

Já para os filósofos que tomam a Metafísica no sentido pré-kantiano (quer sigam


a cautela aristotélica ou a especulação racionalista), ela tem como objetivos a
descrição da natureza e a estrutura do mundo em si. O estudo de nossas estru-
turas conceituais é diferente do estudo do mundo, mas o primeiro pode revelar
traços do segundo na medida em que ele espelhe o mundo.
Por outro lado, há partidários dos esquemas conceituais que argumentam que é
incoerente a própria ideia de um objeto separado e independente de esquemas
conceituais. Tal posição é uma versão do que é chamado de idealismo, defen-
dida por Richard Rorty (1979). Os "esquematistas conceituais" mais moderados
aceitam que a ideia de uma realidade independente é coerente, mas negam
que ela possa ser conhecida, conhecendo, apenas, seus esquemas conceituais.
Contra isso, alguns metafísicos tradicionais têm levantado a objeção de que o
esquematista, para ser consistente, teria de admitir que o próprio conhecimento
dos esquemas conceituais é impossível, pois só seria possível conhecer os es-
quemas que representem tais esquemas.
Para o metafísico tradicional, nossos esquemas conceituais são, justamente, o
caminho para termos acesso às coisas em si. As teses metafísicas, porém, são
falíveis, podem estar erradas. (adaptado do site disponível em: <http://www.fflch.
usp.br/df/opessoa/TCFC3-06b-Loux-12.pdf>. Acesso em: 5 jan. 2011).
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Neste Caderno de Referência de Conteúdo, você irá conhecer
os principais problemas metafísicos desde o nascimento da filoso-
fia grega passando pelo período medieval até chegar à moderni-
dade. Conhecerá, também, quais foram os principais filósofos ou
correntes filosóficas que procuraram resolver questões metafísicas
nesses períodos, tais como: Platão, Aristóteles, Agostinho, Tomás
de Aquino, Descartes, entre outros. Esperamos que você consiga
compreender o caráter peculiar da proposta deste CRC e que pos-
sa elaborar, ainda, suas próprias questões metafísicas.
Após essa introdução aos conceitos principais do CRC, apre-
sentaremos, a seguir, no Tópico Orientações para o estudo, algu-
mas orientações de caráter motivacional, dicas e estratégias de
aprendizagem que poderão facilitar o seu estudo.
© Caderno de Referência de Conteúdo 11

2. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO

Abordagem Geral
Prof. Dr. Stefan Vasilev Krastanov

Neste tópico, apresenta-se uma visão geral do que será estuda-


do neste CRC. Aqui, você entrará em contato com os assuntos princi-
pais deste conteúdo de forma breve e geral e terá a oportunidade de
aprofundar essas questões no estudo de cada unidade. No entanto,
essa Abordagem Geral visa fornecer-lhe o conhecimento básico ne-
cessário a partir do qual você possa construir um referencial teórico
com base sólida – científica e cultural – para que, no futuro exercício
de sua profissão, você a exerça com competência cognitiva, ética e
responsabilidade social. Vamos começar nossa aventura pela apre-
sentação das ideias e dos princípios básicos que fundamentam este
CRC.
A Metafísica é uma das disciplinas mais importantes e indis-
pensáveis para a sua formação em Filosofia, pois investiga os fun-
damentos de nossa realidade. Como sugeriu Aristóteles (2006), a
Metafísica encarrega-se dos primeiros princípios e, por essa razão,
ela é base para todos os outros questionamentos do conhecimento
humano. Ao longo deste estudo, você irá perceber de que forma
a Metafísica pretendeu, ao longo dos período: antigo, medieval e
moderno, resolver a questão do ser, ou seja, compreender como a
Metafísica, como mais alta forma de especulação racional, procurou
investigar a origem e o fundamento da realidade que nos cerca.
Iniciaremos o nosso breve estudo com as principais questões
que giram em torno do problema do ser, o problema que configu-
ra a problemática metafísica. Primeiramente, faremos abordagem
a alguns dos mais notáveis contribuintes da Metafísica, entre os
quais cabe destacar Heráclito, Parmênides, Platão e Aristóteles.
Em seguida, analisaremos os principais problemas da Metafísica
Medieval e da modernidade, enfatizando a Metafísica Cartesiana.

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12 © Metafísica I

A Metafísica na antiguidade
A configuração da problemática sobre o ser no período
pré-socrático é conhecida, na História da Filosofia, como ontolo-
gia. Para nossa análise dessa configuração da problemática me-
tafísica, cabe um destaque especial a Heráclito e Parmênides.
Como já deve ser de seu conhecimento, relembrando o es-
tudo do CRC História da Filosofia Antiga, o "pensador obscuro",
como foi frequentemente chamado Heráclito (apud REALE, 1994),
estabelece o fogo como princípio ontológico. Para ele, o mundo é
um fogo eterno, fluindo em um câmbio que numa medida se acen-
de e em outra se apaga.
O universo todo é dialeticamente concebido por Heráclito como
passagem da arché (uno) à diversidade (múltiplo), e vice- versa. O
fogo e a diversidade, de acordo com Heráclito (apud REALE, 1994), são
opostos que se pressupõem mutuamente. Essa união dos contrários é
representada por duas vias: via para baixo (apagamento do fogo) e via
para cima (restabelecimento do fogo em seu estado ativo).
As duas vias retratam o processo cósmico, que não cessa de
se transformar. A via para baixo expõe a passagem do fogo, o uno,
para a diversidade, o múltiplo e as suas formas ar, água e terra. In-
versamente, a via para cima expõe a supressão e o aniquilamento
em sua origem fundadora, o fogo. Assim, o fogo destaca os dois
lados opostos da existência – a vida e a morte. Ambos participam
igualmente no processo natural e, portanto, possuem valor igual,
levando harmonia ao círculo de mutabilidade do ser.
Entre as questões ontológicas apresentadas por Heráclito,
uma atenção especial cabe às suas ideias dialéticas. Podemos re-
sumir essas ideias por meio da seguinte celébre frase do filósofo:
"tudo flui, nada persiste nem permanece o mesmo". O "tudo flui"
é a lei do ser, o movimento, o vir-a-ser, por meio do qual tudo se
transforma. A concepção do fluxo perpétuo impõe a ideia de que
nada se cria e nada perece, pois o nascimento e a morte são dois
lados de um e mesmo processo – o fluxo eterno.
© Caderno de Referência de Conteúdo 13

Se, para Heráclito, o fluxo eterno e a harmonia entre os con-


trários configuram ontologicamente a própria existência do ser, que
encontra na própria constatação empírica o ser e o não ser, trocan-
do de posição, privilegiando o vir-a-ser ao ser, Parmênides (apud
BURNET, 2006), por sua vez, apresenta uma nova proposta diante
da problemática ontológica. Ele abandona definitivamente a inves-
tigação empírica, tão típica para os pensadores pré-socráticos, e se
volta plenamente às regras da razão, para retirar delas o critério on-
tológico para a questão do Ser.
De acordo com tal critério, Parmênides postula que somente
ser está em conformidade com o pensamento não-contraditório,
o qual Parmênides adere como suporte lógico. Para ele, o ser é
uma natureza homogênea que exclui qualquer tipo de diversida-
de. Além do mais, o ser não é sujeito a qualquer gênese temporal,
ou seja, ele é atemporal, pois a admissão do tempo no interior do
ser leva o pensamento à contradição, já que implicaria o surgimen-
to e o perecimento, que são características que estão intimamente
ligadas ao tempo. Caso a natureza do ser não seja sujeita a gênese
temporal, ela necessariamente é imutável. A imutabilidade do ser
é o resultado final de um pensamento lógico-formal. Desse ponto
de vista, nada pode-se atribuir ao ser, apenas que ele "é".
Todavia, o grande protagonista do pensamento metafísico é
Platão. Vale observar, inicialmente, que, com Platão, surge a primeira
doutrina dualista no âmbito metafísico. Essa doutrina se configura a
partir da união entre a ideia do fluxo perpétuo de Heráclito e a da
imutabilidade do ser de Parmênides, com as quais você já se familia-
rizou. Para resolver o problema ontológico, que é simultaneamente
o problema do que é, do que realmente existe, Platão (em seus di-
álogos) adota o critério do conhecimento verdadeiro. Obviamente,
tal critério reprova o mundo em que "tudo flui", pois não se conhece
aquilo que muda constantemente. Inversamente, é possível conhecer
aquilo que permanece imutável. Nesse caso, o conhecimento que se
refere ao imutável seria um conhecimento verdadeiro, uma vez que
seus objetos correspondentes não se transformam. Assim, Platão con-

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14 © Metafísica I

figura a dualidade metafísica, envolvendo dois mundos – o sensível e


o ideal – o primeiro ilusório e o segundo verdadeiro.
Esse modelo dualista é retratado perfeitamente pela famosa
alegoria da caverna. A alegoria conta como um, entre muitos pri-
sioneiros acorrentados no mundo físico (sensível), liberta-se por
meio do conhecimento e alcança o mundo que vai para além do
físico, o meta-físico. Nesse sentido, temos uma verdadeira con-
cepção ontognosiológica, em que o conhecimento constitui o guia
absolutamente necessário para o alcance do suprassensível. Não
podemos separar, portanto, a ontologia da gnosiologia, pois é por
meio de ambas que a Metafísica vem à tona.
Conforme esses termos, a descoberta da camada do supras-
sensível cabe ao conhecimento verdadeiro, este constitui o critério
lógico que atesta o que realmente existe, isto é, entre o que possui
valor ontológico e o que não passa de mera aparência.
A descoberta do "hiperurânio", como Platão (apud REALE,
1994) designa a camada suprassensível, envolve dois princípios
fundamentais:
1) Princípio da hierarquia: retrata as relações entre as es-
truturas ontológicas do hiperurânio.
2) Princípio da participação: envolve a relação entre os
paradigmas eternos (as ideias) e as suas aparências (as
coisas sensíveis).
O princípio da hierarquia estabelece que toda hierarquia ide-
al é governada por um princípio supremo chamado por Platão de
Ideia do Bem ou Uno. Essa ideia suprema origina (ontologicamen-
te, e não cronologicamente) todas as outras ideias. Ela é chamada
Ideia do Bem enquanto entendida como formadora e produtora
das outras ideias, mostrando, assim, o aspecto funcional do bem.
Já enquanto Uno, a ideia exprime o seu caráter ontológico, ou seja,
a ideia suprema, enquanto ser, é una, e, quando revela a sua di-
mensão prática de determinar as outras ideias, é bem. O Uno é
princípio do ser enquanto criador das ideias.
© Caderno de Referência de Conteúdo 15

Entre as ideias que seguem depois de Uno, o maior grau


de perfeição cabe às cinco ideias mais gerais: ser, repouso, movi-
mento, identidade e diversidade. Percebe-se que o caráter geral é
que determina o status hierárquico das ideias. A diversidade, por
exemplo, inclui a espécie humana como um dos seus aspectos e,
portanto, possui mais abrangência do que a espécie humana. Isso
garante a ela um status superior à ideia de homem. Na escada hie-
rárquica, depois das ideias gerais, seguem as ideias-número: igual-
dade, desigualdade, semelhança e dessemelhança. Por terem uma
abrangência maior do que a das ideias de coisas, as ideias-número
ocupam um lugar superior na hierarquia ontológica, seguindo su-
cessivamente e por último as ideias de coisas.
O princípio da hierarquia, portanto, retrata as relações entre
as ideias concebidas em termos de hierarquia, de acordo com o
status ontológico de cada forma paradigmal.
O princípio da participação, por sua vez, regula a relação
entre os modelos perfeitos, as ideias e as suas cópias sensíveis.
O mundo sensível é produto da relação entre as ideias (modelos)
e a matéria (o material utilizado para a modelação das coisas). A
ideia é a determinação absoluta, o princípio formal de cada coisa
da sua espécie. A matéria, diferentemente, é o princípio da inde-
terminação absoluta, que é sujeita à ação da ideia por meio da
qual surge a coisa concreta (física) como determinada. Contudo,
a relação entre as ideias e a matéria não se dá diretamente, mas
por meio de um intermediário, que é chamado por Platão de De-
miurgo. Este, utilizando-se da matéria indeterminada e contem-
plando os modelos perfeitos, molda e esculpe, por assim dizer, o
mundo sensível.
Um aspecto importante da ontognosiologia platônica, que se
configura como teoria do ser e seus aspectos principais é o méto-
do dialético. Este é o único capaz de acender às verdades eternas
e revelar suas essências. O método dialético parte do mundo sen-
sível, eleva-se, gradativamente, ao ideal e à sua máxima universali-

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16 © Metafísica I

dade. Desse ponto de vista, a análise do ser verdadeiro só pode se


dar pelo poder da dialética. Nesse sentido, na versão platônica da
Metafísica, a dialética assume o papel da teoria geral do ser.
Por fim, vale ressaltar que, com a metafísica de Platão, se
inicia uma nova etapa do pensamento filosófico cuja repercussão
se estende praticamente a toda história do pensamento humano
e o conceito de ideal entra, definitivamente, no discurso filosófico.
Outro grande protagonista da Metafísica Antiga, sem dúvida
alguma, é Aristóteles. Segundo o filósofo, as questões da Metafísica
devem ser tratadas por uma ciência particular que ele chama Filoso-
fia Primeira. Vale lembrar aqui que o termo "metafísica" ainda não
fora utilizado por Aristóteles. O conceito "metafísica" foi cunhado
por Andrônico, e, é a partir dele e referente às obras de Aristóteles
que o termo entra, definitivamente, no discurso filosófico.
Segundo Aristóteles (2002), a investigação com a qual se
ocupa a Filosofia Primeira, isto é, a Metafísica compreende quatro
significados:
1) Investigação teórica sobre os princípios supremos.
2) Investigação teórica sobre o ser enquanto ser.
3) Investigação teórica sobre a substância.
4) Investigação teórica sobre Deus e o suprassensível.
É importante notar que os quatro significados de Metafísica não
diferem, mas se completam mutuamente. Assim, por exemplo, a inves-
tigação sobre os princípios supremos envolve a ideia de Deus, embo-
ra seja Deus o princípio supremo, este envolve a noção de substância,
uma vez que se trata do ser de Deus ou dos princípios supremos.
Diferentemente de Platão, a análise metafísica de Aristó-
teles compreende duas áreas de atuação: o sensível e o supras-
sensível. A metafísica do sensível é tratada por meio da sua te-
oria do hylemorfismo, enquanto a metafísica do suprassensível,
em termos de ato puro e teleologismo. Todavia, o teleologismo
constitui o princípio absolutamente fundador da metafísica do
sensível, como veremos mais adiante.
© Caderno de Referência de Conteúdo 17

O hylemorfismo de Aristóteles, entendido como teoria ge-


ral do ser sensível, representa um avanço considerável nas con-
cepções ontológicas da antiguidade e estende uma ponte entre
as duas concepções radicais, até então existentes, do sensualismo
e do realismo. Segundo os adeptos da primeira concepção, o que
realmente existe é apenas a coisa concreta sensivelmente percep-
tível. Para os adeptos da segunda concepção, Platão, por exemplo,
o que realmente existe é o geral, uma vez que não existe conheci-
mento para o individual.
Nesse antagonismo radical entre as duas concepções, Aris-
tóteles (2002) consegue traçar uma posição média por meio do
hylemorfismo. Literalmente traduzido, o termo implica a ideia da
união entre matéria e forma (hylé – matéria + morfe – forma).
A matéria constitui o substrato geral de toda natureza física,
enquanto a forma constitui a natureza da coisa, isto é, aquilo que
ela é em virtude de um princípio formador. A matéria é possibili-
dade pura, possibilidade de qualquer coisa. Por exemplo, a pedra
de mármore é possibilidade de virar uma estátua ou uma mesa.
A possibilidade entendida nesses termos é meio entre a pura au-
sência e o puro ato. Assim, a pedra de mármore não é ausência
de algo, mas também não é algo determinado como estátua ou
mesa. Como substrato geral, a matéria é passividade, com efeito, é
passível de atualização. Por outro lado, como substrato, a matéria
é eterna. As coisas que dela derivam são sujeitas a surgimento e
perecimento, ela, porém, não é. Nesse sentido, ela é causa mate-
rial de todas as coisas.
Além do princípio material, Aristóteles (2002) introduz o
princípio formal, a forma. A esta, atribui o caráter geral das coisas,
por exemplo: o homem pertence à espécie humana pela sua for-
ma humana. Ela é o princípio determinante da realidade, aquilo
que atualiza a matéria amorfa e a torna uma coisa determinada.
Como determinação absoluta, a forma possui alguns traços em co-
mum com a ideia platônica, tais como eternidade, atemporalidade

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18 © Metafísica I

etc. Todavia, diferente do modelo platônico, a forma aristotélica é


ativa. Ela não é transcendente às suas cópias, mas imanente a elas.
A forma existe dentro da matéria e não fora dela, como no caso de
Platão. Com essa inerência da forma, Aristóteles tenta remediar,
inclusive, a transcendência da doutrina das ideias platônicas.
Aquilo que leva algo da potência ao ato, Aristóteles (2002)
chama enteléquia. Esta deve ser entendida como o processo em
que a matéria ganha determinação e se torna uma coisa determi-
nada. A enteléquia como processo de realização da potência en-
volve quatro causas: causa material, causa formal, causa eficiente
e causa final.
A enteléquia, devemos deixar bem claro, requer, como causa
última para a sua realização, o teleologismo, conforme o qual a
razão última de todas as coisas, a causa final de tudo, é Deus ou o
Primeiro Motor Imóvel.
A realização da potência que vigora no mundo físico revela
uma tendência que, por sua vez, não pode remontar ao infinito,
pois o processo nunca se realizará. Daí que, segundo Aristóteles
(2002), deve-se aceitar a existência de uma causa última em que
as causas do movimento se esgotam. A existência do Primeiro Mo-
tor Imóvel parece atender perfeitamente a essa exigência de limi-
tes para movimento. Evidentemente, a causa do movimento não
deve ser movida, mas apenas movente. Caso contrário, deveria se
pressupor outra causa que a movesse e, por sua vez, outra, re-
montando, assim, ao infinito, o que seria um absurdo (absurdum
ad infinitum). Mas como será possível pensar algo que move sem
ser movido?
Tal natureza contraria toda experiência e observação empíri-
ca. É aqui que entramos na doutrina metafísica do suprassensível
de Aristóteles.
Para fundamentar o Primeiro Motor Imóvel e o seu caráter
peculiar de mover sem ser movido, Aristóteles (2002) recorre ao
princípio do teleologismo. Este estabelece que a perfeição abso-
© Caderno de Referência de Conteúdo 19

luta do Primeiro Motor Imóvel é objeto de desejo de todas as coi-


sas, de tal modo que elas tendem a imitá-lo. Em sua tendência de
perfeição, as coisas passam de grau inferior a grau superior, ou
seja, de potência a ato. O Motor Imóvel é o fim último de todas
as coisas. Estas, por sua vez, enquanto desejam a sua perfeição,
movem-se na sua direção. Assim, o movimento de potência ao
ato é o resultado dessa tendência à perfeição, conduzida pelo
Motor Imóvel. Como perfeição absoluta, o princípio é imóvel,
mas enquanto objeto de desejo, ele é a causa de todo movimen-
to. Desse modo, Aristóteles explica como o Motor Imóvel move
sem ser movido.
Vale notar que o teleologismo, como finalidade última das
coisas, governa todo o mundo natural e representa o seu logos in-
terno como sendo o princípio de todo desenvolvimento e progres-
so. Assim, o teleologismo estabelece relação íntima entre a Física
e a Metafísica, pois o progresso e o desenvolvimento da natureza
física encontra seu último fundamento e a sua razão plena na Me-
tafísica (Primeiro Motor Imóvel).
As doutrinas de Platão e Aristóteles influenciaram fortemen-
te os períodos posteriores da Filosofia, principalmente na Idade
Média, com Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino. Vamos co-
nhecer um pouco sobre as discussões medievais.
Metafísica da Idade Média
As questões metafísicas ocupam, durante a Idade Média, um
lugar extremamente privilegiado. As demonstrações ontológicas
da existência de Deus, os problemas do Ser e do conhecimento
ocupam lugar central da especulação medieval.
Todavia, um destaque especial referente às questões meta-
físicas cabe a dois pensadores que determinam o próprio modo
de filosofar da Idade Média. Trata-se de Agostinho e de Tomás de
Aquino.

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20 © Metafísica I

Segundo Agostinho (1999), a retidão do nosso pensamento


é garantida pela possibilidade de comensurabilidade com paradig-
mas eternos e absolutos que se encontram na nossa alma como
critérios, porém, ontologicamente transcendentes a ela. Com isso,
surge a questão: se tais paradigmas que orientam o nosso pensa-
mento não são produzidos pela alma, apesar de ela poder acessá-
-los, sua causa encontra-se para além dela, qual seria, então, o seu
lugar?
A resposta de Agostinho é que esses paradigmas são as ideias e se
encontram no intelecto de Deus. Essa doutrina das ideias é conhecida
como exemplarismo, segundo o qual as ideias não são apenas critérios
do pensamento legítimo, mas também modelos de coisas existentes.
Um ato do pensamento enuncia-se como verdadeiro porque é comen-
surável com a ideia da verdade contida no intelecto de Deus.
As ideias, assim entendidas, representam aquele plano ra-
cional conforme o qual Deus criou o mundo. As ideias, por assim
dizer, são os pensamentos de Deus. O exemplarismo permite a
Agostinho adequar a teoria das ideias de Platão aos postulados do
cristianismo e, com isso, realizar a síntese entre a Filosofia Pagã e
o cristianismo.
O exemplarismo como doutrina ontognosiológica apresenta
uma tentativa de fundamentar o conhecimento sobre o mundo.
Como todo conhecimento verdadeiro pressupõe um objeto eterno
e imutável, pois não se conhece aquilo que se transforma constan-
temente, a partir do exemplarismo essa condição é preenchida.
Desse ponto de vista, nós conhecemos as coisas no seu ser verda-
deiro, isto é, em suas ideias.
Agostinho segue fielmente os fundamentos da metafísica
platônica no que diz respeito às questões ontognosiológicas. No
entanto, referente à cosmologia e, mais exatamente, referente à
questão da criação, ele se mostra bastante original. A solução de
Agostinho referente à questão da criação do universo revela a pro-
funda diferença entre a Filosofia Cristã e a Filosofia Grega.
© Caderno de Referência de Conteúdo 21

Em resumo, a Filosofia Grega desenvolve duas concepções so-


bre a criação, representadas pelo platonismo e o neoplatonismo.
De acordo com a primeira concepção, o problema da "cria-
ção" vincula-se intimamente com a ideia do demiurgo, conforme a
qual o demiurgo plasma o mundo utilizando-se da matéria desde
sempre existente e de acordo com as ideias eternas contempladas
por ele no mundo inteligível. Nesse caso, admitem-se três princí-
pios: o demiurgo, a matéria e as ideias.
O neoplatonismo, utilizando-se do princípio da emanação,
apresenta o mundo como o produto ou o resultado da emanação
do Uno, constituindo, assim, os diferentes graus ontológicos.
Todavia, nenhuma dessas teorias cosmológicas é compatível
com a mundividência cristã. Se Deus atribuísse forma à matéria
desde sempre existente (como é no caso de demiurgo), deveria se
estabelecer dois princípios equivalentes, o que significaria a limi-
tação da onipotência divina.
A concepção da emanação introduz alguma necessidade à
qual Deus tem de se submeter, pois a emanação da plenitude di-
vina acontece por necessidade. Essa ideia implica uma identidade
substancial entre o criador e a criatura, isto é, um panteísmo (o
mundo criado possui a mesma substância divina), o que, de modo
algum, combina com a religião cristã.
A cosmologia cristã introduz uma novidade conceitual: a
criação ex nihilo (a partir do nada). De acordo com essa concepção,
Deus cria o mundo do nada, espontaneamente, por vontade livre
e nenhuma necessidade o obriga de fazer isso. Nesse sentido, o
Deus cristão é um criador, persona, e, por isso, ele é capaz de criar.
No entanto, se o mundo é criado do nada, a matéria não é
uma realidade desde sempre existente, mas criada. Isso significa
que ela não é ausência de ser (como afirmam algumas definições
antigas), mas algo existente e, portanto, algo bom. Todo bem deri-
va da forma, mas a matéria pura é ausência da forma. Essa dificul-
dade, Agostinho (1999) resolve a partir da hipótese de que Deus

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22 © Metafísica I

cria a matéria com toda a riqueza de formas e, por isso, o ato da


criação coincide com ato de formação do mundo.
Essa visão Agostinho apoia nos textos sagrados, conforme os
quais Deus criou tudo por medida, número e peso. Mas se Deus
cria, em um único ato, a matéria e as formas contidas nela, como é
possível explicar o nascimento de novos seres todo dia? A resposta
de Agostinho (1999) é: Deus cria todas as formas de uma só vez,
mas como razões seminais. A matéria é, desde o início, plantada
com tais sementes. Cada semente tem seu tempo e código de de-
senvolvimento no decorrer da história.
Essas soluções metafísicas apresentadas por Agostinho con-
tribuem imensamente para a realização daquela síntese grandiosa
entre a Filosofia Grega e o cristianismo.
O outro grande representante da especulação metafísica me-
dieval é Tomás de Aquino. A sua teoria metafísica revela-se bastante
próxima à da metafísica de Aristóteles. Tal como seu célebre ante-
cessor, Tomás concebe a Metafísica em duas versões: Metafísica do
sensível (natureza), cuja investigação cabe à Filosofia, e a Metafísica
do suprassensível (Deus), cuja investigação cabe à Teologia. Assim,
ele consegue traçar linhas limítrofes entre a Filosofia e a Teologia.
Se o objeto imediato da investigação filosófica são as subs-
tâncias sensíveis, raciocina Tomás (apud GILSON, 1995/2001), en-
tão o primeiro objetivo da Filosofia é a descrição da sua estrutu-
ra imanente. Em sua simples presença, as coisas aparecem como
existentes. Caso interroguemos sobre seus princípios, vemos que
as coisas são contingentes, isto é, que não possuem em seu ser a
necessidade de existirem. Eis porque, para Tomás, nas coisas exis-
tentes, devem se distinguir a possibilidade e a realidade, ou seja,
potência e ato.
Apesar de todo caráter contingente e transitório, as coisas
naturais, por algum tempo, conservam suas próprias característi-
cas. Justamente nessa permanência, Tomás encontra o princípio
formal. Mas visto que se trata de unidade e permanência de coi-
sas sensíveis, fica evidente que a estrutura de seu ser deve ser
© Caderno de Referência de Conteúdo 23

completada por mais um princípio que enfatiza a transformação, a


saber, a matéria.
A forma (atualidade) atribui à substância (união da maté-
ria e forma) determinação e realidade. A matéria é, por sua vez,
possibilidade de receber a forma. Embora ela seja o princípio da
individuação, que permite que a forma geral entre em diferentes
individualidades.
Substância é, portanto, definida por Tomás, como a união
orgânica de todas as características da coisa existente. As caracte-
rísticas das coisas são definidas, por sua vez, como acidentes – as
que acompanham a substância. Desse ponto de vista, a essência
resulta na exclusão de todas as características da substância, mas
a essência de uma coisa ainda não implica existência. Por isso, a
estrutura das coisas criadas necessariamente deve incluir mais um
elemento – o ser. O ser dá-se à essência para que esta comece a
existir. Isso quer dizer que a relação entre a essência e existência
é a mesma como entre potência e ato. O ser atribui-se à essência
para que passe da potência ao ato. Vale observar que a coincidên-
cia de essência e existência, com efeito, a sua identidade, é pre-
sente unicamente em Deus. Nele, segundo Tomás (apud GILSON,
1995/2001), a essência inclui, necessariamente, a existência.
Uma parte significativa da metafísica de Tomás constitui a pro-
va da existência de Deus. Todavia, a demonstração da existência de
Deus não é evidente por si mesma e, por conseguinte, necessita de
demonstração. Segundo Tomás (apud GILSON), a existência de Deus
pode ser demonstrada racionalmente, mas não pela via a priori,
mas por via natural do conhecimento humano, partindo dos dados
empíricos deste mundo e ascendendo à sua causa primeira (Deus),
ou seja, a posteriori.
Tomás (apud GILSON, 1995/2001) apresenta cinco vias para
demonstrar a existência de Deus:
1) Do movimento: todo movimento e transformação pres-
supõem uma causa externa ou motora que inicia o mo-

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24 © Metafísica I

vimento. Essa causa deve ser movida por outra, e assim


por diante até o infinito. Mas uma ordem infinita de
motores é absurda, pois o próprio movimento não terá
início, uma vez que o infinito não se percorre. É neces-
sário, então, aceitar a existência de um primeiro motor
que não é movido, isto é, Deus.
2) Da causalidade: toda ação tem seu fundamento numa
causa; nada, porém, pode ser causa de si mesmo, pois
se a causa precede o efeito, então a coisa deve preceder
a si mesma – o que é absurdo. A ordem das causas tam-
bém não pode ser infinita, uma vez que toda ordem tem
início, meio e fim. Se excluirmos a primeira causa, des-
truímos a ordem toda e, por conseguinte, suprimimos o
último efeito, que é objeto da nossa consideração.
3) Da necessidade: no mundo, existem muitas coisas
que podem existir, mas podem, também, não exis-
tir. Se todas as coisas são de tal natureza, podemos
pensar um estado em que nada existiu. Mas o não
existente não tem como passar ao existente, uma vez
que essa passagem ocorre por meio de algo existen-
te. Caso seja assim, neste momento, nada existiria.
Para não cair nesse absurdo, temos de admitir a exis-
tência não apenas de coisas possíveis, mas também de
coisas necessariamente existentes. O existente pode,
contudo, retirar a sua necessidade de si ou de outra
coisa; caso seja de outra coisa, a ordem das coisas ne-
cessariamente existentes tem de remontar ao infinito. É
necessário, portanto, que se admita a existência de algo
necessário por si mesmo, que seja a causa primeira de
todas as outras coisas. E essa causa é Deus.
4) Dos graus de ser: Em todas as coisas, existe uma diferen-
ça de grau. Nós podemos definir uma coisa como mais
ou menos perfeita que outra. Mas "mais" ou "menos"
podem existir somente se houver uma medida absoluta
por meio da qual o mais e o menos são significados. É
necessário, desse modo, que se admita uma medida ab-
soluta e perfeita que torne sensata essa gradação. Essa
medida absoluta evidentemente é Deus.
© Caderno de Referência de Conteúdo 25

5) Da finalidade: as criaturas irracionais do mundo eviden-


temente agem conforme uma finalidade. Isso se eviden-
cia quando, em semelhantes situações, os animais sem-
pre agem do mesmo modo em vista do que é melhor
para eles. Mas a finalidade de uma ação pressupõe, an-
tes, uma razão que não pode ser obra de seres despoja-
dos de razão. É necessário, portanto, que exista um ser
racional capaz de dar finalidade ao todo existente. Esse
ser evidentemente é Deus.
As cinco demonstrações da existência de Deus, constituí-
das a partir do mundo criado, isto é, de modo empírico, estão em
pleno acordo com a diferenciação e a determinação que Tomás
(apud GILSON, 1995/2001) estabelece referente à área da inves-
tigação filosófica. Muitos outros problemas metafísicos, além das
demonstrações da existência de Deus, são importantes no período
medieval. Podemos citar a questão dos universais, do livre arbítrio,
do pecado original, da salvação dos homens por meio da crucifica-
ção de cristo etc.
Ao longo da Unidade 2, você irá conhecer como os teólogos
e filósofos medievais trataram tais questões. Iremos abordar, ago-
ra, alguns dos problemas metafísicos da modernidade, que você
irá conhecer mais profundamente na Unidade 3.
Introdução à metafísica da modernidade
O pensamento metafísico da modernidade segue as ques-
tões esboçadas pela escolástica. Desse modo, os problemas me-
tafísicos na modernidade seguem quase em pormenores às linhas
traçadas pela escolástica, período em que se encontra Tomás de
Aquino.
Entre os mais ilustres representantes do pensamento meta-
físico da modernidade, destacamos três pensadores: Descartes,
Spinoza e Leibniz, que você terá oportunidade de conhecer neste
CRC. Por ora, abordaremos apenas a Metafísica Cartesiana, pois
ela constitui um marco de importância capital para o desenvolvi-
mento da Metafísica posterior.
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26 © Metafísica I

A Filosofia Cartesiana pretende revisar todas as concepções


até então dominantes para descobrir a primeira verdade, a verda-
de fundamental capaz de fundamentar um conhecimento segu-
ro, isto é, a ciência moderna. Nesse projeto inovador, a Metafísica
tem um papel de protagonista.
As verdades da Metafísica, as ideias inatas, segundo o filó-
sofo, são compreendidas pela luz natural da razão, clara e distinta-
mente, de forma simples e inconfundível. São verdades de caráter
apodítico. Mas para chegar à certeza dessas verdades, Descartes
(1973) percorre um longo caminho de dúvida. Segundo o filósofo,
como relatou em sua obra Discurso do método, tudo o que ele
aprendeu por meio dos seus mestres e dos livros lhe parecia muito
duvidoso.
Por essa razão, ele resolveu adotar a dúvida como método
das suas buscas em um conhecimento seguro. O objetivo dessa
dúvida é revelar o que resiste a ela, isto é, o que é indubitável e
que, portanto, se pode tomar como o ponto de partida de todo
saber científico.
A questão da dúvida é tratada por Descartes na primeira par-
te da obra Meditações Metafísicas. Em linhas gerais, essa dúvida
compreende quatro momentos que metodologicamente abran-
gem toda realidade, com efeito:
1) A dúvida nos sentidos, que abrange tudo que é objeto
de nossa experiência sensorial e, portanto, todo o mun-
do físico.
2) Dúvida a partir do argumento do sonho, segundo o qual
não teríamos um critério seguro para distinguir os so-
nhos da realidade.
3) Dúvida nas certezas matemáticas.
4) Dúvida inspirada pelo Gênio Maligno.
A primeira dúvida, referente aos sentidos, é legitimada pelo
fato de que os sentidos frequentemente nos enganam e que têm
como alvo, principalmente, a física aristotélico-tomista, que se
© Caderno de Referência de Conteúdo 27

apoia nos dados sensíveis para alcançar verdades intelectíveis. De


acordo com Descartes:
Já que me dei conta que muitas vezes os sentidos enganam e já que é
prudente não confiar em quem já nos enganou uma vez, descartarei
tudo o que é atestado pelos sentidos (apud ROVIGHI, 1999, p. 81).

Caso assim seja, nada nos autoriza a aceitar os dados sensí-


veis como indubitáveis.
O fato de podermos atestar, por meio dos sentidos, que es-
tamos despertos, que tocamos nessa ou naquela coisa e que, por-
tanto, os sentidos não nos enganam, Descartes (1973) objeta com
o argumento do sonho, a saber, que as pessoas podem sonhar que
estão fazendo várias coisas, mas que, na verdade, estão deitadas
na cama dormindo. A dúvida referente ao sonho parte do fato de
que o homem não possui um critério seguro de que o estado de
vigília seja mais verdadeiro do que o do sonho.
A dúvida cartesiana estende-se até as proposições da ma-
temática, que parecem mais seguras, mais claras e distintas. Se
admitimos – e isso é possível – a existência de um Gênio Maligno,
que nos engana em nossas claras e distintas percepções, ou seja,
apenas imaginamos que 2 + 3 = 5. Na verdade, tudo isso não passa
de um engano. Com o Gênio Maligno, Descartes realiza uma ra-
dicalização extrema da dúvida para evitar quaisquer resíduos du-
vidosos e limpar o terreno para aquilo que nem o Gênio Maligno
consegue atingir.
Descartes nota que o método da dúvida revela algo indubi-
tável que nem o Gênio Maligno é capaz de assombrar, com efeito,
o ato de duvidar. Eis o que Descartes atesta na segunda parte das
Meditações Metafísicas:
Existe uma coisa que eu não posso duvidar, mesmo que o demônio
queira enganar-me, mesmo que tudo que penso seja falso, mesmo
que tudo podemos rejeitar, em tudo duvidar e também admitir que
não há Deus, nem céu, nem terra, todavia, resta a certeza de que eu
duvido, ou seja, penso (...). Nenhum objeto do pensamento resiste à
dúvida, porém, o próprio ato de duvidar é indubitável (A.T, VII, p. 25).

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28 © Metafísica I

Dito de outra maneira, mesmo admitindo-se que tudo é falso e,


portanto, nada resiste à dúvida, o próprio ato de duvidar é indubitá-
vel. Mas duvidar significa pensar e, enquanto penso, eu existo, pois,
para se pensar, deve haver alguém que pense. Enquanto eu sou aque-
le que pensa e, portanto, duvida, eu existo: cogito, ergo sum (penso,
logo existo).
Assim, o cogito cartesiano assume a importância de primeira
verdade metafísica, aquela pedra fundamental em torno da qual
é possível a edificação do grandioso edifício das ciências. Cogito,
ergo sum funda-se a uma intuição metafísica que não depende do
mundo externo – aquele mesmo mundo que é sujeito à dúvida.
Essa intuição é, portanto, totalmente independente de qualquer
exterioridade, ela basta a si mesma e, por isso, é indubitável.
Essa breve exposição sobre a metafísica de Descartes revela
a grandiosa contribuiução do filósofo para a modernidade. Seus
sucessores, os significantes pensadores Spinoza e Leibniz, para a
construção dos seus sistemas metafísicos, vão se filiar fortemente
ao pensamento cartesiano e, sobretudo, à sua metafísica.
Esta abordagem geral procurou apresentar alguns dos princi-
pais problemas metafísicos que você irá encontrar no decorrer de
seu estudo deste CRC.
A seguir, apresentamos um glossário com alguns dos princi-
pais conceitos deste CRC. Não deixe de consultá-los ao longo de
seu estudo, pois é muito importante que você compreenda os con-
ceitos mais específicos tratados neste CRC!

Glossário de Conceitos
O Glossário de Conceitos permite a você uma consulta rápi-
da e precisa das definições conceituais, possibilitando-lhe um bom
domínio dos termos técnico-científicos utilizados na área de co-
nhecimento dos temas tratados no CRC Metafísica I. Veja, a seguir,
a definição dos principais conceitos:
© Caderno de Referência de Conteúdo 29

1) Absoluto: "o substantivo só vai designar um conceito


filosófico particular tardiamente e sob a influência dos
gramáticos, para quem o termo evoca o que é compre-
endido sem relação, nem complemento. Nessa ótica, o
Absoluto confunde-se necessariamente com Deus para
os autores escolásticos: é o Ser que não depende de ne-
nhum outro" (DUROZOI; ROUSSEL, 1996, p. 11).
2) Abstração, abstrato: "A abstração é uma operação inte-
lectual que consiste em isolar, por exemplo, num con-
ceito, um elemento à exclusão de outros, do qual se faz
abstração" (DUROZOI; ROUSSEL, 1996, p. 11).
3) Acidente: "Tradução de um termo aristotélico muito uti-
lizado na escolástica, que designa o que pode, indiferen-
temente, estar presente ou desaparecer sem modificar
o sujeito ao qual pertence. Por exemplo, é por acidente
que um homem dorme ou um tecido é verde (o primeiro
permanece homem quando não está dormindo, o se-
gundo, tingido de vermelho, continua sendo um tecido)"
(DUROZOI; ROUSSEL, 1996, p. 13).
4) Alegoria: "A obra alegórica é, assim, aquela em que to-
dos os elementos correspondem termo a termo aos de
um sentido que ela subentende" (DUROZOI; ROUSSEL,
1996, p. 19).
5) Alma: "Princípio suscetível de animar a matéria, ou seja,
de conferir-lhe a vida. Esse é o ponto de vista de Aris-
tóteles, que designa a alma vegetativa, comum a todos
os seres vivos e que assegura as funções vitais de base,
a alma sensitiva, que produz a sensação e a sensibilida-
de nos homens e animais e, finalmente, a alma racional,
princípio do pensamento no homem. Com Descartes, só
a alma racional subsiste, com o nome de substância pen-
sante – sendo as outras partes da alma reduzidas à ati-
vidade corporal –, o que resulta numa separação radical
da alma e do corpo" (DUROZOI; ROUSSEL, 1996, p. 24).
6) Atributo: "Na metafísica clássica, o atributo é o caráter
essencial de uma substância. Nessa acepção, evoca-se
em particular os atributos de Deus" (DUROZOI; ROUS-
SEL, 1996, p. 11). É nesse sentido que Spinoza entende

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30 © Metafísica I

os atributos da substância como pensamento e exten-


são.
7) Caos: "Entre os gregos, principalmente de acordo com
a cosmogonia de Hesíodo, é, em primeiro lugar, o Va-
zio primitivo, o Abismo original que precede o apareci-
mento das coisas. O caos tornou-se em seguida, no pen-
samento grego, a mistura desordenada de elementos
antes da intervenção do demiurgo criador do cosmos,
constituído de seres que adquiriram forma" (DUROZOI;
ROUSSEL, 1996, p. 74).
8) Categoria: "Aristóteles denomina categorias (do ser) as
diversas classes de predicados aplicáveis a qualquer ob-
jeto: enumera dez – substância, quantidade, qualidade,
relação, lugar, tempo, situação, ter, ação, paixão"
(DUROZOI; ROUSSEL, 1996, p. 76).
9) Causalidade, causa: "O que produz um efeito é chama-
do causa. O termo teve na filosofia um sentido mais vas-
to do que tem hoje em dia. Aristóteles distingue suas
quatro espécies: formal (idéia ou modelo ao qual o obje-
to corresponde), material (a matéria da qual o objeto é
feito), eficiente (o agente da modificação) e final (aqui-
lo em vista do que o objeto existe, ou apresentação de
um fenômeno como meio de um fim). A escolástica irá
sutilizar essa análise, mas, a partir do século XVII, o ter-
mo adquire seu sentido atual em conseqüência dos de-
senvolvimentos científicos: retendo apenas a eficiência,
chama-se então de causa o fenômeno antecedente que
determina a existência do efeito" (DUROZOI; ROUSSEL,
1996, p. 76).
10) Cogito: "Verbo latino (= penso) pelo qual se resume tra-
dicionalmente o que constitui para Descartes a primeira
verdade, indubitável graças à sua evidência" (DUROZOI;
ROUSSEL, 1996, p. 87). Trata-se da substância pensante
"penso, logo existo".
11) Conceito: "Idéia abstrata e geral" (DUROZOI; ROUSSEL,
1996, p. 97).
12) Demiurgo: "No pensamento de Platão, o termo desig-
na o artesão divino – causa da Alma do mundo – que,
© Caderno de Referência de Conteúdo 31

sem criar de fato o universo, dá forma a uma matéria de-


sorganizada imitando as essências eternas" (DUROZOI;
ROUSSEL, 1996, p. 120).
13) Deus: "A noção religiosa – e popular – de Deus designa
uma entidade sobrenatural, acima dos seres, a qual se
cultua e que se aplica a uma pluralidade de deuses con-
cebidos a partir do modelo do homem (politeísmo gre-
go), ou a idéia de um Deus único (monoteísmo judeu ou
cristão)" (DUROZOI; ROUSSEL, 1996, p. 132). Na concep-
ção de Agostinho (1999), Deus é o criador do Universo.
Em Santo Tomás de Aquino (apud GILSON, 1995/2001),
ele se confunde com o conceito de primeiro motor de
Aristóteles. Descartes nas Meditações Metafísicas afir-
ma: "Pelo nome de Deus, entendo uma substância infi-
nita, eterna, imutável, independente, que tudo conhece,
onipotente e através da qual eu próprio e todas as coi-
sas são ou foram criadas e produzidas" (apud DUROZOI;
ROUSSEL, 1996, p. 132).
14) Devir: na filosofia de Heráclito, o devir é inerente ao
próprio ser, é o processo de metamorfose perpétua pelo
qual, em um processo cíclico, se constitui a harmonia
entre os contrários.
15) Dialética: "Primitivamente é a arte do diálogo (do verbo
dialegei: falar "através" do espaço que separa os interlo-
cutores) como método de interrogação, talvez elaborado
por Zenão de Eléia, em todo caso praticada por Sócrates
e cuja colocação em forma literária é empreendida por
Platão" (DUROZOI; ROUSSEL, 1996, p. 133).
16) Ente: "O que é, ou seja, tem do ser sem coincidir com a
totalidade do último: é, portanto, também o ser em si-
tuação, ou seja, o existente" (DUROZOI; ROUSSEL, 1996,
p. 133).
17) Enteléquia: "Ser que realiza em si o estado de perfei-
ção compatível com sua natureza. O termo designa em
Aristóteles o princípio que faz passar o ser da potência
ao ato, ou seja, à sua realização completa" (DUROZOI;
ROUSSEL, 1996, p. 152).

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32 © Metafísica I

18) Escolástica: "Nome pelo qual se designa a filosofia me-


dieval 'da Escola', ou seja, tal como era ensinada nas es-
colas eclesiásticas e nas universidades européias mais
ou menos do século IX ao século XVII" (DUROZOI; ROUSSEL,
1996, p. 160).
19) Extensão: "Para Descartes, a extensão é o atributo es-
sencial dos corpos, daí a noção de 'substância extensa'
em comprimento, largura e profundidade para definir
a natureza da matéria em geral" (DUROZOI; ROUSSEL,
1996, p. 180).
20) Fé: "A fé designa [...] uma crença firme, que não se ba-
seia em provas racionais. Assim é a fé religiosa, adesão
aos dogmas que são considerados como verdades"
(DUROZOI; ROUSSEL, 1996, p. 186).
21) Fenômeno: "(do verbo grego que significa aparecer.) É de
um modo geral o que aparece, tanto aos sentidos quanto
à consciência. Daí: os dados da experiência tal como po-
dem ser apreendidos pela observação e que são objetos
de ciências" (DUROZOI; ROUSSEL, 1996, p. 187).
22) Ideia: "em Platão, essência ou forma inteligível, eterna e
imutável, das quais as coisas sensíveis participam e que
a alma teria contemplado antes de encarnada" (DUROZOI;
ROUSSEL, 1996, p. 242).
23) Livre arbítrio: "A expressão designa a indeterminação
de uma vontade colocada diante de uma escolha. [...] a
liberdade própria do ser consciente de agir à vontade e
escolher para si com completa independência" (DUROZOI;
ROUSSEL, 1996, p. 290).
24) Logos: "É com Heráclito que o logos entra no campo da
reflexão filosófica, como razão comum a todos os seres.
Sentido transcendente que governa o mundo e exprime
a 'ordem das coisas', o logos – para esse pré-socrático
– ainda tem de ser decifrado, embora a mensagem que
ele transmite não seja totalmente acessível" (DUROZOI;
ROUSSEL, 1996, p. 293).
25) Metafísica: "Inicialmente o termo vem do título (ta meta
ta physika) dado por Andrônico de Rodes (século I a.C.)
à obra de Aristóteles que vem após a Física – hoje intitu-
© Caderno de Referência de Conteúdo 33

lada Metafísica (essa grafia só aparece na Idade Média,


e o prefixo meta muda então de sentido para designar
igualmente o que está além da física). Trata-se nesse
contexto da ciência do ser enquanto ser, ou seja, da fi-
losofia primeira como conhecimento das coisas divinas,
assim como dos princípios da ciência e da ação. Sinô-
nimo de ontologia, ou mais exatamente de ontoteolo-
gia – se levarmos em consideração o que o cristianismo
vai rapidamente privilegiar na filosofia grega. Na Idade
Média (em particular em São Tomás), a 'consiciliação'
escolástica da Bíblia e de Aristóteles torna a metafísica
parte que ultrapassa o real empírico para alcançar o co-
nhecimento das realidades divinas e transcendentes,
mas só pelos caminhos da razão e independentemente
da revelação (que por sua vez fundamenta a teologia)"
(DUROZOI; ROUSSEL, 1996, p. 323).
26) Mônada: "Esse termo – de origem pitagórica – significa
'unidade' em grego. Platão, que o aplica às Idéias, per-
gunta-se se é o caso de se 'admitir tais mônadas real-
mente existentes', subsistindo na integralidade de sua
natureza, no seio da multiplicidade de coisas criadas"
(Filebo, 15b) (DUROZOI; ROUSSEL, 1996, p. 327). Para
Leibniz (como você verá ao longo deste CRC), as môna-
das são as substâncias criadas por Deus, formadoras de
todo o real.
27) Nada: "O termo nada é sinônimo de não-ser: o que não
têm ser ou realidade, absoluta ou relativamente (Des-
cartes considera assim diversos graus de não-ser como
as formas mais ou menos pronunciadas da privação de
ser relativamente ao ser absoluto de Deus)" (DUROZOI;
ROUSSEL, 1996, p. 335).
28) Nominalismo: "Atitude filosófica que admite que ne-
nhuma substância metafísica se esconde por trás das
palavras: as pretensas essências nada são além de pala-
vras ou significados que representam coisas singulares.
Contradiz desse modo o realismo de tipo platônico e o
conceitualismo" (DUROZOI; ROUSSEL, 1996, p. 344).
29) Ôntico, ontologia, ontológico: "Etimologicamente, o
adjetivo ôntico qualifica o que se relaciona com o ser.

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34 © Metafísica I

[...] Na filosofia contemporânea, a palavra designa o es-


tudo ou as concepções da existência em geral, como as
encontramos principalmente nas diferentes versões do
existencialismo" (DUROZOI; ROUSSEL, 1996, p. 349).
30) Panteísmo: "Termo que surgiu no início do século XVII
e designa qualquer concepção segundo a qual Deus e
o mundo são apenas um, quer se admita que tudo que
é um Deus e dele procede (Plotino ou Spinoza), quer
Deus seja concebido como imanente ao próprio mundo
(Diderot ou certos hegelianos de esquerda)" (DUROZOI;
ROUSSEL, 1996, p. 401).
31) Religião: "Etimologicamente, o termo derivaria quer do
latim relegere (respeitar e, por extensão, dedicar um cul-
to), quer do verbo grego religare, que significa religar:
a religião constitui um laço que une o homem a Deus
como a fonte de sua existência, principalmente de acor-
do com a tradição cristã" (DUROZOI; ROUSSEL, 1996, p.
406).
32) Reminiscência: "Em Platão, a teoria da reminiscência
afirma que a alma, antes de sua estadia terrestre, co-
nhecia tudo e, então, que o saber nada é além de uma
relembrança, a ignorância residindo no esquecimento"
(DUROZOI; ROUSSEL, 1996, p. 407).
33) Revelação: "O termo tem essencialmente sentido reli-
gioso e designa quer a iluminação da inteligência opera-
da por Deus para manifestar uma verdade à inteligência
humana, quer o conjunto das verdades de origem divina
contidas nas Escrituras" (DUROZOI; ROUSSEL, 1996, p.
411).
34) Ser: "O verbo afirma a realidade de uma existência atual.
Em lógica, cumpre a função de cópula e liga o sujeito
ao predicado, por implicação ou equivalência. Nas pro-
posições de relação, a mesma cópula estabelece uma
relação (de grandeza, por exemplo) entre dois objetos.
É possível que o sentido metafísico do substantivo seja
indefinível, mas na medida em que, como Pascal obser-
vava, qualquer definição faz intervir, pelo menos implici-
tamente, a fórmula "é", utilizando no caso, num círculo
vicioso, o termo que ela deveria definir. Contudo, é esse
© Caderno de Referência de Conteúdo 35

substantivo (inicialmente derivado de possibilidade de


substantivar em grego o verbo einai) que fundamenta
a metafísica. Desde Parmênides afirma-se que 'o Ser é',
mas Aristóteles será o primeiro a apresentar a questão:
"O que é o Ser?", e também será o primeiro a sentir
as dificuldades da resposta. A referência proposta por
ele – Ser seria 'o mais comum e o mais radical' – insis-
te no fato de que o Ser é o horizonte no qual se perfila
qualquer existência particular e abre a via à assimilação
cristã entre o Próprio Ser e Deus" (DUROZOI; ROUSSEL,
1996, p. 432).
35) Substância: "Do latim substare, manter-se em baixo,
e substantia, o que está embaixo, apoio, suporte. [...]
Oposta ao atributo, a substância serve de suporte às mo-
dificações que as qualidades e acidentes são. [...] Aristó-
teles distingue a substância primeira, que corresponde
ao sujeito individual, e a substância segunda, ou seja, o
gênero e a espécie na medida em que podem ser – por
analogia com a primeira – o sujeito de uma proposição.
A noção significa igualmente o que é por si, ou seja, 'uma
coisa [...] que só tem necessidade de si mesma para exis-
tir' (Descartes) sem o auxílio de uma causalidade exter-
na. É unicamente o caso de Deus segundo Spinoza, todo
o resto sendo atributo ou modo da substância divina"
(DUROZOI; ROUSSEL, 1996, p. 454).
36) Teologia: "(Do grego theos, Deus, e logos, discurso) A
teologia é a disciplina intelectual cujo objeto é Deus. A
teologia natural ou racional (teodicéia) é a parte da me-
tafísica que trata da existência de Deus recorrendo uni-
camente à razão" (DUROZOI; ROUSSEL, 1996, p. 464).

Esquema dos Conceitos-chave


Para que você tenha uma visão geral dos conceitos mais
importantes deste estudo, apresentamos, a seguir (Figura 1), um
Esquema dos Conceitos-chave. O mais aconselhável é que você
mesmo faça o seu esquema de conceitos-chave ou até mesmo o
seu mapa mental. Esse exercício é uma forma de você construir o

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36 © Metafísica I

seu conhecimento, ressignificando as informações a partir de suas


próprias percepções.
É importante ressaltar que o propósito desse Esquema dos
Conceitos-chave é representar, de maneira gráfica, as relações en-
tre os conceitos por meio de palavras-chave, partindo dos mais
complexos para os mais simples. Esse recurso pode auxiliar você
na ordenação e na sequenciação hierarquizada dos conteúdos de
ensino.
Com base na teoria de aprendizagem significativa, entende-se
que, por meio da organização das ideias e dos princípios em esque-
mas e mapas mentais, o indivíduo pode construir o seu conhecimen-
to de maneira mais produtiva e obter, assim, ganhos pedagógicos
significativos no seu processo de ensino e aprendizagem.
Aplicado a diversas áreas do ensino e da aprendizagem es-
colar (tais como planejamentos de currículo, sistemas e pesquisas
em Educação), o Esquema dos Conceitos-chave baseia-se, ainda,
na ideia fundamental da Psicologia Cognitiva de Ausubel, que es-
tabelece que a aprendizagem ocorre pela assimilação de novos
conceitos e de proposições na estrutura cognitiva do aluno. Assim,
novas ideias e informações são aprendidas, uma vez que existem
pontos de ancoragem. 
Tem-se de destacar que "aprendizagem" não significa, ape-
nas, realizar acréscimos na estrutura cognitiva do aluno; é preci-
so, sobretudo, estabelecer modificações para que ela se configure
como uma aprendizagem significativa. Para isso, é importante con-
siderar as entradas de conhecimento e organizar bem os materiais
de aprendizagem. Além disso, as novas ideias e os novos concei-
tos devem ser potencialmente significativos para o aluno, uma vez
que, ao fixar esses conceitos nas suas já existentes estruturas cog-
nitivas, outros serão, também, relembrados.
Nessa perspectiva, partindo-se do pressuposto de que é
você o principal agente da construção do próprio conhecimento,
© Caderno de Referência de Conteúdo 37

por meio de sua predisposição afetiva e de suas motivações in-


ternas e externas, o Esquema dos Conceitos-chave tem por ob-
jetivo tornar significativa a sua aprendizagem, transformando o
seu conhecimento sistematizado em conteúdo curricular, ou seja,
estabelecendo uma relação entre aquilo que você acabou de co-
nhecer com o que já fazia parte do seu conhecimento de mundo
(adaptado do site disponível em: <http://penta2.ufrgs.br/eduto-
ols/mapasconceituais/utilizamapasconceituais.html>. Acesso em:
11 mar. 2010).

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38 © Metafísica I

Figura 1 Esquema dos Conceitos-chave da disciplina Metafísica I.


Figura 1 Esquema dos Conceitos-chave do Caderno de Referência de Conteúdo Metafísica I.

Como você pode observar, esse Esquema dá a você, como


dissemos anteriormente, uma visão geral dos conceitos mais im-
portantes deste estudo. Ao segui-lo, você poderá transitar entre
um e outro conceito deste CRC e descobrir o caminho para cons-
truir o seu processo de ensino-aprendizagem. Por exemplo, o con-
ceito de metafísica como adotou-se na filosofia platônica, pressu-
© Caderno de Referência de Conteúdo 39

põe que você conheça a diferença estabelecida nas ontologias de


Heráclito (fluxo eterno) e Parmênides (imutabilidade), sem o do-
mínio conceitual desse processo explicitado pelo Esquema, pode-
-se ter uma visão confusa do tratamento da temática do ensino de
Filosofia proposto pelos autores deste CRC.
O Esquema dos Conceitos-chave é mais um dos recursos de
aprendizagem que vem se somar àqueles disponíveis no ambien-
te virtual, por meio de suas ferramentas interativas, bem como
àqueles relacionados às atividades didático-pedagógicas realiza-
das presencialmente no polo. Lembre-se de que você, aluno EAD,
deve valer-se da sua autonomia na construção de seu próprio co-
nhecimento.

Questões Autoavaliativas
No final de cada unidade, você encontrará algumas questões
autoavaliativas sobre os conteúdos ali tratados, as quais podem ser
de múltipla escolha, abertas objetivas ou abertas dissertativas.
Responder, discutir e comentar essas questões, bem como
relacioná-las com a prática do ensino de Filosofia pode ser uma
forma de você avaliar o seu conhecimento. Assim, mediante a re-
solução de questões pertinentes ao assunto tratado, você estará
se preparando para a avaliação final, que será dissertativa. Além
disso, essa é uma maneira privilegiada de você testar seus conhe-
cimentos e adquirir uma formação sólida para a sua prática profis-
sional.
Você encontrará, ainda, no final de cada unidade, um gabari-
to, que lhe permitirá conferir as suas respostas sobre as questões
autoavaliativas de múltipla escolha.

As questões de múltipla escolha são as que têm como respos-


ta apenas uma alternativa correta. Por sua vez, entendem-se por
questões abertas objetivas as que se referem aos conteúdos
matemáticos ou àqueles que exigem uma resposta determinada,
inalterada. Já as questões abertas dissertativas obtêm por res-
posta uma interpretação pessoal sobre o tema tratado; por isso,

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40 © Metafísica I

normalmente, não há nada relacionado a elas no item Gabarito.


Você pode comentar suas respostas com o seu tutor ou com seus
colegas de turma.

Bibliografia Básica
É fundamental que você use a Bibliografia Básica em seus
estudos, mas não se prenda só a ela. Consulte, também, as biblio-
grafias complementares.

Figuras (ilustrações, quadros...)


Neste material instrucional, as ilustrações fazem parte inte-
grante dos conteúdos, ou seja, elas não são meramente ilustra-
tivas, pois esquematizam e resumem conteúdos explicitados no
texto. Não deixe de observar a relação dessas figuras com os con-
teúdos do CRC, pois relacionar aquilo que está no campo visual
com o conceitual faz parte de uma boa formação intelectual.

Dicas (motivacionais)
O estudo deste CRC convida você a olhar, de forma mais apu-
rada, a Educação como processo de emancipação do ser humano.
É importante que você se atente às explicações teóricas, práticas
e científicas que estão presentes nos meios de comunicação, bem
como partilhe suas descobertas com seus colegas, pois, ao com-
partilhar com outras pessoas aquilo que você observa, permite-se
descobrir algo que ainda não se conhece, aprendendo a ver e a
notar o que não havia sido percebido antes. Observar é, portanto,
uma capacidade que nos impele à maturidade.
Você, como aluno do cursos de Graduação na modalidade
EAD e futuro profissional da educação, necessita de uma forma-
ção conceitual sólida e consistente. Para isso, você contará com
a ajuda do tutor a distância, do tutor presencial e, sobretudo, da
interação com seus colegas. Sugerimos, pois, que organize bem o
seu tempo e realize as atividades nas datas estipuladas.
© Caderno de Referência de Conteúdo 41

É importante, ainda, que você anote as suas reflexões em


seu caderno ou no Bloco de Anotações, pois, no futuro, elas pode-
rão ser utilizadas na elaboração de sua monografia ou de produ-
ções científicas.
Leia os livros da bibliografia indicada para que você amplie
seus horizontes teóricos. Coteje-os com o material didático, discu-
ta a unidade com seus colegas e com o tutor e assista às videoau-
las.
No final de cada unidade, você encontrará algumas questões
autoavaliativas, que são importantes para a sua análise sobre os
conteúdos desenvolvidos e para saber se estes foram significativos
para sua formação. Indague, reflita, conteste e construa resenhas,
pois esses procedimentos serão importantes para o seu amadure-
cimento intelectual.
Lembre-se de que o segredo do sucesso em um curso na
modalidade a distância é participar, ou seja, interagir, procurando
sempre cooperar e colaborar com seus colegas e tutores.
Caso precise de auxílio sobre algum assunto relacionado a
este CRC, entre em contato com seu tutor. Ele estará pronto para
ajudar você.

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EAD
Metafísica na
Antiguidade
1
1. OBJETIVOS
• Compreender o poder de abstração que o pensamento
grego atingiu com a descoberta do logos, a gênese históri-
ca do termo "Metafísica" e a sua relação com a Ontologia
dos filósofos pré-socráticos.
• Analisar a questão do suprassensível em Platão com o
mundo das ideias e o desenvolvimento das teses aristoté-
licas sobre o hylemorfismo e a Teleologia, distinguindo as
diferenças essenciais entre as duas propostas.
• Conhecer as principais mudanças na Metafísica dos neo-
platônicos e analisar a proposta do uno em Plotino, bem
como a sua relação com as teses anteriores.

2. CONTEÚDOS
• Introdução à Metafísica: significado e origem do termo.
44 © Metafísica I

• Problema ontológico: Jônios, Heráclito, Pitágoras, Parmê-


nides e os atomistas.
• Metafísica e a questão do suprassensível: Platão e Aristóteles.
• Metafísica neoplatônica.

3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE


Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que
você leia as orientações a seguir:
1) Não deixe de ler as bibliografias básica e complementar,
além dos textos indicados neste tópico.
2) Para uma melhor compreensão da Metafísica aristotélica,
recomendamos a leitura do Livro XII de sua Metafísica.
3) Há vários vídeos interessantes sobre o Primeiro Mo-
tor em Aristóteles, como, por exemplo, o do Professor
Sidney Silveira (não deixe de vê-lo!). A fim de que você
saiba mais sobre o assunto, que você irá estudar nesta
unidade, acesse um site de busca e encontre-os.
4) Para auxiliar em seus estudos deste CRC, principalmente
no tocante à Ontologia dos filósofos pré-socráticos do Tó-
pico O problema ontológico, recomendamos a leitura da
obra Aurora da filosofia grega, de John Burnett, especial-
mente da sua introdução.

4. INTRODUÇÃO À UNIDADE
Nesta unidade, você terá a oportunidade de se familiarizar
com a problemática própria e peculiar da ciência do ser enquanto
ser, geralmente, chamada de Metafísica. Começaremos pelas aná-
lises da questão do problema do ser, que, praticamente, abre os
horizontes da pergunta pelo sentido do ser, inaugurado pelos pen-
sadores gregos. Iremos, também, conhecer a relação que a Ontolo-
gia mantém com o pensamento metafísico e a grandiosidade que a
Metafísica adquire no pensamento de Platão e Aristóteles, com os
quais ela se torna a principal forma de especulação filosófica.
© U1 - Metafísica na Antiguidade 45

No entanto, como veremos no desenrolar dessa problemáti-


ca, depois de Aristóteles, durante o helenismo, a Metafísica perde
espaço para o pensamento ético e moral, somente retomando o fô-
lego e o status de "cânone" do pensamento filosófico com Plotino.
Vamos descobrir por que a Metafísica é tão importante para
a especulação filosófica? Começaremos nossa análise sobre o sen-
tido do termo "Metafísica".

5. QUE É METAFÍSICA?
A palavra "Metafísica", pela primeira vez cunhada pelo bi-
bliotecário do Museion, Andrônico, surge de modo curioso e inte-
ressante. Enquanto classificava os escritos de Aristóteles, Andrô-
nico ordenava, ao lado das obras referentes à Física, outras obras
que ele não sabia como classificar. Quando alguém pedia para ler
aquelas obras sem nome, Andrônico aconselhava o leitor a pro-
curar para além das obras de Física, que, em grego, soaria como
Metafísica (além da Física). Essa curiosa origem do termo mostra
que, nos sentidos literal e abstrato, ele coincide perfeitamente
com aquilo que significa.
Aristóteles (2002), sem denominá-la de Metafísica, chamou-a
de Filosofia Primeira e deu-nos uma definição mais consistente da
sua área de investigação. O Estagirita apresentou-nos a primeira
classificação das ciências, divididas em três grupos: Ciências Te-
óricas (Física, Matemática e Filosofia Primeira), Ciências Práticas
(Ética e Política) e Ciências Poiéticas (cujo saber é utilizado para
produção de coisas).
Cada uma das Ciências Teóricas estuda determinado aspecto
do ser:
• Física: a substância independente e mutável.
• Matemática: as substâncias dependentes e imutáveis.
• Filosofia Primeira: as substâncias independentes e imu-
táveis.
Claretiano - Centro Universitário
46 © Metafísica I

Com base nessa classificação das Ciências Teóricas, o pen-


sador grego definiu o estudo da Filosofia Primeira (Metafísica) em
quatro sentidos:
1) Estudos dos princípios supremos.
2) Estudo do ser enquanto ser.
3) Estudo das substâncias.
4) Estudo de Deus e do suprassensível.
Esses quatro sentidos da Metafísica expostos por Aristóteles pos-
suem uma ligação intrínseca entre si, pois, enquanto estudo dos princí-
pios supremos, a Metafísica é, também, estudo de Deus; enquanto estu-
do das substâncias, a Metafísica é, também, estudo do ser, uma vez que
o ser é, necessariamente, substância, seja sensível, seja suprassensível.
Os quatro significados de Metafísica serão mantidos ao longo
de toda a história da Filosofia. Vale observar, também, que a Me-
tafísica é a disciplina mais peculiar e própria do estudo filosófico.
A Filosofia, essencial e primordialmente, ocupa-se da interrogação
metafísica, e isso fica bastante claro se analisarmos a diferença en-
tre as Ciências Particulares e a Metafísica. Cada ciência se ocupa da
descrição e da definição de uma área própria e específica do co-
nhecimento. A Metafísica, diferentemente das Ciências Particulares,
ocupa-se do fundamento e da possibilidade de todas as ciências. Se
as ciências se interrogam sobre um determinado fato, a Metafísica
interroga-se sobre a base geral, ou fundamento, dos fatos. Diante do
que expomos, você deve estar se perguntando: então é a Metafísica
que garante a possibilidade de um conhecimento verdadeiro, visto
que ela se ocupa do fundamento das coisas?
Neste estudo, faremos uma análise histórica e filosófica dos
principais problemas da Metafísica ao longo de toda a história da
Filosofia e tentaremos responder à questão levantada anterior-
mente. Você verá que, além dos problemas puramente metafí-
sicos, teremos, ainda, de analisar os mecanismos por meio dos
quais a Ontoteologia ocidental ganha força e grande destaque na
história do pensamento ocidental.
© U1 - Metafísica na Antiguidade 47

Esses mecanismos, puramente racionais, desenham, na sua


tendência de dar uma resposta definitiva sobre a natureza do ser, a
figura metafísica, em que, como protagonista soberana, se encon-
tra a razão. Todavia, veremos, mais adiante, na Metafísica II, que
não é apenas a razão que especula sobre a Metafísica. A partir de
Nietzsche, da sua crítica e da sua proposta de Metafísica da arte, a
Filosofia Contemporânea configura uma nova e original Metafísi-
ca, que chega a seu ápice com o filósofo Martin Heidegger.
Desse modo, como você pôde observar nesta introdução
breve, a nossa viagem metafísica será longa e cheia de aventuras
pelo mais profundo pensamento de nossa cultura.
Agora, iniciaremos o nosso estudo introdutório sobre a Me-
tafísica com os primeiros metafísicos que especularam sobre a na-
tureza do ser no período pré-socrático.

6. PROBLEMA ONTOLÓGICO
O termo "Ontologia" confunde-se, frequentemente, com
a Metafísica. Todavia, essa identificação não é totalmente exata,
pois "Ontologia", em sua origem etimológica, designa que se trata
da ciência do ser enquanto ser. A Metafísica, por sua vez, implica a
ideia de cisão, por exemplo, entre sensível e suprassensível, entre
material e imaterial, entre terrestre e celeste etc. Se investigarmos
a palavra "Metafísica" como "além da Física", então, fica claro que
duas camadas ontológicas devem estar presentes na compreensão
da Metafísica, a saber: o físico e aquilo que vai além do físico.

Ontologia dos primeiros filósofos


Na primeira etapa da especulação filosófica, nem sempre se
nota a cisão entre o físico e o além do físico. Os primeiros filósofos,
principalmente os pensadores da Jônia, começam suas investiga-
ções sobre o princípio universal de toda existência (arché) a partir
da análise da natureza, como você já deve ter observado em seus

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48 © Metafísica I

estudos de História da Filosofia Antiga. Nesse sentido, eles são


chamados de naturalistas. Tales, Anaximandro e Anaxímenes, a
partir da observação dos fatos, abstraíram como princípio de toda
existência (arché) um dos quatro elementos naturais (água, fogo,
ar ou terra) ou o seu conjunto indeterminado (o apeíron), como é
o caso de Anaximandro.
Vale, aqui, lembrarmos algumas ideias dos filósofos natura-
listas que marcaram as suas concepções ontológicas.
Na sua obra Metafísica, Aristóteles lembra-nos de que os na-
turalistas são aqueles primeiros filósofos que conceberam, como
fundamento de toda existência, os elementos naturais. A visão co-
mum de um princípio universal, entre eles, consiste na seguinte
definição de arché:
Aquilo de que todas as coisas consistem, de que procedem primor-
dialmente e para o que, por ocasião de sua destruição, são dissolvi-
das em última instância, permanecendo a essência, ainda que mo-
dificada por suas afecções – isso, dizem, é um elemento e princípio
de todas as coisas existentes. Daí acreditam que nada é gerado ou
destruído, uma vez que essa entidade primária conserva-se sempre.
Nem todos concordam, entretanto, quanto ao número e caráter
desses princípios. Tales, fundador dessa escola de filosofia, afirma
que esse princípio permanente é a água (razão pela qual ele igual-
mente propôs que a terra flutua na água). É presumível que tenha
chegado a essa hipótese a partir da observação de que o nutriente
de tudo é úmido, e que o próprio calor é gerado da umidade, sua
existência dependendo dela (e aquilo de que uma coisa é gerada
é sempre seu primeiro princípio). Extraía sua hipótese, portanto,
disso e também do fato de as sementes de tudo apresentam uma
natureza úmida, e a água é o princípio da natureza de coisas úmidas
(ARISTÓTELES, 2006, p. 50).

Devemos observar que o grande mérito do primeiro filósofo


(Tales) consiste no fato de ele ter realizado a primeira abstração
filosófica, ou seja, no fato de o seu pensamento ir para além da-
quilo que estava diante dos olhos. A partir da observação dos fa-
tos, Tales chega à concepção da água como unidade primordial e
causa de toda existência. O primeiro filósofo chama esse princípio
universal de arché.
© U1 - Metafísica na Antiguidade 49

A arché é eterna, como bem destaca o filósofo Aristóteles,


porque não possui início no tempo; ela é e sempre será. Essa con-
cepção afirma que o princípio, tal como é retratado por Tales, é
causa de si mesmo; é uma natureza autoativa, porque não possui
causa que origina a sua ação. Em sua ação, a arché produz a diver-
sidade fenomênica, que, após a sua gênese, retorna novamente
para o princípio de que foi originada. Vale notar que essa concep-
ção de mundo que Tales nos expõe por meio do uno (o princípio) e
do múltiplo (a diversidade) é a primeira forma de abstração filosó-
fica da natureza ontológica e do conhecimento filosófico.
Um avanço considerável no horizonte da investigação onto-
lógica dos primeiros filósofos naturalistas marca a ideia de apeí-
ron de Anaximandro. Esse termo deve ser entendido, sobretudo,
como o indeterminado e o ilimitado. Conforme J. Burnet (2006)
Anaximandro elegeu o indeterminado e o ilimitado (apeíron) para
superar as limitações que uma determinada natureza, como, por
exemplo, a água de Tales, implica. As explicações por meio da água
não dão conta de toda a diversidade dos fenômenos. As transfor-
mações da água limitam-se ao ar e ao gelo, mas, conforme a visão
pré-socrática, existem quatro elementos constitutivos da realida-
de. Portanto, pensar em uma natureza indeterminada e ilimitada
que ora aparece como água, ora como fogo, ora como terra, ora
como ar, sem, contudo, se identificar com nenhuma dessas natu-
rezas originárias, oferece uma margem consideravelmente maior e
mais abrangente para a compreensão da diversidade.
O caráter ilimitado do apeíron significa que ele não possui
características temporais. O apeíron nem surge nem perece; é por
isso que se pode reconhecer nele a base fundamental de toda di-
versidade, aquela que surge e perece. Logicamente, a diversidade,
em seus múltiplos aspectos, não possui limites; as coisas nascem
e perecem, mas a sua natureza nunca se esgota. Nesse sentido,
com a ideia do apeíron, Anaximandro consegue, mais consisten-
temente que Tales, explicar e assegurar a realidade e o caráter
ininterrupto do processo natural entendido como geração e pe-

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50 © Metafísica I

recimento. Esta é a lógica que opera no pensamento do filósofo:


conceber o apeíron como o indeterminado e o ilimitado, como a
arché anterior aos quatros elementos e, por essa razão, como o
elemento primordial.
Outra concepção fisicalista que tenta explicar o princípio
e a sua derivada (a diversidade) nos oferece o terceiro pensador
de escola de Mileto: Anaxímenes. Por meio da observação e da
análise empírica da realidade, o filósofo concebe como arché o ar.
Evidentemente, o fato de que, sem ar, a vida não seria possível dá
origem à concepção do filósofo.
A natureza do ar ressalta uma peculiaridade fundamental do
princípio advinda de Anaximandro, que é o caráter ilimitado do
princípio. Todavia, o ar, inversamente ao apeíron, não é uma natu-
reza indeterminada, pois o ar, pelo fato de ser pensado como tal e
não como outra coisa, é determinado.
A definição filosófica de ar como arché expressa que as coi-
sas, apesar da sua diversidade, possuem como fundamento comum
o ar. Graças ao ar e às suas transformações químicas, Anaxímenes
consegue fundamentar o elegido por ele princípio universal.

Ontologia de Heráclito
As principais contribuições para a Metafísica desse período
são as de Heráclito e Parmênides. Neste momento, portanto, va-
mos entrar em contato com as ideias metafísicas do famoso "pen-
sador obscuro", segundo o qual o princípio ontológico de toda
existência é o fogo.
Conforme estabelece o Fragmento 20: "Este mundo, que é o
mesmo para todos, nenhum dos deuses ou dos homens o fez, mas
era, é e será um Fogo eternamente vivo, com medidas se acenden-
do e medidas se apagando", que se transforma periodicamente,
segundo a lei cósmica, apagando-se e, em seguida, ascendendo-se
novamente.
© U1 - Metafísica na Antiguidade 51

Heráclito (apud BURNET, 2006) encontra, no fogo, um ele-


mento que consegue unificar os processos de formação e destrui-
ção; isso é um avanço considerável no pensamento grego, afinal, o
fogo de Heráclito estabelece uma harmonia entre a vida e a morte,
como você verá no tópico a seguir.
Câmbio ontológico do fogo
O apagamento do fogo simboliza o surgimento da diversida-
de. Isso concretiza-se por meio das formas principais do fogo: o ar,
a água e a terra. Nessas formas, segundo Heráclito (apud BURNET,
2006), o fogo dorme em seu estado passivo (enquanto apagado). No
Fragmento 90 dos seus escritos, surge o modo por meio do qual se
realiza esse câmbio ontológico: "Tudo se troca por fogo e o fogo por
tudo, assim como o ouro se troca por mercadoria e a mercadoria
por ouro". O mundo, então, é concebido, dialeticamente, como a
passagem da arché à diversidade e vice-versa, isto é, a diversidade
aniquila-se pelo fogo. Assim, é restabelecido o princípio.
O fogo e a diversidade são concebidos por Heráclito (apud
BURNET, 2006) como opostos, porém, pressupõem-se mutuamen-
te. Essa união dos contrários é exposta pelo filósofo por meio de
duas vias: para baixo (apagamento do fogo) e para cima (restabe-
lecimento do fogo em seu estado ativo).
As duas vias representam o processo cósmico, que não cessa
de se transformar. A via para baixo expõe a passagem do fogo (o
uno) à diversidade (o múltiplo) e às suas formas (ar, água e terra).
Inversamente, a via para cima expõe a supressão e o aniquilamen-
to em sua origem fundadora, o fogo. Assim, o fogo destaca os dois
lados opostos da existência: a vida e a morte. Ambos participam
igualmente no processo natural; portanto, para Heráclito, ambos
possuem valor igual, levando harmonia ao círculo do ser.
Dialética de Heráclito – harmonia entre vida e morte
As ideias dialéticas de Heráclito são muito interessantes para
compreendermos sua concepção ontológica. Sua célebre frase:

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52 © Metafísica I

"tudo flui (panta rei)" (apud BURNET, 2006), retrata perfeitamente


essa sua visão dialética. O "tudo flui" explicita, como a lei do ser, o
movimento por meio do qual o princípio se transforma em diversi-
dade, e esta, por sua vez, retorna novamente ao princípio. Por ou-
tro lado, a concepção do fluxo eterno impõe a ideia de que nada se
cria e nada perece, porque o nascimento e a morte são dois lados
de uma e mesma ação: o fluir eterno.
A dialética de Heráclito deve ser compreendida em termos de
luta e harmonia entre os apostos, e essa ideia nota um progresso
inestimável para a especulação ontológica. A luta entre os opostos
engendra o movimento e a transformação. A relação entre eles é
de preponderância momentânea, que, em seguida, muda de lado.
A vitória de um dos opostos configura-se imediatamente como
derrota. Assim se dá na vida e na morte; quando um ser nasce, ele
logo se encaminha para a morte e vice-versa.
A harmonia, por outro lado, representa o equilíbrio dos
opostos: o fato de que a vitória de um e a derrota de outro não se
vão perpetuar. A existência realiza-se por meio dos contrários da
vida e da morte. Se faltar um, o outro também faltará, impossibili-
tando a harmonia.
Essa sua concepção traz uma notável conquista da especula-
ção ontológica, que é a ideia de logos. O logos expressa a medida
do processo natural, que se concretiza pela luta dos opostos. Ele
representa a lei universal que governa a relação dialética de luta
e harmonia entre os opostos. Ele é o princípio ordenador de toda
ação e reação do fluir eterno e é, também, responsável pela justiça
que cada um dos contrários tem de pagar pela sua preponderância
momentânea. A partir de Heráclito, a ideia de logos entrará profun-
damente no discurso filosófico como sua característica principal.

Número como arché


Com Pitágoras, a problemática ontológica tem um avanço bas-
tante considerável na ascensão da especulação metafísica. Por meio
© U1 - Metafísica na Antiguidade 53

do pensamento matemático, Pitágoras (apud BURNET, 2006) eleva o


pensamento do nível físico ao nível abstrato e, com isso, já fornece as
condições e as possibilidades do pensamento metafísico em pauta.
Com a introdução da Matemática e com o seu envolvimento
com ela, Pitágoras praticamente funda uma Ontologia numérica. O
número, na sua concepção, configura o próprio núcleo ontológico.
Ao se referir a essa peculiaridade de Pitágoras, Aristóteles (1973,
p. 59), na sua Metafísica, assevera:
Os assim chamados pitagóricos, que desenvolveram as ciências ma-
temáticas, conceberam-nas como sendo os princípios de todas as
coisas. No núcleo dessas ciências, os números ocupam o lugar privi-
legiado na natureza. Nos números eles contemplaram muitos traços
semelhantes com aquilo que existe – mais do que no fogo, água e
terra. Por exemplo, uma função do numero é justiça, e outro – alma,
terceiro – sorte e tudo segundo as determinações matemáticas.

Sem dúvida alguma, a Ontologia numérica exposta por Pi-


tágoras inaugura uma nova direção à especulação ontológica,
certamente, mais voltada à Metafísica. Movido pela observação,
conforme a qual a realidade pode ser caracterizada pelas relações
quantitativas. De acordo com essa visão, o número, que determi-
na as características quantitativas, assume papel primordial de
princípio ontológico. Essa demasiada valorização do número como
essência abstrata implica a gradativa ruptura entre a phisis e a na-
tureza. Em outras palavras, nota-se uma clara elevação do pensa-
mento filosófico rumo à concepção de uma Filosofia voltada ao
suprassensível.
O número, como essência idêntica e imutável, opõe-se às
ideias naturalistas dos filósofos jônicos. Se as coisas sofrem cons-
tantes transformações, a sua condição quantitativa (o número)
permanece idêntica a si mesmo. Desse modo, aos poucos, confi-
gura-se, no horizonte filosófico, uma nova realidade, mais abstrata
e mais próxima a uma fundamentação lógica.
Todavia, a concepção numérica de Pitágoras ainda não é um
idealismo, como veremos mais adiante, quando formos tratar do

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54 © Metafísica I

pensamento metafísico de Platão. A Ontologia numérica apenas


trilha o caminho para a ascensão do sensível ao suprassensível.
Vale observar que, na doutrina de Pitágoras, toda diversida-
de é determinada pelas relações numéricas. Para essa Ontologia
numérica, o número "um" desempenha o papel de arché, pois é
dele que os outros números derivam.
Cada número dessa Ontologia determina um certo aspecto
da realidade. O número "dois" determina a dualidade no mundo
concreto; o número "três", como união de "um" e "dois", represen-
ta a totalidade, ou seja, a união entre a unidade (um) e a dualidade
(dois); o número "quatro", como igualdade de pares, representa a
justiça, as quatro estações, as quatro idades da vida humana etc.;
o número "dez", como soma dos números "um", "dois", "três" e
"quatro" (1+2+3+4=10), é o símbolo da perfeição, pois, na sua adi-
ção, o dez representa todos os lados da realidade.
Com a Ontologia numérica de Pitágoras, sem dúvida alguma,
a especulação filosófica alcança, definitivamente, as dimensões da
reflexão metafísica, que se vão tornar mais evidentes na Ontologia
de Parmênides. Aliás, esse é o assunto de que trataremos no tópi-
co a seguir.

Parmênides e o estabelecimento do ser como objeto de reflexão


da Metafísica
A doutrina de Parmênides representa uma nova etapa da
problemática ontológica. Diferentemente dos outros pensadores
do período pré-socrático, Parmênides abandona definitivamente
a investigação empírica e volta-se plenamente aos ditames da ra-
zão, ou seja, seu pensamento realiza-se apenas com os dados do
pensamento. Não é exagerado afirmar que ele descobre e postu-
la a primeira versão do princípio da não contradição, conforme o
qual o mérito principal do pensamento é não ser contraditório.
Isso significa que o filósofo de Eleia dispensa da sua reflexão as
observações dos fatos e adota como critério da sua especulação
© U1 - Metafísica na Antiguidade 55

a não contradição. Caso haja contradição no pensamento e ele


for contraditório ao se misturar com a sensação, então, não existe
nem conhecimento verdadeiro, muito menos qualquer verdade.
Evidentemente, com a doutrina de Parmênides, já estamos
autorizados a falar da concepção metafísica. Vemos que ele aban-
dona o sensível em prol do suprassensível, acessível somente para
o pensamento não contraditório. Essa exigência diante do pensa-
mento define a especulação de Parmênides como a Metafísica da
Identidade. Esta, por sua vez, ressalta, pela primeira vez no cenário
filosófico, o princípio monista.
Baseando-se no método da dialética negativa, que estabe-
lece a verdade da tese a partir da não verdade da antítese, Par-
mênides (apud BURNET, 2006) postula o ser como a natureza uni-
camente existente. Conforme o pensamento não contraditório, o
ser é uma natureza homogênea, o que, por sua vez, quer dizer
que, dela, é excluída qualquer tipo de multiplicidade. Embora o
ser de Parmênides não esteja sujeito a qualquer gênese tempo-
ral, a admissão do tempo no interior do ser leva o pensamento
à contradição, pois isso implicaria o surgimento e o perecimento,
características que estão intimamente ligadas ao tempo. Caso a
natureza do ser não esteja sujeita à gênese temporal, ela é, neces-
sariamente, imutável. Vale observar, aqui, que a imutabilidade do
ser é o resultado final de um pensamento lógico-formal como é o
de Parmênides. Desse ponto de vista, nada se pode atribuir ao ser,
a menos que ele "é".
Em favor da sua tese sobre a imutabilidade do ser, Parmêni-
des, no Fragmento 8, destaca o seguinte:
Primeiro, se o movimento é intimamente ligado ao espaço, a ho-
mogeneidade do ser, logicamente o rejeita. E uma vez que o ser
não é constituído por partes entre as quais haveria espaço vazio
onde ocorreria o movimento, nesse caso há de se reconhecer a sua
imutabilidade.

A teoria de Parmênides, auxiliada pelo critério lógico da não con-


tradição, estabelece que o ser é, e o não ser não é: "é necessário dizer

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56 © Metafísica I

e pensar que existe somente o ser, pois a sua existência é, enquanto a


existência do não ser não é" (PARMÊNIDES, Fragmento 8, 6).
Evidentemente, o trecho citado ressalta que as característi-
cas do ser e do não ser, necessariamente, se excluem mutuamen-
te. A não contradição do ser implica a negação do seu oposto: o
não ser.
Contrariamente, a noção de não ser implica uma contra-
dição que leva ao absurdo, a saber: que o não ser "é". Nota-se,
portanto, que o filósofo de Eleia abstrai a inexistência do não ser
pela impossibilidade lógica de se demonstrar sua existência, pois o
pensamento não pode pensar aquilo que não é. As contribuições
de Parmênides no âmbito da Metafísica são incontestáveis. Apesar
de não ser perfeitamente clara, a teoria do ser de Parmênides já
mostra uma tendência de cisão entre o físico (o contraditório e,
portanto, impossível de se demonstrar sua existência) e o metafí-
sico (que, sendo não contraditório, deve ser pensado como unica-
mente existente). Veremos, mais adiante, o quanto a noção do ser
de Parmênides influenciará o pensamento metafísico.

Novas concepções ontológicas do período clássico: eleatas


No período clássico, os problemas cosmológicos, na sua ver-
são ontológica, são retomados por vários pensadores, tais como:
Empédocles, Anaxágoras e, principalmente, Demócrito. Sem dúvi-
da alguma, esse último destaca-se com a sua original doutrina ato-
mista, propondo novos desafios diante da especulação filosófica.
O núcleo principal do atomismo constitui-se pelas ideias de
ser, não ser e movimento. Esses três são, por assim dizer, os aspec-
tos fundamentais do universo. O ser (os átomos) e o não ser (o es-
paço vazio). Diferentemente de Parmênides, Demócrito concebe-
os (não ser e ser) com status ontológico igual. Essa equivalência
deriva do fato de que, sem o não ser (espaço vazio), o movimento,
por meio do qual os átomos se unem e se separam, não poderia
ocorrer.
© U1 - Metafísica na Antiguidade 57

A noção do átomo é um dos principais aspectos do atomis-


mo. Na sua união e separação, os átomos constituem a realida-
de toda. Todavia, eles se diferem das coisas concretas pelo fato
de não possuírem qualidades sensíveis. Como partículas menores
das quais surgem todas as coisas, Demócrito (apud BURNET, 2006)
eleva-os ao status de arché, o caráter constitutivo da realidade.
Entendidos como raízes das coisas, os átomos são indivisíveis, im-
penetráveis e, como tais, atemporais.
Vale notar que a indivisibilidade do átomo deriva da sua na-
tureza homogênea, que, por conseguinte, exclui o espaço vazio,
este como condição do movimento. Afinal, para o atomismo, a
concepção da divisibilidade infinita das partículas, tal como postu-
lou Anaxágoras (apud BURNET, 2006), leva a conclusões absurdas.
Caso isso fosse possível, afirmam os atomistas, o ser iria se trans-
formar em não ser.
O não ser, por sua vez, nada mais é que o espaço vazio. To-
davia, pela importância que o não ser possui no atomismo, como
ressaltamos anteriormente, ele é elevado a princípio ontológico que
determina a realidade. O não ser constitui o ambiente absoluta-
mente necessário para o movimento dos átomos, a partir do qual se
configura a realidade. Em sua qualidade de princípio ontológico, o
espaço vazio, ou o não ser, é a condição da concretização do sentido
objetivo do ser. Assim, os átomos e o espaço vazio mutuamente se
excluem e se pressupõem: o átomo é ausência do espaço vazio e
vice-versa, ou seja, o espaço vazio é ausência de átomos.
Os átomos e o espaço vazio constituem uma explicação pu-
ramente mecânica de um universo autorregulador que rompe com
quaisquer representações de forças externas que interferem no pro-
cesso. Nesse sentido, o atomismo nota um avanço considerável dian-
te das outras doutrinas naturalistas para a especulação ontológica.
Uma parte considerável dessa Ontologia atomista constitui
a doutrina determinista, a qual, por sua vez, implica, necessaria-
mente, o problema do movimento. Na concepção atomista, esse

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58 © Metafísica I

problema resolve-se por meio da síntese entre a ideia do movi-


mento dos pensadores da Jônia, conforme a qual o princípio (ar-
ché) é uma natureza dinâmica, e a ideia de Parmênides da imuta-
bilidade do ser. Isso significa que o átomo, semelhante ao ser de
Parmênides, é uma natureza não criada, atemporal e homogênea,
ou seja, é uma natureza imutável. Porém, diferentemente do ser
de Parmênides e de acordo com os pensadores da Jônia, o átomo
é uma natureza autodinâmica, tal como a arché dos pensadores
naturalistas.
Vale notar que, a partir da natureza eterna dos átomos, se
induz a ideia da eternidade do movimento. A teoria do movimento
exposta pelo atomismo inclui dois aspectos fundamentais: o mo-
vimento dos átomos e o movimento das coisas compostas pelos
átomos. Enquanto o primeiro aspecto do movimento é original,
o segundo é produzido e decorrente do primeiro. O movimento
primário, sendo eterno e ilimitado, não possui nem início nem fim,
isto é, ele não tem objetivo, ou destino. Esse movimento caótico
implica o encontro entre os átomos, por meio do qual as coisas
surgem, e a separação, por meio da qual as coisas perecem.
Podemos dizer, portanto, que o movimento derivado (do se-
gundo tipo) possui objetivo, ou destino, que se resume no surgi-
mento ou no perecimento das coisas. O ápice da doutrina atomís-
tica do movimento é o determinismo, que envolve a compreensão
da causalidade. Segundo esta, os fenômenos não causados não
existem, o que implica que tudo surge por meio de uma causa.
A ideia de causa rejeita quaisquer ideias de interferência exter-
na (Deus, Nous etc.) e afirma a concepção mecanicista do mundo,
conforme a qual nada surge por acaso, mas, unicamente, por meio
de uma causa necessária. Portanto, o atomismo reconhece na ne-
cessidade a verdadeira causa para o surgimento dos fenômenos.
Essa necessidade, porém, não deve ser compreendida como desti-
no, fortuna, sorte etc., mas, sobretudo, como uma lei natural que
governa o universo.
© U1 - Metafísica na Antiguidade 59

A Ontologia mecanicista do atomismo ainda permanece no


leito das Ontologias naturalistas, em que, a partir da matéria e da
natureza, se busca explicação do ser e de toda a existência. Uma
explicação que, como veremos a seguir, será duramente criticada
pelo primeiro verdadeiro metafísico, Platão, devido à impotência
de os naturalistas acessarem as verdadeiras razões do ser.

7. METAFÍSICA NO PENSAMENTO PLATÔNICO


Seria interessante começarmos a aná-
lise da Metafísica platônica a partir da sua
célebre Alegoria da Caverna, apresentada
em sua memorável A república, ou Politeia
(título original da obra). Apesar de ser obje-
to de diversas interpretações, o que salta da
Alegoria à primeira vista é a interpretação
ontognosiológica em que se fundamenta a
cisão entre o sensível e o ideal, isto é, a con-
cepção dualista do mundo. Com isso, já se
torna possível falar de uma Metafísica em
sentido próprio, entendida, como vimos no Figura 1 Platão e Aristóteles.
começo deste estudo, em termos de cisão entre o físico e aquilo que vai
para além do físico: o meta-físico.
A Alegoria retrata como o prisioneiro acorrentado no mun-
do físico (sensível) se liberta por meio do conhecimento e alcança
o mundo que vai para além do físico. Nesse sentido, temos uma
verdadeira concepção ontognosiológica, em que o conhecimento
constitui o guia absolutamente necessário para o alcance do su-
prassensível. Não podemos separar, portanto, a Ontologia da Gno-
siologia, pois é por meio de ambas que a Metafísica vem à tona.
De acordo com esses termos, a descoberta da camada do
suprassensível cabe ao conhecimento verdadeiro, este constituin-
do o critério lógico que atesta o que realmente existe, isto é, o

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60 © Metafísica I

que possui valor ontológico e o que não passa de mera aparência.


Cabe, aqui, destacarmos alguns traços fundamentais desse conhe-
cimento verdadeiro:
• Para ser verdadeiro, o conhecimento deve referir-se aos
objetos que não sofrem quaisquer tipos de mudança.
Em outras palavras, não se pode pensar como verdadei-
ro aquilo que é e, em seguida, não é. No mundo físico,
tudo é desse tipo, pois nasce, cresce e perece. Não po-
demos emitir um conhecimento verdadeiro, isto é, uni-
versal e absolutamente válido, referente aos objetos que
se transformam. Por exemplo, não podemos chamar de
mesa uma mesa sensível, pois, em algum determinado
momento, ela quebraria e não seria mais a mesa.
• Esse conhecimento deve ser não contraditório; deve
obedecer, portanto, às leis lógicas do pensamento. Aqui,
aparece claramente a influência eleata de Parmênides na
elaboração desse critério lógico. Lembremo-nos de que
esse filósofo dizia que o mérito principal do pensamento
é o de não ser contraditório. Onde há contradição, dizia
o velho sábio, não há conhecimento verdadeiro nem exis-
tência real.

Distinção entre mundo real e mundo ideal


Após o esclarecimento das peculiaridades do conhecimento
verdadeiro, já podemos adentrar na concepção metafísica de Pla-
tão. Inicialmente, vale observar que a cisão metafísica operada por
Platão se configura a partir da união entre a doutrina de Heráclito
do "tudo flui" e a doutrina de Parmênides da "imutabilidade do
ser", com as quais você se já familiarizou. Vimos, então, que o co-
nhecimento verdadeiro não cabe ao mundo em que tudo flui, pois
não se conhece aquilo que muda constantemente.
Inversamente, pode-se conhecer muito bem, de modo verda-
deiro, aquilo que permanece imutável. Nesse sentido, os juízos emi-
© U1 - Metafísica na Antiguidade 61

tidos referentes ao imutável seriam juízos eternos, correspondendo


perfeitamente, portanto, ao critério lógico do conhecimento verda-
deiro. Se tais objetos e paradigmas eternos não se podem encontrar
no físico, então, devem ser procurados no metafísico. Com esse pen-
samento, Platão, (2006) configura o sensível e o ideal, a dualidade
em que toda Metafísica posterior inevitavelmente se envolve.
Segundo Reale (1994), a descoberta da camada metafísica
é o resultado da assim chamada por Platão "segunda navegação".
Metaforicamente falando, a segunda navegação dos marinheiros
dá-se quando a primeira navegação não tem mais força para mo-
ver o veleiro, ou seja, quando falta vento. Nesse caso, os mari-
nheiros soltam os remos para continuar a viagem. Com essa metá-
fora, Platão quer dizer que a explicação naturalista, mantendo-se
na observação do sensível, não é capaz de acessar as verdadeiras
causas dos fenômenos, necessitando, portanto, de uma "segunda
navegação" que acesse essas verdadeiras causas. A segunda nave-
gação é a alusão por meio da qual Platão (2006) mostra o poder da
razão de abandonar o sensível, em que tudo é aparente e ilusório,
e ascender ao suprassensível, em que se encontram as verdadeiras
causas dos fenômenos.
Mas no que consiste esse mundo verdadeiro? O que ele
apresenta? Qual estrutura sua deve determinar e modelar o mun-
do físico? Em outras palavras: que tipo de mundo é esse mundo
novo introduzido por Platão que tem a pretensão de ser o verda-
deiro existente? Segundo Platão (Timeu, 51 e 52b):
É necessário admitir que há um gênero de realidade que é sempre
da mesma maneira, não-gerada e que não recebe de fora outra rea-
lidade nem passa em outra realidade, não é visível nem perceptível
pelos sentidos e que somente à inteligência cabe contemplar.

A análise da camada metafísica, ou "hiperurânio", como Pla-


tão (apud REALE, 1994) a chama, envolve dois princípios: o prin-
cípio da hierarquia, que analisa as relações entre os componentes
do hiperurânio, e o princípio da participação, que envolve a rela-
ção entre os componentes ideais e as suas aparências sensíveis.

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62 © Metafísica I

Plano metafísico das ideias


Assim como existem diferentes aspectos da realidade, tam-
bém deve haver diferentes causas dessa realidade sensível. Desse
modo, a verdadeira realidade não pode ser una, como afirmava
Parmênides (ver Tópico O problema ontológico), mas múltipla, uma
vez que existem ideias de bondade, de justiça, de belo etc., as quais
originam as ações bondosas, as ações justas, o belo nas coisas etc.
É nesse sentido que Platão (apud REALE, 1994) submete à crítica a
concepção unívoca de ser de Parmênides. Para que o uno seja uno,
deve, também, existir o muito; caso contrário, faltará referência.
Falamos do uno referente a muitas outras coisas. Ao cará-
ter uno do ser de Parmênides, Platão contrapõe o caráter múltiplo
das ideias, uma vez que estas representam diferentes aspectos da
realidade. A concepção referente às ideias recebe tratamento de-
vido também no diálogo Sofista. De acordo com ele, a natureza
da ideia é definida em termos de determinação absoluta. É jus-
tamente essa determinação que faz que a ideia seja o que ela é e
não outras coisas. Em outras palavras, como paradigma, ela deve
ser una e, como tal, deve diferir absolutamente das outras ideias;
portanto, deve não ser outras ideias. Nesse caso, ela é ser enquan-
to expõe a sua determinação absoluta, e, simultaneamente, ela é
não ser no sentido de não ser outra coisa. Por exemplo, a ideia de
mesa é mesa em sentido absoluto e não é, por outro lado, a ideia
de cadeira.
Caso os diferentes aspectos sensíveis e a sua diversidade
fenomênica corresponderem às suas causas e aos paradigmas
eternos (as ideias), então, isso deve configurar o mundo das ideias
como um universo de paradigmas múltiplos em que existe um mo-
delo para uma espécie de fenômenos, ou relações fenomênicas.
Esse universo ideal, chamado por Platão de mundo ideal, consti-
tui-se em uma relação hierárquica entre as ideias conforme o grau
de perfeição de cada uma. Nisso, consiste o entendimento do prin-
cípio da hierarquia.
© U1 - Metafísica na Antiguidade 63

Toda hierarquia ideal é governada por um princípio supre-


mo, chamado por Platão de ideia do bem, ou uno. Essa ideia su-
prema origina (ontologicamente, e não cronologicamente) todas
as outras ideias. Ela é chamada ideia do bem enquanto é enten-
dida como formadora e produtora das outras ideias, mostrando,
assim, o aspecto funcional do bem. Enquanto uno, a ideia exprime
o seu caráter ontológico, ou seja, a ideia suprema, enquanto ser, é
uno e, enquanto revela a sua dimensão prática de determinar as
outras ideias, é bem. Esse aspecto prático que produz o bem pode
ser entendido com base no segundo princípio supremo, que vem,
na ordem hierárquica, após o uno, ou bem. Trata-se da díade.
A díade é caracterizada pela sua qualidade de oscilar entre o
infinitamente pequeno e o infinitamente grande. Com isso, eviden-
temente, ela é o princípio que não possui determinação própria,
uma vez que oscila entre o pequeno e o grande; nesse sentido, é
o indeterminado. Se o uno é o princípio determinante, então, ele
deve atuar sobre a indeterminação da díade, por meio da qual, por
assim dizer, se moldam as ideias. Em outras palavras, o uno deter-
mina a indeterminação da díade, em resultado da qual nascem as
ideias.
Essa ação prática do uno é o aspecto funcional do bem, a
geração do ser. Claro está que a geração das ideias não ocorre no
tempo, mas é um processo ontológico atemporal. O processo de
determinação, em que o uno atua sobre a díade, revela três aspec-
tos do princípio supremo:
• O uno é o princípio do ser, enquanto criador das ideias.
• O uno pode ser entendido como princípio da verdade; en-
quanto objeto do conhecimento, deve ser absolutamente
determinado, isto é, ser aquilo que é e não outra coisa.
• O uno é, também, o princípio do valor, uma vez que o va-
lor é atribuído e determinado, pois, a ele, pode-se atribuir
ordem e harmonia. Vale observar que, para Platão, o inde-
terminado envolve a ideia de caos, à qual se contrapõe a

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64 © Metafísica I

ideia de ordem (cosmos). Justamente por isso, o princípio


supremo é uma natureza essencialmente determinante e
produtora, explicitando esses três aspectos (ser, verdade
e valor) que só o cosmos possui.
Entre os paradigmas e os modelos perfeitos, isto é, entre
as ideias que se encontram após o uno e a díade, o maior grau
de perfeição cabe às cinco ideias mais gerais: ser, repouso, movi-
mento, identidade e diversidade. Percebe-se que é o caráter ge-
ral que determina o status hierárquico das ideias. A diversidade,
por exemplo, inclui a espécie humana como um dos seus aspectos
e, portanto, possui mais abrangência do que a espécie humana.
Isso garante-lhe um status superior à ideia de homem. Na esca-
da hierárquica, após as ideias gerais, seguem as ideias-números:
igualdade, desigualdade, semelhança e dessemelhança. Por terem
uma abrangência maior do que a das ideias de coisas, as ideias-
números ocupam um lugar superior na hierarquia ontológica.
O princípio da hierarquia, portanto, retrata as relações entre
as ideias concebidas em termos de hierarquia, de acordo com o
status ontológico de cada forma paradigmal.
Relação entre ideias e mundo físico
Na concepção metafísica de Platão (2006), a relação entre
os modelos perfeitos, as ideias e as suas cópias sensíveis é tratada
pelo princípio da participação. Vimos que o mundo ideal (as ideias)
deriva de dois princípios constitutivos, cuja reunião faz surgir as
ideias; são eles: o uno e a díade. Encontramos algo parecido na ex-
plicação do mundo físico, produto da relação entre as ideias (mo-
delo) e a matéria (o material utilizado para a modelação das coi-
sas). A ideia é determinação absoluta, o princípio formal de cada
coisa da sua espécie. A matéria, por outro lado, é o princípio da
indeterminação absoluta, que é sujeita à ação da ideia, por meio
da qual surge a coisa concreta (física) como determinada. Todavia,
a relação entre as ideias e a matéria não se dá diretamente, como
entre o uno e a díade, mas por meio de um intermediário.
© U1 - Metafísica na Antiguidade 65

No diálogo Timeu, em que é exposta a Cosmologia platôni-


ca, esse intermediário é chamado de Demiurgo. Este, utilizando-se
da matéria indeterminada e contemplando os modelos perfeitos,
molda e esculpe, por assim dizer, o mundo sensível.
Na tentativa de explicar teoricamente a relação entre as
ideias e o mundo sensível, isto é, o princípio da participação, Pla-
tão recorre, em busca de uma solução mais consistente, a três ex-
plicações, a saber: o abismo, a participação e o teleologismo.
A explicação denominada de abismo consiste em tratar a
relação entre as ideias e as coisas sensíveis em termos de trans-
cendência radical. Desse ponto de vista, entre as ideias e as coi-
sas sensíveis, existe um verdadeiro abismo. Essa concepção, por
um lado, conserva a natureza perfeita das ideias, mas, por outro
lado, não permite nenhuma relação mais próxima com as cópias
imperfeitas. Todavia, do ponto de vista da explicação da relação
entre as causas e os seus efeitos, ela é bastante problemática. É
nesse sentido que Aristóteles (2006) critica essa concepção, dizen-
do que, sem a admissão do movimento que ocorre entre causa e
efeito, não se pode explicar satisfatoriamente o mundo por meio
do abismo.
A segunda tentativa de dar conta da relação entre as ideias
e as coisas sensíveis é tratada em termos de participação. Con-
forme essa concepção, as coisas sensíveis participam nas ideias,
tentando se aproximar mais de seus modelos perfeitos. Assim, o
belo sensível, para ser belo, participa na ideia do belo, e, enquanto
participa, as coisas assumem traços de belo. Quando um ator ten-
ta retratar o seu personagem, ele participa, encarna o personagem
e força o espectador a reconhecê-lo não como ator, mas como o
personagem que ele encarna. A explicação por meio da participa-
ção caminha, naturalmente, para a terceira tentativa: a explicação
teleológica.
O teleologismo implica a ideia de finalidade. Caso as ideias
perfeitas, pela sua perfeição, puderem ser objetivo para suas có-

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66 © Metafísica I

pias imperfeitas, então, as ideias são causas dessa tendência de


perfeição. O modelo perfeito é, nesse sentido, fim e objeto da ten-
dência para a perfeição das coisas imperfeitas. Enquanto imitam
essa perfeição, elas mostram a sua determinação.
Imortalidade da alma
A Ontognosiologia platônica coloca no núcleo da sua concep-
ção metafísica sua doutrina metafísica da alma. Primeiro, porque a
alma humana possui um papel intermediário entre a camada sen-
sível e a camada suprassensível. Praticamente, é ela que, por meio
do conhecimento, acessa a verdadeira realidade e atesta às ideias
o status de ser verdadeiro. Mas, para tal fim, ela deve ser eterna e
imortal, uma vez que se comunica com as verdades eternas.
A alma humana – diz Platão – é capaz [...] de conhecer as coisas
imutáveis e eternas; mas, para poder captar essas coisas ela deve
ter, como conditio sine qua non, uma natureza que lhes seja afim;
caso contrário tais coisas permaneceriam fora da sua capacidade;
assim pois, sendo elas imutáveis e eternas, também a alma deve
ser imutável e eterna (REALE, 1994, p. 183).

Uma peculiaridade da doutrina da alma de Platão é que ela,


por um lado, fundamenta o conhecimento verdadeiro por meio da
sua origem ideal, e, por outro lado, a concepção do conhecimento
verdadeiro requer a sua imortalidade, pois é somente assim que a
alma pode ter posse sobre ele. Em outras palavras, o conhecimen-
to verdadeiro depende da imortalidade da alma, e esta depende
do conhecimento verdadeiro.
Uma influência considerável sobre o conceito de imortalida-
de da alma possuem as crenças órfico-pitagóricas, que enfatizam
as reencarnações da alma. Segundo Platão (1979), por ser imortal,
a alma já traz o conhecimento verdadeiro contemplado no mundo
ideal e recorda-se dele por meio de reminiscência.
O conceito de reminiscência aparece em vários diálogos de
Platão, dentre os quais vale destacar Menão e Fédon. No primeiro
diálogo, em prol do conhecimento verdadeiro, Platão, pela boca
© U1 - Metafísica na Antiguidade 67

de Sócrates, mostra que o analfabeto escravo de Menão, o seu


interlocutor, sem ter nenhum estudo prévio, saberá solucionar o
teorema de Pitágoras com base na recordação de tais verdades,
contidas na sua alma. Por meio do método dialético, Platão mos-
tra-nos como o jovem escravo chega à resposta por via da recorda-
ção daquilo que a sua alma já sabe.
Já no diálogo Fédon, Platão recorre a quatro demonstrações
com o intuito de mostrar que a alma é imortal.
A primeira demonstração consiste na prova dos contrários.
De acordo com ela, entre os opostos, tais como são a vida e a mor-
te, deve existir uma passagem. Caso contrário, se tudo o que vive
morresse e permanecesse como tal, não nasceriam coisas novas e
novos seres. Se nada morresse, por outro lado, tudo seria mutável,
o que a simples observação reprova. Portanto, deve existir uma
natureza que realiza a passagem entre a vida e a morte, e, como
tal, ela deve ser imortal. Tal natureza, Platão atribui à alma.
O conceito de reminiscência constitui a segunda prova em
prol da imortalidade da alma. Em nossa alma, encontramos verda-
des eternas que não podem ser adquiridas por meio da experiência
e da observação do mundo físico. Lembremo-nos de que, no mun-
do físico, tudo muda; nada permanece o que se é. Portanto, se en-
contramos, na nossa alma, verdades absolutas e elas não derivam
do mundo físico, então, essas verdades são depositadas na alma, e
ela as recorda porque, diretamente, as contemplou no mundo das
ideias. Nesse caso, será forçoso se admitir que a alma é imortal.
A terceira demonstração da imortalidade da alma deriva da sua
natureza idêntica, ou seja, ela não é composta por partes; portanto,
não é destrutível. Tudo o que é visível pertence ao mundo físico, em
que a mudança reina soberanamente. A alma é invisível e incorpórea;
dessa forma, não é sujeita nem à geração nem à corrupção.
O quarto e último argumento em prol da imortalidade da
alma consiste na concepção de princípio da vida. Sendo princípio
da vida, é um absurdo a alma aceitar o seu contrário (a morte).

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68 © Metafísica I

Com efeito, sendo princípio da vida, ela não se pode transformar


em seu oposto, assim como o número que representa o um não se
transforma em dois quando a coisa se multiplica, mas conserva-se
idêntico a si mesmo.
Método dialético
Um aspecto bastante considerável da Ontognosiologia platô-
nica que se configura como teoria do ser e de seus aspectos prin-
cipais é a dialética, a única capaz de acender as verdades eternas
e de revelar as suas essências. O método dialético parte do mun-
do sensível e eleva-se, gradativamente, ao ideal e à sua máxima
universalidade. Desse ponto de vista, a análise do ser verdadeiro
só pode se dar pelo poder da dialética. Nesse sentido, na versão
platônica da Metafísica, a dialética assume o papel da teoria geral
do ser.
Como conclusão, podemos dizer que, com a Metafísica de
Platão, se inicia uma nova etapa do pensamento filosófico, cuja
repercussão se estende praticamente a toda a história do pensa-
mento humano, e o conceito de ideal entra, definitivamente, no
discurso filosófico.
Se Platão constrói os fundamentos da Metafísica ocidental,
Aristóteles é o pensador que desenvolve a sua problemática pró-
pria, dando contribuições incalculáveis para a Metafísica posterior.
No tópico a seguir você irá conhecer os principais aspectos da Me-
tafísica de Aristóteles.

8. METAFÍSICA DE ARISTÓTELES
Na classificação das ciências, Aristóteles (2006) já descreve o
âmbito próprio e peculiar da análise metafísica. Segundo o pensa-
dor (2006), existem três áreas das Ciências Teóricas: Física, Mate-
mática e Filosofia Primeira. As três ciências ocupam-se e analisam
diferentes aspectos do ser:
© U1 - Metafísica na Antiguidade 69

• A investigação física ocupa-se daquilo que existe indepen-


dente, mas é mutável.
• A investigação matemática ocupa-se daquilo que é depen-
dente, mas imutável, como, por exemplo, os números.
• A investigação da qual se ocupa a Filosofia Primeira se re-
fere àquilo que existe independente e é imutável.
Nesses termos, a Filosofia Primeira ocupa-se, essencial-
mente, dos princípios fundamentais e supremos de toda a exis-
tência.
Vale, aqui, informar que o termo "Metafísica" ainda não fora
utilizado por Aristóteles. A Filosofia Primeira é a disciplina que se
ocupa das questões da Metafísica. O conceito "Metafísica", como
vimos no início desta unidade, foi cunhado por Andrônico. É a par-
tir dele e com referência às obras de Aristóteles que o termo entra,
definitivamente, no discurso filosófico.
Segundo Aristóteles (2006), a investigação da qual se ocupa
a "Filosofia Primeira", ou a "Metafísica", compreende quatro sig-
nificados:
1) Investigação teórica sobre os princípios supremos.
2) Investigação teórica sobre o ser enquanto ser.
3) Investigação teórica sobre a substância.
4) Investigação teórica sobre Deus e o suprassensível.
Vale observar que os quatro significados de Metafísica não
diferem, mas completam-se mutuamente. Assim, por exemplo, a
investigação sobre os princípios supremos envolve a ideia de Deus,
embora, seja Deus, sejam princípios supremos, estes envolvam a
noção de substância, uma vez que se trata do ser de Deus ou de
princípios supremos.
Diferentemente de Platão, a análise metafísica de Aristóteles
compreende duas áreas de atuação: o sensível e o suprassensível. A
Metafísica do sensível é tratada em termos de hylemorfismo, enquanto
a Metafísica do suprassensível é tratada em termos de ato puro e tele-

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70 © Metafísica I

ologismo. Todavia, o teleologismo constitui o princípio absolutamente


fundador da Metafísica do sensível, como veremos mais adiante.
Teoria do hylemorfismo
O hylemorfismo de Aristóteles, entendido como teoria geral do
ser sensível, representa um avanço considerável nas concepções onto-
lógicas da Antiguidade e estende uma ponte entre as duas concepções
radicais até então existentes do sensualismo e do realismo. Segundo os
adeptos da primeira concepção, o que realmente existe é apenas a coi-
sa concreta sensivelmente perceptível. Já para os adeptos da segunda
concepção, como Platão, por exemplo, o que realmente existe é o geral,
uma vez que não existe conhecimento para o individual.
Nesse antagonismo radical entre as duas concepções, Aristóte-
les consegue traçar uma posição média por meio do hylemorfismo.
Mas como o Estagirita consegue encontrar essa posição intermediária
e qual é o seu significado para os problemas ontológicos?
É evidente, afirma o filósofo, que, se nada existe além das
coisas concretas, não é possível o conhecimento, pois este é sem-
pre para o geral (ARISTÓTELES, 2006). Por outro lado, o abandono
do geral como ser negaria, absolutamente, a possibilidade do co-
nhecimento teórico, e, com isso, toda ciência se tornaria impos-
sível. Em decorrência desse raciocínio, Aristóteles (2006) chega a
configurar a sua teoria hylemorfica. Diante disso, você deve estar
se perguntando: o que é hylemorfismo?
Literalmente traduzido, o termo implica a ideia da união en-
tre matéria e forma ("hylé" – "matéria"; "morfe" – "forma").
A matéria constitui o substrato geral de toda natureza física, en-
quanto a forma constitui a natureza da coisa, isto é, aquilo que ela é
em virtude de um princípio formador. Em outras palavras, a forma é
a determinação da coisa, ou o porquê de ela ser uma coisa determi-
nada e não outra. Já a matéria é possibilidade pura, possibilidade de
qualquer coisa. Por exemplo, a pedra de mármore é possibilidade de
virar uma estátua ou uma mesa. A possibilidade, entendida nesses
termos, é meio entre a pura ausência e o puro ato. Assim, a pedra de
© U1 - Metafísica na Antiguidade 71

mármore não é ausência de algo, mas também não é algo determina-


do, como uma estátua ou uma mesa. Como substrato geral, a matéria
é passividade, é passível de atualização. Por outro lado, como subs-
trato, a matéria é eterna. As coisas que derivam dela estão sujeitas ao
surgimento e ao perecimento; ela, porém, não está.
Nesse sentido, ela é a causa da materialidade das coisas.
Cabe ressaltar, aqui, que o caráter individual das coisas se deve à
matéria; ela, por assim dizer, é o princípio da individuação. A aná-
lise aristotélica da matéria possui uma valorização significativa
frente à concepção platônica.
Além do princípio material, Aristó-
teles em sua Metafísica introduz o prin-
cípio formal, a forma, atribuindo-lhe o
caráter geral das coisas. Por exemplo, o
homem pertence à espécie humana pela
sua forma humana. A forma é o princípio
determinante da realidade, aquilo que
atualiza a matéria amorfa e a torna uma
coisa determinada. Outro exemplo: é
pela forma de mesa que a pedra de már-
more recebe que se pode defini-la como
mesa, e não como outra coisa. Forma é,
portanto, o princípio ativo que entra na Figura 2 Davi.
matéria amorfa e a atualiza para que esta se torne uma coisa. Mais
um exemplo: a pedra de mármore é o substrato do qual pode surgir
uma estátua, mas o modelo da estátua (como a de Davi) que se en-
contra no intelecto do escultor é a forma que molda o mármore para
que este vire a estátua de Davi.
Como determinação absoluta, a forma possui alguns traços co-
muns com a ideia platônica, tais como: a eternidade, a atemporalidade
etc. Todavia, diferentemente do modelo platônico, a forma aristotélica
é ativa. Ela não é transcendente às suas cópias, mas é imanente delas.
A forma existe in re, ou seja, dentro da matéria, e não ante rem, isto
é, fora da matéria, como é no caso de Platão. Com essa inerência da

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72 © Metafísica I

forma, Aristóteles (2006) tenta, inclusive, remediar a transcendência


da doutrina platônica.
A união de matéria e forma dá origem à coisa concreta, que
Aristóteles (2006) chamará de substância primeira, ou sínolo.
Até agora, vimos os dois princípios constituintes da realidade
sensível: a matéria e a forma. Todavia, a explicação das substâncias
sensíveis deve ser completada por mais dois princípios: a causa efi-
ciente, que envolve a questão do movimento; e a causa final, que
envolve o porquê da coisa concreta, ou a sua razão de ser.
Se retomarmos o exemplo da pedra de mármore (matéria)
e a imagem de Davi (a forma), veremos que, para a pedra assu-
mir a imagem que se encontra no intelecto do escultor, temos
de adicionar a causa eficiente, ou seja, o movimento que leva
a ideia de Davi para a pedra. É pelo trabalho braçal do escultor,
junto ao martelo e ao cinzel, que a imagem formal entra na maté-
ria. A causa eficiente é o movimento que leva a potência ao ato,
de pedra de mármore a estátua de Davi. Todavia, a substância
primeira, ou o sínolo, requer mais uma causa para a sua realiza-
ção – aliás, a mais importante –, que é a causa final, pois cada
coisa possui uma razão de ser aquilo que ela é. Por outro lado, a
causa final também é, simultaneamente, a primeira e a última.
A primeira, porque a razão de uma coisa deve anteceder a sua
realização. Por exemplo, o escultor não começa a produzir uma
estátua sem uma razão prévia, que é a última, porque a realiza-
ção da coisa, a passagem de potência a ato, sempre implica uma
tendência final que a realiza.
Enteléquia e teleologismo
O processo que leva da potência ao ato é chamado por Aris-
tóteles (2006) de enteléquia, a qual deve ser entendida como a
realização da potência. Em outras palavras, trata-se do processo
em que a matéria ganha determinação e se torna uma coisa de-
terminada. A enteléquia como processo de realização de potência
© U1 - Metafísica na Antiguidade 73

envolve as quatro causas anteriormente citadas: causa material,


causa formal, causa eficiente e causa final.
Esse processo enteléquico de realização envolve, rigorosa-
mente, o teleologismo, conforme o qual a razão última de todas
as coisas, a causa final de tudo, é Deus, ou o Primeiro Motor Imó-
vel.
Caso a realização da potência que vigora no mundo físico
revele uma tendência que, por sua vez, não possa remontar ao
infinito, pois o processo nunca se realizará, então, segundo Aristó-
teles (2006), deve-se aceitar a existência de uma causa última em
que as causas do movimento se esgotam. O conceito de Primeiro
Motor Imóvel parece atender perfeitamente a essa exigência de
limites do movimento. Evidentemente, a causa do movimento não
deve ser movida, mas apenas movente; caso contrário, deveria se
pressupor outra causa que a movesse e, por sua vez, outra, re-
montando, assim, ao infinito, o que seria um absurdo (absurdum
ad infinitum). Mas como será possível pensar em algo que move
sem ser movido?
Uma tal natureza, por outro lado, contraria toda experiência
e observação empírica. É aqui que entramos na doutrina metafísi-
ca do suprassensível de Aristóteles.
Para fundamentar o Primeiro Motor Imóvel e o seu caráter
peculiar de mover sem ser movido, Aristóteles (2006) recorre ao
princípio do teleologismo, o qual estabelece que a perfeição ab-
soluta do Motor Imóvel é objeto de desejo de todas as coisas, de
modo que elas tendem a imitá-lo. Na sua tendência de perfeição,
as coisas passam de grau inferior a grau superior, ou, dito de ou-
tra maneira, de potência a ato. O Motor Imóvel é o fim último de
todas as coisas. Estas, por sua vez, enquanto desejam a sua perfei-
ção, movem-se na sua direção. Assim, o movimento de potência a
ato é resultado dessa tendência à perfeição governada pelo Motor
Imóvel. Como perfeição absoluta, o princípio é imóvel, mas, como
objeto de desejo, ele é a causa de todo movimento. Desse modo,

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74 © Metafísica I

Aristóteles em sua Metafísica explica como o Motor Imóvel move


sem ser movido.
Vale notar que o teleologismo, como finalidade última das
coisas, governa todo o mundo natural e representa o seu logos
interno como o princípio de todo desenvolvimento e progresso.
Assim, o teleologismo estabelece uma relação íntima entre a Física
e a Metafísica, pois o progresso e o desenvolvimento da natureza
física encontram o seu último fundamento e a sua razão plena na
Metafísica (Primeiro Motor Imóvel). Segundo Aristóteles (apud RE-
ALE, 2001, p. 116):
De tal princípio, portanto, dependem o céu e a natureza. E seu
modo de viver é o mais excelente: é o modo de viver que só nos é
concedido por breve tempo. E naquele estado Ele está para sem-
pre. Isso é impossível para nós, mas para Ele não é impossível, pois
o ato de seu viver é prazer. E também para nós a vigília, a sensação
e o conhecimento são sumariamente agradáveis, justamente por-
que são ato, e, em virtude deles, também esperanças e recorda-
ções [...]. Se, portanto, nessa feliz condição em que as vezes nos
encontramos, Deus se encontra perenemente, isso nos enche de
maravilha; e Ele é também Vida, porque a atividade da Inteligência
é vida, e Ele é, justamente, essa atividade. E sua atividade, subsis-
te por si, é vida ótima e eterna. Dizemos, com efeito, que Deus é
vivente, eterno e ótimo; de modo que a Deus pertence uma vida
perenemente contínua e eterna: isto, portanto, é Deus.

Porntanto, Aristóteles entende o Primeiro Motor como ima-


terial, pois ele é "pensamento de pensamento". Nesse sentido, diz
o filósofo:
[...] o pensamento que é pensamento por si, tem como objeto o
que por si é mais excelente, e o pensamento que é maximamente
tem como objeto o que é excelente em máximo grau. A inteligência
pensa a si mesma, de modo a coincidirem inteligência e inteligível
(ARISTÓTELES apud REALE, 2001, p. 117).

Portanto, o Primeiro Motor coincide perfeitamente com o


pensamento que pensa a si mesmo. Aristóteles (apud REALE, 1994,
p. 117) vai defini-lo assim:
Se, portanto, a inteligência divina é o que há de mais excelente, pen-
sa a si mesma e seu pensamento é pensamento de pensamento.
© U1 - Metafísica na Antiguidade 75

Diferentemente da natureza física, em que reina o movimen-


to, a natureza metafísica está para além de qualquer movimento e
transformação. O Primeiro Motor Imóvel é uma natureza imutável
e perfeita, e essas características derivam da sua imaterialidade.
Referente a tais questões sobre o suprassensível, na sua obra
Metafísica, Aristóteles levanta uma indagação sobre a natureza das
substâncias. Essa indagação pode ser resumida em dois pontos: o
que é uma substância, entendida no sentido geral? Que tipos de
substâncias existem?
Recorrendo às concepções precedentes sobre a substância,
Aristóteles analisa quais delas possuem fundamento e quais de-
vem ser descartadas. Os primeiros filósofos físicos conceberam
como substâncias os elementos principais da natureza, a partir dos
quais as coisas se engendram. Para Platão, por outro lado, cabe
apenas às ideias o status de substâncias, uma vez que apenas elas
são imutáveis, eternas, atemporais e, enfim, paradigmas e mode-
los. Num sentido mais comum corrente entre as pessoas comuns,
substâncias são as coisas concretas. Com base nessa análise sobre
a tradição precedente, Aristóteles chega à conclusão de que, em
cada uma dessas concepções, há algo de valioso, porém, tais con-
cepções retratam apenas um determinado aspecto da substância,
descartando outros igualmente valiosos. Por exemplo, para Platão
como você pode ver no Tópico A metafísica no pensamento platô-
nico, substância é a ideia, descartando-se dessa noção qualquer
tipo de natureza física, mostrando, portanto, uma visão unilateral.
Por outro lado, os físicos, ao conceberem como substâncias os ele-
mentos naturais, descartaram dessa noção qualquer aspecto ideal
da realidade.
Se a realidade implica três elementos constitutivos, a saber:
matéria, sínolo (composto de matéria e forma) e forma, então, em
certo sentido, podemos falar de três tipos de substâncias. A pri-
meira delas é a matéria, que, como substrato geral de toda nature-
za física, é substância, porém, no sentido mais fraco da palavra. O

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76 © Metafísica I

sínolo, por sua vez, incluindo a matéria como substrato e a forma


como princípio determinante, possui mais direito de ser chamado
de substância do que o substrato material. O sínolo é a substância
primeira. Por último, a forma também é substância, sendo o prin-
cípio imanente e determinante de cada coisa. A forma, desse pon-
to de vista finalista, é substância no sentido mais forte da palavra.
Vale observar, porém, que, do ponto de vista do físico, cabe à
substância primeira, mais acertadamente, a palavra "substância".
Todavia, do ponto de vista metafísico, mais realidade substancial
possui a forma. Caso fosse atribuída a noção de substância apenas
às coisas concretas (substância primeira, sínolo), então, as formas,
dentre as quais a mais importante é o Primeiro Motor Imóvel, não
poderiam ser pensadas como substâncias, o que, para Aristóteles
seria totalmente insensato.
Por essa razão, em sua obra Metafísica, Aristóteles atribui às for-
mas o título de substâncias, no sentido forte da palavra. Essa concep-
ção já nos torna aptos a responder à segunda questão: que tipos de
substâncias existem? Coerentemente, a partir da análise precedente,
cabe destacar dois tipos de substâncias: as sensíveis e as suprassen-
síveis. As sensíveis, como analisamos anteriormente, são compostas
por matéria e forma. Já as substâncias suprassensíveis são as formas
puras, entre as quais cabe destacar o Primeiro Motor Imóvel.
Essas especulações do filósofo esgotam a primeira questão
levantada por ele: o que é substância no sentido geral? Os resulta-
dos alcançados por meio dessas especulações preparam o âmbito
da segunda resposta, a saber: que tipos de substância existem?
Vimos que, na teoria metafísica de Aristóteles, se pode falar
de três tipos de substâncias: a matéria, o sínolo e a forma. À base
dessa distinção, Aristóteles (2006) considera dois tipos de substân-
cias: a sensível, que inclui apenas a matéria como substrato geral e
o sínolo como união de matéria e forma; e a suprassensível, à qual
se associam as formas puras (imateriais), entre as quais um lugar
privilegiado ocupa o Primeiro Motor Imóvel.
© U1 - Metafísica na Antiguidade 77

Relação entre conhecimento e Metafísica em Aristóteles


Uma questão importante da Metafísica de Aristóteles confi-
gura o problema do conhecimento, ou melhor, a sua teoria do co-
nhecimento. O ponto de partida da Gnosiologia aristotélica é a sua
doutrina da alma, exposta em seu tratado De anima. Nesse tratado,
a alma é compreendida como o sujeito do conhecimento. Por outro
lado, a alma é, também, a forma do corpo, ou seja, é a enteléquia de
um corpo que possui vida em potência. Desse ponto de vista, a alma
e o corpo constituem uma união orgânica e, como tal, são igualmen-
te importantes para a aquisição do conhecimento. O conhecimento,
para Aristóteles (apud REALE, 1994), possui natureza eidética. Con-
forme essa concepção, a alma capta a forma dos objetos, isto é, re-
trata objetos externos sem a matéria, tal como é marcado o carimbo
de metal sobre a cera. O processo de conhecimento realiza-se na
união entre os sentidos e a razão. Os sentidos captam a imagem dos
objetos, porém, sem a matéria. A imagem imaterial percebida pelos
sentidos passa a ser analisada pelo entendimento; em virtude des-
se processo, surge o conhecimento. A enteléquia aristotélica, aqui,
está, novamente, em pleno vigor. O conhecimento, desse ponto de
vista, será o produto de um processo em que os dados sensíveis (a
matéria do conhecimento) são processados pelo intelecto (a forma
do conhecimento), realizando as possibilidades de um conhecimen-
to que se encontra, antes, em potência.
A realização do conhecimento passa pelas seguintes etapas:
1) Conhecimento sensível:
• Observação: é o primeiro grau do conhecimento sensível;
por meio dela, os objetos são percebidos.
• Experiência: a experiência surge por meio da repetição
dos dados observáveis e da memória. A experiência é o
conhecimento para o particular e o concreto.
2) Conhecimento intelectual:
• Arte: na base da experiência, configura-se o primeiro grau
do conhecimento para o geral: a arte, que surge quando,

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78 © Metafísica I

à base da experiência, se forma uma visão comum para


coisas semelhantes. Se a experiência é conhecimento
para o particular, evidencia-se que a arte é conhecimento
para o geral.
• Ciência: é resultado do último grau do conhecimento
racional. No topo de todas as ciências, encontra-se a Fi-
losofia. Utilizando-se do método da análise e da síntese,
o principal objetivo da Filosofia é ascender às primeiras
causas e aos princípios do ser.
Diferentemente de Platão, para Aristóteles, como ressalta-
mos anteriormente, o conhecimento sensível é imprescindível,
pois é ele que fornece ao conhecimento intelectual os dados sen-
síveis necessários ao conhecimento. No que diz respeito ao conhe-
cimento intelectual, o filósofo distingue, nele, duas formas: o juízo
e a razão. O juízo é a faculdade sintética, e seus modos de se rela-
cionar com os objetos são a indução e a dedução. A razão, por sua
vez, sendo a faculdade superior do conhecimento humano, reflete
e analisa os princípios supremos de toda existência. Ela, portanto,
constitui, essencialmente, a faculdade filosófica de pensar objetos
que vão além de qualquer experiência. Com efeito, ocupa-se de
objetos da Metafísica.
A teoria do conhecimento de Aristóteles representa um avan-
ço considerável diante da problemática gnosiológica do mundo an-
tigo. Como vimos, ele consegue estender uma ponte entre o lado
sensível e o lado intelectual do conhecimento, algo que nenhum
outro filósofo anterior a ele fora capaz de realizar. Antes de Aristó-
teles, o problema radicaliza-se em concepções unilaterais que en-
fatizam ou conhecimento sensível, ou o conhecimento racional. É
nisso que consiste o antagonismo entre os sensualistas e os racio-
nalistas. Aristóteles (2006) reconcilia esse antagonismo ao conside-
rar a importância das duas fontes do conhecimento: os sentidos e
o intelecto. Todavia, a incompatibilidade entre a matéria fornecida
pelos sentidos e a forma de pensar e analisar tais dados sensíveis
tornava impossível a mediação entre ambas as faculdades. Faltava,
© U1 - Metafísica na Antiguidade 79

portanto, um princípio intermediário esses dois aspectos – o mate-


rial e o formal. Aristóteles (2006) viu tal princípio intermediário na
imaginação, a qual, por um lado, se assemelha aos dados sensíveis,
uma vez que forma imagem deles, e, por outro lado, assemelha-se à
natureza do intelecto ao conceber tais imagens na sua formalidade,
ou seja, sem matéria alguma. Desse modo, com a doutrina da imagi-
nação, Aristóteles (2006) consegue criar uma explicação totalmente
acabada do mecanismo cognitivo.
Como conclusão, podemos dizer que a Metafísica de Aris-
tóteles, além de propor uma nova concepção, possui traços bem
mais realistas do que a do seu mestre, Platão, abrindo, também,
novos horizontes diante da ciência do ser enquanto ser. Do seu
pensamento metafísico, beberão muitos filósofos posteriores,
como, por exemplo, Tomás de Aquino e Kant, uma prova sólida do
gênio filosófico de Aristóteles.
No próximo tópico você irá conhecer os principais desdobra-
mentos que a Metafísica de Platão sofreu com os filósofos neopla-
tônicos, principalmente com Plotino.

9. NEOPLATONISMO E SUA METAFÍSICA


Após os dois primeiros períodos do pensamento antigo (o pré-
socrático e o clássico), em que tivemos, na Filosofia, uma problemá-
tica predominantemente ontológica e metafísica, os períodos que se
sucederam (o helenístico e o romano) não foram muito favoráveis e
frutíferos para a especulação metafísica. Houve, por assim dizer, um
declínio acentuado referente a tais questões. A Metafísica, ainda no
período helenístico, cedeu seu lugar às problemáticas éticas e po-
líticas. Esse desvio de enfoque da Metafísica surgiu, naturalmente,
com a profunda crise sociopolítica que, então, dominava o mundo
antigo. Passaram-se vários séculos desfavoráveis para a especulação
metafísica. Foi apenas com Plotino que ela entrou novamente em
cena como principal protagonista da reflexão filosófica.

Claretiano - Centro Universitário


80 © Metafísica I

O neoplatonismo surgiu como uma tentativa de revelar a


doutrina exotérica de Platão. Os neoplatônicos acreditavam que,
por trás dos diálogos platônicos, existia um segredo que não se
revelava diretamente nos seus textos, mas tinha de ser descober-
to. O neoplatonismo, portanto, movido por essa tendência reve-
ladora, constituiu suas intenções em torno da doutrina secreta de
Platão.
Plotino, o principal representante do neoplatonismo, movi-
do pelo espírito da antiga Metafísica, deseja realizar um retorno
às velhas questões metafísicas, dando-lhes um tratamento novo
e mais adequado. Conforme tais objetivos, Plotino submete à crí-
tica algumas das ideias fundamentais dos filósofos metafísicos do
período clássico, dentre os quais cabe destacar Platão e Sócrates.
Todavia, os neoplatônicos mantêm uma forte exigência de se pre-
servarem os fundamentos teóricos do platonismo. Além disso, Plo-
tino, focado nas questões metafísicas, negligencia por completo as
questões naturalistas e os seus fundamentos ontológicos. Desse
modo, ocupa-se, sobretudo, da especulação metafísica.
O neoplatonismo, em sua concepção metafísica, utiliza-se de
dois princípios fundamentais: o princípio da hierarquia e o princípio
da emanação. O primeiro apresenta o universo como hierarquica-
mente ordenado em diferentes graus ontológicos, isto é, cada grau
ontológico ocupa um lugar, conforme seu status ou valor ontológi-
co. No topo dessa hierarquia, Plotino (2007) coloca o uno, seguido,
respectivamente, pelo Nous e pela alma. O princípio da emanação,
por sua vez, revela o princípio de acordo com o qual todo o univer-
so se apresenta como sucessão gradativa das diferentes formas da
realidade, conforme seu status ontológico, sendo o grau ontológi-
co superior aquele que contém em si o grau ontológico inferior. A
emanação, assim entendida, configura o entendimento panteísta,
segundo o qual Deus e a natureza são idênticos.
Plotino (2007), na sua Ontologia panteísta, recorre a três hi-
póstases principais: o uno, o Nous e a alma. As três hipóstases
© U1 - Metafísica na Antiguidade 81

enfatizadas por Plotino desenvolvem entre si uma relação dialética


que se representa por meio da tese, da antítese e da síntese. Esses
três aspectos da dialética compõem a divisão do uno em seus as-
pectos múltiplos e, em seguida, a dissolução do múltiplo em uno.
Aqui, evidentemente, transparece a ideia de duas vias: via para
baixo, por meio da qual o uno se torna múltiplo, e a via para cima,
por meio da qual o múltiplo retorna ao uno.
Vale observar, aqui, que a noção de uno utilizada por Plotino
se distingue bastante da noção de Primeiro Motor Imóvel, utiliza-
da por Aristóteles. Diferentemente do Deus aristotélico, o uno de
Plotino não é definido como a mente que pensa a si mesma, uma
vez que tal mente não seria uno, mas múltiplo (uno que pensa e
objeto pensado). Portanto, o princípio ontológico deve ser antes
de qualquer pensamento. Por outro lado, o pensamento, por si só,
já implica a ideia de carência, pois o princípio, nesse caso, teria ne-
cessidade de alguma coisa e, por isso, pensaria. Assim, o uno não
admite quaisquer características subjetivas; ele não é sujeito do
pensamento nem do conhecimento, uma vez que, caso fosse, não
seria uno. Mas cabe a ele ser pensado como a lei e o logos do ser.
Como tal, ele é, também, o princípio formador de toda realidade
fenomênica.
A segunda hipóstase após o uno é o Nous. Essa instância está
para além do tempo; ela é o mundo das ideias. Veja que o Nous
possui um status ontológico superior ao da alma. Assim como o
uno é a causa imediata do Nous, do mesmo modo, o Nous é a cau-
sa imediata da alma. Ontologicamente, o Nous representa a ponte
entre o uno e o múltiplo, que realiza a mediação entre ambos.
A alma, por sua vez, sendo a terceira hipóstase, representa
o grau mais baixo de status ontológico no mundo espiritual. Con-
forme o princípio da hierarquia, ela ocupa um lugar intermediário
entre o Nous e o mundo sensível, servindo de tradutora do Nous.
Em outras palavras, a lei do Nous é traduzida e passada para o
mundo sensível por meio da alma.

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82 © Metafísica I

Cabe notar que, diferentemente do caráter transcendente


da doutrina platônica, a doutrina de Plotino (2007) desconsidera
qualquer tipo de separação entre os diferentes graus de ser, os
quais representam uma ordenação hierarquizada em que cada
grau inferior consiste em seu grau superior. Esse processo que leva
do uno ao múltiplo e vice-versa, ou seja, do múltiplo ao uno, como
vimos anteriormente, é concebido por Plotino (2007) em duas
vias: via para baixo e a via para cima.
A descida revela-se um processo de emanação em que o
princípio, pela sua abundância ontológica, derrama e forma os ou-
tros graus ontológicos e hipóstases. O caminho inverso dá-se no
sentido contrário, isto é, na subida do múltiplo ao uno. Essa dialé-
tica entre uno e múltiplo estabelece relações íntimas entre as três
hipóstases, e, nela, um papel primordial é desempenhado pelas
ideias. Vale notar que a doutrina das ideias de Platão se conserva
relativamente intacta no neoplatonismo, porém, a ligação entre as
ideias e a matéria é tratada em termos de panteísmo, de acordo
com o qual, por um lado, a alma recebe as ideias do Nous e, por
outro lado, transfere-as para a matéria em forma de razões semi-
nais. Portanto, vemos que o panteísmo de Plotino supera a trans-
cendência da doutrina platônica, introduzindo nela um princípio
imanentista que permeia todos os graus hierárquicos e de ser. O
imanentismo neoplatonista ganha força e significado enquanto
considera que cada forma ou hipóstase ontológica é a condição
objetiva e necessária para as formas ou hipóstases inferiores. Sem
dúvida alguma, Plotino (2007) atesta ao logos o papel de fio con-
dutor de toda realidade.
A especulação essencialmente metafísica da escola neopla-
tônica deixa marcas profundas para o desenvolvimento do pensa-
mento metafísico cristão, notadamente expresso em sua versão
teológica, cuja análise faremos na próxima unidade, dedicada à
Metafísica da Idade Média.
© U1 - Metafísica na Antiguidade 83

10. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS


Sugerimos que você procure responder, discutir e comentar
as questões a seguir que tratam da temática desenvolvida nesta
unidade, ou seja, da Metafísica como principal temática da Filoso-
fia Antiga, da síntese desses problemas e do estabelecimento de
paralelos entre alguns pensadores.
A autoavaliação pode ser uma ferramenta importante para
você testar o seu desempenho. Se você encontrar dificuldades em
responder a essas questões, procure revisar os conteúdos estuda-
dos para sanar as suas dúvidas. Esse é o momento ideal para que
você faça uma revisão desta unidade. Lembre-se de que, na Edu-
cação a Distância, a construção do conhecimento ocorre de forma
cooperativa e colaborativa; compartilhe, portanto, as suas desco-
bertas com os seus colegas.
Confira, a seguir, as questões propostas para verificar o seu
desempenho no estudo desta unidade:
1) Sobre a concepção de ser segundo Parmênides, é correto afirmar que ele é:
a) Descontínuo.
b) Múltiplo.
c) Imutável.
d) Imperfeito.
e) Perecível.
2) Segundo Heráclito:
a) O ser é, e o não ser não é.
b) Nada é; se é, não é cognoscível; se é cognoscível, não pode ser comuni-
cado a outrem.
c) A água é a arché, o princípio de todas as coisas.
d) Não se pode entrar duas vezes em um mesmo rio.
e) Na natureza, tudo é estático, imóvel. O paradoxo da tartaruga demonstra
a inexistência do movimento, da transformação na natureza.
3) Sobre a concepção ontológica de apeíron de Anaximandro, é correto afirmar
o seguinte:
a) Trata-se de algo finito, finitude essa que geraria novos seres finitos.
b) Trata-se de algo com contornos bem precisos que permitem distinguir
bem todas as coisas e, também, gerar outras coisas com contornos bem
definidos.

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84 © Metafísica I

c) Trata-se de algo quantitativamente finito.


d) Trata-se de algo qualitativamente definido.
e) Trata-se de uma massa generativa de tudo o que existe, a qual contém
em si os elementos contrários, que, a partir dele, se dissociam por um
processo continuado.
4) Qual é a importância da segunda navegação de Platão para a Metafísica?
a) A segunda navegação introduz, pela primeira vez, uma concepção dua-
lista na Metafísica.
b) A segunda navegação constitui os fundamentos da Ontologia platônica.
c) A segunda navegação renuncia ao dualismo na Metafísica.
d) A segunda navegação aponta para um panteísmo dinâmico.
e) A segunda navegação aponta para um panteísmo estático.
5) O texto de Aristóteles que tem como principal objeto de estudo o ser en-
quanto ser é:
a) Física.
b) Ontológicas.
c) Ser e tempo.
d) Metafísica.
e) A lógica do ser.
6) Assinale a alternativa correta segundo Aristóteles:
a) Por substância, pode ser entendida apenas a forma.
b) Por substância, pode ser entendido apenas o composto de forma e ma-
téria.
c) Por substância, pode ser entendida apenas a matéria.
d) Por substância, podem ser entendidos a forma, a matéria e o composto
de forma e matéria.
e) Por substância, podem ser entendidos apenas o composto de forma e
matéria e a matéria.
7) São causas da teoria das quatro causas de Aristóteles:
a) Causa formal, causa material, causa eficiente e causa final.
b) Causa causada, causa incausada, causa divina e causa física.
c) Causa lógica, causa teleológica, causa causada e causa incausada.
d) Causa teleológica, causa física, causa material e causa formal.
e) Causa eficiente, causa final, causa incausada e causa causada.
8) O ser, em Aristóteles, possui diversos sentidos, ou, como nos diz o filósofo na
Metafísica, "o ser é dito de múltiplos modos". Quais dos sentidos seguintes
são próprios dos modos de dizer o ser?
a) Verdade ou falsidade; ato e potência.
b) Vivo ou não vivo; eficiente ou não eficiente.
c) Claro ou escuro; novo ou velho.
d) Formal ou material; final ou eficiente.
e) Em si ou acidental; novo ou velho.
© U1 - Metafísica na Antiguidade 85

9) Sobre o ato e a potência em Aristóteles, assinale a alternativa correta:


a) O ato corresponde ao não ser; a potência, ao ser.
b) O ato é associado à matéria; a potência, à forma.
c) A potência estende-se tão somente à categoria de relação, jamais às ou-
tras categorias.
d) Aristóteles nega a existência da potencialidade, afirmando a existência
apenas da atualidade das coisas.
e) Um dos modos de dizer o ser em Aristóteles é segundo a potência e o
ato.
10) Uma das formas de compreender a substância (ousia) na Metafísica, de Aris-
tóteles, é enquanto sínolo (synolon). O que significa o sínolo na Metafísica?
a) Composto de matéria e forma.
b) A causa final.
c) A causa eficiente.
d) A causa primeira.
e) Composto de ato e potência.

Gabarito
Confira, a seguir, as respostas corretas para as questões au-
toavaliativas propostas:
1) c.
2) d.
3) e.
4) a.
5) d.
6) d.
7) a.
8) a.
9) e.
10) a.

11. CONSIDERAÇÕES
Como você pôde acompanhar ao longo desta unidade, a
Metafísica, como forma de conhecimento, trata das questões mais
essenciais e, também, mais abstratas da Filosofia desde os primór-
dios do pensamento filosófico. Além disso, aqui, você pôde apren-
der a definição do termo e do campo de atuação do pensamento
dito "metafísico".

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86 © Metafísica I

Dentro de suas peculiaridades, esta unidade abordou a Me-


tafísica em seu surgimento, a sua relação com o pensamento on-
tológico e o seu desenvolvimento nas doutrinas de Platão e Aris-
tóteles, que são considerados os dois grandes pensadores que
representam a maturidade do pensamento grego, principalmente
no que se refere a esse tipo de investigação específica que é a Me-
tafísica. Acompanhou, também, o desenvolvimento e o tratamen-
to da Metafísica em Plotino, que é o autor mais importante para
nossa reflexão no período helênico.
Na próxima unidade, você verá as características peculiares que a
Metafísica adquirirá com os pensadores cristãos no período medieval.

12. E-REFERÊNCIAS

Lista de figuras
Figura 1 Platão e Aristóteles. Disponível em: <http://www.consciencia.org/bancodeimagens/
displayimage-476.html>. Acesso em: 9 nov. 2010.
Figura 2 Davi. Disponível em: <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/d/d5/
David_von_Michelangelo.jpg>. Acesso em: 9 nov. 2010.

13. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


ARISTÓTELES. Metafísica. Ensaio introdutório, texto grego com tradução e comentário de
Giovanni Reale. Tradução de Marcelo Perine. São Paulo: Loyola, 2002. V.I.
______. Metafísica. Tradução, textos adicionais e notas de: Edison Bani. Bauru: Edipro,
2006. (Clássicos Edipro).
BURNET, J. A aurora da filosofia grega. Rio de Janeiro: Contaponto, 2006.
PLATÃO. A república [Título original: Politéia]. Tradução de Anna Lia Amaral de Almeida
Prado. Revisão Técnica de Roberto Bolzani Filho. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
______. Diálogos o banquete fedon sofista político. Tradução de Jose Cavalcante de
Souza. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
PLOTINO. Tratados das Enéadas. São Paulo: Polar, 2007.
REALE, G. História da filosofia antiga: Platão e Aristóteles. Tradução de Henrique Claudio
de Lima Vaz. São Paulo: Loyola, 1994. V.2.
EAD
Metafísica Medieval

2
1. OBJETIVOS
• Compreender de que forma o cristianismo deixa de ser
entendido como um fato histórico para se tornar um fe-
nômeno metafísico.
• Entender a relação que, na medievalidade, as teses meta-
físicas têm com o cristianismo.
• Conhecer as principais teses metafísicas no período patrístico.
• Relacionar a questão dos universais e das provas sobre a
existência de Deus durante a Idade Média.

2. CONTEÚDOS
• Cristianismo: de um fato histórico a um fenômeno metafísi-
co (Pseudo-Dionísio, Santo Agostinho, Boécio e Orígenes).
• Dialética medieval (Santo Anselmo, escola de Chartres e
Abelardo).
88 © Metafísica I

• Tomás de Aquino e aristotelismo de Averróis e Avicena.


• Duns Scot e William de Occam.

3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE


Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que
você leia as orientações a seguir:
1) Para aprofundar suas pesquisas, não deixe de ler as
obras indicadas no Tópico Referências Bibliográficas, es-
pecialmente as de Étiene Gilson: O espírito da Filosofia
Medieval e A Filosofia na Idade Média.
2) Há vários vídeos interessantes sobre Santo Tomás de
Aquino com os quais você pode ter contato para conhe-
cer mais o assunto de que trataremos nesta unidade.
Uma sugestão é acessar um site de busca para encontrá-
los. Aproveite a oportunidade e não deixe de assistir aos
vídeos do Professor Sidney Silveira a respeito do tema.
3) No estudo do CRC História da Filosofia Medieval, você
pôde conhecer um pouco sobre o problema do mal e a
questão do tempo na visão de Agostinho, além de outras
questões da Filosofia Medieval. Retomar o estudo deste
CRC pode auxiliar no seu estudo desta unidade.

4. INTRODUÇÃO À UNIDADE

Figura 1 A criação de Adão.


© U2 - Metafísica Medieval 89

As questões metafísicas ocuparam, durante a Idade Média,


um lugar extremamente privilegiado no contexto da Filosofia des-
se período. Os problemas do ser e do conhecimento, bem como os
das demonstrações ontológicas e dos universais, assumiram o pa-
pel central da reflexão de quase todos os pensadores dessa época.
Portanto, não é exagerado dizermos que, em torno de tais ques-
tões, girou e ganhou força toda a especulação filosófica medieval.
Todavia, diferentemente das questões metafísicas discutidas na
Antiguidade, que, como vimos, giravam em torno de problemas
ontológicos, na época medieval, devido à forte influência religiosa,
as questões metafísicas foram tratadas do ponto de vista religioso,
sob a vigilância constante da Teologia dominante. Nesse sentido, a
pintura de Michelangelo, intitulada A Criação de Adão (Figura 1),
pode representar bem essa tendência, presente no medievo de
domínio da fé sobre a razão.
Por outro lado, vale notar que a influência grega no discurso
da Filosofia Medieval permaneceu quase intacta. Assim, por exem-
plo, a cisão metafísica entre o sensível e o ideal, introduzida por
Platão, dominou por completo as especulações medievais, prin-
cipalmente no primeiro período da Filosofia Medieval (o período
da patrística), as quais eram expressas em termos de cisão entre o
mundo terrestre e o mundo celeste, humano e divino etc.
Essa dualidade dos mundos é, aliás, o traço marcante de
toda a Teologia cristã. Se analisarmos etimologicamente a palavra
"religião", podemos observar que ela expressa justamente essa
ação de se ligar novamente (religar) a Deus, onde, conforme os
postulados cristãos, era o lugar do homem antes do pecado origi-
nal. Nesse sentido, podemos dizer que a Metafísica cristã é, essen-
cialmente, Teologia, e, nela, certamente, repercutem os ecos da
Ontoteologia antiga. De acordo com Gilson (2006, p. 1):
A filosofia só aparece na história do cristianismo no momento em
que certos cristãos tomam posição em relação a ela, seja para con-
dená-la, seja para absorvê-la na nova religião, seja para utilizá-la
em função da apologética cristã.

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90 © Metafísica I

Em seus passos iniciais, o cristianismo ainda não possuía


fundamentos teóricos, e, para encontrá-los, ele se inspirou nos re-
sultados teóricos alcançados pela Filosofia Grega. Assim, podemos
imaginar que a Filosofia Medieval e as suas especulações metafísi-
cas surgiram como produto de uma mistura formidável dos textos
sagrados, que forneciam a matéria, e da forma de tratar tais textos
por meio do arcabouço teórico da Filosofia Grega. Trata-se, grosso
modo, de um processo de assimilação do pensamento filosófico
grego no solo fértil do cristianismo, assimilação essa que não só
produziu a Filosofia Medieval, mas que também deu os fundamen-
tos de toda a cultura ocidental.
Inicialmente, a Filosofia representou apenas um meio ou um
auxílio para se decifrarem os mistérios da revelação. Todavia, aos
poucos, ela assumiu, cada vez com mais força, o papel de prota-
gonista nas especulações metafísicas dos pensadores medievais.
Assim, por exemplo, a relação entre a fé e a razão, ou seja, entre a
Teologia e a Filosofia, conforme o seu desenvolvimento durante a
Idade Média, foi transformando-se. A fé, a princípio, assumiu uma
preponderância significativa sobre a razão, expressa na fórmula
"creio para entender". É o que, por exemplo, Agostinho (1999, p.
43) ressalta ao especular sobre essa relação:
Todo o homem quer entender; não existe ninguém que não o quei-
ra. Mas nem todos querem crer. Diz-me então alguém: "Entenda
eu e acreditarei." Respondo-lhe: "Crê e entenderás." [...] Aquele su-
posto adversário [...] não emite palavras vazias de sentido quando
diz: "Entenda eu e acreditarei". [...] De certo modo é verdade o que
ele diz. Mas também o é quando eu digo, com o profeta: "antes crê
para entenderes".

Esse trecho mostra-nos, claramente, o predomínio da fé so-


bre a razão. Nesse sentido, a compreensão só pode advir se o co-
nhecimento for sustentado pela fé. A razão, deixada a si mesma,
sem o apoio da fé, não é capaz de ascender às verdades eternas e
de descobri-las por si mesma. Somente a fé torna possível aquele
processo de elevação a tais verdades que Agostinho chama de ilu-
minação. Se, para Platão, era a dialética o guia precioso capaz de
© U2 - Metafísica Medieval 91

elevar o homem, o filósofo, às ideias, ou seja, às verdades eternas,


para Agostinho, não é a dialética, mas a devoção e a fé as respon-
sáveis por isso.
Aos poucos, essa dependência da razão em relação à fé vai
se desfazendo. Na época da escolástica, a razão tem cada vez mais
importância, independência e campo de atuação. Para Tomás de
Aquino, por exemplo, a razão e a fé encontram-se em equilíbrio,
o qual deriva das diferentes áreas de atuação que a Filosofia e a
Teologia possuem. Afinal, a Teologia ocupa-se dos mistérios e da
salvação humana, ao passo que a Filosofia ocupa-se da natureza
e das suas relações causais. Chega o momento em que a razão
começa a ter preponderância sobre a fé. Essa posição é atestada
claramente pela escola de Chartres e Pedro Abelardo. Para ambos,
a fórmula inicial do cristianismo, expressa em termos de predomí-
nio da fé sobre a razão, inverte-se por completo. Agora, não é mais
válido "creio para entender", mas "entendo para crer". De acordo
com isso, o ideal de Abelardo era o cristão capaz de apontar, racio-
nalmente, as razões da sua fé. Essa tendência racionalista ganha
cada vez mais força, chegando ao ponto de, com William de Oc-
cam, ocorrer a separação definitiva entre a investigação racional e
a fé religiosa.
Antes de adentrarmos o conteúdo metafísico da Filosofia
Medieval, é importante traçarmos algumas diferenças existentes
entre o estilo da especulação dos pensadores antigos e medie-
vais.
O estilo grego procura descobrir a verdade das coisas e do
mundo; é uma investigação sobre o ser, sobre a natureza e sobre o
homem. Já o estilo medieval parte da ideia de que a verdade toda
já foi revelada por Deus nos textos sagrados, e, portanto, o papel
da Filosofia restringe-se não a buscar, mas a decifrar os códigos
divinos, por meio dos quais a verdade foi revelada. Nesse sentido,
a Filosofia Medieval resume-se na exegese dos textos sagrados.
O que o filósofo cristão se pergunta é simplesmente se, entre as
proposições que ele crê verdadeiras, não há um certo número que

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92 © Metafísica I

sua razão poderia saber verdadeiras. Enquanto funda suas asser-


ções na convicção íntima que sua fé lhe confere, o crente continua
sendo um simples crente e ainda não ingressou no domínio da filo-
sofia; mas, assim que encontra entre as suas crenças verdades que
podem se tornar objetos de ciência, ele se torna filósofo, e, se é à
fé cristã que ele deve essas novas luzes filosóficas, ele se torna um
filósofo cristão (GILSON, 2006, p. 44).

Essa visão de mundo extremamente tradicionalista suspeita


e encara com desconfiança qualquer novidade, pois, se a verdade
toda foi revelada por Deus, então, o novo seria um desvio do cami-
nho real. Com isso, basicamente, explica-se a política perseguidora
e inquisitória que vigorava na época medieval. Todavia, apesar de
ser aprisionada nos postulados iniciais da fé religiosa, a Filosofia
Medieval mostra-se infinitamente rica em ideias e em detalhes
que provêm do seu caráter exegético. Justamente por esse caráter
exegético, não se encontra na Filosofia Medieval uma preocupa-
ção acentuada com a autoria dos textos filosóficos. Ao contrário
dos pensadores gregos, de acordo com as virtudes cristãs, o filó-
sofo medieval é penetrado por um espírito humilde; ele é apenas
um tradutor das verdades divinas, as quais, por sua vez, não se
encontram no nível do físico e, sim, no metafísico.
Desse modo, nesta unidade, você terá a oportunidade de se
familiarizar com as principais questões da Metafísica medieval, com
base nos pensadores mais importantes desse período da Filosofia.
Compreenderá, ainda, a importância das especulações em torno da
existência de Deus, da estrutura do ser e do conhecimento.

5. CRISTIANISMO: DE FATO HISTÓRICO A FENÔME-


NO METAFÍSICO
Uma das primeiras dificuldades diante das especulações
cristãs surge em torno do seguinte problema: como é possível a
associação da sabedoria pagã às normas e ao estilo de vida da sa-
bedoria cristã? A solução desse problema, naturalmente, transfor-
ma o cristianismo de um fato concreto histórico, isto é, que surge
© U2 - Metafísica Medieval 93

no tempo a partir do personagem histórico de Jesus Cristo, em um


fenômeno universalmente válido e metafísico.
Sabendo disso, você deve estar se perguntando: como po-
demos pensar naqueles que viveram antes de Cristo do ponto de
vista cristão? Gilson (2006) menciona que, segundo Justino, o már-
tir, um dos primeiros apologetas, a localização puramente históri-
ca do cristianismo (após Cristo) torna impossível uma avaliação,
conforme seus próprios critérios, de tudo o que aconteceu antes
de Cristo. Como podemos, então, interroga-se Justino, avaliar tais
acontecimentos e pessoas do ponto de vista cristão? A resposta
de Justino, com base na qual se pretende fundamentar metafisica-
mente o cristianismo, consiste no seguinte: Cristo é o verbo divino
encarnado e, como todo gênero humano, é determinado pelo ver-
bo divino. A cada homem, portanto, é dada uma parte desse ver-
bo, mesmo antes de o verbo ter-se encarnado na pessoa de Cristo.
Eis o porquê de todos aqueles que viveram segundo o verbo terem
vivido conforme Cristo, sendo, portanto, cristãos. O contrário tam-
bém é válido, ou seja, aqueles que viveram contra o verbo divino
viveram contra Cristo.
Assim, o cristianismo assume a importância de horizonte de
toda a história e cultura da humanidade e das suas conquistas mais
significativas. Nesse sentido, é possível associarmos como cristãos
tanto Heráclito, cujas doutrinas sobre o logos foram, na verdade,
doutrinas sobre o verbo divino; como também Sócrates, que viveu
conforme o imperativo moral da verdade divina. Seguindo esse ra-
ciocínio, podemos concluir que tudo aquilo que precedeu Cristo,
mas estava de acordo com seus postulados, foi cristão.
Uma posição bastante semelhante à de Justino, porém, bem
mais radical, é a de Taciano. Segundo Gilson (2006), Taciano tenta
assimilar tudo o que não é cristão, mas compatível com os postu-
lados religiosos, ao cristianismo. De acordo com essa tendência
assimiladora, se o verbo é o horizonte absoluto do ser, então, as
verdades dos filósofos gregos nada mais são do que fragmentos

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94 © Metafísica I

da revelação divina. Mais ainda: Taciano convence-nos de que ne-


nhuma das conquistas intelectuais dos gregos é dos gregos: nem o
alfabeto, que roubaram dos fenícios, nem a geometria e a história,
que roubaram dos egípcios. Do mesmo modo, afirma Taciano, a
astronomia foi obra dos babilônios, e não dos gregos; nem mesmo
a Filosofia foi a originalidade deles, mas dos textos sagrados. Daí,
segundo Taciano, a Filosofia é absolutamente inútil para as ques-
tões existenciais dos homens.
Vemos, portanto, que tanto Justino, o mártir, quanto Tacia-
no já demonstravam a tendência assimiladora e universalizante do
cristianismo, transformando-o de fato histórico e cronológico em
um fenômeno metafísico.

Pseudo-Dionísio
Um dos primeiros grandes nomes da Metafísica medieval é
Pseudo-Dionísio. A sua importância dificilmente pode ser definida
em poucas palavras, pois as suas obras não apenas traçam os parâ-
metros da simbologia medieval, mas também definem o estilo da
mística europeia em geral.
Na reunião religiosa em Constantinopla, em 532, pela pri-
meira vez, foram apresentados alguns escritos que têm uma im-
portância fundamental para a formação da Teologia medieval eu-
ropeia; trata-se do assim chamado Corpus areopaguita. O autor
desses escritos foi considerado Pseudo-Dionísio, discípulo de São
Paulo, que viveu durante o século 1º d.C. Todavia, não se pode
atestar com certeza rigorosa quem realmente era o autor desse
corpus.
O Corpus areopaguita reúne quatro títulos (Dos nomes divi-
nos, Teologia mística, Da hierarquia celeste e Da hierarquia clerical)
e dez cartas, que, em pouco tempo, ganharam enorme populari-
dade. A questão sobre a autenticidade desses escritos coloca-se
seriamente apenas no século 17. O problema consiste no fato de
que os conteúdos dos tratados revelam uma clara influência do
© U2 - Metafísica Medieval 95

neoplatonismo tardio, o que, por sua vez, impossibilita que o autor


dessas obras seja Pseudo-Dionísio. As obras foram, provavelmen-
te, escritas no final do século 5º, e o seu verdadeiro autor perma-
nece desconhecido.
Das ideias de Pseudo-Dionísio, destacamos apenas aquelas
questões que, diretamente, se referem à sua Metafísica.
Uma das principais questões que ocupa a reflexão de Pseudo-
Dionísio, exposta em sua obra Dos nomes divinos, diz respeito aos
modos do conhecimento de Deus, que é vinculado, simultaneamen-
te, à sua denominação. Em outras palavras, o problema que envol-
ve o conhecimento de Deus é o dos nomes de Deus, uma vez que,
como criador de tudo, ele tem relação com tudo. Justamente por
isso, todos os nomes, de alguma maneira, são aplicáveis a ele. Caso
chamemos um ser de "vivo" ou uma ação de "justa", por exemplo,
então, com toda razão, podemos chamá-lo de "vivo" e "justo", por
ser ele o criador de tudo o que é vivo e justo. Nesse sentido, para
Pseudo-Dionísio, todos os nomes são aplicáveis a ele.
É claro que essa denominação toda pode ser graduada, na
medida em que nós o chamamos, literalmente, de "bem", "justo"
e "vida" e, metaforicamente, de "pedra", "ar" etc. Essa gradação,
que determina o meio pelo qual nós chamamos Deus, começa
com os nomes mais gerais, tais como: "bondade", "clareza", "be-
leza", "unidade" etc., os quais, imediatamente, definem a sua es-
sência, e, passando pelos termos médios, chega às qualificações
particulares. Essa é a via afirmativa ou catafática de conhecimento
de Deus.
Como princípio de todas as coisas, Deus é mais do que o
mundo criado. Como causa de todo ser, Deus não é o ser, mas o
não ser, no sentido de algo que está além do ser, absolutamente
transcendente à sua criação. E, se esse for o caso, então, todas as
denominações que se aplicam a ele a partir da nossa linguagem
humana e, portanto, criada são impotentes e incapazes de deno-
miná-lo. Se Deus é além do ser, então, é melhor chamá-lo de não

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96 © Metafísica I

ser; se ele é o princípio de toda beleza, é mais próprio chamá-lo de


não beleza. Em outras palavras, é mais sensato, ao referimo-nos
a Deus, chamá-lo de "não é" do que afirmarmos algo sobre ele,
atribuindo-lhe, assim, características da criação. Essa via de conhe-
cimento de Deus é conhecida como a via negativa, ou apofática.
Segundo Gilson (2006) a via negativa parece, a Pseudo-Dionísio ,
mais apropriada do que a afirmativa, na medida em que se exclui
qualquer margem de confusão que uma linguagem criada pode
induzir.
Segundo Pseudo-Dionísio, a via mais apropriada para o co-
nhecimento de Deus é a via superlativa, que expressa a união entre
a afirmativa e a negativa. Conforme essa via, não podemos chamar
Deus de ser nem de não ser, mas de ser superior; não podemos
chamá-lo de vida nem de não vida, mas de vida superior. Nessa
via superlativa da Teologia, é possível alcançar mais diretamente o
conhecimento de Deus.
De acordo com Gilson (2006), como criador do simbolismo
medieval, para Pseudo-Dionísio, qualquer ente do mundo criado
não passa de revelação divina, isto é, de teofanias, reflexos da cla-
reza exuberante de Deus. A revelação de Deus acontece por meio
de uma hierarquia rigorosamente estabelecida conforme o status
ontológico de cada ser. A doutrina da hierarquia representa o núcleo
principal da sua doutrina metafísica. De acordo com o princípio da
hierarquia concebido pelo teólogo, toda hierarquia é determinada
por dois aspectos, a saber: lugar e função. Conforme esse princípio,
toda realidade possui um lugar determinado na gradação do ser. Ao
mesmo tempo, toda realidade tem uma função determinada no uni-
verso, que é a de receber luz da realidade superior e passá-la para a
realidade inferior. Ela conserva seu status, ser e valor, na medida em
que cumpre rigorosamente essa função sem qualquer desvio.
A hierarquia é constituída por três camadas, diferenciadas
em: lugar, intensidade e valor. A superior é a celeste, representa-
da por anjos, arcanjos etc. Em seguida, temos a hierarquia clerical
© U2 - Metafísica Medieval 97

e, por fim, a hierarquia do mundo, incluindo os seres racionais, os


orgânicos e os inorgânicos.
A estrutura hierárquica é imutável. A tendência de qualquer
ser de mudar de lugar, para cima ou para baixo, configura o peca-
do. É justamente essa transgressão que o teólogo interpreta como
o mal. Desse ponto de vista, o problema do mal é resolvido de
maneira metafísica. O bem é a norma do ser; pode-se chamar de
bom tudo o que corresponde ao seu devido lugar da hierarquia.
O mal, ao contrário, é tudo o que não corresponde ao seu devido
lugar na hierarquia.
Com essa posição sobre o bem e o mal, fica claro que a luta
se trava não tanto entre o homem bom e o homem mau, não entre
o bom povo e o mau povo, mas, estritamente, dentro do homem.
Portanto, não são as revoluções, mas é a perfeição moral que pode
salvar o homem. E a perfeição moral é uma norma ontológica.
O caráter estático da hierarquia é, simultaneamente, o ca-
ráter estático das substâncias. Isso quer dizer que não é possível
a passagem por substâncias, a qual seria uma espécie de suicídio
metafísico. As realidades são ordenadas em uma hierarquia rigo-
rosa, mas cada uma possui finalidade e destino, ou seja, um telos
próprio, o qual tende à união com Deus. Todavia, não se trata de
uma unificação substancial entre o finito e o infinito, não se trata,
como é no neoplatonismo, da dissolução da substância individual
no princípio, mas, sim, de uma união erótica em que os apaixona-
dos se contemplam cara a cara. Assim, Pseudo-Dionísio enfatiza
a transcendência entre o criador e as criaturas, pois o panteísmo
neoplatônico é totalmente incompatível com os postulados da re-
ligião cristã, uma vez que dissolve a diferença entre sensível e su-
prassensível.
A religião só se mantém intacta caso haja clara cisão entre o
homem e Deus, entre o físico e o celeste. Apenas assim a religião,
como um processo de religar, cumpre a sua função. Por outro lado,
fica claro que a união com Deus à qual Pseudo-Dionísio se refere

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98 © Metafísica I

não pode ser um processo intelectual ou moral, afinal, requere-se


outro tipo de ato capaz de superar o abismo entre o criador e a
criatura. Esse ato consiste, segundo o teólogo, no êxtase, ato em
que o indivíduo abandona a si mesmo para se unir a Deus, ou me-
lhor, para estar diante dele.
Essas reflexões de Pseudo-Dionísio entram profundamente
na Teologia meditativa do século 12, especificamente nos escritos
dos místicos e nas construções dialéticas do platonismo renascen-
tista de Nicolau de Cusa e de Marsílio Ficino.
Passaremos, agora, ao estudo das posições metafísicas da-
quele que é considerado o mestre do ocidente. Trata-se de Santo
Agostinho.

6. PROBLEMAS METAFÍSICOS NA OBRA DE SANTO


AGOSTINHO
Sem dúvida alguma, o principal pensador da época da patrís-
tica e, em geral, do âmbito de toda a especulação medieval é Agos-
tinho. Talvez ele seja o mais importante pensador no processo de
assimilação da Filosofia Grega pelo cristianismo. Na sua doutrina,
sem dificuldade, podemos reconhecer os pilares do platonismo,
tais como: a clara cisão metafísica, a que Agostinho adere sem re-
servas; a doutrina das ideias; e os argumentos da imortalidade da
alma, que constituem um dos principais postulados cristãos refe-
rentes à salvação humana. Mesmo assim, a Filosofia de Agostinho
não deve ser pensada como simples retomada do platonismo. A
sua concepção sobre o tempo revela, inequivocamente, a dimen-
são do seu gênio filosófico. São dois os temas que, segundo Agos-
tinho (1999), podem resumir as suas buscas espirituais: Deus e a
alma humana.
Segundo Gilson (2006, p. 145): "Toda a parte filosófica da obra
de Agostinho exprime o esforço de uma fé cristã que procura levar o
mais longe possível a inteligência de seu próprio conteúdo [...]".
© U2 - Metafísica Medieval 99

O raciocínio filosófico, para Agostinho, é uma etapa absolu-


tamente indispensável e um instrumento poderoso para a salvação
humana. A razão, afirma o filósofo (1999), é uma graça divina, e
nós somos obrigados, como ensina a fábula dos talentos no Evan-
gelho de Mateus (25, 14-29), a ampliá-la. Não existe um meio me-
lhor de ampliação da razão do que a Filosofia. Além disso, segundo
ele, somente a Filosofia é capaz de nos conduzir à felicidade.
Segundo Agostinho (1999), todos os homens desejam ser fe-
lizes; todavia, não é feliz aquele que não possui aquilo que deseja.
Mais ainda, por si mesmo, o próprio ato de possuir, argumenta o
filósofo, também não traz felicidade, seja porque o objeto de pos-
se não é capaz de dar felicidade, seja porque ele é perecível, e o
medo da sua perda amarga nossa felicidade.
O pressuposto absolutamente necessário para o alcance da
felicidade é o conhecimento. A felicidade é o objeto do nosso de-
sejo, e o conhecimento é o meio para sua aquisição. Não se pode
pensar em nenhuma felicidade em que o espírito não conduza a
alma a um objeto permanente e imutável. Em outras palavras, não
existe felicidade sem o conhecimento de Deus. Portanto, a felici-
dade é, necessariamente, vinculada ao conhecimento; caso ela es-
teja no alcance de Deus, então, não se pode alcançá-la sem, antes,
tê-lo conhecido. Todavia, o conhecimento puro garante apenas um
alcance parcial de Deus; por sua natureza, ele não garante a felici-
dade. O objetivo da vida humana, dessa maneira, não se resume
no conhecimento de Deus, mas na plena unificação com ele. Jus-
tamente por isso, a Filosofia, apesar de ser indispensável nesse
caminho, não pode ser a condutora. Ela deve ser pautada na fé, e
esta deve conduzir o homem à verdadeira felicidade.
O que Agostinho nos atesta por meio desses raciocínios é o
anseio metafísico de felicidade, uma vez que a verdadeira felicida-
de é um estado permanente e eterno que só se pode alcançar no
além-físico, em que reside a verdadeira razão de toda felicidade.
Nessa tendência eudemonista, a Filosofia toma o papel de prota-

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100 © Metafísica I

gonista ao revelar a dimensão metafísica da felicidade humana. Se


o conhecimento de Deus fosse o pressuposto fundamental para a
felicidade humana, então, evidentemente, deveriam ser demons-
tradas a possibilidade de tal conhecimento e, antes, a possibilida-
de do conhecimento e da verdade. Não se pode dizer que, para
Agostinho, a felicidade humana consiste apenas na busca eterna e
infinita da verdade, e não na sua aquisição.
Que a verdade pode ser encontrada, segundo o filósofo
(1999), isso nem os céticos mais radicais podem negar. Quem po-
deria negar as verdades lógicas, como, por exemplo, o princípio da
não contradição? – pergunta Agostinho (1999). Incontestáveis são,
também, as verdades da Matemática. Que sete mais três é igual a
dez (7+3=10) nenhum sofista pode rejeitar. Aliás, mesmo as verda-
des sensíveis são consistentes. Quando, por exemplo, uma vara se
encontra imersa na água e ela parece quebrada, podemos afirmar
verdadeiramente: "essa vara parece quebrada". Podemos encon-
trar o argumento decisivo de Agostinho em duas passagens:
Pois, se me engano, existo. Quem não existe não pode enganar-se;
por isso, se me engano, existo. Logo, quando é certo que existo, se
me engano? Embora me engane, sou eu que me engano e, portan-
to, no que conheço que existo, não me engano. Segue-se também
que, no que conheço que me conheço, não me engano. Como co-
nheço que existo, assim conheço que conheço (A Cidade De Deus,
2001, II, XI, XXVI).
Quem, porém, pode duvidar que a alma vive, recorda, entende,
quer, pensa, sabe e julga? Pois, mesmo se duvida, vive; se duvida
lembra-se do motivo de sua dúvida; se duvida, entende que duvida;
se duvida, quer estar certo; se duvida, pensa; se duvida, sabe que
não sabe; se duvida, julga que não deve consentir temerariamente.
Ainda que duvide de outras coisas não deve duvidar que duvida.
Visto que se não existisse, seria impossível duvidar de alguma coisa
(A Trindade, 1995, X, 10, 14).

O postulado Se falor sum (Se me engano, existo) anuncia,


inequivocamente, a descoberta da subjetividade. Uma descoberta
que, muitos séculos depois, é retomada por Descartes para se pos-
tular aquela substância pensante (res cogitans) que marca, profun-
damente, toda a Filosofia Europeia. Certamente, entre Agostinho
© U2 - Metafísica Medieval 101

e Descartes, podemos observar uma semelhança bastante curiosa:


a demonstração da própria existência, em ambos os casos, obede-
ce à mesma lógica. Todavia, há uma diferença fundamental entre
ambos. Para Descartes, o "eu sou" significa eu sou como coisa que
pensa, ou seja, como substância pensante. No caso de Agostinho,
o "eu sou" significa que eu sou como criatura de Deus.
Podemos perceber claramente que a existência do eu como
criatura de Deus se funda na certeza de que Deus existe. Conforme
Agostinho (2001), a existência de Deus não necessita de demons-
trações racionais, uma vez que ela é o postulado inicial da fé. Por
outro lado, não se pode duvidar da fé, visto que ela possui um
sentido constitutivo para a vida humana. Ainda mais, cada ação
sensata do homem pressupõe, necessariamente, um ato de fé. O
camponês, por exemplo, crê que as sementes plantadas por ele
na terra darão frutos. O viajante, por sua vez, crê que o condutor
do veleiro o levará ao desejado destino. Até o cético acredita na
validade geral dos princípios lógicos. Portanto, podemos simples-
mente confiar nos textos sagrados; todavia, Deus deu-nos a razão
e temos, desse modo, o direito de tentar demonstrar a sua exis-
tência.
Esse raciocínio mostra que, com a prova da existência do su-
jeito, já se abre a possibilidade metafísica de se demonstrar a exis-
tência de Deus. Agostinho é o primeiro filósofo na era cristã a ela-
borar demonstrações consistentes para demonstrar a existência de
Deus. A partir daí, quase todos os teólogos posteriores especulam
sobre as provas ontológicas da existência de Deus. Portanto, essas
demonstrações configuram uma das peculiaridades especulativas
da Metafísica medieval.
Agostinho (1999) concebe duas vias para demonstrar a exis-
tência de Deus, a saber: via a posteriori e via a priori. A primeira
toma como referência o mundo criado e busca, nele, indícios para
o seu criador. Desse modo, a partir do mundo criado, pode-se ob-
servar que, no mundo, existe uma ordem e uma regularidade per-

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102 © Metafísica I

feitas, como, por exemplo, que o dia se troca pela noite; que, de-
pois do inverno, surge a primavera; e assim por diante. Tais ordem
e regularidade, evidentemente, não podem ser produtos do acaso;
pelo contrário, deve haver uma causa que as sustenta. Quem será,
senão Deus, essa causa absoluta? Com a prova a posteriori, Agosti-
nho mostra que toda ordem e regularidade no universo deve, logi-
camente, possuir sua causa que a engendra. Essa causa é chamada
por Agostinho de Deus.
Todavia, a demonstração a posteriori contém algo proble-
mático, pois, querendo provar o ser perfeito de Deus, parte-se
do mundo criado, em que reina a contingência. Felizmente, para
Agostinho, o homem dispõe de uma via mais imediata e consisten-
te: o conteúdo da alma humana. No conteúdo da alma, é possível
descobrir a presença de verdades universais e absolutamente váli-
das (lógica e matemática).
Diante disso, você deve estar se perguntando: quem as pôs
lá? Qual é a origem delas? Essas verdades não podem derivar do
mundo sensível, sendo este imerso na mutabilidade. Elas não pro-
vêm, também, do nosso pensamento, uma vez que ele é subjetivo
e individual; portanto, incapaz de atribuir-lhes um caráter absoluto
e universal. Resta a única alternativa: tais verdades são deposita-
das por Deus na nossa alma. Desse modo, ele existe.
Outro aspecto importante da Metafísica de Agostinho apre-
senta a sua doutrina ontognosiológica, de acordo com a qual cabe
às ideias o papel tanto de critério de verdades como de modelo de
coisas existentes. Com isso, Agostinho retoma, quase em porme-
nores, a antiga teoria das ideias de Platão, porém, adequando-a ao
caráter peculiar do cristianismo. Isso você estudará em pormeno-
res no tópico a seguir.

Doutrina das ideias na interpretação agostiniana – exemplarismo


Segundo Agostinho (1999), a retidão do nosso pensamento
é garantida pela possibilidade de comensurabilidade com paradig-
© U2 - Metafísica Medieval 103

mas eternos e absolutos que se encontram na nossa alma como


critérios, porém, ontologicamente transcendentes a ela. Assim,
surge a questão: se tais paradigmas que orientam o nosso pensa-
mento não são produzidos pela alma, apesar de ela poder acessá-
los, mas encontram-se para além dela, qual é, então, o seu lugar?
A resposta de Agostinho é que esses paradigmas são as ideias e
encontram-se no intelecto de Deus. Nós os encontramos no con-
teúdo da nossa alma, pois Deus depositou-os lá.
Essa doutrina das ideias é conhecida como exemplarismo
e, de acordo com ela, as ideias não são apenas critérios do pen-
samento legítimo, mas são, também, modelos de coisas existen-
tes. Um ato do pensamento enuncia-se como verdadeiro porque
é comensurável com a ideia da verdade contida no intelecto de
Deus.
As ideias, assim entendidas, representam aquele plano ra-
cional de acordo com o qual Deus criou o mundo. Diferentemente
do platonismo, em que as ideias são subordinadas, o exemplaris-
mo estabelece que as ideias são idênticas à essência de Deus, isto
é, elas são o plano racional conforme o qual Deus criou o mun-
do. Dito de outra maneira, as ideias são os pensamentos de Deus.
Dessa maneira, Agostinho consegue adequar a teoria das ideias
de Platão aos postulados da religião cristã e, com isso, realizar a
síntese entre a Filosofia Pagã e o cristianismo.

Teoria da iluminação
O exemplarismo apresenta uma tentativa de fundamentar
o conhecimento sobre o mundo. Como todo conhecimento ver-
dadeiro pressupõe um objeto eterno e imutável, pois não se co-
nhece aquilo que se transforma ou que nunca é, então, a partir do
exemplarismo, essa condição é preenchida. Desse ponto de vista,
nós conhecemos as coisas no seu ser verdadeiro, isto é, em suas
ideias.

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104 © Metafísica I

Todavia, como é possível, pergunta Agostinho (1999), que o in-


telecto humano, sendo finito e mortal, alcance o ser eterno e infinito
de Deus? Cabe a uma criatura terrestre acessar as verdades eternas?
Evidentemente, por si mesmo, o intelecto humano não é capaz de tal
conhecimento; por isso, ele deve ser elevado e iluminado (Figura 2).
Assim como a visão é impossível sem a luz, do mesmo modo, se Deus
não iluminar o intelecto humano, ele não é capaz de obter o conheci-
mento verdadeiro. Esse ato de iluminação ocorre somente por meio
da fé. Justamente por isso, para Agostinho (1999), a fé é o pressuposto
absolutamente necessário para o conhecimento.
A fórmula "creio para entender"
revela justamente esse processo em
que a alma humana, sendo iluminada
pela fé, descobre a luz, os verdadeiros
paradigmas. Nesse ponto, Agostinho
substitui a dialética platônica como
meio de acessar as verdades eternas
pela fé, o que mostra, mais uma vez,
a assimilação das sementes do pensa-
mento grego pelo solo fértil da religião
Figura 2 Santo Agostinho – teoria
cristã. da iluminação.
Outro ponto importante da doutrina metafísica de Agosti-
nho é a questão da criação do mundo. No tópico a seguir, convida-
mos você a uma reflexão sobre a importância dessa nova forma de
compreender a origem do univreso.

Criação do mundo – ex nihilo


Se, até aqui, Agostinho segue fielmente não apenas os fun-
damentos do platonismo referentes à cosmologia, como também
as questões pertinentes a ela, entre as quais se destaca a questão
da criação, agora, ele vai propor uma solução nova e original. A
teoria da criação de Agostinho revela a profunda diferença entre o
cristianismo e a Filosofia Pagã.
© U2 - Metafísica Medieval 105

A Filosofia Grega, mais geralmente dita, oferece duas concep-


ções da criação, a saber: a do platonismo e a do neoplatonismo.
A representação platônica da criação do mundo é ligada à
teoria do demiurgo, de acordo com a qual o mundo é plasmado
pela matéria amorfa (desde sempre existente), conforme as ideias
contempladas pelo demiurgo. Nesse caso, admitem-se três princí-
pios: o demiurgo, a matéria e as ideias.
O neoplatonismo, por sua vez, introduz o princípio da ema-
nação, segundo o qual o uno emana e constitui sua exuberância de
ser (as outras estruturas ontológicas).
Mas nem uma nem outra dessas representações é compatí-
vel com a cosmologia cristã, pois, se, por um lado, Deus atribuísse
forma à matéria desde sempre existente (como é no caso de de-
miurgo), então, iria se tratar do estabelecimento de dois princípios
equivalentes, o que, por sua vez, significaria a limitação da oni-
potência divina. Por outro lado, a concepção da emanação intro-
duz alguma necessidade à qual Deus tem de se submeter, afinal, a
emanação da plenitude divina acontece por necessidade, embora
essa ideia implique uma identidade substancial entre o criador e a
criatura (o mundo criado é a mesma substância divina).
A cosmologia cristã contrapõe às antigas representações da
criação o processo de criação ex nihilo. Isso significa que Deus cria
o mundo espontaneamente, por vontade livre, e que nenhuma ne-
cessidade o obriga a fazer isso. Nesse sentido, o Deus cristão é um
criador persona; é justamente por isso que ele é capaz de criar. O
antigo cosmos é criado por necessidade, e o universo cristão, por
liberdade. A ideia de uma criação livre do mundo torna, por si só,
insensata a pergunta: por que Deus criou o mundo? O ato livre é a
única resposta que não envolve outras razões.
Todavia, se o mundo é criado do nada, então, a matéria não
é uma realidade desde sempre existente, mas criada. Isso significa
que ela não é ausência de ser, como afirmam algumas definições
antigas, mas algo existente e, portanto, bom. Porém, todo bem

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106 © Metafísica I

deriva da forma, mas a matéria pura é ausência da forma. Agos-


tinho (1999) resolve essa dificuldade a partir da hipótese de que
Deus cria a matéria com toda a riqueza de formas; portanto, o ato
da criação coincide com ato da formação do mundo. Essa visão
apoia-se nos textos sagrados, conforme os quais Deus criou tudo
por medida, número e peso.
Diante disso, você deve estar se perguntando: se Deus cria,
em um único ato, a matéria com as formas contidas nela, como é
possível explicar o nascimento de novos seres todo dia? A resposta
de Agostinho (1999) é: Deus cria todas as formas de uma só vez,
mas como razões seminais. A matéria é, por assim dizer, desde o
início, plantada com tais sementes. Cada semente tem seu tempo
e código de desenvolvimento no decorrer da história. Isso fez que
Agostinho fizesse uma das mais impressionantes análises filosófi-
cas sobre o tempo, tema de nosso próximo tópico. Acompanhe!

Questão do tempo
A solução da questão do tempo e, vinculado a ela, o proble-
ma da história mundial garantem a Agostinho um lugar perpétuo
no templo da especulação filosófica. A originalidade com a qual
são tratadas tais questões enuncia uma nova concepção do tempo
e da história, da qual a Filosofia posterior vai se alimentar.
A compreensão da concepção de tempo exposta por Agos-
tinho (1999) requer a consideração de dois aspectos principais
intimamente ligados: a ideia cosmológica da criação do nada e a
retomada do dualismo platônico. Vale observar que, na Antigui-
dade, não se nota uma concepção consistente de tempo nem de
história. A concepção de tempo predominante na Antiguidade não
oferece parâmetros para uma análise escatológica. Com efeito, o
tempo é eterno, e a sua imagem é a circularidade. Essa circularida-
de despoja de sentido e objetivo toda a história. O tempo é pen-
sado, sobretudo, como uma arena de acontecimentos e eventos
históricos que acontecem e se sucedem sem alguma razão, apenas
© U2 - Metafísica Medieval 107

acontecem. Com a concepção da criação do nada, essa ideia de


tempo eterno é superada, pois o tempo começa com a criação, ou
seja, antes da criação, não havia tempo. Mas, se não havia tempo,
o que, então, havia? A resposta de Agostinho é: a eternidade.
Coloca-se, a partir daí, a clara distinção entre o tempo e a
eternidade e, com isso, a possibilidade de se repensar o sentido
histórico. O dualismo platônico, ao qual Agostinho adere, com a
ideia da criação do mundo do nada, já oferece um sentido aos
acontecimentos históricos, que se sucedem no tempo. Em outras
palavras, o dualismo oferece a possibilidade para se pensarem as
razões de todos os acontecimentos históricos para além do tem-
po. Assim, os acontecimentos históricos desenrolam-se no tempo,
mas o seu sentido e o seu significado só se revelam do ponto de
vista da eternidade. Nesse sentido, a história adquire um significa-
do escatológico.
A especulação de Agostinho sobre a natureza do tempo co-
meça com uma pergunta paradoxal, exposta no Livro XI, Capítulo
12, da sua obra-prima Confissões, a saber: "o que Deus fez antes
de criar o mundo?". A essa pergunta, ele responde:
Eis minha resposta à questão: "Que fazia Deus antes de criar o céu
e a terra?" – não responderei jocosamente como alguém para con-
tornar a dificuldade do problema: "Preparava o inferno para os que
perscrutam esses mistérios profundos". – Uma coisa é compreen-
der e outra é brincar. Não, essa não será minha resposta. Prefiro
dizer: "Não sei" – pois quando de fato não sei –, do que ridicularizar
quem faz pergunta tão profunda, ou louvar quem responde com
sofismas.
Mas eu digo que tu, meu Deus, és o Criador de toda criatura; e, se
por céu e terra se entende toda criatura, não temo afirmar: "Antes
que Deus criasse o céu e a terra, nada fazia. De fato, se tivesse feito
alguma coisa, o que poderia ser senão uma criatura? Oxalá eu sou-
besse tudo o que desejo saber, como sei que nenhuma criatura foi
criada antes da criação".

Esse trecho mostra, claramente, o caráter absurdo da per-


gunta, mas ele também deixa rastros de que: "Deus que é o cria-
dor dos tempos é antes do tempo" (Confissões, L, 11, 13, 15-16).

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108 © Metafísica I

Essa consideração, por sua vez, coloca em pauta a seguinte per-


gunta fundamental: "o que é o tempo?". Sendo imersos no fluxo
temporal vigente no mundo criado e tentando compreendê-lo em
si, nós nos deparamos com um paradoxo, perfeitamente definido
por Agostinho:
Que é, pois o tempo? Quem poderia explicá-lo de maneira breve
e fácil? Quem pode concebê-lo, mesmo no pensamento, com bas-
tante clareza para exprimir a idéia com palavras? E, no entanto,
haverá noção mais familiar e mais conhecida usada em nossas con-
versações? Quando falamos dele, certamente compreendemos o
que dizemos; o mesmo acontece quando ouvimos alguém falar do
tempo. Que é, pois, o tempo? Se ninguém me pergunta, eu sei; mas
se quiser explicar a quem indaga, já não sei. Contudo, afirmo com
certeza e sei que, se nada passasse, não haveria tempo passado;
que se não houvesse os acontecimentos, não haveria tempo futu-
ro; e que se nada existisse agora, não haveria tempo presente.
Como então podem existir esses dois tempos, o passado e o fu-
turo, se o passado já não existe e se o futuro ainda não chegou?
Quanto ao presente, se continuasse sempre presente e não pas-
sasse ao pretérito, não seria tempo, mas eternidade. Portanto, se o
presente, para ser tempo, deve tornar-se passado, como podemos
afirmar que existe, se sua razão de ser é aquela pela qual deixará
de existir? Por isso, o que nos permite afirmar que o tempo existe
é a sua tendência para não existir (Confissões, Livro XI, Cap. 14, O
que é o Tempo?).

O homem está no tempo; ele vive o tempo e, portanto, co-


nhece-o de alguma maneira. Todavia, é incapaz de explicá-lo – jus-
tamente porque o tenta explicar a partir da criação. Pois, visto a
partir da criação o tempo, como se fosse, derrete: o passado já não
é; o futuro ainda não é; e o presente é como se um ponto fluente
entre duas irrealidades.
Para compreender o tempo na sua integralidade, pois ele
existe e nós sentimos isso, temos de desvencilhá-lo de alguma ma-
neira da criação em que ele está vigente e observá-lo de outro
lugar, do horizonte absoluto do presente, isto é, do horizonte da
eternidade.
Sabendo disso, você deve estar se perguntando: "o que é
eternidade?". Na concepção de Agostinho (1999), ela consiste em
© U2 - Metafísica Medieval 109

interminabilis vitae sumil et perfecta possessio (a posse perfeita e


simultânea da plenitude da vida eterna). Desse ponto de vista, não
existe puro passado, puro futuro e puro presente, mas presente
do passado, presente do futuro e presente do presente. É bom
lembrar que Deus criou tudo em um ato atemporal, em eterno
presente, todo passado, todo futuro e todo presente. A eternida-
de mantém a unidade do processo temporal, no qual o passado
já aconteceu, o futuro está prestes a acontecer, e o presente é o
que acontece neste instante. Não existe, portanto, puro passado,
puro futuro e puro presente, mas presente do passado, presente
do futuro e presente do presente. Os acontecimentos futuros são
aqueles que ainda não aconteceram. Todavia, para a visão cristã,
não existe nada que já não fosse previsto por Deus, de forma que
os acontecimentos que ainda não aconteceram já aconteceram
em Deus, ou melhor, já são, embora Deus tenha criado o mundo
num único ato, sendo a matéria plantada com sementes racionais.
Isso quer dizer que Deus tem visão sinótica e providencial. Para
compreender melhor essa questão, veja a figura a seguir:

Fonte: acervo pessoal do autor.


Figura 3 Estrutura do tempo em Santo Agostinho

Mas onde se encontra esse topo atemporal? Segundo Agos-


tinho (1999), a dimensão metafísica da alma humana é capaz de

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110 © Metafísica I

fornecer essa posição atemporal, a partir da qual, tal como Deus


compreende em um único ato todo passado, todo presente e todo
futuro, a alma abandona o fluxo temporal e deposita-se na eter-
nidade:
É em ti, meu espírito, que meço o tempo! Não me objetes nada,
pois é assim. Não te perturbes com as ondas desordenadas de tuas
emoções. É em ti, digo, que meço o tempo. A impressão que em ti
gravam as coisas em sua passagem, perduram ainda depois que os
fatos passam. O que eu meço é esta impressão presente, e não as
vibrações que a produziram e se foram.
De fato, quem ousará negar que o futuro ainda não existe? Todavia,
a espera do futuro já está no espírito. E quem poderá negar que o
passado não mais existe? Contudo, a lembrança do passado ainda
está no espírito. Enfim, haverá alguém que negue que o presente
carece de duração, porque é um instante que passa? No entanto,
perdura a atenção, diante da qual o seu objeto presente continua-
mente se retira. O futuro, portanto, não é longo, porque não exis-
te. Um futuro longo seria apenas uma longa espera do futuro nem
pode ser longo o passado, que também não existe. Um passado
longo é uma longa lembrança do passado (Confissões, Livro XI, Cap.
27, A medida do passado).

A concepção de tempo exposta por Agostinho (1999) intro-


duz uma nova compreensão metafísica e escatológica do tempo e
da história. Trata-se de compreender, à luz da fé cristã (sobretudo
no seu aspecto escatológico), todos os acontecimentos da história
humana.
Tudo acontece, conforme tal entendimento, devido a uma
razão superior, que, como providência absoluta, governa o desti-
no, o tempo e a história. Essa concepção escatológica do tempo e
da história é perfeitamente retratada na sua obra conclusiva, inti-
tulada A cidade de Deus: "Dois amores construíram duas cidades:
a da terra, pelo amor de si mesmo, até o desprezo de Deus e a do
céu, pelo amor de Deus, até o desprezo de si" (AGOSTINHO, 1995,
XIV, 28, grifo nosso).
No tópico seguinte, você irá conhecer a proposta agostinia-
na da divisão entre dois mundos – físico e metafísico – Cidade de
Deus e Cidade dos homens.
© U2 - Metafísica Medieval 111

Cidade de Deus e cidade dos homens


A cidade de Deus e a cidade dos ho-
mens representam, por assim dizer, as
dimensões histórica e metafísica, perfei-
tamente representadas, na Figura 4, pela
divisão entre a luz (cidade de Deus) e as tre-
vas (cidade dos homens). O contexto ime-
diato da obra A cidade de Deus é o da inva-
são de Roma por Alarico, rei dos Visigodos,
em 410. Todos, tanto romanos como cris-
tãos, lamentam o acontecimento e culpam
a nova divindade (Cristo), que teria levado
Roma e seu Império soberbo à ruína. Figura 4 Santo Agostinho.

Nesse momento de desespero e fatalismo abundantes, Agos-


tinho empreende uma defesa do cristianismo, convidando os seus
contemporâneos a compreender o sentido profundo da história,
isto é, a entender que a razão de toda essa desgraça pode ser jus-
tificada do ponto de vista da eternidade. Agostinho (1995) mostra
claramente que o destino terrestre, com seu caráter traiçoeiro e
contingente, não possui um sentido em si mesmo, mas somente
em virtude de uma realidade infinitamente superior.
Em conclusão, podemos dizer que A cidade de Deus deixa
uma marca significante para a Filosofia posterior, não apenas em
seu sentido estritamente religioso, mas também na sua forma te-
leológica de se tratarem o tempo e a história.

Visão do homem e Metafísica


Em ligação extremamente íntima com a sua Metafísica, Agos-
tinho constrói a sua Antropologia. O homem, segundo o filósofo
(1995), representa a união entre alma e corpo, e é a alma que define
a sua essência. Afinal, a alma é uma substância completa e, portan-
to, capaz de determinar a sua essência. Desse ponto de vista, o ho-

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112 © Metafísica I

mem é uma alma racional que se serve de um corpo finito e mortal,


e o caráter substancial da alma garante, por si só, a sua imortalidade.
Para demonstrar isso mais consistentemente, Agostinho (1995)
recorre a alguns argumentos de Platão, mais especificamente, aos
do diálogo Fédon, modificando-os de acordo com a visão cristã. Con-
forme essa influência, Agostinho (1995) afirma que, antes de tudo, a
alma é guardiã da verdade, que é eterna; portanto, eterno deve ser
o recipiente que contém a verdade, isto é, a alma. Por outro lado, a
alma é o princípio da vida, mas as contradições não podem coexistir
numa e mesma coisa; desse modo, a alma não admite em si a morte.
Essa demonstração não é totalmente compatível com a visão
cristã, na medida em que estabelece que a alma é o princípio da
vida. Por isso, Agostinho (1995) modifica-a da seguinte maneira:
a alma recebe a sua vida de Deus, mas, em Deus, as contradições
são impensáveis. Caso ela receba a sua vida de Deus, então, ela é
imortal. Essa posição engendra uma grande dificuldade: se a alma
recebe a sua vida de Deus, então, ele deve ser criador do seu ser.
Mas como é que Deus cria a alma? Ele cria cada alma individual-
mente ou criou todas as almas em Adão, por exemplo, e, assim,
elas se transmitem de pai para filho?
Agostinho vacila em responder a essa questão, pois a segun-
da visão, chamada de traducionismo, implica uma concepção ma-
terialista da alma que enfraqueceria a responsabilidade humana
diante de Deus. Por outro lado, a recusa dessa doutrina romperia
a ligação entre as gerações e deixaria sem sentido o dogma do pe-
cado original. Essa questão Agostinho deixa em aberto.
Tais especulações culminam em outra grande questão que
a filosofia agostiniana nos legou: o livre arbítrio e o problema do
mal. No próximo tópico apresenta-se o principal dessas questões.

Questão do mal e livre arbítrio


Uma das questões mais importantes do ponto de vista reli-
gioso a que Agostinho dedica sua atenção é o problema do mal e
© U2 - Metafísica Medieval 113

do livre arbítrio. Segundo ele, são duas as faculdades dadas por


Deus que destacam o homem acima de toda criatura: a razão e o
livre arbítrio. A razão constitui o homem um ser pensante, e o livre
arbítrio, um ser moral.
Em sentido metafísico, a liberdade é sempre liberdade de esco-
lha, e a principal da existência humana pode-se resumir na escolha en-
tre o bem e o mal. A visão cristã coloca esse problema de uma maneira
única, pois, para o cristão devoto, o mal propriamente dito não existe,
caso contrário, isto é, afirmando-se a existência do mal, admite-se algo
inaceitável: o mal ou é um princípio equivalente a Deus, mas oposto a
ele (limitando-se, assim, a onipotência divina), ou é uma criação divina,
pois todo existente recebe seu ser de Deus (atribuindo-se a Deus a pos-
sibilidade de criar o mal). Então, mesmo que o mal não possua ser, ele é
presente no mundo e, portanto, requer uma explicação.
Como podemos explicá-lo? Justamente como não ser. Assim
como a escuridão é ausência de luz, assim como o silêncio é au-
sência de som, o mal é pura ausência do bem (privatio boni). Essa
concepção tira de Deus a responsabilidade sobre o mal. Podemos,
então, nos perguntar: "por que Deus admitiu essa ausência do
bem?". A resposta pode ser esta: assim como a escuridão é o fundo
sobre o qual se destacam as belas obras de arte no quadro, assim
como o silêncio é o intervalo necessário entre uma e outra palavra
para que a nossa fala seja compreensível, do mesmo modo, o mal
seria o fundo sobre o qual se destaca a perfeita produção divina
(sem a presença dele, não podemos conhecer o bem).
Se Deus não é a causa do mal, como ele entra no mundo?
Segundo Agostinho (1999), ele entra no mundo a partir do livre
arbítrio, que é presente de Deus e, como tal, é bom. Ele foi conce-
dido ao homem para que este possa realizar a sua destinação – a
de amar a Deus e, com isso, ser conduzido à salvação. A liberdade
consiste justamente no fato da escolha: escolher o caminho que
leva a Deus ou, ao contrário, que desvia dele. É justamente a nossa
liberdade que é responsável pela presença do mal.

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114 © Metafísica I

Se o mal é produto da liberdade, e esta é presente de Deus,


não seria Deus responsável por isso? Por que ele nos concedeu
um presente tão perigoso? Sem a liberdade, segundo Agostinho
(1999), o homem não teria como amar a Deus, pois o amor só é
possível pela liberdade; ninguém ama por obrigação. Sem a liber-
dade e o amor, o homem nunca poderia alcançar o seu destino. Em
virtude disso, Deus teve de correr esse risco.
A Filosofia de Agostinho, como você pôde observar, é uma
concepção essencialmente metafísica. Toda razão, todo sentido e
todo significado da vida, em última instância, se comunicam com
o suprassensível. Certamente, na Filosofia de Agostinho, sente-se
a forte presença do platonismo. Todavia, Agostinho coloca no seio
do cristianismo o célebre pensamento grego e realiza, assim, a sín-
tese grandiosa entre a fé cristã e a Filosofia Pagã. Essa grandiosa
simbiose realizada por ele atesta-lhe o título de ser o grande "mes-
tre do ocidente".

7. PROBLEMAS METAFÍSICOS NO PENSAMENTO DE


BOÉCIO
O posterior desenvolvimento da Metafísica cristã encontra
sua verdadeira realização no período da patrística, na Filosofia de
Boécio. Considerado o último filósofo romano e o primeiro cristão,
Boécio estende e constrói uma ponte entre o pensamento gre-
go e a religião cristã, por meio da qual entra, irreversivelmente,
a herança grega na vida da Filosofia Europeia. Boécio, vale notar,
é o principal tradutor dos tratados lógicos de Aristóteles, graças
ao qual a época medieval, aos poucos, se familiariza com a lógica
formal do célebre filósofo.
Boécio deve ser considerado o verdadeiro introdutor da dis-
cussão acirrada entre realistas e nominalistas, que se vai estender
ao longo de toda a Idade Média. É responsável, também, pela in-
trodução das principais noções metafísicas, por meio das quais o
© U2 - Metafísica Medieval 115

arcabouço da Filosofia Medieval se enriquece infinitamente. Todas


essas contribuições atestam a importância de Boécio para a Meta-
física cristã e para a sua fundamentação.

Colocação da questão dos universais


A análise da Metafísica de Boécio deve, certamente, come-
çar pela sua maior contribuição: a introdução do problema dos
universais. Nessa discussão, a Lógica assume o papel de principal
protagonista; todavia, o lugar dela na classificação das ciências de
Boécio não é rigorosamente definido. Segundo Gilson (2006) o fi-
lósofo oscila praticamente entre duas tradições, a saber:
• Tradição platônica-estoica: para ela, a Lógica é uma das três
principais disciplinas da Filosofia, com a Ética e a Física.
• Tradição peripatética: vê na Lógica não uma ciência, mas
um instrumento (organon) que todas as ciências utilizam.
Boécio tenta pautar seu pensamento nessas duas tradições.
De acordo com isso, a Lógica, para o filósofo romano, é a ciência
das palavras (dialética) e, como tal, faz parte da Filosofia; toda-
via, ela é o instrumento universal de todo conhecimento. A Lógica,
desse ponto de vista, é como a mão, que é, ao mesmo tempo, uma
parte do corpo e um instrumento do qual ele se serve.
O principal problema diante da Lógica é a questão dos uni-
versais. O problema dos universais foi formulado pelo filósofo ne-
oplatônico Porfírio em sua introdução à obra Categorias, de Aris-
tóteles. Ele pode ser representado do seguinte modo:
• Os universais existem realmente ou são somente nomes?
• Caso sejam realmente existentes, são entes corporais ou
incorporais?
• Caso sejam incorporais, existem nos corpos ou fora deles?
A discussão que se configura entre essas questões penetra
profundamente toda a história da Filosofia Medieval. Contudo, va-
mos dedicar-lhe devida atenção mais adiante; agora, vamos apre-
sentar apenas a solução de Boécio. Conforme Gilson (2006):

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116 © Metafísica I

• Para Boécio, não há nenhuma dúvida que os universais


são substâncias reais. Se negássemos isso, despojaríamos
o nosso pensamento e a nossa fala de objetos reais e,
portanto, de qualquer sentido. Por consequência, tería-
mos de desestruturar o próprio pensamento.
• Ao mesmo tempo, é bastante evidente que tais entes reais
não são corpos, mas entes incorporais. A questão é, po-
rém, onde se encontram tais universais. São eles imanen-
tes aos corpos ou às substâncias puras existentes fora dos
corpos? Com essa dúvida, renasce a velha discussão que
havia entre Platão e Aristóteles. Boécio parece inclinar-
se ao peripatetismo: realmente existentes são os corpos
naturais, nos quais se encontram diferentes qualidades
deles (tamanho, volume, cor e configuração). Não pode-
mos realmente separar tais formas umas das outras sem,
com isso, destruir o próprio corpo. Todavia, nós podemos
abstrair mentalmente tais universais, que são justamente
esses realmente inseparáveis, porém, mentalmente abs-
traídos dos corpos.
Boécio demonstra essa sua visão a partir da Matemática: o
ponto é o elemento constitutivo da linha; não pode, porém, ser di-
ferenciado dela. Todavia, podemos pensá-lo separadamente. Essa
é, também, a visão peripatética: os universais são essências ima-
nentes nas coisas; são sempre ligados às coisas, porém, podem ser
pensados separadamente.
Temos de deixar bem claro que essa não é a visão única de
Boécio sobre os universais. Diz ele: "Assim ativemo-nos a seguir a
opinião de Aristóteles, não que a aprovemos mais, senão porque
este livro está escrito tendo em vista as Categorias, cujo autor é
Aristóteles" (BOÉCIO apud GILSON, 2007, p. 165). O curioso é que,
no Livro V da Consolação da filosofia (o livro mais lido na Idade
Média após a Bíblia), encontramos uma visão completamente pla-
tônica sobre os universais, de acordo com a qual os objetos reais
com os quais se relacionam os termos gerais no nosso pensamen-
© U2 - Metafísica Medieval 117

to são as ideias de Deus, que, é claro, são transcendentes ao mun-


do sensível. Com essa nova posição, Boécio praticamente deixa a
questão dos universais em aberto.
Teremos de retomar mais adiante a questão dos universais
como uma das questões basilares da Metafísica cristã. Agora, va-
mos analisar as contribuições do filósofo para a terminologia filo-
sófica.
Como já ressaltamos, Boécio é um dos criadores da termi-
nologia filosófica do período medieval latino. Nos seus tratados,
encontramos algumas noções filosóficas de enorme importância
para a especulação, tais como: substância, natureza, persona etc.
A seguir, abordaremos algumas delas.

Criador e criatura
Um dos principais postulados sobre o qual se edificam a Me-
tafísica e a Cosmologia cristã consiste na visão de diferenciação
substancial entre criador e criatura, isto é, entre Deus e o mundo.
O mundo é criado não da substância de Deus, como pregava o ne-
oplatonismo, mas do nada. É justamente esse caráter do nada que
o diferencia do seu criador.
Deus, como sumamente perfeito, atribui à sua criação o ca-
ráter de bem, uma vez que a perfeição não produz o mal; nesse
sentido, toda criação divina é, necessariamente, boa. Mas como,
então, podemos diferenciar o bom criador da boa criatura? Para
responder a essa questão, Boécio recorre ao mundo criado, que se
revela a partir dos indivíduos. Cada indivíduo e coisa consistem na
composição de qualidades e funções. Assim, por exemplo, o ho-
mem é, simultaneamente, alma e corpo, e não apenas um deles.
A casa é, ao mesmo tempo, o chão e a laje, as portas e as janelas;
caso se retire uma dessas partes, a coisa deixa de ser como ela é.
Essa união orgânica de qualidades forma, por conseguinte, a natu-
reza da coisa como ela é em seu ser presente. Boécio chama essa
coisa de essência – id quod est (o que é). Mas qual é o elemento

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118 © Metafísica I

que une as diferentes qualidades em uma união inseparável? O fi-


lósofo chama esse princípio de união de ser (esse) da coisa criada.
O ser da coisa individual já não é uma união de qualidades, mas o
princípio graças ao qual a coisa é o que é. Boécio chama-o de exis-
tência: aquilo graças ao qual a coisa é (id quo est).
Assim, a estrutura interna do mundo criado determina-se
por uma diferença principal: a diferença entre "aquilo que coisa
é" (essência) e "aquilo graças ao qual a coisa é" (existência). Isso
quer dizer que a coisa individual não existe por si, mas recebe a
sua existência de outra coisa.
Deus é a única realidade em que "aquilo que é" (quod est)
e "aquilo graças ao qual a coisa é" (quo est) não se diferenciam.
Nesse caso, o mundo criado recebe seu ser de Deus, que, porém,
é seu próprio ser; a sua existência deriva da sua essência.
A diferença substancial entre Deus e o mundo é facilmente
compreensível a partir da análise das características temporais.
O termo "eternidade" (aeternitas) cabe efetivamente so-
mente a Deus, ao passo que, ao mundo criado, cabe, na melhor
das hipóteses, a expressão "eternamente existente" (sempiterni-
tas). Essa diferença é de extrema importância para a mundividên-
cia cristã. Se a eternidade – segundo a definição de Boécio – é a
posse perfeita e simultânea da plenitude da vida eterna (intermi-
nabilis vitae sumil et perfecta possessio), evidentemente, o mundo
criado, mesmo que exista eternamente, em nenhum momento,
possui essa plenitude do ser. Uma coisa é uma duração infinita da
vida, outra – integral, plena e simultânea – é a presença da vida
infinita. O ser de Deus é justamente a união imutável de todas as
modalidades do ser num eterno agora, que é denominado de eter-
nidade.
O ser do mundo criado apresenta uma passagem sem fim do
futuro para o passado por meio do ponto fluido do presente. Essa
passagem incessante chama-se duração infinita.
© U2 - Metafísica Medieval 119

Liberdade x destino
Num sentido universal, Deus governa o mundo por meio da
providência. Esta nada mais é do que a visão sinótica de Deus sobre
toda história mundial. Ele prevê, em uma única visão, o passado,
o presente e o futuro. No mundo, porém, a visão do homem não
é sinótica, mas sucessiva, separada por um antes e um depois. O
princípio dessa sucessão é o destino. O destino, por sua vez, é um
instrumento da providência divina, a qual deve manter o mundo
criado numa ordem por meio de uma corrente de causas e efeitos,
garantindo a regularidade dos fenômenos.
Assim, a história mundial, como também a vida individual do
homem, são submetidas a uma dupla determinação: a da divina
(providência) e a do destino. Essa determinação define o impor-
tante papel do livre arbítrio.
A dignidade e a responsabilidade do homem consistem na
possibilidade de livre escolha entre duas determinações: a deter-
minação necessária, que é a determinação obrigatória e a deter-
minação por meio da liberdade, que é a do amor divino. Como
então a liberdade da vontade pode coexistir com as determina-
ções? Para Boécio (apud GILSON, 2006), adotando a moral estoica,
o rompimento do fatum é possível quando o homem percebe que
a vida terrena é traiçoeira e contingente e que a fortuna troca de
lado sem nenhuma razão. Essa consciência auxilia o indivíduo no
processo de desapego da vida, o que é, simultaneamente, o rom-
pimento com o fatum.
Essas reflexões são bastante notáveis em sua obra Consola-
ção da filosofia, em que Boécio, como prisioneiro infortunado de-
pois de uma vida de glória e de riqueza, vê-se despojado por tudo,
esperando silenciosamente a morte. Essa aparente infelicidade no
nível terreno lhe abre a possibilidade de uma felicidade infinita-
mente superior na qual se reconhece perfeita, clara e consciente-
mente que os bens materiais são brinquedos na mão da traiçoeira
fortuna. Essa clara consciência do vão caráter dos bens materiais

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120 © Metafísica I

conduz, por sua vez, a alma aos bens espirituais, totalmente inde-
pendentes dos caprichos da fortuna.
O rompimento com o fatum conduz o indivíduo a se subme-
ter à providência. Mas como o indivíduo é submetido aos decretos
da providência e como é possível uma ação livre? Segundo Boécio
(apud GILSON, 2006), a liberdade é inerente apenas aos seres racio-
nais. Naturalmente, o homem tende ao bem e evita o mal. A liber-
dade executa a escolha racional, mas é mais forte quando o homem
tende ao bem, uma vez que querer o bem não é obrigação, mas
vontade livre. Os vícios tornam a vontade presa: perde-se a capaci-
dade racional de escolha. Se o homem, como ser livre, naturalmente
tende ao bem e o bem supremo é Deus, então a liberdade consis-
te na escolha daquilo que Deus quer. Nesse sentido, para Boécio, a
providência não impede a liberdade. A ação, sendo providenciada
ou não, acontece da mesma maneira. Somos submetidos à deter-
minação espaço temporal, mas, como afirma Boécio (apud GILSON,
2006) ao escolher Deus podemos nos libertar desta determinação.
As questões filosóficas que entram no escopo analítico de
Boécio revelam uma natureza essencialmente metafísica. Tal como
Agostinho, Boécio também se mantém rigorosamente na especu-
lação metafísica.

8. A METAFÍSICA EM ORÍGENES
Uma retomada parcial do método dialético de Platão no con-
texto da Metafísica Medieval nos apresenta Orígenes.
O método utilizado pela razão para o alcance da lei do ser é
a dialética. Orígenes a concebe de acordo com a concepção platô-
nica – como passagem do princípio à multiplicidade, e vice- versa.
Assim, a dialética determina duas vias que expressam tanto o de-
senvolvimento da natureza como também o seu retorno ao prin-
cípio. Esse movimento dialético não é princípio formal da nossa
mente, mas a verdadeira lei do ser.
© U2 - Metafísica Medieval 121

Conforme esse método dialético, entendido como a lei do


ser, Orígenes concebe o ser em termos de uma dialética da natu-
reza. A noção de natureza, de Orígenes, inclui tudo o que existe e
o que não existe, uma vez que não há pura inexistência. A base de
tudo isso, a natureza, pode ser dividida em quatro espécies:
a) Natureza não criada – Deus como causa eficiente.
b) Natureza criada e criadora – a criação inteligível.
c) Natureza criada, mas não criadora – a criação sensível.
d) Natureza não criada e não criadora ­– Deus como causa
final.
O processo cósmico, por sua vez, é representado por Oríge-
nes como uma espécie de turbilhão: a diversidade do existente
deriva de Deus e desenvolve-se em uma hierarquia dos entes es-
pirituais e corporais, em seguida, retorna a Deus, do qual provém,
como sendo sua razão última.
Essa dialética ontológica coloca algumas dificuldades que
Orígenes deve solucionar. Primeiramente, é necessário perguntar
sobre a possibilidade de Deus criar, uma vez que toda criação en-
volve, de alguma maneira, transformação (Deus deve passar de
não-criador a criador, o que é uma transformação). Mas é possí-
vel que um ser perfeito e eterno seja passível de transformação?
Essa dificuldade, para Orígenes, deriva de uma analogia indevida
entre a criação divina e a criação das criaturas. Na verdade, em
Deus, a essência, a existência e o poder criativo são ontologi-
camente idênticos e, portanto, o ato da criação do mundo em
Deus não é transformação, mas somente a revelação da potência
criadora. O próprio ato da criação é, ao mesmo tempo, automa-
nifestação. Justamente por isso, todas as criaturas são revelações
de Deus (Teofanos).
Entre as criaturas mais dignas estão as ideias e os modelos per-
feitos por meio dos quais Deus produziu o mundo. Tais ideias sempre
existiram no Verbo de Deus; elas são o eterno plano divino da criação.
Essa concepção, pensada assim, envolve dois problemas:

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122 © Metafísica I

1) Se as ideias estão no intelecto de Deus, então Deus de


uno torna-se múltiplo, uma vez que as ideias são mui-
tas.
2) Se elas são, desde sempre, modelos de coisas existentes,
então tais coisas, de alguma maneira, são coeternas a
Deus.
A multiplicidade das ideias, na concepção de Orígenes, não se
deve ao seu ser. Em Deus, todas as ideias são uma só e única realida-
de, sem hierarquia e divisão. Todavia, as ideias expressam diversos
lados do ser uno de Deus e justamente a diferença em seus efei-
tos constitui uma hierarquia interna. Essa posição pode ser melhor
compreendida se pensarmos na natureza dos números.
Os números formam uma ordenação hierárquica, derivando
todos do número 1. Na sua origem (1), eles são indiscerníveis en-
tre si e formam uma só unidade. Com isso, vê-se que os números
não são partes substanciais do número 1, mas suas revelações.
Segundo Gilson (2006) sobre a segunda parte do problema,
referente à hipótese de as ideias serem coeternas a Deus, Oríge-
nes responde que as ideias são eternas, pois o tempo é criado com
o mundo sensível e, portanto, esse caráter temporal se refere so-
mente ao mundo sensível. Entretanto, as ideias não são, hierarqui-
camente, comparáveis a Deus, pois o termo "eterno", num sentido
mais restrito, refere-se somente àquilo que não tem início no tem-
po, nem em uma causa. Nesse caso, eterno será apenas Deus, uma
vez que as ideias mesmo não sendo, no tempo, posteriores a Deus,
são, ontologicamente, posteriores a ele, pois ele é a causa do ser
das ideias. Desse ponto de vista, as ideias são coeternas a Deus,
mas não plenamente, uma vez que devem sua existência a ele.
Referente ao mundo sensível, segundo Gilson (2006), para
Orígenes, esse mundo existe, primeiramente, apenas no intelecto
de Deus, como plano ideal. Em tal criação inteligível encontra-se o
homem, que se distingue de todos os outros seres por duas carac-
terísticas: possui razão e livre arbítrio. Com o pecado original, que
© U2 - Metafísica Medieval 123

se torna presente por meio do livre arbítrio, o homem corta a sua


ligação ideal com Deus e decai em não ser. Com sua queda, o ho-
mem puxa consigo o mundo restante (que existia, também, como
ideia no intelecto de Deus) e o transforma em corporal. Segundo
Orígenes, o homem só não chegou ao abismo do não ser porque
Deus, por compaixão, estendeu a rede da matéria para mantê-lo
e servir-lhe como ponto de partida do seu retorno a Deus. Desse
ponto de vista, o mundo material não é um castigo, mas antes uma
graça divina e ponto de partida para a redenção (GILSON, 2006).
Até agora descrevemos o processo do desenvolvimento da
criação de Deus. Esse desenvolvimento é um ato do amor divino.
Mas o caminho do amor é sempre duplo: o amor desenvolve a
criação, mas também a recolhe em sua origem. Uma vez que Deus
criou este mundo por amor, nele reside uma tendência amorosa.
Toda criação é teleologicamente determinada – o que significa que
nela naturalmente é imposta uma tendência de retornar a Deus
como sua razão final. Justamente por isso, o universo é represen-
tado como eterno processo dialético de expansão e retorno. O
ponto de começo do retorno é a morte – aquela condição em que
foi alcançado o limite da divisão (a alma separa-se do corpo). Mas
o momento final da divisão é, ao mesmo tempo, o ponto de come-
ço da união.
Cabe notar que, como o ato da criação, o ato de retorno tam-
bém não decorre no tempo. Portanto, as etapas descritas não são
temporais, mas ontológicas. A dissolução das criaturas em Deus
não significa a sua aniquilação, mas a revelação perfeita da sua na-
tureza à luz da perfeição divina. Esse é o processo de deificação.

9. DIALÉTICA MEDIEVAL
Durante o período da escolástica, a especulação filosófica
desvinculava-se, aos poucos, da vigilância religiosa e começava
a descrever a sua própria área de atuação. Vale observar que a

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124 © Metafísica I

escolástica, como método de ensino, surge a partir do forte de-


senvolvimento da dialética. Como oposição à ênfase dialética,
surge a corrente antidialética, representada pelos místicos. A
tendência mística opõe-se à investigação racional e dialética por
meio da prática religiosa, da fé, da união mística com Deus e do
êxtase. Em ambos os casos, porém, nota-se uma forte ênfase na
Metafísica.
Deixando de lado os místicos, que não apresentam uma pro-
posta especulativa mais original, você será introduzido em uma
breve análise das atividades dialéticas de Anselmo, Abelardo e da
Escola de Chartres. Vamos lá?!

Santo Anselmo
Seguindo a tendência agostiniana, Anselmo destaca a impor-
tância da revelação que a verdade indubitável traz, a partir desta
se deve encaminhar toda especulação sensata. Qualquer tendên-
cia intelectual que não se sustenta no fundamento da fé não passa
de insipiência, já que a lei de todo conhecimento não é "enten-
do para crer", mas "creio para entender". Por conseguinte, a fé é
o pressuposto absoluto para o conhecimento verdadeiro. Sendo
apoiado pela fé, segundo Anselmo, o homem é capaz de entender
aquilo em que crê, pois a nossa razão é um presente de Deus e
temos que retribuir com sua ampliação. Nesse sentido, a fé, para
Anselmo, constitui o suporte metafísico para alcance da transcen-
dência divina e das verdades eternas.
Todavia, apesar da ênfase que atribui à fé, Anselmo afirma
que entre as verdades da fé e as verdades da razão não há dife-
rença insuperável. Ele não coloca limites para a razão. A especu-
lação filosófica, quando apoiada pela fé, será capaz de revelar os
segredos da religião cristã, tais como: encarnação do verbo (por
que Deus se tornou homem), o segredo da trindade e, é claro, a
existência de Deus.
© U2 - Metafísica Medieval 125

A demonstração ontológica da existência de Deus


A fundamental contribuição de Anselmo nas questões me-
tafísicas é a demonstração ontológica da existência de Deus, que
constitui uma das provas mais consistentes na História da Filoso-
fia. Essa prova terá uma grande importância para alguns filósofos
modernos na elaboração de suas teorias, tal é o caso de Descartes
e Leibniz, para os quais a prova da existência de Deus configura
um aspecto fundamental para as suas doutrinas. Vamos, a seguir,
analisar essa prova e observar as suas peculiaridades?!
Desde Agostinho, sabemos que a prova da existência de Deus
pode ser feita por duas vias: a posteriori (a partir do mundo criado)
e a priori (do conteúdo da nossa alma). Anselmo apresenta essas
duas vias em suas obras Monologium e Proslogium.
Em Monologium, Anselmo encontra subsídios para a de-
monstração da existência de Deus a partir dos graus de perfeição
que se notam no mundo criado. E essa diferença de grau é indis-
cutível, mas a possibilidade de comparar duas coisas requer a exis-
tência de algo terceiro que possui a perfeição em grau absoluto.
Eu posso definir A como mais perfeito que B apenas no caso de
possuir uma medida absoluta que me sirva de critério mais ou me-
nos perfeito. Essa demonstração é a posteriori, que parte do grau
inferior do ser (o que vem depois) e que necessariamente deriva
de uma plenitude maior, ou seja, de Deus. Apesar dessa demons-
tração ser bastante convincente, Anselmo procura outros meios
imediatos para demonstração da existência de Deus. Essa via mais
imediata é tratada em sua obra Proslogium.
A demonstração ontológica via a priori é a grande contribui-
ção de Anselmo para a cultura cristã. A demonstração parte da
posição do insipiente, ou seja, daquele que não acredita em Deus:
"o insipiente disse, em seu coração: Deus não existe" (Salmos 13, 1
apud ANSELMO, 1979). Anselmo afirma ainda que não há dúvida
de que aquele insipiente que nega a Deus possui no seu intelecto
a ideia daquilo que nega. Mas a ideia de Deus é a ideia do "ser",

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126 © Metafísica I

do qual não se pode pensar nada maior. Não se deve entender o


termo "maior" no sentido de quantidade, mas no sentido de quali-
dade, como mais perfeito. Todavia, pergunta Anselmo: "é possível
que tal ideia exista somente no pensamento, e não na realidade?"
(ANSELMO, 1979). É claro que não! Qualquer perfeição que exista
apenas no pensamento seria menos perfeita do que aquela que
existe na realidade. Assim, a própria ideia de Deus (cuja presença
no intelecto é indubitável) implica, necessariamente, na existên-
cia, pois a maior perfeição deve existir; ao contrário, significaria
uma perfeição que não existe.
A demonstração de Anselmo provocou imediatamente a ob-
jeção de Gaunilo. Este, em uma obra intitulada Livro em defesa
do insipiente contra a demonstração de Anselmo em Proslogium,
submete à crítica a demonstração de Anselmo, objetando que a
presença da ideia de algo na nossa mente não implica, necessa-
riamente, a sua existência. Pode-se supor, por exemplo, a ideia de
ilhas belas cheias de tesouros, todavia tal ideia não implica exis-
tência. Portanto, Anselmo fez um salto da ordem lógica para or-
dem ontológica.
Anselmo redige uma obra intitulada Apologia contra Gauni-
lo, em que projeta sua resposta à objeção de Gaunilo. Anselmo ar-
gumenta que a ideia de ilhas belas e a ideia de Deus são de ordens
diferentes. O traço principal da ideia de ilhas belas é o da beleza,
que necessariamente deve ser pensada nesse caso; não é neces-
sário, porém, que exista tal beleza e, por conseguinte, não envolve
existência necessária. Diferentemente da ideia de ilhas belas, na
qual nada se diz sobre a existência, somente sobre a beleza, a ideia
de Deus basta a si mesma para demonstrar a sua existência.
Temos de frisar que a demonstração ontológica de Ansel-
mo é a mais sofisticada e elaborada demonstração ontológica. Ela
vai influenciar, como já foi dito, outros grandes pensadores, tais
como Descartes e Leibniz (na Unidade 3, veremos essas demons-
trações).
© U2 - Metafísica Medieval 127

O problema da razão e a sua capacidade especulativa, que An-


selmo enfatiza em suas obras, coloca, inevitavelmente, a questão da
verdade. Ele dedica a esse problema sua obra intitulada De veritate.
Conforme o espírito da verdade, como advinda da tradição peripaté-
tica, a verdade é compreendida como sendo adequação do intelecto
com a coisa (adequatio intellectus et rei).
Todavia, a verdade, para Anselmo (1979), revela outra di-
mensão: ela é o componente integral de toda nossa vida. Nesse
sentido, ela não é uma categoria epistemológica, mas ontológica.
Ela é verdade do próprio ser. Anselmo a chama retidão. Visto por
esse ângulo, cada coisa é verdadeira enquanto coincide com a nor-
ma do seu ser. Essa norma é criada por Deus. A coisa é verdadeira
enquanto corresponde a sua ideia e esta se encontra em Deus. O
homem tem acesso a essa verdade por meio de um ato de ilumina-
ção que Deus realiza. Com essa posição, Anselmo está de acordo
com Agostinho, seu grande mestre.
Certamente, com Anselmo e a sua demonstração ontológica,
a especulação metafísica encontra seu verdadeiro fundamento nas
ideias da razão e se torna uma das mais importantes contribuições
da Filosofia Medieval para a Metafísica.
Agora, você irá conhecer como esses problemas da Metafísi-
ca Medieval foram tratados pela Escola de Chartres.

10. A ESCOLA DE CHARTRES E O "RENASCIMENTO


DO SÉCULO 12"
Durante o século 12, no contexto da Filosofia Medieval, surge
uma transformação significativa na especulação filosófica conheci-
da como "Renascimento do século 12". Esse termo, cunhado pela
literatura especializada, designa a mudança radical no panorama
cultural na Europa Ocidental, principalmente durante a primeira
metade do século 12. No entanto, esse termo não se deve confun-
dir com a tendência destrutiva da mentalidade medieval operada

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128 © Metafísica I

pelo renascimento verdadeiro; trata-se, ao contrário, de um pro-


cesso de solidificação daquilo que posteriormente vem a ser a Alta
Idade Média.
O desenvolvimento cultural do século 12 está intimamente
vinculado ao progresso da vida e da cultura urbana. Nesse período,
surgiram as primeiras escolas urbanas, cujo papel consistia em ins-
trução e preparação de servidores do Estado (juristas, médicos, se-
cretários etc.), que estão cada vez mais livres da influência clerical.
Durante o século 12, nasce o assim chamado "homem in-
telectual". A atividade filosófica enfatiza cada vez mais o uso da
razão e valoriza a natureza como objeto de sua investigação. Novas
ideias e novas perspectivas do conhecimento invadem o cenário
filosófico da Idade Média. Com a escola de Chartes, praticamente
se anuncia a ruptura com o simbolismo medieval e se inicia uma
tendência cientificista.
Uma das questões em que se colocam os integrantes da Es-
cola de Chartres é: como é possível que a verdade da revelação
fosse alcançada pelos homens? A resposta é: a partir das duas vias,
a saber, a da razão e a da revelação. Diferentemente dos pensado-
res anteriores, que sobrepõem a fé sobre a razão, os representan-
tes da Escola de Chartres dão privilégio à razão sobre a fé. Segun-
do estes, os antigos comentadores negligenciaram a física, que é
uma realidade plenamente acessível para a razão. Os fenômenos
e processos naturais, por exemplo, possuem uma base causal que
é objeto somente da investigação racional. Por isso, a Escola de
Chartres insiste na necessidade de uma interpretação racional,
rompendo, assim, com o simbolismo que despojava as ciências
dos seus legítimos objetos ao transformá-los apenas em símbolos
da onipotência divina.
Com o rompimento do simbolismo, expande-se naturalmen-
te o espaço da razão, configurando a área e o âmbito próprio da
especulação filosófica, rompendo com a posição subordinada à
Teologia. A partir daí, a Filosofia não será apenas "serva" da Teo-
© U2 - Metafísica Medieval 129

logia, mas uma disciplina independente, com seu direito próprio


de existir.
Nessa nova mundividência especulativa, o papel de Deus se
reduz na sua ação criadora (criação ex nihilo), na criação das almas
individuais e na realização de milagres. A Filosofia tem, por sua
vez, como objeto privilegiado, a investigação da natureza: a regu-
laridade e a reprodução. À natureza, os pensadores da Escola de
Chartres atribuem um papel intermediário entre Deus e as criatu-
ras. Ela é, antes de tudo, definida como sendo a força ativa capaz
de gerar e manter a regularidade e entendida, sobretudo, como
sendo as ideias no intelecto de Deus (neoplatonismo), as formas
criadoras inerentes nas coisas (aristotelismo), razões seminais
(Agostinho), alma do mundo (Platão, Timeu).
Vale observar que o naturalismo da Escola de Chartres en-
carna uma espécie de metafísica que enfatiza não a causa primeira
ou final (Deus), mas as causas eficientes por meio das quais o cria-
dor governa as criaturas.

Abelardo
A tendência dialética entra em seu ponto culminante com
a especulação metafísica de Abelardo. Entre as obras de Abelar-
do, encontramos um livro curioso intitulado Sim e não. Trata-se
de uma reunião de diversos comentários das autoridades sobre as
questões mais fundamentais da religião cristã. Mas o interessante
é que os comentários são ordenados de modo antitético, ou seja,
para cada comentário de um autor existe outro comentário anti-
tético a este.
Segundo Gilson (2006), Abelardo retrata a contradição inter-
na da autoridade clerical e impõe a exigência de revisão desses
comentários a partir da investigação racional. Vale aqui esclarecer:
o que Abelardo chama de autoridade? No interior da Filosofia Me-
dieval, a autoridade é o texto autêntico que contém a revelação da
verdade divina. Abelardo não tem nada contra esse texto, muito

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130 © Metafísica I

pelo contrário, aceita-o sem qualquer dúvida. Os textos sagrados


são indiscutivelmente verdadeiros, mas o problema é que esse
texto é suscetível de várias interpretações e comentários. Toda li-
teratura cristã deriva dessa interpretação. Essa literatura interpre-
tativa representa a segunda camada da autoridade. Certamente, a
crítica de Abelardo se dirige a essas fontes interpretativas.
A crítica sobre autoridade clerical mostra que as autoridades
da igreja em nada se diferem da simples opinião, cujo argumento
tem apenas caráter provável, mas não necessário. Sendo assim, não
se pode afirmar que as autoridades da igreja são mais verdadeiras
do que as dos filósofos gregos. Com isso, Abelardo enfatiza a razão
em detrimento da fé, invertendo o princípio de Anselmo e Agostinho:
"creio para entender" (GILSON, 2006). Agora, ao contrário, enfatiza-se
a nova formula: "entendo para crer". Desse ponto de vista, a fé deve
ser racionalmente motivada e compreendida – e isso significa que o
verdadeiro cristão deve ser necessariamente filósofo. Conforme nos
diz Gilson (2006), para Abelardo, se Deus é chamado de sabedoria
(sophia), então os verdadeiros cristãos são aqueles que amam a sa-
bedoria, ou seja, os filósofos. Desse modo, Abelardo enfatiza o cristão
iluminado como aquele que pode apontar os fundamentos da sua fé,
pois não se pode amar aquilo que não se entende.
A grande contribuição para a Metafísica, Abelardo realiza no
âmbito daquela querela que se estende, praticamente, ao longo
de toda a Idade Média e que é denominada de disputa ou discus-
são dos ou sobre os universais. Você se lembra dessa discussão no
CRC de História da Filosofia Medieval? Iremos retomar e aprofun-
dar essa questão.
O forte crescimento da dialética e da lógica durante sécu-
lo 12 tem em destaque o problema ainda levantado por Porfírio
e introduzido no campo especulativo da Idade Média por Boécio
referente ao lugar da existência dos termos gerais, com efeito: são
eles puras formações mentais (palavras e termos) ou são coisas
realmente existentes?
© U2 - Metafísica Medieval 131

Como você deve se lembrar, "aqueles que dizem que os


universais são apenas nomes são os nominalistas". Ao contrário,
"aqueles que afirmam a existência real dos universais são os rea-
listas". Entre os casos extremos, existem, é claro, posições mais
moderadas.
A tese do realismo extremo pode ser formulada da seguinte
maneira: a utilização dos termos gerais, tais como "homem", "ser
vivo" etc. é indubitavelmente sensata. Mas para essa utilização ser
sensata, eles, os universais, devem existir realmente, pois se a ver-
dade, como ensina Aristóteles, é a adequação do conhecimento
com a coisa, então a verdade seria aquela que indica algo realmen-
te existente. Portanto, os termos gerais existem, realmente, fora
do nosso pensamento, como substâncias reais diante das quais os
indivíduos possuem somente existência acidental.
Na sua disputa acirrada com seu mestre Guilherme de
Champeaux, Abelardo obrigou seu mestre a mudar de posição re-
ferente a seu realismo extremo. Os argumentos de Abelardo se-
guem o seguinte raciocínio:
• Se existe realmente uma substância humana, então ela
deveria estar presente inteiramente em Sócrates, mas
também em Platão.
• Disso resulta que, substancialmente, ambos são idênticos
– o que é realmente absurdo.
O nominalismo extremo reconhece como existente apenas
o indivíduo ou a coisa concreta, enquanto os universais são so-
mente nomes. Outro mestre de Abelardo, Roscelino, era defensor
dessa posição. Ele negava qualquer realidade dos termos gerais,
reduzindo-os em puras expressões sonoras.
A discussão dos universais é essencialmente teórica e en-
volve problemas ontológicos, no entanto, essa discussão possui
fortes implicações teológicas. No caso de somente os indivíduos
serem realmente existentes e os termos gerais serem somente no-
mes vazios, então como será possível manter o dogma da trindade

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132 © Metafísica I

divina, como se poderá manter a natureza dupla de Cristo, como


se poderá manter o dogma do pecado original etc.?
Os fundamentos metafísicos da religião cristã dependem ex-
clusivamente desses dogmas. Sem o dogma do pecado original,
não haverá a queda do homem e, por consequência, não haverá,
também, a cisão entre "terrestre" e "celeste". Mas o pecado ori-
ginal deve estender-se ao gênero e não apenas ao indivíduo que
cometeu esse pecado. Por isso, esse problema mostra claramente
as implicações teológicas que essa discussão envolve. Em segui-
da, faremos uma breve análise da posição de Abelardo referente
aos universais, pois, mais adiante, faremos uma exposição mais
consistente e detalhada sobre esse assunto, fundamental para a
Metafísica Medieval, por assim dizer.
Segundo Abelardo (apud GILSON, 2006), os termos gerais
não podem ser coisas (res) porque a sua função lógica é serem
predicados da proposição, isto é, que se referem a muitas coisas
individuais. Portanto, os universais são palavras ou nomes, colo-
cando-se, assim, na posição do nominalismo. Abelardo, porém,
distingue-se completamente do verbalismo de Roscelino, afirman-
do que tais nomes não são simplesmente quaisquer expressões
sonoras, mas noções portadoras de significado lógico. Tais noções
constituem o conteúdo do nosso pensamento e sua formação se
dá pelo processo de abstração. A teoria da abstração de Abelar-
do inclui, necessariamente, a presença de algo geral na realidade.
Pode-se, por exemplo, abstrair uma qualidade de muitos objetos
diferentes justamente porque tal qualidade se encontra realmente
neles. Com isso, Abelardo se aproxima da posição aristotélica, se-
gundo a qual, o geral é a forma imanente das coisas. Com outras
palavras, o conceitualismo de Abelardo requer uma ontologia ima-
nentista de tipo peripatético.
Em sua doutrina ontológica, entretanto, Abelardo não segue
Aristóteles, mas Platão. De acordo com isso, as ideias gerais são
transcendentes às coisas sensíveis. Abelardo tenta pautar, a partir
© U2 - Metafísica Medieval 133

da sua teoria do status, esse impacto entre uma lógica do tipo pe-
ripatético e uma ontologia do tipo platônico.
O status, segundo Abelardo, é a determinação da própria coisa
(assim como é a forma aristotélica), no entanto, o lugar real do status é
o intelecto de Deus. Assim, o status praticamente assume característica
de ideia de Deus, da coisa concreta existente, porém, fora da coisa.
A partir da teoria do status, fica claro que é possível formar
mentalmente a noção geral de muitos objetos diferentes justa-
mente porque eles têm um status igual, estão num degrau de hie-
rarquia do ser. A noção de homem, por exemplo, é possível porque
Deus ordenou todos os homens num degrau ontológico. Aprofun-
daremos essa questão, como foi dito, em outro momento. Agora,
iremos analisar as propostas metafísicas de Tomás de Aquino, o
maior expoente da chamada Escolástica.

11. TOMÁS DE AQUINO E A SUA CONCEPÇÃO


ONTOLÓGICA.
As reflexões de Tomás sobre a relação entre a razão e a fé,
respectivamente, e entre a Filosofia e a Teologia representam uma
posição tradicional da época medieval. Sua posição se destaca
como mais equilibrada, descrevendo tanto os pontos de conver-
gência como também os de divergência. Conforme tal posição, a
diferença entre a Teologia e a Filosofia envolve três aspectos:
• Diferença referente ao objeto da investigação.
• Diferença referente à finalidade.
• Diferença referente ao método.
Sobre a primeira diferença, Tomás afirma que a Teologia se
ocupa com as verdades necessárias para a salvação humana. Tais
verdades são reveladas por Deus e, portanto, não se podem racio-
nalmente demonstrar (in BARAÚNA et. al., 1973). No que diz res-
peito às verdades da Filosofia, elas não dizem respeito à salvação,
mas às investigações lógicas e naturais.
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134 © Metafísica I

Sobre a segunda diferença, a saber, a diferença referente à


finalidade, Tomás afirma que a Teologia investiga as coisas na sua
relação intrínseca com Deus, como revelações de poder, sabedoria
e bondade divina; já a Filosofia investiga as coisas como substân-
cias independentes e revela a sua essência (in BARAÚNA et. al.,
1973). Justamente por isso, segundo Tomás, o filósofo e o teólogo
notam diferentes aspectos da criação: ao passo que o filósofo nota
os aspectos naturais e seus elementos, o teólogo busca revelar e
retratar a perfeição divina (in BARAÚNA et. al., 1973).
Referente à terceira diferença entre a Teologia e a Filosofia,
Tomás estabelece que a Teologia parte da causa primeira de todas
as coisas (Deus) e, dela, deduz todo o conteúdo do conhecimento.
Assim, ela parte do postulado da fé – que Deus existe. Inversamen-
te, a Filosofia, uma vez que considera as coisas como substâncias
independentes, parte delas e ascende gradativamente para a sua
causa primeira (in BARAÚNA et. al., 1973). Portanto, o filósofo par-
te das coisas sensíveis para demonstrar a existência de Deus.
Apesar das diferenças, a Filosofia e a Teologia encontram- se
em harmonia, uma vez que não pode haver conflito entre a razão
humana, criada por Deus, e a fé, que é a revelação de Deus. O
acordo entre ambas pode ser demonstrado de outra maneira. A ig-
norância se contrapõe às duas formas, o que quer dizer que ambas
coincidem, necessariamente, em sua verdade. Todavia, a relação
harmoniosa entre ambas não significa, segundo Tomás, que exista
equivalência entre o conhecimento humano e a revelação divina
e, desse modo, elas não podem ocupar o mesmo lugar na escala
valorativa, pois o conhecimento racional do homem é limitado, en-
quanto que o de Deus é ilimitado (in BARAÚNA et. al., 1973).
O filósofo nada pode demonstrar sobre aquilo que vai além
da criação, como, por exemplo, que o mundo tem início no tempo
ou é criado desde a eternidade. Uma vez que não somos capa-
zes de decidir sobre isso, a razão humana deve, então, confiar na
revelação. Além disso, o conhecimento filosófico não é capaz de
© U2 - Metafísica Medieval 135

demonstrar nada sobre os milagres e os mistérios. Assim, é neces-


sário reconhecer a supremacia das verdades da revelação.
A teoria metafísica de Tomás revela uma proximidade mui-
to grande com a metafísica de Aristóteles. Tal como Aristóteles,
Tomás evidentemente concebe a Metafísica de duas formas: a do
sensível (natureza), cuja investigação cabe à Filosofia e a do su-
prassensível (Deus), cuja investigação cabe à Teologia.
Uma vez que o ponto de partida da investigação filosófica
são as substâncias sensíveis, então o primeiro objetivo da Filosofia
é a descrição da sua estrutura imanente. Em sua simples presen-
ça, as coisas aparecem como existentes. Caso interroguemos so-
bre seus princípios, então vemos que as coisas são contingentes,
isto é, que não possuem em seu ser a necessidade de existirem.
Eis porque, segundo Tomás (in BARAÚNA et. al., 1973), nas coisas
existentes, devem se distinguir a possibilidade e a realidade, ou
seja, potência e ato.
Apesar de todas as coisas naturais serem marcadas pela
transitoriedade, durante um tempo determinado, elas conservam
suas próprias características. Tomás encontra na forma o princí-
pio de permanência. Visto que se trata de unidade e permanência
de coisas sensíveis, fica evidente que a estrutura do ser deve ser
completada por mais um princípio que enfatiza a transformação, a
saber, a matéria.
A forma (atualidade) atribui à substância (união da matéria
e da forma) determinação e realidade. A matéria é, por sua vez,
a possibilidade de receber a forma. Embora ela seja o princípio
da individuação, permite que a forma geral entre em diferentes
individualidades.
Conforme Gilson (2006), substância é definida por Tomás
como sendo a união orgânica de todas as características da coisa
existente. As características das coisas são definidas como Aciden-
tes – as que acompanham a substância. Desse ponto de vista, a
essência resulta na exclusão de todas as características da subs-

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136 © Metafísica I

tância. Por exemplo: se excluirmos de Sócrates todas as caracte-


rísticas, tais como careca, gordo, nariz grande etc., ou seja, as suas
características peculiares, restaria a sua essência – a humanidade.
Mas a essência de uma coisa ainda não implica a sua existência.
Por isso, a estrutura das coisas criadas deve necessariamente in-
cluir mais um elemento: o ser.
O ser se dá à essência para que esta comece a existir. Isso
quer dizer que a relação entre a essência e a existência é a mesma
entre potência e ato. O ser se atribui à essência para que esta pas-
se de potência a ato. Vale observar que a coincidência de essência
e existência tem sua identidade presente unicamente em Deus,
no qual, segundo Tomás, a essência inclui necessariamente a exis-
tência.
Vamos analisar, a seguir, as vias que Tomás (in BARAÚNA et.
al., 1973) estabelece para o conhecimento da existência de Deus?

Cinco vias para o conhecimento da existência de Deus


Uma parte significativa da metafísica de Tomás constitui a
prova da existência de Deus. Todavia, a demonstração da existên-
cia de Deus não é evidente por si mesma tal como é no caso das
provas ontológicas de Agostinho e Anselmo e, por isso, necessita
de demonstração. Para Tomás, a existência de Deus pode ser de-
monstrada racionalmente não pela via a priori, mas por via natural
do conhecimento humano, partindo dos dados empíricos deste
mundo e ascendendo à sua causa primeira (Deus).
Todas as provas tomistas põem em jogo dois elementos distintos: a
constatação de uma realidade sensível que requer uma explicação
e a afirmação de uma série causal de que essa realidade é a base e
Deus o topo. O caminho mais manifesto é o que parte do movimen-
to. Há movimento no universo; é o fato a explicar, e a superioridade
dessa prova não está em ser mais rigorosa do que as outras, mas
em que seu ponto de partida é mais fácil de captar. (GILSON, 1995,
p. 658-660).

Referente a essa demonstração, Tomás (2001) apresenta cinco


vias:
© U2 - Metafísica Medieval 137

1) Do movimento: todo movimento e transformação pres-


supõem uma causa externa ou um motor que os colo-
quem em movimento. Essa causa deve ser movida por
outra, e assim por diante até o infinito; já uma ordem
infinita de motores é absurda, pois o próprio movimento
não terá início, uma vez que o infinito não se percorre. É
necessário, portanto, aceitar a existência de um primei-
ro motor que não é movido, isto é, Deus.
2) Da causalidade: toda ação tem seu fundamento numa
causa. Nada pode ser causa de si mesmo, pois se a causa
precede o efeito, então a coisa deve preceder a si mes-
ma – o que é absurdo. Por um lado, se a ordem das cau-
sas não pode ser infinita, uma vez que toda ordem tem
início, meio e fim, por outro, se excluirmos a primeira
causa, então destruímos a ordem toda e, por conseguin-
te, suprimimos o último efeito, que é objeto da nossa
consideração.
3) Da necessidade: no mundo, existem muitas coisas que
podem existir, mas podem também não existir. Se todas
as coisas são de tal natureza, podemos pensar, então,
um estado em que nada existiu. Mas o não existente não
tem como passar ao existente, uma vez que essa passa-
gem ocorre por meio de algo existente. Caso seja assim,
então, neste momento, nada existiria, o que é absurdo.
Para não cair nesse absurdo, temos de admitir a exis-
tência não apenas de coisas possíveis, mas também de
coisas necessariamente existentes. O existente pode ter
necessidade de si ou de outra coisa; caso seja de outra
coisa, então a ordem das coisas necessariamente exis-
tentes não pode remontar ao infinito. É necessário, por-
tanto, que se admita a existência de algo necessário por
si mesmo e que seja a causa primeira de todas as outras
coisas. E essa causa é Deus.
4) Dos graus de ser: nas coisas existentes, existe uma di-
ferença de grau. Nós podemos definir uma coisa como
mais ou menos perfeita que outra. Mas "mais" ou "me-
nos" podem existir somente se houver uma medida ab-
soluta por meio da qual o mais e o menos são signifi-
cados. Logo, é necessário que se admita uma medida

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138 © Metafísica I

absoluta e perfeita e que torne sensata essa gradação.


Evidentemente, essa medida absoluta é Deus.
5) Da finalidade: as criaturas irracionais do mundo eviden-
temente agem conforme uma finalidade. Isso se eviden-
cia quando, em semelhantes situações, os animais sem-
pre se comportam do mesmo modo em vista do que é
melhor para eles. A finalidade de uma ação pressupõe,
antes, uma razão que não pode ser obra de seres despo-
jados de razão. É necessário, dessa forma, que exista um
ser racional capaz de dar finalidade ao todo existente.
Esse ser, certamente, é Deus.
As cinco demonstrações da existência de Deus, constituídas
a partir do mundo criado, estão em pleno acordo com a diferen-
ciação e a determinação que Tomás estabelece referente à área
da investigação filosófica. Lembremos que a investigação filosófica
opera-se no nível sensível e busca explicar, sobretudo, a estrutura
do ser sensível. A análise dessa estrutura constitui uma demons-
tração consistente da existência de Deus, pois todas as questões
que determinam o mundo sensível, tais como o movimento, a cau-
salidade, a necessidade, os graus do ser e a finalidade, que são
os princípios gestores do mundo em que reina a contingência, ex-
pressam, por assim dizer, a linguagem do criador.
Em resumo, a partir da especulação filosófica referente ao
mundo criado, a existência de Deus é deduzida como consequên-
cia necessária. Essa explicação das vias de acesso ao conhecimen-
to da existência de Deus está em íntima relação com sua teoria
do conhecimento, mais conhecida como teoria da tabula rasa. E é
sobre essa teoria que falaremos a seguir.

A doutrina da tabula rasa


A posição tomista referente à investigação filosófica revela,
inequivocamente, o seu caráter empírico. Nesse sentido, Tomás
rejeita qualquer tipo de demonstração a priori que não parta dos
sentidos. Para o processo de conhecimento, diferentemente dos
© U2 - Metafísica Medieval 139

adeptos do platonismo, o aristotelismo de Tomás atesta a impor-


tância imprescindível da participação dos sentidos. Todo conheci-
mento, segundo Tomás, se inicia com os dados fornecidos pelos
sentidos, que são processados, em seguida, pelo intelecto em vir-
tude do qual surge o conhecimento no sentido literal (in BARAÚNA
et. al., 1973).
Se o conhecimento inicia-se com os sentidos, então a coisa
concreta é o objeto imediato do conhecimento. Mas, nessa altura,
ainda não temos conhecimento, pois o concreto ainda não oferece
um conceito universal que enuncie o conhecimento, uma vez que
o conhecimento é sempre para o geral. Com base nisso, vale per-
guntar: qual o mecanismo de passagem do concreto ao geral, ao
conceito?
Inicialmente, a alma humana é uma tabula rasa, isto é, ela
é totalmente vazia, não há nela qualquer tipo de conhecimento a
priori ou inato. Portanto, cabe aos diversos sentidos fornecerem
os dados sensíveis que Tomás chamará de espécie sensível indi-
vidual (presente) (in BARAÚNA et. al., 1973). Essa espécie passa
para o sentido geral, que retira dela a sua presença. Forma, então,
a espécie sensível individual, porém, não presente. Sob esse ponto
de vista, Tomás parece retomar a concepção da imaginação e seu
papel de mediar entre os sentidos e o intelecto. O sentido geral re-
presenta, grosso modo, a faculdade de imaginação que, ao retirar
o caráter presencial da coisa concreta, transforma-a em fantasma,
o que permite que essa coisa concreta possa aparecer diante do
intelecto mesmo quando ela não está presente.
Ao intelecto, cabe a função de realizar a passagem do indivi-
dual e concreto para o universal. O intelecto, como mostra o termo
intus-legit, significa, literalmente, ler dentro, retrata, portanto, a
faculdade do intelecto de penetrar no fantasma e fazer a leitura
da sua interioridade, isto é, conhecer a sua essência. Tal essên-
cia nada mais é do que a forma da coisa, que é geral para uma
determinada espécie de coisa. Então, o intelecto, ao penetrar no

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140 © Metafísica I

fantasma, ilumina a sua interioridade e faz leitura da sua forma,


abstraindo-a. Esse intelecto, carregado com a função de abstrair
a forma geral do fantasma, Tomás denomina intelecto ativo (in
BARAÚNA et. al., 1973).
Por meio dessa atividade do intelecto ativo, surge a espécie
inteligível, porém, sem conteúdo. Essa espécie formal do conheci-
mento é depositada no intelecto passivo em que ocorre a comple-
ta adequação da coisa com o intelecto e, pela primeira vez, surge
o conhecimento no sentido forte da palavra. Tal conhecimento se
enuncia pelo conceito.
A concepção gnosiológica de Tomás, como você pode obser-
var, mantém-se bastante próxima à de Aristóteles. Ela explica por-
que, para Tomás, a prova da existência de Deus não pode ser reali-
zada pela via a priori, mas somente a partir daquilo que os nossos
sentidos captam, a posteriori, e nosso intelecto processa. Nesse
sentido, podemos dizer que a concepção metafísica de Tomás está
em pleno acordo com a sua gnosiologia. O acesso às instancias
metafísicas se dá, por incrível que pareça, a partir dos sentidos.

A concepção de homem no tomismo


É importante notar que a concepção antropológica de Tomás
toma como referência a peculiaridade da sua gnosiologia. Embora
o entendimento tomista do homem esteja quase de pleno acordo
com o aristotelismo, o homem é, com efeito, uma união substan-
cial entre alma e corpo. Nesse ponto, Tomás (in BARAÚNA et. al.,
1973) introduz, no entanto, uma correção ao entendimento aris-
totélico sobre o homem: no caso de Aristóteles, com a morte do
corpo, a alma também morre. Essa concepção, porém, não é com-
patível aos postulados do cristianismo, uma vez que o dogma da
salvação requer a imortalidade da alma.
Tomando como referência essa incompatibilidade, Tomás
(1947) afirma que a alma poderia existir sem o corpo. A realiza-
ção plena da alma e das suas potencialidades requerem, porém,
© U2 - Metafísica Medieval 141

o corpo e, por isso, mais sensato seria pensar a alma não como
substância separada do corpo, mas como sua realização.
Vale relembrar que o conhecimento se realiza, também, por
meio dos sentidos corporais, sem os quais, nenhum conhecimento
é capaz de resultar.
Como conclusão, podemos dizer que a teoria metafísica de
Tomás exerceu uma influência profunda sobre as especulações fi-
losóficas na modernidade. Tomás é um dos principais responsáveis
pela transmissão do pensamento metafísico de Aristóteles, o qual
aparece para a modernidade numa nova versão – a versão tomista.

12. AS PROPOSTAS METAFÍSICAS DE AVICENA,


AVERRÓIS
É com Tomás que se dá, praticamente, a realização plena da
grandiosa síntese entre a fé cristã e a Filosofia Pagã, por assim di-
zer, a cristianização de Aristóteles. Foi sob influência dos filósofos
árabes que Aristóteles, durante século 13, entra, aos poucos, na Fi-
losofia Oriental. Vale observar que os árabes se abriram para Filo-
sofia a partir da influência grega no seu pensamento e, sobretudo,
a partir das obras de Aristóteles. Os principais representantes da
versão aristotélica da Filosofia Árabe são Avicena e Averróis.

Avicena
Segundo Gilson (2006) a concepção filosófica de Avicena pro-
põe uma síntese entre a filosofia aristotélica e o neoplatonismo.
Segundo essa concepção, o mundo é eternamente produzido por
Deus eterno, o Uno, do qual emana a inteligência primeira. Desta,
por sua vez, emanam, gradativamente, outras inteligências, em or-
dem hierárquica, que, por fim, produzem o mundo sensível. Essa
concepção estabelece a eternidade da matéria, da qual se origina
a individuação. A metafísica de Avicena, como se pode observar,
encarna-se em ideias cosmológicas e oscila entre uma ontologia
do tipo panteísta, de Plotino, e o hylemorfismo aristotélico.

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142 © Metafísica I

Averróis
Averróis é outro pensador árabe que causa maior impacto
sobre o pensamento medieval. Ele retorna ao pensamento aristo-
télico em sua forma mais ortodoxa e coloca em oposição a religião
e a Filosofia. Segundo Gilson (2006) Averróis privilegia as verda-
des da Filosofia, consideradas por ele como verdades absolutas,
dentre as quais, está a de Aristóteles. Vale notar que algumas das
teses de Averróis causam grande influência na Filosofia Medieval,
são as seguintes:
1) O mundo é criado ontologicamente por Deus, ou seja,
antes do tempo e, portanto, ele é eterno, apesar de de-
ver sua origem a Deus. Averróis ensina que Deus cria
imediatamente a primeira inteligência e dela derivam
todas as outras.
2) Se o mundo é eterno, então a matéria também é, sendo
o receptáculo de todas as formas.
3) A razão humana deriva da inteligência inferior que ema-
na de Deus. Conforme essa concepção, existe apenas um
único intelecto por meio do qual todos os homens pen-
sam. Essa ideia, por consequência, nega, por um lado, a
imortalidade individual, mas afirma, por outro, a eterni-
dade do mundo. Nesse sentido, ela se mostra incompa-
tível com os dogmas do cristianismo, segundo os quais o
mundo foi criado do nada e a alma é imortal.
Em geral, podemos dizer que, apesar da religião cristã, a
versão árabe da filosofia aristotélica e sua forte influência sobre
o pensamento medieval seriam os principais responsáveis pela re-
descoberta e pela reinserção do pensamento grego no discurso
da Metafísica Medieval durante século 13. Com tal redescoberta,
inicia-se uma grande mudança no pensamento medieval. A partir
daí, em pouco tempo, as obras de Aristóteles se transformam em
principal fonte de especulação.
Graças às obras de Alberto e Tomas de Aquino, o aristotelismo
transforma-se em doutrina oficial do catolicismo. É claro que o aris-
totelismo sofreu mudanças profundas para se adequar aos postula-
© U2 - Metafísica Medieval 143

dos da fé cristã, encontrando bastante resistência. Nessa tendência


de uma síntese entre o aristotelismo e o cristianismo, alguns dos
pensadores medievais permaneceram alheios a essa nova onda. Um
deles é São Boaventura, o qual você estudará no tópico a seguir.

13. SÃO BOAVENTURA


Segundo Gilson (2006), para Boaventura a Filosofia é o conhe-
cimento seguro e guia da razão no seu caminho natural determinado
por Deus. O problema é: até que ponto a razão é capaz de seguir, por
si mesma, o seu destino natural? A história mostra, que por natureza,
a razão poderosa e iluminada frequentemente perde a si mesma ao
se vangloriar. Ela pensa que, por si mesma, sem o auxílio da revelação,
é capaz de alcançar as verdades eternas. Mas para provar a sua incon-
sistência, será suficiente perguntar sobre a origem desses princípios
para se perceber que a Filosofia não é capaz de ser uma ciência autô-
noma e que toda investigação racional deve ser norteada pela fé.
A fé revela, para Boaventura, que Deus existe, todavia, é pos-
sível que a noção de Deus não se entenda na sua trindade, mas
enquanto algum elemento natural, por exemplo. Surge, então, a
Filosofia para corrigir tais ilusões. Diante disso, segundo Gilson
(2006) Boaventura questiona: "será capaz a nossa razão limitada
de revelar as verdades divinas?" Ele responde que "sim". Basta ter
consciência de duas diferenças fundamentais:
• As diferenças entre dois tipos de conhecimento, pois se
o conhecimento deve ser entendido como apreensão do
objeto em sua plenitude, evidentemente, Deus não é pas-
sível desse tipo de conhecimento. Caso o conhecimento
seja apreensão do objeto em sua verdade do ser, então
podemos esperar que a razão possa captar essa verdade.
• A diferença entre duas espécies: do ser e do conhecimen-
to. Pelo ser, Deus ultrapassa infinitamente a razão huma-
na. Contudo, ele é cognoscível na medida em que ambos
pertencem à esfera do inteligível".

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144 © Metafísica I

Portanto, nós não sabemos o que é Deus, mas podemos de-


monstrar que ele existe. Assim, Boaventura prepara as condições
das demonstrações de existência de Deus as quais ele reduz em
duas vias (como em outros pensadores): a priori e a posteriori.
A demonstração a priori configura-se em torno do seguinte
raciocínio: na alma humana, existe uma tendência natural à sabe-
doria, à beatitude e à paz. Mas essa tendência seria em vão caso
não correspondesse a um fim último. Esse fim último, que se re-
sume na beatitude infinita e na paz eterna, deve necessariamente
existir para dar sentido à tendência natural do homem.
Já a demonstração a posteriori apoia-se no princípio causal vigen-
te no mundo criado. As coisas existentes são, evidentemente, imperfei-
tas e, por isso, causadas. Nesse caso, deve-se admitir a existência de um
princípio não causado que engendra e determina esse mundo.
No que diz respeito às suas especulações sobre o mundo
criado, Boaventura se revela seguidor fiel da doutrina de Agosti-
nho. As demonstrações de Boaventura sobre o início do mundo
no tempo são rigorosamente originais, como, por exemplo, uma
concepção defendida apenas por ele durante o século 13.
Grande parte dos teólogos medievais segue o conhecido ar-
gumento de Agostinho (1999), por meio do qual o tempo surge
com a criação do mundo, mas o começo do mundo não se pode
localizar no tempo. Não se pode falar de um "antes" antes da exis-
tência do próprio tempo. Esta frase, por exemplo, é despojada de
sentido: "antes do instante da criação o mundo não existia, mas
existe após esse instante". Logo, o mundo é criado não em um
momento temporal, mas a partir da eternidade.
Para Boaventura, porém, a própria noção de mundo criado
da eternidade é algo contraditório. Ele recorre aos seguintes argu-
mentos a esse respeito:
• Não é possível adicionar à eternidade alguma coisa. Se o
mundo não tem começo no tempo, ele já existe eternamen-
© U2 - Metafísica Medieval 145

te. Cada novo dia adiciona a si mesmo os dias passados, as-


sim, a eternidade deve aumentar – o que é absurdo.
• Os membros infinitos não se ordenam. Cada ordem pres-
supõe início, meio e fim. Caso falte o início, não existirá a
ordem toda.
• A eternidade não se pode atravessar. A noção de eterni-
dade pressupõe que o dia passado precede o dia atual
por uma eternidade. Então, se dissermos que os dias pas-
sados são infinitamente separados de hoje, como, então,
a infinidade foi atravessada para se chegar ao hoje, uma
vez que a eternidade não se atravessa?
Os argumentos de Boaventura referentes ao tempo mos-
tram uma considerável riqueza especulativa, enriquecendo, assim,
o currículo metafísico das especulações filosóficas da Filosofia Me-
dieval.

A imortalidade da alma
Em sua doutrina sobre a imortalidade da alma, Boaventura segue
Agostinho, porém, enriquece-a com ideias aristotélicas. A maior preo-
cupação para Boaventura é a de não admitir uma identificação subs-
tancial da alma, nem com Deus, nem com o corpo humano. A principal
diferença entre a alma humana e Deus é que a primeira é criada, por-
tanto, não recebe a sua existência de si, mas de algo outro. Uma vez que
a alma aceita a sua vida de outra coisa, ela não poderá ser uma subs-
tância simples. Para aceitar algo, especula Boaventura (apud GILSON,
2006), a alma deve ter uma faculdade de receber. Essa faculdade de
receber é passiva, mas, segundo Aristóteles (2006), a passividade cabe
à matéria. A alma é, portanto, constituída como cada coisa de matéria e
forma, ou seja, ela é hylemórfica. Por meio da sua constituição hylemór-
fica, a alma difere de Deus, no qual não existe nenhuma passividade,
nenhuma matéria, mas é puro ato e pura forma.
A introdução da matéria na alma coloca o problema da imor-
talidade da alma, uma vez que a matéria é o princípio da transfor-

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146 © Metafísica I

mação. Boaventura tenta escapar dessa dificuldade afirmando que


a matéria é necessária para a constituição da alma em termos de
sustância autônoma. Todavia, a alma não depende do corpo para
a sua existência. Para resolver o problema com a imortalidade da
alma, Boaventura (1985) afirma que ela é composta por uma ma-
téria imortal que não permite a sua destruição.
A concepção epistemológica de Boaventura é organizada
conforme o princípio clássico, segundo o qual, a verdade é com-
preendida como a adequação do intelecto com a coisa. Essa po-
sição significa que todo conhecimento verdadeiro pressupõe um
objeto verdadeiro. Objetos verdadeiros podem ser todas as coisas
existentes conhecidas em sua razão (ideia); tais ideias estão, pois,
contidas no intelecto de Deus. Isso significa que nenhum esforço
humano será suficiente para o alcance da verdade se Deus não
iluminar a alma humana. Com isso, Boaventura retoma a doutrina
da iluminação de Agostinho.
Apesar da forte influência agostiniana no pensamento de
Boaventura, este certamente contribui com algumas ideias e so-
luções inovadoras para o enriquecimento da Metafísica Medieval,
porém, não tanto quanto João Duns Scot, o pensador que estuda-
remos a seguir e cuja importância consiste em aprofundar a pro-
blemática metafísica e colocá-la em uma nova luz.

14. JOÃO DUNS SCOT


Referente à relação entre a fé e a razão, respectivamente, e
entre a Teologia e a Filosofia, Scot permanece fiel à tradição. Con-
forme isso, a certeza do conhecimento humano é garantida pelo
conhecimento imediato (intuitivo) ou pelo conhecimento mediato
(in BARAÚNA et. al., 1973). Conhecimento imediato aplica-se so-
mente aos objetos sensíveis e, apenas por abstração, o homem co-
nhece as substâncias espirituais, ou seja, de modo mediato. Nes-
se sentido, o homem não é capaz de conhecer plenamente Deus,
© U2 - Metafísica Medieval 147

uma vez que o conhecimento abstrato está limitado na esfera do


sensível, pois os objetos sensíveis são o ponto de partida do pen-
samento abstrato.
O conhecimento humano se apercebe como impotente dian-
te dos segredos ontológicos de Deus (o segredo do ser). Apesar de
o ser de Deus ser infinito e eterno, ele não deixa de ser incluído
na esfera do conhecimento humano, uma vez que o objeto do co-
nhecimento verdadeiro não é um ou outro tipo de ser, mas o ser
enquanto ser. Mas como será possível um conhecimento sobre
o ser enquanto ser? O ser enquanto ser é objeto da Metafísica e
esta é a via que conduz ao conhecimento de Deus. A Metafísica, no
entanto, é capaz, somente, de demonstrar que Deus existe, e não
revelar como ele é. Justamente por isso, o conhecimento metafísi-
co deve ser completado por outro tipo de conhecimento.
Esse outro tipo de conhecimento é a Teologia – a ciência que
se fundamenta na revelação. Ela nos ajuda constituir a noção su-
perior de Deus da qual podemos abstrair todos os seus atributos.
Nisso, consiste a diferença entre a Teologia e a Metafísica. O filó-
sofo conhece Deus como uma essência abstrata, já o teólogo o
conhece como sendo ser vivo concretamente compreensível.
Diferentemente de Tomás, Duns Scot concebe a Teologia mais
como ciência prática engajada com a nossa salvação (in BARAÚNA
et. al., 1973). A Teologia ultrapassa a Metafísica não apenas pela
concretude do seu objeto, mas pela sua capacidade de constituir
tal objeto como fim, pois o conhecimento abstrato metafísico, sem
dúvida, não poderá ser ou constituir-se como princípio teleológico
da vida humana.
Ao começar a discussão sobre problemas propriamente me-
tafísicos, Duns Scot parte da noção do ser. Segundo ele, o ser é a
noção mais geral da razão e poderia ser expresso de modo unívoco
para tudo o que existe – divino ou criado. Não podemos assina-
lar Deus e o mundo a partir da sua essência, pois, justamente por
essência, o criador e a criatura são completamente diferentes. To-

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148 © Metafísica I

davia, existe uma relação comum entre eles, caso contrário, não
existiria a possibilidade do conhecimento de Deus.
Evidentemente, para tal fim, especula Duns Scot, não é sufi-
ciente o princípio da analogia, uma vez que uma adequação parcial
entre duas realidades não permite uma conclusão segura de um
para outro (in BARAÚNA et. al., 1973). Portanto, a possibilidade do
conhecimento de Deus é dada como identidade absoluta entre o
criado e a criação em suas qualidades de ser. A noção de ser é a no-
ção mais simples e, por isso, irredutível a outra noção. Essa noção
não se pode definir, pois cada definição pressupõe uma condição
de definição, que é o próprio ser e, logo, este prescinde de defini-
ção. O ser não se pode definir por meio de gêneros e espécies por-
que estes estão inclusos no ser. O ser é, portanto, transcendental,
na medida em que ultrapassa qualquer tipo de espécie e gênero.
As categorias também não podem definir o ser, pois elas se
aplicam apenas aos seres finitos e criados. Quando nos referimos
ao ser, utilizamos características super categoriais, tais como uno,
bem e belíssimo que são chamadas por Duns Scot de "afetos do
ser". Os afetos do ser podem ser de duas espécies:
1) Convertíveis: designam o ser por meio de um nome, por
exemplo: todo ser é uno, verdadeiro etc. Essas noções
transcendentais abrangem, por assim dizer, o ser por to-
dos os lados.
2) Disjuntivos: designa o ser a partir de duas noções con-
traditórias, mas complementares. Não podemos dizer
que todo ser é finito ou infinito, mas finito e infinito.
A diferença entre o ser e seus afetos é apenas formal, assim, a
unidade, a bondade, a verdade e a beleza são apenas aspectos formais
do ser. Nos transcendentais disjuntivos, referente a cada par, a ênfase cai
sobre aquelas características que definem o ser de Deus. Por isso, nós
não podemos concluir do ser necessário para o ser contingente, mas,
sim, o contrário, ou seja, do ser contingente para o ser necessário.
A relação entre o ser e suas características transcendentais
determina-se pela diferença objetivo-formal. Isso quer dizer que
© U2 - Metafísica Medieval 149

além da diferença real entre as coisas, existe outra diferença mais


objetiva. Podemos definir, por exemplo, a diferença real como a
diferença entre dois corpos, ao passo que a diferença formal de-
finida como as características formais é objetivamente diferen-
te, mas ambas são inseparáveis, como é o caso da racionalidade
e da sensibilidade da alma, que coabitam no mesmo corpo. Essa
diferença formal desempenha um papel importantíssimo para o
conhecimento, pois permite o conhecimento de algo não apenas
como um todo, mas nas suas diferenças internas, ou seja, nas suas
partes.
Assim, é possível conhecer, nas suas determinações trans-
cendentais, o ser, cuja essência e existência são diferenciadas ape-
nas formalmente. Caso admitamos que a essência e a existência
de uma coisa são realmente diferentes, pode-se pensar, então,
que a essência poderá existir antes da existência, como ideia no
intelecto de Deus. Essa hipótese, por sua vez, não poderá susten-
tar a criação do nada, ou seja, que no seu ser essencial, as criaturas
existiram desde sempre.
Para preservar a onipotência e o livre arbítrio de Deus, Duns
Scot atribui realidade completa não no modelo inteligível (a for-
ma), mas na coisa realmente existente em que a essência e a exis-
tência são formalmente diferenciadas (in BARAÚNA et. al., 1973).
Com essa teoria da diferença objetiva formal, o filósofo consegue
traçar uma questão mais moderada sobre os universais: a nature-
za real da coisa, ou seja, o seu ser como exatamente esta coisa é
antes de qualquer universalidade.
Embora essa concepção explique a possibilidade do conhe-
cimento da coisa concreta, se, para Tomás, o geral é a forma, que
se individualiza por meio da matéria – o que significa que o conhe-
cimento do indivíduo é o conhecimento da sua forma universal,
sem que as características específicas da individualidade e da es-
pecificidade sejam levadas em conta –, para Duns Scot, a ativida-
de cognitiva é intencionada a coisa concreta (posição inversa a de

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150 © Metafísica I

Tomás) na qual as suas características individuais e específicas e a


sua essência geral (forma) são diferenciadas não realmente, mas
formalmente. Por exemplo, pode-se, assim, separar mentalmente
a humanidade da socraticidade, isto é, o universal do individual,
mas não se pode separar realmente, pois tais qualidades existem
de modo real e inseparável na natureza presente de Sócrates, an-
tes de qualquer diferenciação.
Uma consideração que merece destaque nas obras de Duns
Scot é a relação entre o livre arbítrio e a razão. O metafísico con-
corda com a posição de que cada tendência da vontade pressupõe
o conhecimento sobre o objeto dela. Todavia, ele afirma a prio-
ridade da vontade sobre a razão não apenas pelo tempo, como
também pela natureza e pelo valor. A vontade, segundo Scot, pre-
cede a razão, já que todo ato cognitivo, no princípio, é um ato de
escolha (in BARAÚNA et. al., 1973). Ainda que nada atribua ao ato
cognitivo, a vontade orienta a razão numa das possíveis vias de
escolha; é, pois, a predisposição necessária de todo conhecimento
da razão. Uma vez que a vontade põe em movimento o conheci-
mento, trata-se, grosso modo, de um "querer conhecer" que ante-
cede o ato cognitivo e o torna possível.
A principal vantagem da vontade sobre a razão é que a von-
tade é livre, e a razão não (a razão é submetida às leis lógicas).
Portanto, a não liberdade da razão a constitui como uma faculda-
de natural da alma humana, isto é, ela não é livre de não cumprir
a sua função lógica. A liberdade da vontade, ao contrário, significa
que a escolha não é determinada por nada.
Assim, Duns Scot edifica sua doutrina moral não à base inte-
lectual, como as concepções precedentes, mas à base voluntarista.
Desse ponto de vista, os erros da razão não produzem o pecado,
mas os erros da vontade; da mesma forma, não o conhecimen-
to, mas o amor traça o caminho da salvação. De acordo com essa
ideia, o pecado é visto como desejo voluntário para o mal, enquan-
to o erro da razão não é pecado.
© U2 - Metafísica Medieval 151

Com suas especulações metafísicas, Duns Scot inaugura uma


nova etapa no pensamento metafísico que terá grandes repercus-
sões nas especulações metafísicas da posteridade. Um atestado
disso é a forte influência que o ontólogo mais ilustre do século 20,
Martin Heidegger, teria sofrido.

15. OS PROBLEMAS METAFÍSICOS EM WILLIAM DE


OCCAM
Com William de Occam, dá-se, praticamente, o fim da espe-
culação metafísica medieval, o rompimento definitivo entre a fé e a
razão e, consequentemente, o início da especulação moderna. No
âmbito da fé, Occam permanece fiel à tradição; no âmbito filosófi-
co, porém, ele é original. Occam desenvolve a questão dos univer-
sais de um modo ainda mais radical do que seus precursores: ele
aponta para a nova era da filosofia – a Modernidade (in BARAÚNA
et. al., 1973). Operado por Occam, com a expulsão dos universais,
ocorre, também, simultaneamente, o processo de desespirituali-
zação da natureza, e, com isso, ela se torna mais interessante para
o investigador. A partir de Occam, entre os nominalistas, desabro-
cha o interesse pela Física e, consequentemente, configura-se a
ciência moderna.
Vale observar que, no âmbito epistemológico, Occam reco-
nhece como válido apenas um tipo de demonstração. Com efeito,
provar uma proposição consiste em mostrar que ela é imediata-
mente evidente ou que ela se deduz, necessariamente, de uma
proposição imediatamente evidente. Com isso, Occam (in BARAÚ-
NA et. al., 1973) coloca a precedência da experiência sobre as pro-
posições de uma determinada ciência, ou seja, nenhum homem é
capaz de saber determinadas proposições se não as conhecer pela
experiência.
Segundo Gilson (2006), Occam reconhece dois tipos de co-
nhecimentos: intuitivo e abstrato. O conhecimento abstrato tem

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152 © Metafísica I

por objetos as relações entre as ideias. Entretanto, mesmo que


existam relações necessárias entre as ideias, nada garante que as
coisas reais se conformam com elas, e, por isso, não se pode con-
cluir da ordem lógica para a ordem ontológica. Se quisermos que o
conhecimento abstrato nos garanta a verdade e a realidade, temos
de recorrer, segundo Occam, à evidência imediata, que é intuiti-
va. "O conhecimento abstrato não nos permite saber se uma coisa
que existe, existe e se uma coisa que não existe, não existe" (apud
GILSON, 2006, p. 797).
O conhecimento intuitivo é o único que tem por objeto o ser
concreto. "O conhecimento intuitivo é aquele pelo qual sabemos
que uma coisa é quando ela é e que não é quando não é" (apud
GILSON, 2006, p. 797). Ele é o ponto de partida do conhecimento
experimental. Este, por sua vez, nos permite formular, por uma ge-
neralização do conhecimento particular, as proposições universais,
que são os princípios de toda ciência.
O conhecimento intuitivo inclui, necessariamente, a reflexão
racional, mas o primado consiste, segundo o filósofo, ao conheci-
mento do particular. Diferentemente de Aristóteles, para o qual
o conhecimento sempre é para o geral, Occam funda o conheci-
mento ao concreto e particular. Por isso o conhecimento intuiti-
vo precede o conhecimento abstrato. O conhecimento, de acordo
com Occam, sempre parte do mundo externo, que nos apresenta
coisas concretas, e, devido a isso, o primeiro conhecimento é so-
bre a coisa concreta. Tal fato não significa, porém, que não temos
conhecimento intuitivo para realidades espirituais, tais como são
os atos da reflexão, da vontade, da alegria e da tristeza. Referente
a esses atos, não temos, todavia, uma noção intuitiva direta, mas
reflexiva: a vontade deve evocar a autorreflexão.
Todas as afirmações, conforme Gilson, na concepção de Oc-
cam, devem ser constatadas no campo da experiência, caso con-
trário, a sua existência é, no mínimo, duvidosa. Ele aplica o prin-
cípio da economia do pensamento, segundo o qual não se devem
© U2 - Metafísica Medieval 153

multiplicar os seres sem necessidade. As essências não se devem


multiplicar sem uma razão suficiente. Nesse sentido, Occam limpa
o campo filosófico de todas as substâncias inúteis, tais como são
os universais – os gêneros e as espécies.
Vale observar que Occam introduz a regra de que as explica-
ções causais se devem isolar à verdadeira causa do respectivo efei-
to (in BARAÚNA et. al., 1973). Conforme tal regra, uma explicação
apenas é suficiente e boa quando, verificado pela devida obser-
vação, se comprova que determinado efeito é causado por deter-
minada causa. A única demonstração de que uma coisa é causada
por outra fornece a experiência por meio da qual se constata que
quando uma coisa está presente, segue o efeito esperado, e quan-
do não está presente, o efeito não aparece.
Referente aos universais, Occam revela a sua posição radical
e crítica (in BARAÚNA et. al., 1973). Conforme tal posição, é nega-
da ao universal qualquer existência ou status ontológico. Segun-
do o filósofo, caso o universal puder existir, ele deverá ser coisa
particular. Nesse sentido, a noção de universal como realmente
existente (posição realista) é considerada como algo paradoxal e
absurdo. Se o universal fosse uno, não se teria como explicar a
sua presença em muitas coisas; se fosse múltiplo, não seria uno. A
noção do universal não possui realidade fora da alma, pelo contrá-
rio, o universal é uma criação mental. Caso não possamos atribuir
uma realidade ao universal, resta então atribuir alguma realidade
à alma. O universal existe apenas na alma e, portanto, não na re-
alidade. A essência dos universais, afirma Occam, consiste na sua
função de significado (in BARAÚNA et. al., 1973).
Essa concepção de Occam subjaz à sua teoria epistemológica,
na qual o filósofo afirma que certas proposições são verdadeiras e
outras falsas. Em resumo, toda ciência consiste em proposições. As
proposições compõem-se por termos e estes, por sua vez, possuem
significação que substitui os objetos na proposição (suppositio). As-
sim, Occam chega à sua teoria da suposição, na qual existem três
casos de suppositio:

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154 © Metafísica I

a) Suppositio materialis: o termo significa a própria pala-


vra que o constitui, como, por exemplo: homem é uma
palavra. Aqui, a palavra homem é considerada em sua
própria materialidade.
b) Suppositio personalis: o termo significa indivíduos reais,
como, por exemplo: o homem corre. Aqui, não se consi-
dera o termo o homem que corre, mas uma pessoa.
c) Suppositio simplex: o termo significa algo comum, como,
por exemplo: o homem é uma espécie. Aqui, o homem
não significa um indivíduo, mas uma comunidade.
Até agora, a questão dos universais era a do poder da lógica.
A Metafísica começa quando se coloca a questão: o que corres-
ponde como realidade a esse universal quando o termo de uma
proposição designa num caso de suppositio simplex?
Exemplificando: o homem é uma espécie.
Lembremos que os realistas afirmavam a existência real dos
universais, ou seja, fazer do próprio universal uma coisa singular
(Platão). Outros afirmavam que o universal só existe no pensa-
mento, mas procuravam o que correspondia a esse universal na
realidade.
A posição de Occam está plenamente de acordo com o es-
pírito nominalista, conforme o qual cada coisa real é individual de
plano direito. Com outras palavras, tudo o que está fora do pen-
samento é individual. E visto que tudo o que é real é individual, os
gêneros e as espécies são nada fora do pensamento, uma vez que
as coisas individuais são passíveis de classificação pelo pensamen-
to em gêneros e espécies. Nesse caso, a única realidade que cor-
responde às universais é a dos indivíduos. Portanto, os termos são
substitutos de coisas reais. Isso significa que, para Occam, apenas
as coisas reais são realmente existentes.
O conhecimento das coisas pode ser dado de modo confuso
ou distinto. No primeiro caso, trata-se de conhecimento que não
distingue as características concretas da coisa, como, por exem-
© U2 - Metafísica Medieval 155

plo, quando não reconheço Sócrates como ele mesmo, concebo-o


como "homem", termo que designa um conceito. O segundo modo
do conhecimento, o modo distinto, refere-se ao conhecimento que
consegue distinguir as características próprias do objeto, por exem-
plo, quando reconheço Sócrates como ele mesmo, dou-lhe o nome
"Sócrates", que designa um ser real. Nesse sentido, quando dizemos
que Sócrates é homem, nada mais dizemos do que Sócrates é. Por-
tanto, de qualquer maneira, as proposições verdadeiras reduzem-se
em palavras que sempre significam as coisas particulares.
Vale notar que todo conhecimento supõe sujeito e objeto.
Para explicar a assimilação do objeto por parte do sujeito, os filó-
sofos consideraram um aspecto intermediário chamado espécie.
Occam (in BARAÚNA et. al., 1973) nega a possibilidade de a espé-
cie servir de transição entre a matéria e a alma (objeto e sujeito).
A objetividade do conhecimento, ao contrário, é garantida pela
passividade da nossa razão. No cognitivo, a razão contrapõe-se ao
objeto, assim, naturalmente o objeto produz o conhecimento no
juízo.
Disso, segue-se que não é possível a demonstração de que
o intelecto é causa eficiente do conhecimento. Nesse caso, os ter-
mos gerais surgem naturalmente sem a espontânea interferência
do juízo, e, uma vez que para o conhecimento basta a presença da
razão diante do objeto, ou seja, diante da coisa concreta, então a
espécie intermediária se torna desnecessária. Desse modo, con-
forme o princípio da economia do pensamento, Occam impõe a
obrigação de se rejeitarem as espécies inteligíveis.
Referente ao problema da existência de Deus, que é um dos
problemas fundamentais da Ontoteologia medieval, Occam se de-
clara como defensor da revelação, porém, mostra-se bastante cé-
tico a respeito da demonstração racional das verdades da fé por
parte da Filosofia.
Segundo Occam (in BARAÚNA et. al., 1973), a existência de
Deus é uma afirmação teológica. As afirmações teológicas servem

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156 © Metafísica I

para a salvação. Todas as verdades ligadas ao processo da salvação


são teológicas. Nesse sentido, Occam nega que foi demonstrada
racionalmente a existência de Deus. Aristóteles não demonstrou
a existência do primeiro motor imóvel, pois o princípio ao qual a
demonstração se funda não é evidente, contrapondo o argumento
de que a alma, por exemplo, possui movimento de si e não de ou-
tra coisa. Occam, no entanto, aceita a demonstração de Duns Scot,
porém, não sem reservas.
Ele reconhece a demonstração a partir da causa primeira, mas
atribui a ela um caráter ainda mais evidente quando utiliza para tal
fim não a causa eficiente enquanto produtora, mas a causa eficiente
enquanto conservadora. A causa eficiente como causa productionis
– demonstração de Deus a partir da criação – não é evidente porque
a criação pode existir sem o criador, como se dá na relação entre o
pai e o filho, por exemplo. Mais consistente é a prova a partir da cau-
sa eficiente como causa conservationis, que se funda na demons-
tração de Deus a partir da conservação. Essa prova é mais evidente,
uma vez que a conservação pressupõe uma causa conservadora.
De acordo com a sua teoria do conhecimento, Occam (in BA-
RAÚNA et. al., 1973) nega a possibilidade de as ideias serem deri-
vadas de Deus. As ideias não se encontram no intelecto de Deus
como dados reais, mas são objetos do conhecimento divino. Com
efeito, elas existem objetivamente, uma vez que são as próprias
coisas que Deus pode criar. Embora não existam ideias universais
em Deus, mas, apenas, ideias singulares, Deus pensa essas últimas
nas coisas individuais como são criadas.
Referente à criação, Occam (in BARAÚNA et. al., 1973) ade-
re ao hylemorfismo como teoria física, porém, purifica-a de todos
os resíduos metafísicos e lógicos. Nesse sentido, a forma não é
compreendida em termos de uma natureza comum, mas constitui
aquele princípio concreto que atualiza a matéria concreta. A ma-
téria, por sua vez, não é pura potencialidade, ela é um dado físico
real e como tal é cognoscível.
© U2 - Metafísica Medieval 157

Certamente, com Occam, começa uma expressiva tendência


empirista que dará origem a ciência moderna. Operada por Occam,
a ruptura com os pressupostos teológicos e com o simbolismo pre-
para o solo para uma nova concepção de mundo, completamente
diferente à da época medieval.
Evidentemente, com Occam, a Metafísica enfraquece a sua
forte presença no discurso filosófico medieval em prol de uma ên-
fase puramente mecanicista, e, com isso, será necessário passar
um longo tempo para a sua vigência na época da modernidade.
Sua vigência ocorrerá em uma nova versão com a descoberta do
cogito, realizada pela Metafísica Cartesiana.

16. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS


Confira, a seguir, as questões propostas para verificar o seu
desempenho no estudo desta unidade:
1) Sobre Santo Anselmo e o seu argumento ontológico é correto afirmar que:
a) Ele sustentava que não seria possível provar a existência de Deus.
b) Ele sustentava que seria possível dar provas a posteriori da existência de
Deus, mas não a priori.
c) Ele sustentava que seria possível dar provas a priori da existência de
Deus, mas não a posteriori.
d) Ele sustentava que era possível dar provas a priori e também a posteriori
da existência de Deus.
e) Ele sustentava a inexistência de Deus.
2) Considerado o primeiro dos escolásticos, equacionou o problema dos universais
formulando três questões: 1) existem ou não os universais? 2) são corpóreos ou
incorpóreos? 3) se forem incorpóreos, estão unidos às coisas sensíveis? Trata-se
aqui de:
a) S. Agostinho.
b) Abelardo.
c) S. Tomás de Aquino.
d) Justino.
e) Boécio.
3) Defendeu que "não se devem multiplicar os entes se não for necessário", propon-
do que a razão deve excluir aquilo que é supérfluo em uma explicação científica:
a) Justino.
b) S. Agostinho.
c) Willian de Occam.

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158 © Metafísica I

d) Orígenes.
e) Abelardo.
4) Autor da célebre frase "crer para compreender", que, de certo modo, sinte-
tiza como esse autor pensava a relação entre conhecimento e fé:
a) S. Tomás de Aquino.
b) S. Agostinho.
c) Duns Scot.
d) Abelardo.
e) Porfírio.
5) Qual das provas ontológicas sobre existência de Deus NÃO consiste em uma
das provas a posteriori, elaboradas por Santo Anselmo?
a) Se as coisas são boas, existe uma bondade absoluta.
b) Tudo no mundo está em devir, portanto, há, necessariamente, algo cria-
dor, Deus, que não está em devir, criador de todas as coisas.
c) Tudo o que existe, existe em virtude de algo; deve, portanto, haver um
ser supremo, a causa das coisas.
d) Os diversos graus de perfeição que existem devem remeter a uma perfeição.
e) Das grandezas qualitativas que existem remonta a uma suma grandeza.
6) Em relação à questão dos universais, a posição que sustentava não haver
nenhuma relação entre os nomes e as coisas era a posição:
a) Realista.
b) Realista moderada.
c) Realista radical.
d) Nominalista.
e) Idealista.
7) Segundo S. Tomás, são cinco as vias para provar a existência de Deus:
a) Via do movimento; da causa; da contingência; da perfeição; do finalismo.
b) Via do movimento; do repouso; do ser; do não-ser; do nada.
c) Via do movimento; do repouso; da criação; do ser; da perfeição.
d) Via do movimento; da criação; do ser; do nada; do finalismo.
e) Via do movimento; da contingência; do ser; do nada; do finalismo.

Gabarito
Confira, a seguir, as respostas corretas para as questões au-
toavaliativas propostas:
1) d.
2) e.
3) c.
4) b.
5) b.
6) d.
7) a.
© U2 - Metafísica Medieval 159

17. CONSIDERAÇÕES
Nesta unidade, você pode encontrar as principais teses me-
tafísicas do período medieval. Você estudou, também, que os
novos elementos introduzidos no discurso filosófico pelo cristia-
nismo estabeleceram um solo fértil para os debates teológicos e
metafísicos.
Num primeiro momento, a Patrística teve de adotar um dis-
curso de defesa da religião cristã, que, como vimos, ainda não era
bem vista aos olhos do Império Romano. Dentre os principais filó-
sofos desse período destaca-se Santo Agostinho, que, fortemente
influenciado pela filosofia platônica, ofereceu o primeiro sistema
filosófico consistente para sustentar a fé cristã em meio a um am-
biente pagão.
Outro grande período que você conheceu foi o período da
escolástica, em que se destacam as teses de Santo Tomás de Aqui-
no, que diferente de Agostinho, acabou sofrendo influências das
teses aristotélicas. O período medieval da Metafísica tem o seu fim
com Willian de Occam, cujas contribuições para as teses nomina-
listas encerram o período de discussão em torno dos universais e,
logo, a grande discussão medieval.
Na próxima unidade, você irá aprender as principais teses
metafísicas do período moderno, que se iniciará com a descoberta
do cogito feita por Descartes.

18. E-REFERÊNCIAS

Lista de figuras
Figura 1 A criação de Adão. Disponível em: <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/
commons/6/63/The_Creation_of_Adam.jpg>. Acesso em: 19 nov. 2010.
Figura 2 Santo Agostinho – teoria da iluminação. Disponível em: <http://www.lendo.org/
mais-30-citacoes-apaixonadas-sobre-livros/>. Acesso em: 10 nov. 2010.
Figura 4 Santo Agostinho. Disponível em: <http://www.csa.com.br/direcao/santo-
agostinho>. Acesso em: 10 nov. 2010.

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160 © Metafísica I

19. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


AGOSTINHO, A. A Cidade de Deus. Tradução de Oscar Paes Lemes. 4. ed. Rio de Janeiro:
Vozes, 2001.
______. A cidade de Deus. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1995.
______. A Trindade. São Paulo: Paulus, 1995.
______. Confissões. São Paulo: Nova Cultural, 1999. (Os pensadores).
ANSELMO. Proslógio. Tradução de Ângelo Ricci. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
(Coleção Os Pensadores)
______. Suma Teológica. Tradução de Aimom-Marie Roguet et al. São Paulo: Loyola,
2001. v. 1 e 2.
______.  Suma Teologica: do homem considerado na sua alma.  Sao Paulo: Siqueira,
1947.
ARISTÓTELES. Metafísica. Tradução, textos adicionais e notas de Edison Bani. Bauru:
Edipro, 2006. (Clássicos Edipro).
BARAÚNA, J. L. et al. (Org.). Seleção de textos. Tradução de ­­______. São Paulo: Abril
Cultural, 1973.
GILSON, E. A filosofia na idade média. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins
Fontes, 1995/2001. 
______.  O espírito da filosofia medieval.  Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo:
Martins Fontes, 2006.
SÃO BOAVENTURA. Obras Escolhidas. In: de BONI, A. L. (Org.). Caxias do Sul: Livraria
Sulina, 1985.
EAD
Metafísica Moderna

3
1. OBJETIVOS
• Conhecer a nova proposta metafísica da modernidade.
• Compreender a Metafísica Moderna como base do co-
nhecimento científico.
• Relacionar as propostas metafísicas de Descartes, Spinoza
e Leibniz com relação à possibilidade de um conhecimen-
to científico rigoroso.

2. CONTEÚDOS
• A descoberta do cogito em René Descartes e o conheci-
mento seguro com base em um método.
• A Metafísica é a maneira dos geômetras em Spinoza.
• Leibniz e a harmonia preestabelecida.
162 © Metafísica I

3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE


Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que
você leia as orientações a seguir:
1) Não deixe de ler as obras dos filósofos aqui tratados, ou
seja, Descartes, Spinoza e Leibniz.
2) Para conhecer um pouco mais sobre as ideias de Spinoza,
principalmente sua concepção de Deus, leia o texto
A definição de Deus na Ética de Benedictus Spinoza
disponível no site: <http://www.uece.br/kalagatos/
dmdocuments/V2N4-A-definicao-de-deus-na-Etica-de-
Benedictus-de-Spinoza.pdf>. Acesso em: 19 nov. 2010.
3) Pode ser útil que você verifique alguns conceitos pre-
sentes nos tópicos Glossário de conceitos e Esquema de
conceitos-chave do CRC. Caso ainda tenha dúvidas, con-
sulte um bom dicionário de filosofia.
4) Para auxiliá-lo no estudo deste CRC, você também pode
recorrer ao CRC História da Filosofia Moderna II, além
de outras obras de comentadores da Filosofia Moderna.
Lembre-se que a pesquisa é parte fundamental de um
curso de nível superior.

4. INTRODUÇÃO À METAFÍSICA DA MODERNIDADE


Você iniciará o estudo sobre a Metafísica Moderna. Esta for-
ma de pensamento encontrou nos filósofos racionalistas seus mais
ilustres representantes. O pensamento metafísico da modernidade
segue as questões esboçadas pela Metafísica Medieval. Vale ob-
servar, nesse caso, que a ruptura entre o pensamento medieval e o
pensamento moderno não se dá no campo da Metafísica, mas, sim,
no campo da Física. Portanto, os problemas metafísicos, em linhas
gerais, permanecem os mesmos, todavia, enriquecidos pelas novas
propostas e novas soluções. Entre os mais ilustres representantes do
pensamento metafísico da modernidade, destacamos três pensado-
res, cujas teorias são o alvo principal do nosso estudo metafísico.
Trata-se, com efeito, das teorias de Descartes, Spinoza e Leibniz.
© U3 - Metafísica Moderna 163

5. DESCARTES: A METAFÍSICA COMO GARANTIA DO


CONHECIMENTO SEGURO
A Filosofia Cartesiana surge como proposta metodológica
para o alcance do verdadeiro conhecimento, a saber, o indubitável
ponto a partir do qual se pode construir o prédio de todas as ci-
ências. Nesse projeto inovador, a Metafísica, chamada de Filosofia
Primeira por Descartes e também por Aristóteles, tem um papel
de protagonista. Segundo esse filósofos, a Metafísica está nas ra-
ízes de todas as ciências, aludindo-a com a metáfora da árvore,
de acordo com a qual a Metafísica é a raiz, a Física é o tronco e as
demais ciências são os ramos da árvore.
As verdades da Metafísica, as ideias inatas, segundo Descar-
tes (apud ROVIGHI, 2000), são compreendidas pela luz natural da
razão, clara e distintamente, de forma simples e inconfundível. São
verdades de caráter apodítico. Mas para chegar à certeza dessas
verdades, Descartes percorre um longo itinerário de dúvida. De
acordo com o filósofo, tudo o que ele aprendeu por meio dos seus
mestres e dos livros parecia muito duvidoso. Diz ele na sua obra
Discurso do método:
Já faz algum tempo que me dei conta de que, desde meus primei-
ros anos, acolhera como verdadeiras uma quantidade de falsas
opiniões (...); pensei então que devia empreender seriamente uma
reviravolta na vida para desfazer-me de todas as opiniões que acei-
tara até então e começar tudo de novo desde os primeiros funda-
mentos, se quisesse estabelecer de uma vez por todas alguma coisa
de sólido e estável no saber. Para descobrir o verdadeiro saber, é
necessário, pelo menos uma vez na vida, submeter tudo à dúvida
(apud ROVIGHI, 2000, p. 80).

Por essa razão, ele resolveu adotar a dúvida como método


das suas buscas metafísicas. O objetivo dessa dúvida é revelar o
que resiste a ela, isto é, o que é indubitável e que se pode tomar
como ponto de partida de todo saber científico. Vale observar aqui
que a dúvida de Descartes é totalmente diferente da dúvida dos
céticos. Estes se utilizam da dúvida de modo sistemático para der-
rubar qualquer pretensão dogmática e qualquer concepção epis-
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164 © Metafísica I

temológica. Ao contrário, Descartes elege a dúvida como méto-


do, pois se tudo é duvidoso, então tudo deve ser colocado sob a
suspeita de dúvida, e aquilo que resiste, com toda razão, se pode
aceitar como indubitável.
A questão da dúvida é tratada por Descartes na primeira par-
te da obra Meditações Metafísicas. Em linhas gerais, essa dúvida
compreende quatro momentos que, metodologicamente, abran-
gem toda realidade, com efeito:
1) a dúvida nos sentidos, que abrange tudo o que é objeto
de nossa experiência sensorial e todo o mundo físico;
2) a dúvida a partir do argumento do sonho, segundo o
qual não teríamos um critério seguro para distinguir os
sonhos da realidade;
3) a dúvida nas certezas matemáticas;
4) a dúvida inspirada pelo Gênio Maligno.
A primeira dúvida, referente aos sentidos, é legitimada pelo
fato de que os sentidos frequentemente nos enganam e se refe-
rem, principalmente, à física aristotélica, que se apoia nos dados
sensíveis. Diz Descartes a esse respeito:
Já que me dei conta que muitas vezes os sentidos enganam e já que é
prudente não confiar em quem já nos enganou uma vez, descartarei
tudo o que é atestado pelos sentidos" (apud ROVIGHI, 2000, p. 81).

Caso seja assim, então nada nos autoriza a aceitar os dados


sensíveis como indubitáveis.
O fato de podermos atestar, por meio dos sentidos, que es-
tamos despertos, que tocamos nessa ou naquela coisa etc. e que
os sentidos não nos enganam, Descartes objeta com o argumento
do sonho, a saber, que as pessoas podem sonhar que estão fa-
zendo várias coisas, mas que, na verdade, estão deitadas na cama
dormindo. A dúvida referente ao sonho parte do fato de que o
homem não possui um critério seguro de que o estado de vigília
seja mais verdadeiro do que o do sonho. De onde, por exemplo, se
originam as imagens que temos nos sonhos? Mesmo que a nos-
© U3 - Metafísica Moderna 165

sa imaginação as criasse, todavia, os elementos que as compõem,


tais como figura, extensão, número etc. não podem ser criados
pela imaginação. Daí, vem a dúvida.
A dúvida cartesiana estende-se até as proposições da mate-
mática que parecem mais seguras, mais claras e distintas. Se admi-
timos a existência de um Gênio Maligno – e isso é possível – que
nos engana em nossas claras e distintas percepções, que só imagi-
namos que 2 + 3 = 5, na verdade, tudo isso não passa de um enga-
no. Com o Gênio Maligno, Descartes nas Meditações Metafísicas,
realiza uma radicalização extrema da dúvida para evitar quaisquer
resíduos duvidosos e limpar o terreno para aquilo que nem o Gê-
nio Maligno consegue atingir.
Esse método da dúvida revela, porém, algo indubitável. Nem
o Gênio Maligno é capaz de assombrar essa certeza de que se duvi-
da. Eis o que Descartes atesta na segunda parte das Meditações:
Existe uma coisa que eu não posso duvidar, mesmo que o demônio
queira enganar-me, mesmo que tudo que penso seja falso, mesmo
que tudo podemos rejeitar, em tudo duvidar e também admitir que
não há Deus, nem céu, nem terra, todavia, resta a certeza que eu duvi-
do, ou seja, penso (...). Nenhum objeto do pensamento resiste à duvi-
da, porém, o próprio ato de duvidar é indubitável (1973, VII, p. 25).

Dito de outra maneira, mesmo admitindo-se que tudo é


falso e nada resiste à dúvida, o próprio ato de duvidar é indubi-
tável. Mas duvidar significa pensar e, enquanto penso, eu existo,
pois, para pensar, deve haver alguém que pense. Enquanto eu sou
aquele que pensa e, portanto, duvida, eu existo: cogito, ergo sum
(penso, logo existo).
Assim, o cogito cartesiano assume a importância de primeira
verdade metafísica, aquela pedra fundamental em torno da qual
é possível a edificação do grandioso prédio das ciências. Cogito,
ergo sum funda-se a uma intuição metafísica que não depende do
mundo externo – aquele mesmo mundo que é sujeito à dúvida.
Essa intuição é, portanto, totalmente independente de qualquer
exterioridade, ela basta a si mesma e, por isso, é indubitável.

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166 © Metafísica I

Depois da descoberta do indubitável cogito, Descartes passa


a analisar a natureza das ideias, definindo-as conforme segue:
1) Ideias adventícias (ideias advindas de fora). A fonte des-
sas ideias são os sentidos que acessam o mundo externo
e formam ideias correspondentes.
2) Ideias criadas por mim por meio da imaginação.
3) Ideias inatas. Entre tais ideias, a ideia de Deus é mais repre-
sentativa, pois ela não deriva dos sentidos, uma vez que os
sentidos se relacionam com o físico, nem pode ser criada
pela imaginação, uma vez que suas qualidades sumamente
perfeitas não podem ser resultado de uma imaginação.
A ideia de Deus, não sendo derivada da experiência ou cria-
da pela imaginação, só pode ter sua origem do próprio Deus, que
a imprime na nossa alma. Nesse ponto, impõe-se a necessidade
de demonstração da existência de Deus, pois, mesmo descobrindo
o indubitável cogito, que serve como o ponto de partida para a
demonstração da existência de Deus, o mundo continua suspenso
sobre o poder do Gênio Maligno, ou seja, continua sendo duvido-
so. Nesse caso, Deus serviria como garantia contra a incerteza que
o Gênio Maligno inspira. Com outras palavras, demonstrar que
Deus existe, significa, automaticamente, que o Gênio Maligno não
tem mais o poder de enganar nas claras e distintas percepções,
por exemplo, no âmbito da matemática. A lógica desse raciocínio
é simples: se Deus é sumamente perfeito e bom, ele não me enga-
naria, pois o engano cabe ao Gênio Maligno. Portanto, se há Deus,
não há Genio Maligno.
O argumento principal em prol da existência de Deus é a sua
perfeição. Se Deus é sumamente perfeito, ele necessariamente
deve existir, pois qual perfeição seria a perfeição não existente?
Como o homem é imperfeito, não será capaz de chegar à ideia da
perfeição absoluta se o ser sumenete perfeito não tiver imprimido
essa ideia na sua mente.
Nessa prova ontológica, soam os ecos da demonstração on-
tológica de Anselmo. Para Anselmo, a existência de Deus possui
© U3 - Metafísica Moderna 167

uma importância fundamental para a sustentação dos dogmas


cristãos. Já para Descartes (1973), a existência de Deus serve como
garantia da possibilidade do conhecimento científico, uma vez que
a dúvida que o Gênio Maligno inspira só pode ser superada ao se
demonstrar que Deus existe.
Mais adiante, Descartes interroga-se sobre a ideia de que a
perfeição não pode ser derivada de um ser imperfeito, como é o
caso do homem. Evidentemente, em sua experiência, o homem
aprende, isto é, passa de um grau inferior a um grau superior, com
outras palavras, aperfeiçoa-se. A pergunta é: nessa tendência de
perfeição, o homem não seria capaz de chegar a perfeição absolu-
ta de modo gradativo? Descartes (1973) responde negativamente.
Segundo ele, a ideia de Deus não se apresenta em potência, mas
em ato; Deus é atualmente perfeito e infinito. É em sua atualidade
que a ideia de Deus se encontra impressa na nossa mente:
A idéia de Deus é inata como é inata a idéia que eu tenho de mim
mesmo. E, de fato, não é estarnho que Deus, criando-me, tenha posto
em mim aquela idéia, para que fosse como o selo impresso do artífi-
ce em sua obra; nem se trata de um selo diferente da obra mesma;
mas, pelo próprio fato de que Deus me criou, é compreensível que
me tenha feito de certo modo à sua imagem e semelhança, e que essa
semelhança, na qual está contida a idéia de Deus, seja percebida por
mim como a própria faculdade com a qual percebo a mim mesmo não
apenas que sou uma coisa incompleta e dependente de um outro, que
tende indefinidamente a algo maior e mais perfeito; mas vejo também
que a realidade da qual dependo tem em si tudo aquilo a que tendo, e
o tem não indefinidamente e em potência apenas, mas atualmente e
infinitamente, e portanto é Deus (1973, VII, p. 51).

Sendo Deus sumamente perfeito e, por isso, incapaz de nos


enganar devido à sua bondade, Descartes (1973) então indaga: de
onde se origina o engano? A questão do erro ou do engano será
tratada por Descartes na quarta meditação da sua obra principal.
Para dar uma resposta sustentável a questão do erro, o filósofo
analisa a posição intermediária entre Deus e o nada. O homem é
um ser em potência e inserido entre a pura atualidade de Deus e
a pura ausência. Enquanto referido a Deus, o homem revela suas
características positivas, enquanto referido ao nada, as negativas.

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168 © Metafísica I

No entanto, o erro não é negação pura, mas uma falha ou


privação. Isso leva Descartes a revisar essa posição inicial sobre
o erro, afirmando que o erro se origina da incomensurabilidade
entre a faculdade de conhecer e a vontade livre ou livre arbítrio.
Como ser finito, a faculdade intelectual do homem é limitada, en-
quanto a vontade livre é ilimitada. Com outras palavras, as nossas
claras e distintas percepções são limitadas e, quando levadas pela
vontade livre, incorrem no erro, ou seja, o erro origina-se de nossa
precipitação.
A sexta e última meditação começa com a indagação sobre
as coisas materias, a saber, se elas existem verdadeiramente. Para
responder a essa indagação, Descartes (1973) recorre a alguns ar-
gumentos: com efeito, todos os corpos materias são extensivos e
podem ser analisados sob os aspectos da matemática, como nú-
mero, extensão, figura etc. Sabemos das especulações anteriores
de que os objetos matemáticos são percebidos clara e distinta-
mente – o que é, para Descartes (1973), o critério da verdade.
A intensão de Descartes é demonstrar que o ato de imaginar
e o ato de sentir são modos do pensamento. No contato com o
objeto material, ambos os modos exprimem-se de modo direto,
ou seja, como o modo de pensar o objeto, porém, não se identifi-
cando com o pensamento.
Descartes (1973) explica a diferença entre o pensamento
puro e a imaginação dando o exemplo do quilógono (figura com mil
ângulos), afirmando que o pensamento é capaz de calcular clara e
distintamente todos os ângulos; a imaginação, porém, não é capaz
de imaginar tal figura. Nesse exemplo, pode-se observar que o in-
telecto consegue manter a sua identidade sem a imaginação. Esta,
por sua vez, segundo Descartes (1973), depende do corpo que o
intelecto usa como meio. Com outras palavras, na relação cogniti-
va entre o cogito e o mundo material, o intelecto usa os sentidos
e a imaginação para o conhecimento dos objetos externos (mate-
rias) e, com isso, a demonstração da existência das coisas materias
© U3 - Metafísica Moderna 169

não se funda na percepção sensível, mas no pensamento. Pode-se


dizer, então, que a matéria existe embora Deus, para Descartes, é
a garantia para as ideias claras e distintas da matéria.
Essa breve exposição sobre a metafísica de Descartes reve-
la a grandiosa contribuição do filósofo para a modernidade. Seus
sucessores, os significantes pensadores Spinoza e Leibniz, vão se
filiar fortemente ao pensamento cartesiano e, sobretudo, à sua
metafísica para a construção dos seus sistemas metafísicos.
Primeiramente, você irá conhecer a proposta de uma metafí-
sica à maneira dos geômetras, que é a proposta de Baruch Spinoza.
Acompanhe!

6. SPINOZA: A METAFÍSICA À MANEIRA DOS


GEÔMETRAS

Introdução ao panteísmo de Spinoza


Baruch Spinoza é um dos mais representativos filósofos me-
tafísicos da modernidade. Vale notar que ele é criador do primeiro
sistema filosófico completo, acabado e, segundo Spinoza (1973), à
maneira dos geômetras. Conforme o método dos geômetras, que
Spinoza adota no seu sistema metafísico, parte-se de um princípio
fundante – a Causa Sui (Deus) – e demonstra-se cada tese poste-
rior como consequência necessária da anterior, de modo bastante
semelhante aos princípios da geometria.
Ética é a sua obra prima que pretende ser a encarnação des-
se método. A obra, em linhas gerais, expõe a doutrina dos afetos,
cuja demonstração metafísica é exposta nas primeiras duas partes:
De Deus; Da natureza e Da origem da alma. As três partes restan-
tes (a obra é concebida por Spinoza em cinco partes) são intitula-
das conforme segue, respectivamente: Da origem e natureza das
afecções; Da servidão humana e as forças do afeto e Da potência,
inteligência e liberdade humana.

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170 © Metafísica I

Para a compreensão do sistema metafísico de Spinoza, re-


quer-se uma breve consideração referente a uma obra anterior
à Ética, intitulada De intelectus emendacione, em que o filósofo
atesta que a possibilidade da verdade de uma ideia não se deve
procurar fora do intelecto, e sim em sua interioridade, onde ela
brota. Nessa concepção sobre a verdade, origina-se a noção que
vai aparecer mais tarde na Ética de ideia adequada.
A concepção de Causa Sui é o ponto de partida, conforme
exigido pelo método geométrico, de um princípio absoluto e fun-
dante do qual se pode derivar o sistema todo. A partir dessa noção,
é possível, conforme Spinoza (1973), inferir todas as outras propo-
sições para que se constitua um sistema perfeitamente acabado.
A Causa Sui ou a Substância é definida por Spinoza nos se-
guintes termos:
Por Substância entendo o que existe por si e em si é concebido, isto
é, aquilo cujo conceito não tem necessidade de conceito de outra
coisa do qual deva ser formado (SPINOZA, 1973, p. 150).

Essa definição, aparentemente semelhante à definição de


Descartes ou às definições escolásticas, observada mais de perto,
revela uma peculiaridade que atribui ao sistema de Spinoza um
caráter panteísta.
Spinoza concebe a noção de substância no sentido forte da
palavra, isto é, a substância é definida da maneira como apare-
ce nesta definição: "uma coisa que existe de tal maneira que só
tem necessidade de si própria para existir" (SPINOZA, 1973). Desse
modo, não será possível, pois, conceber outra substância. Todavia,
Spinoza admite a existência de mais duas substâncias: a substância
pensante (res cogitam) e a substância extensa (res extensa).
Contudo, essas duas substâncias necessitam de outra coisa
para seu ser, pois não correspondem perfeitamente à necessidade
que a noção de substância envolve: a necessidade de si própria
para existir. Spinoza nota essa incongruência em Descartes e a
corrige, afirmando que existe apenas uma substância, aquela que
© U3 - Metafísica Moderna 171

"existe por si e em si é concebida" (SPINOZA, 1973, p. 150). Se


há, apenas, uma substância, então como se pode fundamentar a
existência das outras coisas? Spinoza responde: como atributos e
modos da substância.
Essa resposta implica nada mais do que uma identificação entre
Deus e a Natureza (Deus sive Natura), ou seja, um panteísmo conse-
quente. Vale observar aqui que caso Descartes seguisse rigorosamen-
te a sua definição de substância, ele necessariamente teria de reco-
nhecer o panteísmo. Para evitar essa teoria incompatível à tradição
escolástica, por assim dizer, ele foi forçado a admitir, além da verda-
deira substância, mais duas substâncias que pudessem retirar a amea-
ça do panteísmo. Ao assumir esse risco, Spinoza pagou seu preço com
a excomunhão da comunidade judaica e o desprezo pelos cristãos.
A metafísica de Spinoza, assim como aparece nas duas pri-
meiras partes da Ética, envolve, como se pode observar, três no-
ções fundamentais por meio das quais se explica o sistema todo,
são elas: substância, atributos e modos.
O atributo da substância é a sua essência ou a sua expressão.
Nas palavras de Spinoza (1973, p. 150), ele é "o que constitui a es-
sência da substância". Como essências da substância, os atributos
são infinitos e perfeitos, porém, o homem é capaz de reconhecer
apenas dois: o atributo do pensamento e o da extensão. O primei-
ro atributo constitui o caráter inteligível da realidade e o segundo
o seu caráter ontológico. Ambos são absolutos e, logo, a extensão,
como se pode esperar, não é divisível, mas indivisível. Segundo
Spinoza (1973), só um conhecimento limitado e finito pode reco-
nhecer, no atributo da extensão, a divisibilidade. Do ponto de vista
da eternidade (sub specie eternitatis), no entanto, o atributo ex-
tensão é reconhecido como indivisível.

A substância e as suas essências


Enquanto os atributos compõem o elenco da natureza cria-
dora (natura naturans), o resto do mundo, como sendo modos de

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172 © Metafísica I

ser da substância, não possuem uma autonomia substancial, por


isso, são concebidos por Spinoza (1973) como natureza criada (na-
tura naturata).
Entre os principais modos do pensamento, cabe destacar ra-
zão e a vontade, ao passo que, no caso da extensão, o movimento
e o repouso. Esses modos, por serem derivados diretamente dos
seus atributos, são concebidos por Spinoza (1973) como modos in-
finitos. Existem, também, os modos finitos, que são mediatamente
derivados de Deus (as coisas particulares que surgem e perecem).
Um aspecto importante do panteísmo de Spinoza é a recusa
de qualquer tipo de contingência e teleologismo. Se tudo é a Subs-
tância (Deus), seja como atributo, seja como modo, e se Deus é
perfeito e absoluto, ele não admite qualquer contingência ou ten-
dência finalista. Na metafísica panteísta de Spinoza, tudo torna-se
absolutamente necessário.

Corpo e alma
Na segunda parte, Spinoza (1973) largamente analisa as
noções de corpo e de alma, uma vez que o homem é a união de
ambos os modos, compreendidos como modos dos atributos do
pensamento e da extensão. Com outras palavras, o homem é um
dos modos da extensão (corpo) e um dos modos do pensamento
(ideia). Assim, Spinoza (1973) estabelece um paralelo entre lógico
e ontológico. Conforme esse paralelo, cada ideia (lógico) possui
uma objeto extensivo (ontológico). Nesse sentido, o filósofo re-
conhece, no intelecto, a ideia de algo realmente existente. Nele
também se constitui o mundo das idéias, as quais possui como
pensamentos. Assim, como os pensamentos são expressões do in-
telecto, da mesma forma, as afecções são expressões do corpo.
Por meio destas, o corpo sente e percebe-se como tal.
Nesse sentido, Spinoza, diferentemente de Descartes, não
parte da autoconsciência, mas da percepção sensível, que per-
cebe, por meio dos afetos, o próprio corpo. A percepção sensível
© U3 - Metafísica Moderna 173

abre a possibilidade de compreensão dos outros corpos, uma vez


que entre estes existe uma relação causal. A mesma relação causal
existe entre as ideias como expressões do intelecto. Uma pecu-
liaridade das ideias é que elas são cognoscíveis e, nesse sentido,
é possível produzir um conhecimento sobre elas, o que Spinoza
(1973) chama de ideae (ideia) ou reflexão.
Portanto, como o corpo é constituído por partes, a alma ou o in-
telecto é constituído por ideias. Entre ambos os modos, existe um rigo-
roso paralelismo, conforme o qual cada ideia corresponde um corpo.
Vale notar aqui que a concepção panteísta de Spinoza intro-
duz um novo entendimento referente ao conceito de liberdade e
vontade. Estas não passam de quimeras, uma vez que toda natu-
reza é um só organismo e nenhuma parte dele é autônoma e inde-
pendente. Trata-se, grosso modo, de um determinismo universal,
conforme o qual as ações da vontade nada mais são que pulsões
do corpo. O paralelismo corpo-alma terá uma importância signifi-
cativa na concepção gnosiológica de Spinoza, a qual estudaremos
em seguida. Acompanhe!

O conhecimento: inadequado e adequado


Em sua concepção gnosiológica, Spinoza (1973) considera
três graus de conhecimento: intuitivo, adequado e inadequado.
O grau inferior é concebido como o conhecimento inadequa-
do dos sentidos. Esse conhecimento surge por meio das afecções
do corpo. A esse tipo inadequado do conhecimento, associa-se o
conhecimento das noções gerais (notiones communes), que tam-
bém é inadequado, uma vez que tal conhecimento surge, segundo
Spinoza (1973), da incapacidade de o conhecimento compreender
clara e distintamente uma multiplicidade de coisas e formas, ten-
do como resultado ideias abstratas e confusas.
O conhecimento adequado começa com o segundo grau,
que é o conhecimento racional, que surge não por meio das afec-
ções do corpo, mas por meio das ideias.

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174 © Metafísica I

No topo dessa hierarquia gnosiológica, Spinoza (1973) colo-


ca o conhecimento intuitivo, que compreende tudo à maneira dos
geômetras, desde o princípio. Esse conhecimento não parte dos
efeitos, mas da causa primeira e é, por isso, precavido de qualquer
erro. Spinoza (1973) denomina esse conhecimento como sub es-
pécie eternitatis (do ponto de vista da eternidade).
A questão do erro
A questão do erro, na concepção de Spinoza, é tratada de
modo bastante diferente da de Descartes. Se, para este, o erro sur-
ge da incomensurabilidade entre as percepções claras e distintas e
a vontade ilimitada de querer do livre arbítrio, para Spinoza, uma
vez que livre arbítrio não existe, não há, também, uma vontade ili-
mitada de querer para engendrar essa incomensurabilidade e con-
duzir ao erro. Para ele, as afirmações e as negações (que Spinoza reduz
em ideias) referentes aos objetos do conhecimento são nada mais
do que volições. De acordo com isso, afirma:
Na alma, não existe nenhuma faculdade de querer ou não querer,
mas somente volições singulares, isto é, esta e aquela afirmação, e
esta e aquela negação. Concebamos portanto, uma volição singular
qualquer, por exemplo, o modo de pensar pelo qual a alma afirma
que os três ângulos de um triângulo são iguais a dois retos. Esta afir-
mação envolve o conceito de idéia de triangulo (...). Portanto, essa
afirmação não pode existir nem ser concebida sem a idéia de triângu-
lo. Além disso, essa idéia de triângulo deve envolver esta afirmação,
a saber, que a soma dos seus ângulos é igual a dois retos. Portanto,
inversamente, também a idéia de triangulo não pode existir, nem ser
concebida sem essa afirmação (SPINOZA, 1973, p. 266).

Percebe-se que Spinoza realiza uma identificação entre as


volições e as intelecções, tal como o paralelismo entre o corpo e a
alma. Vista por outro prisma, essa concepção gnosiológica envol-
ve fortes implicações práticas (éticas e morais). Por exemplo, se
há uma determinação universal imposta por Deus, não há, conse-
quentemente, livre arbítrio e a possibilidade de ação se expressa
no fato de ser causa total de alguma coisa, o que, por sua vez, im-
plica um conhecimento adequado. Ao contrário, quando, em vez
de ação, temos paixão, isto é, sofrimento, é porque não somos
© U3 - Metafísica Moderna 175

causa total de alguma coisa, mas apenas causa parcial. Nesse caso,
temos o conhecimento inadequado.
O conhecimento inadequado, para melhor esclarecer, surge
quando somos afetados por alguma coisa, mas não somos a causa.
O conhecimento adequado surge quando agimos, isto é, somos
causa total de alguma coisa. Vale observar, nesse caso, a importân-
cia das palavras ação e paixão. A causa do erro é, conforme esse
entendimento, o produto de um conhecimento inadequado.
As questões que dizem respeito à ação e à paixão, você irá
conhecer, a seguir, na exposição de Spinoza sobre os afetos.

A doutrina dos afetos


Apesar de julgar e recusar, em prol do determinismo univer-
sal, a liberdade humana, Spinoza (1973), todavia, reconhece uma
espécie de liberdade relativa vinculada à faculdade de agir e ao
conhecimento adequado, uma vez que agir é ter conhecimento
adequado e ter conhecimento adequado é, simultaneamente,
agir. Portanto, a ação e o conhecimento adequado nada mais são
do que domínios sobre os afetos.
Aqui, primeiramente, devemos esclarecer o que Spinoza
chama de afetos. Eis sua definição literal:
Por afecções entendo as afecções do corpo, pelas quais a potencia de
agir desse corpo é aumentada ou diminuída, favorecida ou entrava-
da, assim como as ideais dessas afecções (SPINOZA, 1973, p. 276).

Dessa definição, fica claro que os afetos são afecções do


corpo que aumentam ou diminuem o seu poder de agir. Essa de-
finição, conforme vimos anteriormente, destaca dois modos do
corpo: a ação, sendo a causa adequada e a paixão, sendo a causa
inadequada.
Nesse sentido, a atividade da alma depende do conhecimen-
to adequado, que surge, como vimos, não a partir das afecções
do corpo, ou seja, a partir do efeito, mas a partir da causa. Lem-

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176 © Metafísica I

bremos que a causa das ideias adequadas é o intelecto, ao passo


que as ideias inadequadas surgem por meio da afecção do corpo,
quando sobre este se exerce uma ação.
Em oposição a todas as doutrinas éticas precedentes que,
de certo modo, condenam as paixões e recusam a sua importân-
cia, o panteísmo de Spinoza considera tudo como necessário, uma
vez que é expressão de Deus e, por isso, não pode ficar alheio a
tal censura. O conhecimento adequado sobre as paixões, ao con-
trário, pode proporcionar um domínio considerável, expresso em
conhecimento adequado e ação. Em resumo, trata-se de um co-
nhecimento sobre as essências das paixões.
Spinoza (1973) concebe os afetos, antes de tudo, a partir da
sua tendência natural de autoconservação. O nome que ele dá a
tal tendência é de conatus. Conatus, assim entendido, representa-
se como a força vital e a essência do corpo e da alma e, com isso,
é contrário a qualquer tendência autodestrutiva. O conatus é von-
tade quando se refere à alma e apetite quando se refere ao corpo.
Assim, fica claro que, para Spinoza (1973), a relação corpo-alma
é uma relação afetiva. Esta relação determina as modificações do
conatus. Assim, por exemplo, no estado de alegria, o conatus au-
menta; na tristeza, ele diminui.
Referente às noções de ação e de paixão, cabe ressaltar que
a primeira se define como a causa total de alguma coisa, e a se-
gunda, como a causa parcial. Conforme o paralelismo, a ação sig-
nifica, simultaneamente, o conhecimento adequado, e a paixão, o
conhecimento inadequado. Nesse sentido, as ações possuem uma
independência relativamente maior do que as paixões. Estas últi-
mas surgem pela coação e, por isso, participam, em alguma coisa,
como aspectos passivos, no sentido de que sobre elas se exerce
alguma ação, e não como causas totais.
Mais adiante, em sua obra, Spinoza passa a investigar o me-
canismo das afecções e como elas afetam o homem. A importância
dos afetos para o homem, segundo Spinoza (1973), é dupla: torná-
© U3 - Metafísica Moderna 177

lo livre ou escravo. Nesse sentido, o filósofo intitula a quarta parte


da Ética: Da servidão humana e as forças do afeto. Nessa parte, o
filósofo dirige uma crítica aguda contra os precedentes sistemas
éticos que condenam as afecções sem ter uma compreensão mais
aprofundada sobre elas. Contrariamente a tais concepções prece-
dentes, Spinoza (1973) apela para um conhecimento adequado
das afecções e que possa contribuir para a liberdade humana.
A partir do estudo sobre a natureza das afecções, Spinoza
(1973) define a servidão e a liberdade do homem. No estado de
servidão, segundo o filósofo, falta um conhecimento adequado,
pois o homem está sujeito a paixões e, como vimos anteriormente,
é causa parcial de alguma coisa; já no estado de liberdade, há co-
nhecimento adequado que origina a ação, isto é, ele é causa total
de alguma coisa.
A quarta parte da obra de Spinoza explicita a sua concepção
antropológica. Ela traz à tona especulações sobre a natureza hu-
mana, que gira em torno de oito definições. Uma atenção especial
cabe a Definição 5, na qual a natureza humana é definida como
"arena de combate" entre seus afetos, isto é, do ponto de vista da
contrariedade entre os afetos. Diz Spinoza (1973, p. 344):
Por afecções contrarias entenderei, no que vai seguir-se, as que ar-
rastam o homem nos sentidos opostos (...) que não são contrários
por natureza, mas por acidente.

A citação ressalta que, por natureza, as afecções não podem


ser contrárias, pois elas são modos da Substância e, como tais, se-
guem a natureza unitária. Todavia, no indivíduo humano, devido
ao seu caráter peculiar, tais afecções podem configurar a contrarie-
dade. Vale observar que a contrariedade não se refere ao homem
enquanto natureza, mas enquanto indivíduo apenas. Justamente
por isso, o indivíduo é definido por Spinoza (1973) como sendo coi-
sa paradoxal. Para fugir desse caráter paradoxal, uma vez que ele
anseia o estável, o homem se rende, apenas, aos ditames da razão
(algo que se pode notar em todas as concepções éticas preceden-
tes), descartando as afecções que a própria natureza dita. Assim,

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178 © Metafísica I

segundo o filósofo, surge a servidão humana e um exemplo claro


dessa atitude é a religião.
Outra definição fundamental da quarta parte da obra é a
Definição 8, que define o homem não enquanto indivíduo, mas
enquanto natureza, segundo a sua virtude e potência.
Por virtude e potência entendo a mesma coisa, quer dizer, a virtude
enquanto se refere ao homem, é a própria essência ou natureza
do homem enquanto tem poder de fazer algumas coisas que só
podem ser compreendidas pelas leis da sua própria natureza (SPI-
NOZA, 1973, p. 344-345).

Nessa definição, Spinoza considera a identificação entre a


essência humana e o seu conatus. Vale observar aqui que a noção
de "virtude" não é tratada, em termos da ética tradicional, como a
capacidade da alma de refrear os impulsos, mas como virtus (força
física). Essa definição enfatiza a capacidade do homem de aumen-
tar o seu conatus, com efeito, a sua força ativa e o seu conheci-
mento adequado.
As definições 1 e 2, como também 3 e 4 tratam as noções
de Bem e Mal, Contingente e Possível. A natureza do Bem e do
Mal, tratada nas definições 1 e 2, estabelece que tais noções não
se encontram nas coisas, mas brotam da nossa relação com elas:
"Por Bem entendo aquilo que sabemos certo nos ser útil. Por Mal,
porém, isso que sabemos com certeza impede que sejamos pos-
suidores de um bem" (SPINOZA, 1973, p. 333-334).
A partir dessa definição, fica fácil observar que a noção de
Bem está intimamente ligada à noção de Útil, com efeito, o Bem é
algo que conduz a um maior grau de perfeição e, portanto, aumen-
ta o conatus. O mal, por sua vez, impede o aumento do conatus e
o poder de agir.
Referente ao Contingente e Possível, que se referem as defi-
nições 3 e 4, Spinoza (1973, p. 344) afirma:
Chamo contingentes as coisas singulares, enquanto, considerando
nós somente a sua essência, nada encontramos que ponha neces-
sariamente a sua existência, ou que necessariamente a exclua [e].
© U3 - Metafísica Moderna 179

Chamo possíveis as mesmas coisas singulares, enquanto, atenden-


do nós às causas pelas quais devem ser produzidas, ignoramos se
elas são ou não determinadas a produzi-las.

Cabe dizer que tais distinções se referem ao conhecimento


inadequado, pois é só da natureza de tal conhecimento conceber
as coisas como contingentes e possíveis. Visto pelas causas, e não
pelos efeitos, ou seja , visto por um conhecimento adequado, as
coisas são necessárias.
Na última parte da obra, intitulada Da potência, da inteligên-
cia e da liberdade humana, o filósofo ocupa-se com a especulação
sobre a liberdade e a ação, enunciada nessa parte da obra. Nesses
termos, a liberdade é definida como o domínio sobre as afecções,
isto é, no aumento de poder de ação.
Partindo do fato de que o homem está inserido em relações
nas quais ele pode ter o poder de agir sobre algo, mas também
ser sujeito a alguma ação, a liberdade spinoziana configura-se em
torno dessa capacidade de ação, com efeito, a possibilidade de ser
causa total de alguma coisa. Assim, a liberdade será definida como
a causa total de alguma coisa ou ter conhecimento adequado.
Por sua vez, a servidão, como causa parcial de alguma coi-
sa, é ter conhecimento inadequado. Por consequência, a ação e
a paixão configuram-se na medida em que agimos ou sofremos
alguma ação. Uma vez que não existe força no singular, as relações
entre os corpos expressam-se em composição ou decomposição.
A composição aumenta o conatus e a decomposição o diminui. Os
bons encontros são composições, e os maus encontros, decompo-
sições.

A liberdade
O problema "liberdade", em Spinoza, deve ser tratado com o
devido cuidado, uma vez que a filosofia spinoziana descarta qual-
quer vontade livre ou livre arbítrio e, portanto, um espírito que
age livre e espontaneamente. Existe, porém, uma correspondên-

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180 © Metafísica I

cia absoluta entre alma e corpo, assim que a vontade da alma é a


vontade do corpo, e vice-versa. Essa relação recíproca entre am-
bos suprime a preeminência da alma em relação ao corpo, que a
Teologia Clássica enfatizava.
Já falamos que as afecções podem aumentar ou diminuir o
nosso conatus. Isso quer dizer que, durante a sua existência, o cor-
po oscila entre agir e sofrer. Sabemos, também, que as afecções
alegres aumentam o conatus e as paixões tristes o diminuem. Logo,
a liberdade, assim como é entendida por Spinoza (1973), pode-se
originar de afecções alegres. Essa constatação impõe a questão so-
bre os mecanismos que produzem alegria. Trata-se, grosso modo,
de saber: como é possível produzir alegria e mantê-la permanente,
uma vez que os maus encontros são inevitáveis?
Para responder a essa pergunta, Spinoza recorre a uma ética
da alegria. Trata-se de engendrar alegria por meio de bons encon-
tros, sendo que essa alegria só pode ser produzida por meio de
um conhecimento adequado das nossas paixões. A liberdade sur-
ge, então, na medida em que se alcança conhecimento adequado,
com efeito, na medida em que o homem assume a posição de um
saber sub specie aeternitatis à maneira dos geômetras.
Esses são os problemas que surgem na filosofia spinoziana,
levando Spinoza a uma concepção panteísta do mundo e que o
levou, também, a consequências lógicas sobre os afetos, a liber-
dade, a natureza do Mal e do Bem. Agora, você irá conhecer as
ideias de outro metafísico importante da modernidade, trata-se
de Leibniz. Vamos lá?!

7. LEIBNIZ: O MELHOR DOS MUNDOS POSSÍVEIS


Em sua metafísica, Leibniz parte da interpretação cartesiana
sobre a matéria que se encontra num espaço homogêneo em nexo
causal ininterrupto. Todavia, essa explicação mecanicista da maté-
ria, exposta por Descartes, não é integralmente capaz de retratar
© U3 - Metafísica Moderna 181

a realidade, uma vez que toda realidade, em seu fundamento, é


constituída por substâncias discretas, simples e indivisíveis, com
efeito, de pontos metafísicos que o filósofo chama de mônadas,
que você irá conhecer a seguir.

A doutrina das mônadas:


A mônada é caracterizada como dinâmica e imutável, ela é in-
dividual e total, pois reflete o universo a partir do seu prisma individu-
al. Ao comentar essa ideia de Leibniz, Bréhier (1977, p. 226) afirma:
Cada uma delas (as mônadas) é como um universo espiritual, um
mundo à parte, que se basta perfeitamente a si mesma. Cada uma
é, também, expressão diferente de um e mesmo universo, e todas
essas expressões estão hierarquizadas, da mais perfeita a menos
perfeita.

A partir do trecho citado, fica claro que as diferenças entre


as mônadas se originam da possibilidade de cada uma exprimir o
universo de modo claro e distinto ou confuso e obscuro. De acor-
do com essa diferença de grau e de perfeição, configura-se a hie-
rarquia. Vale notar, porém, que essa hierarquia não é cristalizada,
pois cada mônada tende a exprimir o universo do melhor modo
possível, isto é, existe uma tendência teleológica que realiza a pas-
sagem do grau menor ao grau maior de perfeição.
O traço fundamental da mônada são suas percepções, a par-
tir das quais se dá a ascensão para a maior perfeição. Isso apenas
no caso de mônadas criadas. De acordo com essa posição, Deus
percebe tudo clara e distintamente, no caso do homem, cada per-
cepção clara de um conhecimento racional é misturada com uma
percepção confusa do conhecimento sensível. Sendo, porém, um
ser espiritual, o homem é capaz de ter consciência das suas per-
cepções. Essa capacidade Leibniz (2009) chama de apercepção ou
autoconsciência. Neste caso, Leibniz (2009, p. 7) radicaliza a ima-
nência da consciência, afirmando que "ela não tem janelas", isto
é, que a mônada não tem nenhum contato ou qualquer tipo de
relação com as outras mônadas.

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182 © Metafísica I

Outro traço peculiar da mônada, além da percepção, é a sua


tendência interna (apettitus) por meio da qual ela desenvolve a
sua essência. Com outras palavras, a mônada percebe constante-
mente que, junto a sua tendência, realiza a passagem de uma per-
cepção a outra. A mudança, assim entendida, naturalmente tende
a maior grau de perfeição, isto é, mais clareza e distinção das suas
percepções. Sendo um centro de força, a mônada tende, perma-
nentemente, a se expandir no espaço. Assim, da sua força metafí-
sica, origina-se a sua força física, que é a causa do movimento.
A hierarquia das mônadas compreende as seguintes espécies:
1) Mônadas desnudas que possuem o menor grau de per-
feição da hierarquia, pois as suas percepções não são
conscientes. Com efeito, elas percebem, mas não se
apercebem.
2) Mônadas espirituais para as quais Leibniz reserva o grau
superior da hierarquia, elas são as que alcançam as ver-
dades necessárias e possuem consciência das suas per-
cepções.

Alma, corpo e harmonia predestinada


As mônadas são os elementos mais simples da realidade. O
composto é agregado de mônadas simples. Esse composto, segun-
do Leibniz (2009), origina a noção de organismo. A gestão desse
composto, chamado por Leibniz (2009) de organismo, realiza-se
por uma mônada central que ele denomina alma. Esta é respon-
sável pela realização da potência do organismo e, dessa forma, é
a sua enteléquia. A alma é causa final do corpo, ao passo que o
corpo, como tal, obedece à causa eficiente. Vale notar que, a ação
causal, na realidade monádica, nada mais é do que os diferentes
modos de percepção.
Quando uma mônada percebe claramente outra, aquela
exerce uma atividade sobre esta, e vice-versa; a percepção confu-
sa significa passividade. Já a causalidade, uma vez que as mônadas
são absolutamente distintas e isoladas umas das outras, não po-
© U3 - Metafísica Moderna 183

dem ser explicadas em termos de interação. E aí que entra a noção


de Deus. Este cria as mônadas de maneira que as suas percepções
sempre coincidam, sem haver uma relação real entre elas. Nisso,
consiste a noção, introduzida por Leibniz, de harmonia preestabe-
lecida, ou seja: "Deus, ao criar cada mônada, considerou todas as
outras" (BRÉHIER, 1977, p. 228).
A noção de harmonia preestabelecida possibilita a explicação
da relação ação-paixão entre as mônadas. Conforme isso, a ação re-
mete a passagem para maior grau de perfeição, ou seja, para a per-
cepção mais clara. Mas o aumento da clareza das percepções de uma
mônada implica, simultaneamente, na diminuição de grau de clareza
em outras mônadas e, neste caso, elas sofrem atividade umas das ou-
tras. Assim, a mônada com maior grau de perfeição age sobre aquelas
com menor grau. A relação entre elas pode ser exemplificada a par-
tir de dois relógios que, mesmo totalmente separados um do outro,
apontam para a mesma hora. Nesse sentido, ao comentar a ideia de
harmonia preestabelecida, Russel (1969, p. 112) ressalta:
Leibniz tem um número infinito de relógios, todos regulados pelo
criador de maneira a soar no mesmo instante, não porque uns in-
fluam aos outros, mas porque cada um deles é um mecanismo per-
feitamente exato.

Essa característica de harmonia preestabelecida, que é a


principal contribuição da metafísica de Leibniz, acaba gerando a
conclusão de que o nosso mundo é o melhor dos mundos possí-
veis, que você irá conhecer mais a frente. Antes, vamos analisar
suas contribuições no campo da epistemologia.

Os princípios
Uma das notáveis contribuições de Leibniz para o conhe-
cimento científico é a introdução de símbolos matemáticos que
possibilitam, de modo mais exato, as operações lógicas. Com essa
idéia de um cálculo universal, o filósofo aparece como um dos im-
portantes precursores da Lógica Moderna.

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184 © Metafísica I

Referente ao conhecimento científico, Leibniz (2009) faz


uma clara distinção entre dois tipos de verdades: lógicas e ontoló-
gicas. As verdades da razão são os primeiros tipos que explicitam
vínculos essencias. As verdades do fato são do segundo tipo, di-
zem respeito às verdades ontológicas, com efeito, afirmações de
existência. Essas últimas são marcadas pelo caráter contingente,
ao passo que as verdades da razão são absolutamente necessárias.
É da natureza das verdades da razão produzir juízos analíticos; as
verdades de fato, por sua vez, produzem juízos sintéticos. Estes
surgem por meio da experiência, ou seja, não são possíveis de
modo a priori. Nisso, consiste o seu caráter sintético.
Tais verdades precisam de experiência para serem estabele-
cidas no caso do conhecimento humano. Para Deus, que é capaz
de fazer uma análise infinita de todas as possibilidades, os juízos
são analíticos. Deus, afirma Leibniz (2009), é capaz de concluir so-
bre toda realidade concreta por meio da análise de uma noção
apenas. Assim, por exemplo, Deus saberá de modo a priori, isto é,
analiticamente, que a noção de Cezar já implica, necessariamente,
a noção de Rubicão. Mas para a limitada visão cognitiva do ho-
mem, esse vínculo só pode ser atestado depois da experiência (de
modo sintético).

Cezar e Rubicão ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––


Cezar e Rubicão são um exemplo a partir do qual Leibniz mostra que o homem
não poderá saber se Cezar vai atravessar Rubicão antes de a travessia ocorrer,
ao passo que Deus é capaz de fazer uma análise infinita da noção de Cezar mes-
mo antes de ele ter nascido, pelo seu intelecto providencial (arquetípico).
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Deus, conforme Leibniz (2009), como criador do universo
realiza a sua obra da melhor maneira possível. Para alcançar essa
perfeição, ele se utiliza do princípio da perfeição ou otimização,
conforme o qual se alcança maior efeito com menor gasto, ou seja,
com menor número de leis explica-se maior diversidade. É interes-
sante observar que Leibniz é o primeiro filósofo que formula essa
lei de otimização.
© U3 - Metafísica Moderna 185

No que diz respeito às verdades de fato e o princípio que as rege,


Leibniz (2009, p. 32) enuncia o princípio da razão suficiente, segundo o
qual "nada existe que não possua razão suficiente de ser o que ele é".
Um princípio de extrema importância para a metafísica leibni-
ziana é o princípio da identidade indiscernível. Ele enuncia que todas
as diferenças metafísicas derivam de natureza qualitativa, e, dessa
forma, as diferenças quantitativas e numéricas só existem no nível
fenomenal, no qual reinam as verdades de fato e o seu caráter con-
tingente. Além disso, o princípio estabelece, também, que as formas
principais de quantidade – tempo e espaço – são relativas e são con-
sequências da atividade das mônadas. Devemos notar aqui que, ape-
sar do caráter discreto das mônadas, o filósofo ressalta a importância
do princípio da continuidade, de acordo com o qual o espaço se con-
figura a partir das atividades das mônadas, implicando na recusa de
um espaço vazio. Tal princípio ressalta, ademais, o caráter plausível
das transformações na natureza, isto é, que a natureza não dá saltos.
Outra questão de interesse para nossos estudos metafísicos é a ques-
tão da liberdade, que você irá conhecer no tópico seguir.

A liberdade
O problema da liberdade envolve uma questão difícil de ser
solucionada no interior da concepção monadológica de Leibniz,
visto que a harmonia preestabelecida implica o entendimento de
uma determinação prévia. Mas exatamente a dificuldade consiste
na incompatibilidade entre a harmonia preestabelecida e a liber-
dade. Leibniz resolve essa dificuldade a partir da noção de ação
espontânea da mônada, comum às substâncias espirituais. No en-
tanto, como ressalta Bréhier (1977, p. 229):
O ato livre, derivado, como todo o resto, da lei interna da môna-
da, manifesta uma espécie de determinismo racional. Mas – objeta
Arnauld a Leibniz, tal liberdade não implica qualquer responsabili-
dade da parte do autor do ato porque, se, por exemplo, a criação
de Adão com o pecado que implica sua noção, é objeto do decreto
divino, deve se dizer que Deus é autor do pecado, objeção que to-
dos os teólogos, desde Platão, se esforçam por refutar.

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186 © Metafísica I

Para eximir Deus dessa falha, Leibniz lança mão à teodiceia e


sua teoria do melhor dos mundos possíveis, que você terá a opor-
tunidade de conhecer a seguir.

A teodiceia: o melhor dos mundos possíveis


Partindo do princípio da identidade, de acordo com Leibniz
(2009), tudo o que não implica contradição se configura como pura
possibilidade essencial por causa da essência de Deus. Em outras
palavras, "um mundo é possível quando não contradiz a lógica"
(RUSSEL, 1969, p. 118).
Nem todas as possibilidades pensadas em si mesmas se rela-
cionam, porém, entre si. Embora o número de mundos possíveis seja
infinito pelas possibilidades infinitas do criador, toda união de possi-
bilidades constitui, em sua relação, um mundo possível. Dito de outra
maneira, Deus não pode agir contra a lógica e deve obedecer a ela,
todavia, ele tem o poder de definir o que é logicamente possível.

A lógica de Deus ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––


Deve-se considerar que a sabedoria infinita de Deus é a clareza absoluta das
suas percepções, que estão de acordo com a lógica que ele mesmo determina.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Segundo Leibniz (2009), a natureza de Deus não implica qual-
quer obrigação, porém, a sua sabedoria infinita logicamente o obri-
ga a criar o melhor mundo possível, no qual vigora o princípio da
otimização. Contudo, existe um defeito ou mal metafísico comum a
todos os mundos possíveis – a finitude. A finitude, entendida como
mal metafísico, origina, por sua vez, o mal físico e o mau moral.
No interior da sua concepção das mônadas, o mal se expres-
sa pelos limites que cada mônada possui, e, por consequência,
essa finitude se estende a cada organismo constituído pelas mô-
nadas. Cada mônada percebe o universo a partir do seu ponto de
vista e de modo limitado. Assim, dessa perspectiva limitada brota
o mal, já que não se percebe que, no conjunto das coisas, o mundo
possui a perfeição.
© U3 - Metafísica Moderna 187

Dessa maneira, a percepção do homem é limitada, visto que


a sua perspectiva singular varia entre clareza e obscuridade, com
efeito, entre ação e paixão.
Para justificar o mundo a partir da sua teodiceia, Leibniz
(2009) mostra que o mal metafísico, inversamente à sua essên-
cia, transforma o mundo no melhor dos mundos possíveis, pois ele
não seria tão bom se o mal metafísico não estivesse presente. No
que se baseia essa afirmação absurda?
Segundo Leibniz (2009), e aqui ele retoma os postulados da
Teologia cristã, o livre arbítrio é a causa imediata do mal, porém, é
um bem precioso sem o qual o mundo não seria perfeito mesmo
se não existisse o mal.
Vimos, anteriormente, que Deus não pode agir contra a lógi-
ca, visto que a lógica do livre arbítrio é a escolha entre o bem e o
mal. Embora seja logicamente impossível, para Deus, criar o livre
arbítrio e ausentar o mundo do mal ao mesmo tempo, ele postu-
lou, conforme a mesma lógica, para a melhor perfeição permitir a
existência do mal.
A teodiceia, assim entendida, postula a necessidade do mal
em prol da maior perfeição e da anuência desse mal metafísico por
causa da otimização do todo.

As provas metafísicas
Porque a monadologia e todas as suas implicações são con-
figuradas em torno da noção de Deus, Leibniz é forçado a postular
provas consistentes sobre a existência de Deus, uma vez que seu
sistema filosófico depende exclusivamente dele. Nesse sentido, Lei-
bniz (2009) recorre a quatro provas da existência de Deus, a saber:
1) Prova ontológica.
2) Prova cosmológica.
3) Prova a partir das verdades eternas.
4) Prova a partir da harmonia preestabelecida.

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188 © Metafísica I

A prova ontológica diz respeito à distinção entre a essência e a


existência. Em qualquer coisa do mundo criado, segundo o filósofo, é
possível distinguir a essência e a existência. Mas as coisas do mundo
criado são contingentes e, portanto, a essência da coisa não necessa-
riamente implica existência. A noção de Deus, ou seja, a sua essência,
como soma de todas as perfeições, deve incluir a existência, uma vez
que esta é a maior perfeição. Logo, Deus necessariamente existe.
A prova cosmológica tira seus argumentos a partir da noção
de causa primeira ou motor imóvel. Se tudo no mundo criado ou no
universo todo é contingente, seria logicamente possível que nada
existisse. O fato de o mundo existir significa que há uma razão sufi-
ciente para isso, a qual se encontra fora do mundo, isto é, em Deus.
A prova a partir das verdades eternas constitui o terceiro ar-
gumento em prol da existência de Deus. Ele postula que tudo que
está ligado à essência (e não à existência) ou é sempre verdadeiro ou
sempre falso. Leibniz (2009) chama verdades eternas as verdades ne-
cessárias que são sempre verdadeiras. Elas são as verdades da razão.
Tal como na prova cosmológica se estabelece uma distinção entre ser
contingente e ser necessário, do mesmo modo, na prova a partir das
verdades eternas, estabelece-se uma distinção entre verdades contin-
gentes e verdades necessárias. Portanto, a causa das verdades contin-
gentes se deve procurar nas verdades eternas, cuja sede é Deus.
A quarta prova toma como referência a concepção de har-
monia preestabelecida. Caso todas as mônadas, sem haver qual-
quer relação efetiva entre elas, encontram-se em harmonia, então
é necessário que admita um regulador externo. Tal regulador e
causa da harmonia preestabelecida, segundo Leibniz, é Deus.
As provas metafísicas da existência de Deus às quais Leibniz
recorre, exceto a última, não foram postuladas por ele. A origem
desses argumentos remonta à época da escolástica e até ao aristo-
telismo. Todavia, é incontestável que Leibniz configura essas pro-
vas de acordo com a sua doutrina monadológica, atribuindo-lhes
um novo sentido e significado.
© U3 - Metafísica Moderna 189

Com o estudo da filosofia de Leibniz, encerra-se o nosso es-


tudo do CRC Metafísica I. Não deixe de fazer os exercícios propos-
tos a seguir e de ler a bibliografia indicada para complementar seu
estudo. Lembre-se de que, na modalidade EAD, o aluno é o prota-
gonista de seu aprendizado.

8. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS
Confira, a seguir, as questões propostas para verificar o seu
desempenho no estudo desta unidade:
1) Analise os argumentos abaixo que estão propostos na obra cartesiana e, em
seguida, responda: em qual dos argumentos em busca do princípio ontológi-
co, Descartes discursa, criteriosamente, sobre o princípio da dúvida?
a) "Eis porque penso que as utilizarei, as argumentações que provam que
os sentidos enganam, mais prudentemente, se tomando um partido
contrário, empregar todos os esforços ao sentido de enganar-me a mim
mesmo, fingindo que todos esses pensamentos são falsos e imaginários:
até que tendo de tal modo avaliado meus preconceitos, eles não possam
fazer como que minha opinião tenda mais para um lado do que para
outro, e meu julgamento não mais seja, daqui por diante, dominado por
maus usos e afastado do caminho reto que pode conduzir ao conheci-
mento da verdade".
b) "Suporei, então, que não há um verdadeiro Deus, que é a soberana fonte
da verdade, mas certo gênio maligno, não menos ardiloso e enganador
do que poderoso que empregou toda sua indústria em enganar-me".
c) "Arquimedes, para tirar o Globo terrestre de seu lugar e transportá-lo
para outra parte, não pedia nada mais exceto um ponto que fosse fixo e
seguro. Assim, terei o direito de conceber altas esperanças, se for bastan-
te feliz para encontrar somente uma coisa que seja certa e indubitável".
d) "Mas eu me persuadi de que nada existia no mundo que não havia ne-
nhum céu, nenhuma terra, espíritos alguns, nem corpos alguns: não me
persuadi também, portanto, de que eu não existia? Certamente não, eu
existia sem dúvida, se é que eu me persuadi, ou, apenas, pensei alguma
coisa".
e) "Mas não me posso impedir de crer que as coisas corpóreas, cujas ima-
gens se formam pelo meu pensamento, e se apresentam aos sentidos,
sejam distintamente conhecidas do que essa não sei parte de mim mes-
mo que não apresenta à imaginação: embora, com efeito, seja uma coisa
bastante estranha que coisas que considero duvidosas e distantes sejam
mais claras e mais facilmente conhecidas por mim do que aquelas que
são verdadeiras e certas e que pertencem à minha própria natureza".

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190 © Metafísica I

2) Das ideias que se seguem abaixo, quais correspondem à crítica de Spinoza


sobre o Método Cartesiano?
I – Ao discutir sobre os fundamentos da realidade, e, seguindo a tradição
clássica contra a posição cartesiana, afirma que a verdadeira substân-
cia é algo individual, mas a supera quando diz que "o espírito é a única
substância".
II – A razão que explica o ser não pode ser encontrada na série de coisas
contingentes, porque, por definição, toda coisa contingente sempre
tem necessidade de uma razão ulterior.
III – Se as idéias verdadeiras são claras e distintas, por si mesmas, elas não
requerem a garantia de um Deus bom e veraz para tal existência.
IV – É inútil imaginar que duvido, penso, que se "penso, logo existo"; não
é necessário, para que eu saiba, que saiba que sei, a certeza do cogito
é dispensada.
V – A certeza que nasce da dúvida é equivocada e se conduz ao erro; tanto
que ela necessita da prova da existência de Deus para a sua validade,
levando, assim, a um dualismo intransponível entre a res extensa e res
cogitam.
a) Somente a questão I não está correta.
b) As questões II, III e IV estão corretas.
c) As questões III, IV e V estão corretas.
d) As questões II e III não estão corretas.
e) Todas as questões estão corretas.
3) O que estabelece a prova cosmológica de Leibniz:
a) Se tudo no universo é contingente, seria logicamente possível que nada
existisse. Contudo, o mundo existe e, portanto, há uma razão suficiente
para isso. Certamente, essa razão se encontra fora do mundo, isto é, em
Deus.
b) A prova cosmológica estabelece que se seja certa a afirmação de que o
mundo é infinito; é certo, também, que existe uma causa infinita que
engendra esse mundo.
c) Se tudo no universo é necessário, seria logicamente possível afirmar que
tudo existisse necessariamente. Ou seja, que há uma razão suficiente
para isso. Certamente, essa razão se encontra fora do mundo, isto é, em
Deus.
d) A prova cosmológica toma como referência a concepção de harmonia
preestabelecida. Caso todas as mônadas, sem haver qualquer relação
efetiva entre elas, encontram-se em harmonia, então é necessário que
se admita um regulador cósmico que fosse a causa dessa harmonia, que,
segundo Leibniz, é Deus.
e) A prova cosmológica postula que tudo que está ligado à essência (e não
à existência) ou é sempre verdadeiro ou sempre falso. As verdades ne-
cessárias que são sempre verdadeiras, Leibniz chama: verdades eternas
ou cósmicas. Elas são as verdades da razão. Tal prova cosmológica esta-
belece uma distinção entre ser contingente e ser necessário. Portanto, a
© U3 - Metafísica Moderna 191

causa das verdades contingentes se deve procurar nas verdades eternas,


cuja sede é Deus.

Gabarito
Confira, a seguir, as respostas corretas para as questões au-
toavaliativas propostas:
1) a.
2) c.
3) a.

9. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com o estudo da Metafísica Moderna (dos racionalistas:
Descartes, Spinoza e Leibniz), terminamos o nosso percurso pro-
posto para o CRC Metafísica I. Você pôde conhecer os sistemas
filosóficos desses pensadores com relação aos problemas da Me-
tafísica Tradicional. Como você pôde perceber, esses filósofos fo-
ram fortemente influenciados pelas novas descobertas científicas
e procuraram desenvolver seus sistemas com o rigor das leis da
matemática, geometria e física, as quais conheceram um profundo
avanço durante a modernidade.
No entanto, a metafísica dos modernos ainda estava forte-
mente influenciada pelas teses da Metafísica Antiga e principal-
mente Medieval. As questões ainda giram em torno da existência
de Deus, da liberdade do homem e da constituição do mundo. En-
tretanto, o alvo que as discussões dos modernos procurou atingir
não é o estabelecimento de uma verdade para sustentar os pos-
tulados da fé cristã, como no caso da época medieval, os filóso-
fos modernos estão envolvidos em questões epistemológicas e a
Metafísica deve sustentar não a fé, mas o desenvolvimento da ci-
ência, tornando-se uma discussão sobre o fundamento de todo o
conhecimento.
Nesse sentido, também podemos, de certa forma, entrela-
çar a discussão dos modernos com a metafísica dos antigos gre-

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192 © Metafísica I

gos, que, como você pode acompanhar, estava voltada, também,


para questões de cunho cosmológico e epistemológico. A busca
pela verdade, iniciada na Grécia Antiga, teve um desenvolvimento
diferente na Idade Média, época em que as discussões estavam
voltadas para a sustentação da fé cristã em meio a um ambiente
pagão.
Assim, você pôde compreender o porquê do tratamento es-
colhido pela Metafísica I ao tratar esses períodos e filósofos em
uma mesma disciplina. Apesar das divergências entre os períodos
e filósofos, podemos dizer que há um ponto de convergência entre
eles pela forma como são tratadas tais questões.
Com isso, encerramos nosso estudo e esperamos que você
tenha compreendido o assunto tratado neste CRC. Para que não
fique nenhuma dúvida, não deixe de fazer uma revisão em suas
anotações e pesquisas. No CRC Metafísica II, você terá a oportuni-
dade de conhecer o desenvolvimento e os problemas que a Meta-
física conheceu a partir das críticas de Kant, das teses do idealismo
alemão e as pesadas críticas de Nietzsche até a sua superação com
a ontologia fundamental de Heidegger. Um grande abraço e bons
estudos!

10. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


DESCARTES, R. Meditações Metafísicas. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Os Pensadores)
LEIBNIZ. A Monadologia e outros textos. Tradução e Organização de Fernando Luiz
Barreto Gallas e Souza, São Paulo: Hedra, 2009.
BRÉHIER. E. História da filosofia. São Paulo: Mestre Jou, 1977.
ROVIGHI, S. V. História da filosofia moderna. São Paulo: Loyola, 1999.
RUSSEL, B. História da filosofia ocidental. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1969.
SPINOZA, B. Ética. São Paulo: Abril, 1973. (Os Pensadores)

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