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ÉTICA I

PROF. DR. FREDERICO BONALDO


Dr. Roberto Cezar de Oliveira
REITOR

Reitor:
Dr. Roberto Cezar de Oliveira
Pró-Reitoria Acadêmica
Maria Albertina Ferreira do
Nascimento
Diretoria EAD:
Prezado (a) Acadêmico (a), bem-vindo (a) à Prof.a Dra. Gisele Caroline
UNINGÁ – Centro Universitário Ingá.
Novakowski
Primeiramente, deixo uma frase de Sócrates
para reflexão: “a vida sem desafios não vale a
PRODUÇÃO DE MATERIAIS
pena ser vivida.”
Diagramação:
Cada um de nós tem uma grande responsabi- Alan Michel Bariani
lidade sobre as escolhas que fazemos, e essas Edson Dias Vieira
nos guiarão por toda a vida acadêmica e pro- Thiago Bruno Peraro
fissional, refletindo diretamente em nossa vida
pessoal e em nossas relações com a sociedade. Revisão Textual:
Hoje em dia, essa sociedade é exigente e bus-
ca por tecnologia, informação e conhecimento Camila Cristiane Moreschi
advindos de profissionais que possuam novas Danielly de Oliveira Nascimento
habilidades para liderança e sobrevivência no Fernando Sachetti Bomfim
mercado de trabalho. Luana Luciano de Oliveira
De fato, a tecnologia e a comunicação têm nos Renata Rafaela de Oliveira
aproximado cada vez mais de pessoas, dimi-
nuindo distâncias, rompendo fronteiras e nos
Produção Audiovisual:
proporcionando momentos inesquecíveis. As- Adriano Vieira Marques
sim, a UNINGÁ se dispõe, através do Ensino a Márcio Alexandre Júnior Lara
Distância, a proporcionar um ensino de quali- Osmar da Conceição Calisto
dade, capaz de formar cidadãos integrantes de
uma sociedade justa, preparados para o mer- Gestão de Produção:
cado de trabalho, como planejadores e líderes
atuantes.
Cristiane Alves

Que esta nova caminhada lhes traga muita ex-


periência, conhecimento e sucesso.

© Direitos reservados à UNINGÁ - Reprodução Proibida. - Rodovia PR 317 (Av. Morangueira), n° 6114
UNIDADE ENSINO A DISTÂNCIA

01
DISCIPLINA:
ÉTICA I

PRÁTICA MORAL, FILOSOFIA MORAL E A ÉTICA


DAS VIRTUDES (ARISTÓTELES)
PROF. DR. FREDERICO BONALDO

SUMÁRIO DA UNIDADE

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................................ 5
1. CARACTERIZAÇÃO DA PRÁTICA MORAL............................................................................................................7
2. CARACTERIZAÇÃO DA FILOSOFIA MORAL ........................................................................................................ 9
2.1 A EXPLICAÇÃO FILOSÓFICA DO CONHECIMENTO MORAL ........................................................................... 9
2.2 A FILOSOFIA MORAL PERANTE A AMBIGUIDADE DA EXPERIÊNCIA MORAL ............................................10
2.3 A IDENTIFICAÇÃO DA PERGUNTA PRINCIPAL DA PRÁTICA MORAL ...........................................................10
2.4 A NECESSIDADE DA ARGUMENTAÇÃO DIALÉTICA EM FILOSOFIA MORAL ...............................................11
3. ÉTICA DAS VIRTUDES (ARISTÓTELES) .............................................................................................................12
3.1 PRECEDENTES ....................................................................................................................................................12
3.1.1 FORMAÇÃO PROGRESSIVA DAS POLEIS GREGAS A PARTIR DO SÉCULO VIII A. C. .................................12
3.1.2 OS SOFISTAS ....................................................................................................................................................13

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3.1.3 SÓCRATES ........................................................................................................................................................13


3.1.4 PLATÃO ..............................................................................................................................................................13
3.2 ARISTÓTELES .....................................................................................................................................................14

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INTRODUÇÃO

Esta primeira unidade da disciplina propõe-se a fazer uma defesa da ética filosófica das
virtudes – cujos principais representantes são Aristóteles e Tomás de Aquino – como a mais
adequada à experiência moral cotidiana, contrastando-a com outras quatro figuras de filosofia
moral desenvolvidas posteriormente na história, as quais, junto com a primeira, são aquelas
que desenvolvem a ética como disciplina filosófica específica e as que mais têm influenciado
os estudos de filosofia moral na atualidade. Além disso, aqui se procura mostrar que a ética das
virtudes é apta a enfrentar uma série de importantes desafios contemporâneos, tanto pessoais
como coletivos, que se apresentam ao nosso agir moral.
Em Ética II, faremos uma incursão pormenorizada à ética das virtudes tal como elaborada
por Tomás de Aquino, estudando temas como a importância da filosofia moral no conjunto do
sistema tomista, os significados de felicidade como finalidade da vida humana, a liberdade do
homem e os rumos que ela pode tomar, as emoções ou paixões da alma enquanto princípios do
agir, a dinâmica ou estrutura do ato moral, os diversos aspectos das virtudes morais, a relação da
lei moral natural com os juízos da nossa consciência e as fontes e remédios para o erro moral (a
ação imoral ou antiética).
Antes de seguirmos com o detalhamento do conteúdo da presente disciplina, cabe
salientar – por ter-se feito uso de ambos os termos no parágrafo anterior – que “ética” e “moral”
têm o mesmo significado. Com efeito, “ética” deriva do grego ethos, e “moral”, do latim mos; os

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dois vocábulos possuem o significado de “conduta”, isto é, um conjunto de ações livres realizadas
ao longo do tempo. Por isso, parece ocioso diferenciar “ética” de “moral”, dizendo que a primeira
palavra diz respeito ao agir no âmbito público, enquanto a segunda se refere ao agir no âmbito
privado, ou vice-versa. Desse modo, para aludir a cada um dos âmbitos mencionados, basta que
se utilizem as expressões “ética individual” ou “moral individual”, de um lado, e “ética social” ou
“moral social”, de outro. Também se empregarão indistintamente as expressões “figura de filosofia
moral”, “tradição de filosofia moral”, “proposta de ética filosófica”, “corrente de ética filosófica” etc.
As cinco figuras de filosofia moral que aqui se estudam são as seguintes: (1) ética das
virtudes (também chamada de ética da vida boa – da vida de um indivíduo que procura realizar o
bem – e ética eudaimônica – do grego eudaimonia, isto é, felicidade ou realização existencial); (2)
ética da lei (que tem como artífices mais destacados Duns Scot, Guilherme de Ockham, Francisco
Suárez e Immanuel Kant – em razão da maior difusão do seu pensamento e da extensão permitida
para a disciplina, iremos explorar apenas o pensamento ético do último desses filósofos); (3)
ética da colaboração social (nas versões de Thomas Hobbes, John Rawls e Jürgen Habermas); (4)
ética da explicação do comportamento humano (elaborada por David Hume e utilizada com
frequência por grande parte dos filósofos analíticos); e (5) ética da utilidade ou utilitarismo
filosófico (cujas bases foram assentadas por Jeremy Bentham e John Stuart Mill e que foi alvo de
uma série de desenvolvimentos ao longo do século XX).
A seguir, passaremos a um confronto dialético entre a proposta da ética das virtudes e as
demais correntes de filosofia moral a fim de se explicitar que aquela engloba os temas enfatizados
por estas e que trata de aspectos da experiência ética diária negligenciados pelas quatro últimas
figuras de ética filosófica.
Todo o esquema da presente disciplina segue a investigação levada a cabo pelo filósofo
italiano Giuseppe Abbà (1943-2020) em Quale impostazione per la filosofia morale?, traduzida
aqui como História crítica da filosofia moral. Como Abbà (2017) esclarece,

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Para poder entender tais figuras e para que seja possível confrontá-las e discuti-
las, é preciso embrenhar-se desde o início na pesquisa filosófico-moral; porém
isto só pode ocorrer se já se está iniciado em alguma das figuras de filosofia
moral, uma vez que a pesquisa moral sempre é feita segundo um determinado
enfoque. O autor da pesquisa em curso está iniciado, particularmente, na figura
primeiramente aristotélica e, depois, tomista de filosofia moral, e a partir dela
procurará realizar o confronto e a discussão (ABBÀ, 2017, p. 252).

Assim como o mestre italiano, estamos primordialmente familiarizados com a ética


filosófica inaugurada por Aristóteles e aperfeiçoada por Tomás de Aquino. E foi precisamente por
esse fato que, faz mais de uma década, empenhou-se na tradução e publicação do referido livro
de Abbà, o qual vem sendo adotado em cursos de graduação e pós-graduação há vários anos.
A seção conclusiva do escrito que o leitor tem diante de si apresenta um artigo científico
publicado na Review of General Psychology que traz à baila oito tradições culturais, distintas
no tempo e no espaço, as quais propõem como atitudes mais benéficas à psicologia humana as
mesmas seis virtudes – denominadas, por isso, ubíquas pelos autores do estudo. Trata-se de uma
confirmação quase empírica, no campo da chamada ética evolutiva (não da ética filosófica), de
que a figura de filosofia moral da ética das virtudes é a que melhor reflete a nossa experiência
comportamental cotidiana.

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1. CARACTERIZAÇÃO DA PRÁTICA MORAL


A definição da prática moral não comporta dificuldades: trata-se da experiência moral
pré-filosófica, ou seja, aquilo que nós experimentamos no cotidiano ao tomarmos decisões e ao
realizarmos as ações subsequentes, sobre o qual, posteriormente, nós mesmos ou outras pessoas
podem aplicam a sua razão a fim de descobrir o que isso é radicalmente no contexto do todo da
realidade. Dito de outro modo: a experiência moral são as nossas decisões e ações, sobre as quais
é possível raciocinar-se de modo filosófico a posteriori, depois de terem sido realizadas.
A prática moral tem como conteúdo a ação individual consciente, voluntária e passional,
executada e composta pelo próprio sujeito agente. Por ser executada por ele, o sujeito agente é o
ator da sua ação; e, porque é ele mesmo que compõe ou elabora os fins e os meios da sua ação, o
sujeito agente também é autor dela.
O âmbito da ação humana é o âmbito da liberdade interior. A liberdade interior é o
exercício autodeterminado e articulado dos conhecimentos que vamos obtendo com o nosso agir,
com os atos que realizamos após as nossas próprias tomadas de decisão. Esses conhecimentos
são variados; levam-nos, dentre outras atitudes interiores, a sopesar múltiplos cursos de ação;
a julgar esses cursos de ação com base nas nossas valorações pessoais e nas dos grupos a que
pertencemos; a nos motivar com base em emoções, em compromissos assumidos, em resoluções
firmes, em intenções raciocinadas etc.
A origem da nossa prática moral pessoal é a prática moral dos grupos de que fazemos
parte e nos quais somos educados. A prática moral dos grupos sempre permanece como ponto
de referência para a pessoa à hora de deliberar para agir, até mesmo depois de ela ter formado as

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suas convicções morais. Por isso, na sua essência, a prática moral é pessoal e comum. Daí o início
da sua complexidade.
A prática moral é o ponto de partida da filosofia moral (ou ética filosófica). Mais
precisamente, a prática moral dos grupos de pessoas, dos ethos coletivos, são os comportamentos
costumeiros considerados valiosos nesses grupos. Os ethos coletivos são interpretados
individualmente na forma de juízos morais. E a filosofia moral tem por tarefa precisamente
explicitar o grau de racionalidade imanente a esses juízos morais. É por isso que Giuseppe Abbà
sustenta que o enfoque primordial para a construção de uma filosofia moral é o ponto de vista da
primeira pessoa, do eu que age, do sujeito agente. Afinal, é esse quem emite juízos morais.
Como é evidente para todos nós, há muitos grupos humanos com ethos, com práticas
morais divergentes. Como construir, então, uma verdadeira filosofia moral diante desse cenário?
Um modo de encontrar a resposta a essa indagação é observar o que Whitehead (1937) disse
sobre o afazer filosófico:

A tarefa da filosofia é penetrar além dos acidentes mais óbvios, até aqueles
princípios da existência que são pressupostos na consciência turva, como que
envoltos no significado total da aparente clareza. A filosofia faz a pergunta
simples: o que é isto, afinal de contas? (WHITEHEAD, 1937, p. 178, grifo
nosso).

Ao transpormos a pergunta final do filósofo norte-americano ao campo da filosofia


moral, obtemos: quais juízos morais convêm ao ser humano, afinal de contas?, isto é, em termos
globais, absolutos.
Para se chegar à resposta, é preciso realizar uma operação muito trabalhosa: caracterizar
o ethos de cada grupo identificado e estabelecer uma dialética entre eles. Na atualidade, há alguns
valores quase universais, como os direitos humanos, a dignidade da pessoa humana, a autonomia
individual, a responsabilidade pelas próprias ações, o valor ético do trabalho etc. Contudo, ainda

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assim, esses valores são problemáticos, porque recebem significados diferentes e, até mesmo,
antagônicos a depender do grupo que os concebe como tais, de maneira que a tarefa de se
construir uma verdadeira filosofia moral a partir dessa alta complexidade da prática moral do dia
a dia parece ser quase hercúlea. Mas não há outro caminho para se saber o verdadeiro juízo moral
acerca dos valores problemáticos dos grupos – e, de quebra, para elaborar uma ética filosófica
condigna ao ser humano – senão o da confrontação dialética.
Há um elemento na experiência moral diária que é absolutamente crucial e que, portanto,
não pode ser negligenciado quando se quer elaborar uma filosofia moral verdadeira: a sua
dramaticidade. De fato, inicialmente, cada pessoa forma a sua consciência moral através da
educação e da persuasão que recebe no seio dos grupos a que pertence. A pessoa moralmente
consciente nunca é totalmente avessa ao ethos dos seus grupos sociais (família, amigos, clube
esportivo, partido político, comunidade religiosa, organização beneficente, culturas nacional e
regional, comunidade científica etc.). Porém, costumam surgir conflitos entre a pessoa e o grupo
quando a primeira, exercendo a sua liberdade, considera que há comportamentos aceitos pelo
grupo que não condizem com a finalidade estabelecida pelo ethos do próprio grupo. Um exemplo
real disso: uma estudante de Medicina, nascida e criada numa tribo indígena (que pratica há
séculos o infanticídio quando os bebês nascidos apresentam graves deficiências locomotoras),
chega à conclusão, baseada no estudo da genética e da embriologia, de que o aborto e, por
conseguinte, o infanticídio são ações injustas, moralmente reprováveis, e rebela-se contra esse
aspecto do ethos do seu povo. Os resultados dessa rebelião podem ser uma reforma na cultura do
grupo, a rejeição pelo grupo da crítica que se lhe fez, a supressão da crítica por meio de contra-
argumentos que venham a convencer a estudante etc. Há aqui o elemento da dramaticidade, isto
é, a ocorrência de perplexidades, dubiedades e dilemas na vida pessoal. Nessa seara, algumas

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das perguntas mais essenciais que se pode fazer são: vale a pena viver bem? É melhor sofrer a
injustiça ou cometê-la? A vida virtuosa torna-me feliz? Há alguém acima do bem e do mal? Se há,
em quais condições? Tem sentido perder a própria vida para não trair a própria consciência ou
para não cometer uma ação imoral grave? Enfim, só a filosofia moral que dá conta de perguntas
como essas está à altura do ser humano – porque está à altura da complexidade da sua prática
moral cotidiana.
A prática moral em que uma ética filosófica se baseia é aquela que experimentamos
diuturnamente e a que outros nos relatam. Essa prática moral reúne um conjunto de informações
que são necessárias para que daí se construa uma ética filosófica, mas que não são suficientes,
porque se revelam limitadas pelas perspectivas, vieses e afunilamentos que desenvolvemos e
pelos quais captamos os acontecimentos da vida. Para que a nossa prática moral seja ampliada
para além dessas inevitáveis barreiras, é preciso recorrermos a outras visões complementares.
A fonte privilegiada para estendermos e enriquecermos a nossa prática moral é a literatura
narrativa e dramática, pois, por um lado, a sua forma coincide com o desdobramento narrativo
da vida de cada um de nós, e o seu conteúdo, com as incidências dramáticas que se dão no
nosso viver; e, por outro lado, esse gênero literário proporciona-nos relatos de práticas morais
acontecidas ou possíveis de acontecer, a que não teríamos acesso senão pelos livros em que tais
práticas estão contadas. Com efeito, as obras literárias narrativas costumam apresentar sujeitos
agentes, possuidores de índoles morais distintas, em relação mútua, os quais se veem envolvidos
em situações incontroláveis e contingentes, isto é, não planejadas e de ocorrência não necessária.
Na filosofia moral contemporânea, há muitos autores que respaldam a sua investigação
filosófica nas literaturas narrativa e dramática. Dentre os mais conhecidos, encontram-se Iris
Murdoch, Stanley Hauerwas, Alasdair MacIntyre e Martha Nussbaum. Os literatos mais citados
por esses e outros filósofos morais são William Shakespeare, Jane Austen, George Eliot, Fiódor
Dostoievsky, Liev Tolstói, Joseph Conrad, Henry James, Albert Camus, Robert Musil e Marcel
Proust.

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Finalizaremos este tópico com exemplificações de como a literatura narrativa e dramática


tem o condão de expandir as fronteiras da nossa prática moral ao fornecer-nos experiências
morais que se dão no dia a dia, ainda que atribuídas a personagens fictícias, e que não estão
no horizonte ético da maioria de nós: (1) em A morte de Ivan Ílitch, Tolstói conta-nos a saga
do protagonista, um materialista obstinado, para encontrar um modo de lidar com a sua
doença mortal; (2) no romance Mundos mortos, Octavio de Faria expõe o entusiasmo ou o
dilema de consciência de adolescentes como João, Ivo, Roberto, Carlos Eduardo e Branco, que
eram convidados insistentemente por conterrâneos seus a começarem a frequentar uma “casa
de pensão”; e em A mulher que fugiu de Sodoma, José Geraldo Vieira narra-nos com especial
vivacidade o intenso embate emocional da jovem Lúcia em meio a uma tempestade noturna
que inundava a longa rua por onde andava, se devia ou não abandonar Mário, seu marido, que
cometia graves injustiças decorrentes do seu vício em jogos de azar.

2. CARACTERIZAÇÃO DA FILOSOFIA MORAL


Para entendermos as características constitutivas da filosofia moral, vejamos quatro
pontos: (1) a explicação filosófica do conhecimento moral; (2) a filosofia moral perante a
ambiguidade da experiência moral; (3) a identificação da pergunta principal da prática moral; e
(4) a necessidade da argumentação dialética em filosofia moral.

2.1 A Explicação Filosófica do Conhecimento Moral

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O conhecimento são os conceitos, juízos e conclusões de raciocínios que obtemos graças
ao funcionamento espontâneo da nossa razão, que, para tanto, se vale, em primeira instância,
daquilo que os nossos sentidos captam. Pois bem, o conhecimento moral são os nossos conceitos,
juízos e conclusões de raciocínios dirigidos à tomada de decisões e a subsequente realização de
ações; dirige-se, portanto, à práxis – é um conhecimento prático (complementado pelo nosso
conhecimento teórico ou especulativo).
As minúcias da formação do nosso conhecimento prático podem ser compreendidas
mediante a observação do seguinte esquema explicativo:

Figura 1 – Esquema para análise. Fonte: O autor.

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Em resumidas contas, é apropriado afirmar que quem age 1 e quem não age 2 habitualmente
segundo o que expressa o esquema anterior tem uma conduta:

1 2
razoável ≠ não razoável
refletida ≠ irrefletida
responsável ≠ irresponsável
sábia ≠ néscia (insensata)

O esclarecimento e o ajustamento à realidade do nosso conhecimento prático podem ser


feitos pela reconsideração do contexto moral em que estamos inseridos, pelo recurso à literatura
narrativa e dramática, bem como pelo estudo da filosofia, que, neste caso, torna-se filosofia moral
ou ética filosófica.
A filosofia moral tem como funções: (1) compreender a lógica do conhecimento prático
através da identificação dos princípios que o desencadeiam e que se encontram no ser humano
como um todo, isto é, na sua matéria e no seu espírito (este último abrange a razão, a vontade e as
paixões); (2) confrontar dialeticamente as diversas figuras de filosofia moral elaboradas ao longo
da história (evidentemente, sempre será preciso selecionar algumas de acordo a algum critério); e
(3) retornar à prática moral para procurar iluminá-la com as suas descobertas relevantes e, assim,
aprimorá-la.
É sobremaneira importante enfatizar que o critério de verificação, de avaliação da filosofia
moral, é a experiência moral integral, isto é, a prática moral cotidiana em todos os seus aspectos.
Ela é a pedra de toque para se concluir se determina reflexão ético-filosófica é verdadeira, ou seja,

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condigna ao ser humano. Ademais, é precisamente pela impossibilidade de se abarcarem todos
os aspectos da prática moral cotidiana que a filosofia moral é uma tarefa interminável e sempre
perfectível.

2.2 A Filosofia Moral perante a Ambiguidade da Experiência Moral


Não há a mínima margem para dúvidas de que a experiência moral do dia a dia não é um
ponto de partida unívoco para a filosofia moral. Em outras palavras, o significado extraível do
mesmo conjunto de ações no decorrer de determinado período temporal nunca é igual para todos
os que o observam. Sobre os mesmos comportamentos podem ser feitos juízos morais opostos
e igualmente plausíveis – o que não implica que sejam igualmente acertados. Se esses juízos
pretendem ser razoáveis, então, a filosofia moral é capaz de explicitar o grau da sua razoabilidade
e detectar os princípios em que tais juízos se assentam.
Como fazer para que haja comunicação e entendimento mútuo entre ethos coletivos
diferentes? Vemos que todo ethos coletivo possui conceitos de justiça, coragem, lealdade, gratidão,
honestidade etc., mas que as práticas pessoais que correspondem a esses conceitos costumam
variar. A solução consiste em contrastar as práticas diferentes (ou até mesmo antagônicas) que
correspondem aos mesmos conceitos em ethos coletivos diferentes. Assim, descobrem-se (1)
os princípios motivadores dessas práticas e (2) a congruência ou incongruência deles com o
significado dos conceitos em que são enquadrados.

2.3 A Identificação da Pergunta Principal da Prática Moral


A importância de se identificar a pergunta ou questionamento principal da prática moral
cotidiana é que essa identificação revela o tema, o objeto de estudo de determinada linha de

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filosofia moral.
As práticas morais dos indivíduos e dos grupos de pessoas possuem perguntas principais
implícitas, de modo que cabe ao filósofo moral trazê-las à tona a fim de obter o ponto focal sobre
o qual elaborará a sua ética filosófica. Uma vez que acontecem discrepâncias quanto às perguntas
principais identificadas por aqueles que se dedicam à especulação ético-filosófica, as filosofias
morais que se erguem a partir delas também diferem – não raro, em aspectos capitais.
Serão profundamente distintas as filosofias morais que identificarem como perguntas
principais da prática ética diária as exemplificadas a seguir: como devo agir para alcançar o bem
perfeito e a felicidade plena? Quais são as normas prescritivas a que tenho de obedecer? De que
modo consigo me desvencilhar o máximo possível dos entraves à satisfação dos meus gostos e
interesses? Como faço para crescer no conceito dos outros? Que tipo de ações tenho de realizar
para que os outros e eu desfrutemos de mais prazer e padeçamos de menos dor?
Dada essa situação caleidoscópica, o estudo das diversas correntes de ética filosófica é
o caminho para entendermos a pergunta principal que cada uma delas identifica. E, por meio
do expediente de situá-las em confronto dialético, tendo como critério a nossa própria prática
moral expandida pela literatura dramático-narrativa, estaremos em condições de encontrar a
filosofia moral mais condizente com os requerimentos da condição humana e, por tabela, qual é
a pergunta principal que efetivamente subjaz a toda e qualquer experiência moral cotidiana.

2.4 A Necessidade da Argumentação Dialética em Filosofia Moral


O discurso filosófico desenvolve-se por meio de argumentos e contra-argumentos entre
posições discordantes. Com efeito, “(...) se há algo óbvio em filosofia é que não se pode sustentar

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uma opinião própria sem discutir as outras posições” (ABBÀ, 2017, p. 41).
Todo filósofo elabora argumentos com base em filosofias já desenvolvidas. Em outras
palavras, todo filósofo pertence a, pelo menos, uma tradição filosófica. No entanto, nenhum
filósofo enfrenta exatamente os mesmos problemas dos outros filósofos. Assim, para contribuir
com o avanço da filosofia na investigação da verdade sobre o real, ele não precisa abandoná-la
necessariamente, mas tem de conhecer as outras tradições, quer seja para aprimorar a sua tradição
com os elementos das outras, quer seja para abandonar a sua tradição graças ao convencimento
de que há uma tradição que explica melhor a realidade. Assim, no campo da filosofia moral, o
procedimento deve ser o mesmo.
Porém, não se podem deixar de estudar as figuras de ética filosófica sem atentar para o
seu enredo histórico-narrativo. Com efeito, é difundida a tendência de se discutirem argumentos
filosóficos sem que se preste grande atenção ao fato de como eles foram formados no curso da
história. O problema disso é que não se entendem de modo cabal esses argumentos filosóficos,
porque não se entendem as razões pelas quais eles foram elaborados. De modo particular, não é
tão frequente que se ressalte a mudança de rumo mais radical da história da filosofia, que foi a
passagem do predomínio da filosofia realista clássica (greco-medieval) para a filosofia imanentista
moderna por obra de Guilherme de Ockham (século XIV), graças ao êxito do seu nominalismo
filosófico.
Portanto, para que possamos entender com suficiente profundidade as figuras de filosofia
moral mais influentes no decorrer do tempo e nos dias de hoje, é preciso tentarmos reconstruir,
dentro do possível, os problemas enfrentados pelos filósofos que a compuseram.

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3. ÉTICA DAS VIRTUDES (ARISTÓTELES)

Figura 2 – Busto de Aristóteles. Fonte: UAPAS (2022).

Aristóteles é o desenvolvedor cabal da ética das virtudes no período da antiguidade


filosófica. Essa figura de filosofia moral também é conhecida como ética eudaimônica (do
vocábulo grego eudaimonia, isto é, felicidade ou realização existencial), ética da vida boa (aquela
que propõe que o sujeito agente faça o bem para tornar-se bom ao longo de toda a sua existência)
ou ética da primeira pessoa (aquela em que o sujeito que age não só é ator – executor – mas
também autor – compositor – dos fins e dos meios das suas ações).
Uma vez que, nesta disciplina, optou-se por uma defesa desta corrente de ética filosófica,

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convém explicar sumariamente que a ética das virtudes engloba os aspectos da prática moral
considerados como principais pelas outras quatro correntes que aqui se expõem.
Com efeito, quanto à (1) ética da lei, as virtudes do agente aperfeiçoam o funcionamento
do seu querer e do seu desejo, de modo a que estes passam a servir-lhe como regra moral, como
dever de ação, que é cumprido com agrado e facilidade. Em relação à (2) ética da colaboração
social, as virtudes do agente – sobretudo a virtude da justiça – permitem que ele contribua
para a coordenação das liberdades humanas em sociedade, dando a cada um aquilo que lhe
é devido. No que tange à (3) ética como explicação do comportamento humano, as virtudes
do agente permitem que ele explique como, em geral, as pessoas se comportam, porque essas
virtudes proporcionam-lhe conhecimento próprio e, consequentemente, maior capacidade de
compreensão das atitudes alheias. Por fim, a respeito da (4) ética da utilidade, as virtudes do
agente – sobretudo a justiça, novamente, e a prudência – possibilitam que ele descubra soluções
de maiores benefícios para o maior número de pessoas nas situações concretas.

3.1 Precedentes
3.1.1 Formação progressiva das poleis gregas a partir do século VIII a. C.

Começaram a surgir problemas de convivência e de coordenação social que não podiam


ser solucionados com o ethos – o arcabouço de costumes e práticas individuais e de grupo –
legado pelos poemas de Homero. A base do ethos dos poemas homéricos era principalmente a
aretê (excelência, virtude) dos chefes das famílias aristocráticas, que consistia principalmente na
ascendência sobre os outros, motivada pela força de persuasão da palavra e pela coragem bélica.
Uma vez que, a partir do século VIII a.C., o denominador comum da polis grega passou a
ser o governo da lei (nomos), aqueles que se comportavam como chefes aristocráticos terminavam

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entabulando sérios conflitos e rivalidades com outros cidadãos. Foi preciso, então, conceber
e praticar um novo ethos. Nesse contexto, requeriam-se outras virtudes ou excelências, como
a capacidade de moderar os próprios desejos e emoções individuais (temperança), a própria
agressividade (fortaleza) e a submissão à ordem jurídica estabelecida por consenso (justiça).

3.1.2 Os sofistas

As leis estabelecidas foram muitas vezes contestadas. Por exemplo, na Atenas do século V
a. C., os sofistas argumentavam que elas escondiam o poder dos mais fortes, uma vez que as regras
sociais variavam de cidade para cidade, o que atestava que não havia princípios absolutos e leis
imutáveis provenientes de verdades eternas. Como contraponto, sustentavam que a submissão
à lei era uma enganação e incentivavam os atenienses, especialmente os jovens, a aprenderem a
técnica da arte retórica – que seria a verdadeira virtude ou excelência da polis grega – a fim de
fazerem prevalecer a sua própria opinião – fosse verdadeira ou falsa – nos debates e assembleias
deliberativas.

3.1.3 Sócrates

Sócrates insurgiu-se contra os sofistas, anunciando por Atenas que a verdadeira virtude
não consistia em fazer prevalecer a própria opinião, mas em cultivar a própria psiche, a própria
alma. Sem isso, não se alcançaria a eudaimonia (felicidade) ainda que se alcançasse o sucesso
argumentativo. A alma era cultivada com a aquisição das virtudes ou excelências de conduta
(aretai, plural de aretê), que provinham das ideias eternas e imutáveis, as quais, por sua vez,

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podiam ser acessadas por meio de uma discussão dialética, indutiva (o processo do “parto
intelectual” ou maiêutica), que levasse à recordação (anamnese) das ideias eternas.
A justiça era o caminho para a felicidade, mas somente no âmbito da alma, isto é, dentro
de cada indivíduo, e não na sociedade como um todo. Quem adquirisse uma ciência (episteme)
sobre a justiça não cometeria erros de conduta: a causa dos erros de conduta seria a ignorância
acerca da justiça.
O problema da ética socrática era não oferecer à vida política uma solução para aqueles
que não quisessem adquirir o conhecimento sobre a justiça, que os transformaria em impecáveis.

3.1.4 Platão

O maior dos discípulos de Sócrates enxergou a proposta ética do seu mestre como
problemática em dois planos: (1) político, em razão da oposição entre ricos e pobres (estes
últimos não tinham meios econômicos para educar-se em nível tão alto e, assim, adquirir a
episteme necessária sobre a justiça), e (2) individual, em decorrência da dificuldade imanente de
se adquirir o profundo conhecimento da justiça.
Em A República, a solução platônica para esses obstáculos consistiu em que era preciso
que o cidadão se tornasse justo para que a sociedade como um todo fosse justa. Porém, antes da
justiça do cidadão, era preciso estabelecer as bases da justiça política, porque, segundo ele, era a
polis que tinha de oferecer os recursos educacionais – incluídos os de coerção penal – para que
os cidadãos sejam justos.
A justiça na polis consistiu em que cada grupo social cumprisse a sua função: os sábios
deveriam possuir a ciência moral soberana para poderem encarregar-se do governo da cidade; os
guerreiros tinham de ter a coragem política para poderem defender a polis das desordens internas
e, sobretudo, dos ataques externos de outras poleis; e os produtores ou artesãos precisavam ser
temperantes (moderados na fruição dos prazeres) a fim de trabalharem eficazmente e sustentarem

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EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

a polis economicamente.
Analogamente, cada cidadão deveria aperfeiçoar a sua razão com a virtude da sabedoria,
a sua paixão com a da fortaleza e o seu desejo com a temperança. Para Platão, a sabedoria não se
adquiria por experiência (por treino ou repetição de atos), mas por anamnese, isto é, mediante
reminiscência ou recordação da sua origem no topos hyperurânios (lugar supraceleste ou mundo
das Ideias).

3.2 Aristóteles
O mais destacado dos discípulos de Platão criticou a separação estabelecida pelo seu
mestre entre as ideias do lugar supraceleste e as realidades sensíveis deste mundo.
Segundo Aristóteles, a consequência da separação platônica na vida política era o
confronto entre a proposta de aquisição da alta ciência que conhece a justiça ideal e o fato de que
os cidadãos têm opiniões comuns sobre a justiça, fruto da mera observação e da experiência, que
são abstraídas intelectualmente.
Ao sustentar que as essências (ideias) estão nas próprias coisas, Aristóteles acaba
afirmando que as opiniões dos cidadãos sobre a justiça podem ser verdadeiras ou, ao menos,
ter alguma parcela de verdade, de modo que têm de ser tomadas como ponto de partida para se
saber o que é a justiça na vida política.
Para o Estagirita, os princípios das operações (ou “de funcionamento”) dos entes estão
nas próprias coisas, são a essência delas. Assim, o princípio de operações das ações humanas
encontra-se no próprio homem, e as ações humanas podem ser de dois tipos: arte (produção de
coisas) ou escolha (prática de comportamentos).

ÉTICA I | UNIDADE 1
As ciências acerca das coisas, da arte e da escolha são diferentes: às primeiras corresponde
a ciência teórica; à segunda, a ciência poiética ou fabril; e à última, a ciência prática. Daqui
procedem as denominações aristotélicas de filosofia especulativa (ou teórica) e de filosofia
prática. A primeira visa a conhecer a verdade sobre algo, sem ulteriores pretensões; a segunda
pretende conhecer a verdade sobre algo para, depois, agir com base nesse conhecimento. Pois
bem, segundo Aristóteles, a filosofia sobre os campos da ética (da conduta) e da política deve ser
de índole prática.
O método aristotélico para a elaboração da filosofia moral começava por recolher as
opiniões dos cidadãos comuns sobre o certo e o errado, o justo e o injusto, a coragem e a covardia,
a felicidade e a desgraça etc. As opiniões daqueles que eram considerados sábios em relação
às escolhas humanas (o phrônimos) e daqueles que eram tidos como exemplares, virtuosos (o
spoudaios), também continuavam a ser altamente valorizadas. No entanto, o ponto de partida
mudara para as opiniões dos cidadãos comuns.
Na metodologia ético-filosófica de Aristóteles, a recolha das opiniões comuns sobre o bem
e o mal em diversas situações era sucedida pela identificação das aporias (irresoluções) existentes
entre elas. A seguir, submetiam-se essas aporias a um confronto dialético para se chegar a uma
conclusão sobre a verdade – sempre provisória, porque sempre aperfeiçoável – da questão que se
discutia.
Em termos gerais, isto é, como resposta a todas as questões relativas a diferentes
comportamentos humanos concretos, a conclusão de Aristóteles era a seguinte: para que
alguém faça o bem e alcance a felicidade, devem-se integrar três tipos de vida: (1) a vida ativa
na polis (desempenhar as funções que lhe cabem nos vários âmbitos da vida social); (2) a vida
contemplativa ou filosófica (refletir constantemente no bem e na felicidade para, assim, desejá-
los, bem como refletir em como se poderia melhorar a própria conduta com vistas ao alcance do
bem e da felicidade); e (3) a vida prazenteira (encontrar alegria e gratificação tanto na vida ativa
como na vida contemplativa).

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Ao contrário de Platão, Aristóteles – nas suas duas obras de Ética que chegaram até
nós, Ética a Eudemo e Ética a Nicômaco – começa a sua filosofia prática pela moral (ethos) do
indivíduo, e não pelos recursos morais proporcionados pela polis (ou seja, as leis). Em outras
palavras, Aristóteles elabora primeiro a sua filosofia moral e, depois, com base nela, a sua filosofia
política.
Assim, a filosofia política de Aristóteles fica subordinada à sua filosofia moral, uma vez
que esta última marca a finalidade que a primeira deve atingir, independentemente do regime
político que a polis adote. Dito de outro modo, o governo da sociedade deve estruturar-se de
modo que os seus membros estejam em condições de escolher o bem e alcançar a felicidade nas
suas vidas. Esse é o tema de outra obra de Aristóteles, a Política. Essa posição parece ser mais
acertada que a do seu mestre Platão, uma vez que:

(...) as leis não podem tornar os homens melhores. Só os homens podem fazê-
lo; e podem fazê-lo apenas ao escolherem realizar livremente aquilo que é
moralmente correto por causa da razão correta. As leis podem ordenar uma
conformidade externa com as regras morais, mas não podem compelir os atos
interno da razão e da vontade, que são os que fazem que um ato externamente
conforme aos requerimentos da moralidade seja um ato moral (GEORGE, 1995,
p. 1).

Para o Estagirita, o bem não se pratica espontaneamente em todas as áreas da vida, mas
apenas naquelas em que o sujeito agente já possui uma inclinação natural. Como consequência,
ninguém chega a ser feliz vivendo a seu bel-prazer. Para fazer o bem e, consequentemente, atingir
a felicidade, é preciso que os sujeitos agentes se empenhem e adquiram as virtudes, que são

ÉTICA I | UNIDADE 1
disposições excelentes em vista do bem e da felicidade.
Há virtudes que aperfeiçoam a parte apetitiva do ser humano (aquela relativa ao desejo da
vontade e das paixões) e outras que aperfeiçoam a sua parte racional. Basicamente, as primeiras
são a justiça, a fortaleza e a temperança (virtudes propriamente éticas); a virtude que aperfeiçoa
a razão é a prudência (a phrónesis faz parte das virtudes chamadas dianoéticas por Aristóteles).
A prudência de alguém se torna infalível (acerta sempre ou com muitíssima frequência)
se essa pessoa desenvolve cada vez mais as suas virtudes morais (justiça, fortaleza e temperança).
As virtudes morais estipulam o fim bom almejado pelo agente, porque atuam na sua parte
apetitiva ou desejante, ao passo que a virtude dianoética da prudência discerne os meios mais
precisos para que o agente alcance esse fim bom desiderativamente estipulado. Há, portanto,
uma interdependência entre as virtudes morais e a virtude intelectual da prudência: não se tem
virtude moral sem prudência e não se tem prudência sem as virtudes morais.
Graças a essas quatro virtudes fundamentais (que depois serão denominadas cardeais –
do latim cardo, isto é, “eixo”, querendo significar que essas excelências do caráter são como quatro
eixos em torno dos quais giram todas as demais virtudes que devem ser adquiridas e cultivadas
pelo ser humano) é que o sujeito agente torna-se não só ator (executor) das suas ações, mas
também autor (compositor, elaborador) delas.
Isso se verifica de modo claro no chamado silogismo prático explicitado por Aristóteles
(expediente de que ele lança mão para explicar a estrutura geral da ação virtuosa). Eis um
exemplo: premissa maior: “Desejo constantemente desfrutar os prazeres de maneira moderada”
(a pessoa possui e cultiva a virtude da temperança); premissa menor: “Já comi o suficiente nesta
refeição. Mas, mesmo assim, aquele doce me atrai”; conclusão: “Não vou comer esse doce. Para
isso, levanto-me da mesa agora mesmo” (a prudência é que delibera, descobre e ordena o ato de
levantar-se imediatamente da mesa).

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Em Aristóteles, a diferença entre moral e filosofia moral (ou entre ética e ética filosófica)
é que a primeira consiste no aperfeiçoamento pessoal e concreto das virtudes, ao passo que a
segunda consiste em justificar racionalmente esse aperfeiçoamento.

ÉTICA I | UNIDADE 1

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UNIDADE ENSINO A DISTÂNCIA

02
DISCIPLINA:
ÉTICA I

ÉTICA DAS VIRTUDES (TOMÁS DE AQUINO),


ÉTICA DA LEI (IMMANUEL KANT) E ÉTICA DA
COLABORAÇÃO SOCIAL (THOMAS HOBBES)
PROF. DR. FREDERICO BONALDO

SUMÁRIO DA UNIDADE

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................................18
1. ÉTICA DAS VIRTUDES (TOMÁS DE AQUINO) ................................................................................................... 20
1.1 O PENSAMENTO ÉTICO DEFINITIVO DE TOMÁS DE AQUINO, CONTIDO NA SEGUNDA PARTE DA
SUMA DE TEOLOGIA ............................................................................................................................................... 20
1.2 ANÁLISE SISTEMÁTICA DA ÉTICA DAS VIRTUDES (ARISTÓTELES E TOMÁS DE AQUINO) ..................... 22
1.3 A CONCEPÇÃO DO HOMEM COMO SUJEITO UTILITÁRIO: NOTA COMUM ÀS QUATRO FIGURAS
RESTANTES DE FILOSOFIA MORAL ...................................................................................................................... 23
2. ÉTICA DA LEI (IMMANUEL KANT) .................................................................................................................... 24
3. ÉTICA DA COLABORAÇÃO SOCIAL (THOMAS HOBBES) ................................................................................. 26

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INTRODUÇÃO

Figura 1 – Retrato de Tomás de Aquino. Fonte: Franciscan Media (2021).

Desde o seu surgimento, o cristianismo identificou a verdade e a felicidade do ser humano


com o conhecimento de Deus, tal como apresentado por Jesus Cristo, ele próprio entendido
como Deus feito homem, Deus encarnado ou humanado. Assim, para que se conhecesse Deus,
era preciso penetrar em três mistérios revelados e vividos por Jesus Cristo e consignados na

ÉTICA I | UNIDADE 2
Bíblia: (1) a unidade e trindade de Deus (uma só substância divina necessariamente consistente
em três pessoas: o Pai, o Filho e o Espírito Santo); (2) a encarnação de Deus Filho (Jesus Cristo);
e (3) a paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo.
Diante disso, os pensadores cristãos passaram a estudar os filósofos pagãos de modo
crítico, isto é, discernindo os aspectos da sua doutrina que se coadunavam com a mensagem
cristã e ajudassem a explicá-la.
No limiar entre a Antiguidade e a Idade Média, Agostinho de Hipona foi o maior
expoente desse empreendimento intelectual. Não desenvolveu um tratado de ética científico nos
moldes de Aristóteles; em vez disso, dissolveu a ética dentro do fenômeno da caridade, ou seja,
do amor a Deus. As quatro principais virtudes éticas ou morais dos filósofos pagãos (prudência,
justiça, fortaleza e temperança) passaram a ser entendidas como modos de amar a Deus e,
consequentemente, às pessoas e ao mundo. Os instrumentos para que as pessoas conseguissem
viver dessa maneira eram a lei divina transmitida na Bíblia e o auxílio constante de Deus a
cada um (a graça divina), que podia ser obtida pela oração (falar com Deus) e nos sacramentos
instituídos por Jesus Cristo e legados à Igreja Católica (batismo, crisma, eucaristia, confissão,
unção dos enfermos, matrimônio e ordem). A influência cultural de Agostinho foi predominante
até o século XII.
Em meados do século XII, Pedro Lombardo estruturou a teologia cristã nas Sentenças. O
conteúdo delas era basicamente agostiniano. Entre o fim do século XII e o início do XIII, outros
autores também organizaram sumas e sentenças da teologia cristã, reproduzindo a estrutura
das Sentenças de Pedro Lombardo. Já a partir da segunda metade do século XIII, essas sumas
e sentenças foram trocadas por comentários às Sentenças de Pedro Lombardo. Aliás, Tomás de
Aquino foi um dos que escreveram um comentário às Sentenças.
Porém, entre os anos de 1246 e 1247, a Ética a Nicômaco de Aristóteles foi traduzida para o
Latim, que era a língua franca da época. A maioria dos teólogos considerou-a como incompatível
com a teologia de Agostinho. A razão básica era que Aristóteles propugnava a aquisição das
virtudes morais e da prudência para que o homem fosse ator e autor de boa conduta e alcançasse

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EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

a felicidade em termos estritamente humanos, e não também sobrenaturais.


Contudo, Tomás de Aquino (1224 ou 1225 – 1274) elaborou uma parte especificamente
ética dentro da teologia cristã, para a qual adotou o enfoque da Ética a Nicômaco. Nisso, ele não
teve predecessores, colegas contemporâneos, nem sucessores imediatos.
Sequer os autores do neotomismo dos séculos XIX e XX compreenderam a centralidade das
virtudes na ética de Tomás; na esteira de Francisco Suárez (século XVI), continuaram a conceber
que o elemento central era a lei, sendo as virtudes apenas um facilitador para o cumprimento da
lei. A reabilitação da ética tomista como ética das virtudes começou nos anos 1960 em diante,
com autores como Servais Pinckaers, Giuseppe Abbà, Alasdair MacIntyre, Martin Rhonheimer,
Pamela M. Hall, Russell Hittinger, Eleonore Stump, Ana Marta González, Bonnie Kent etc.

ÉTICA I | UNIDADE 2

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1. ÉTICA DAS VIRTUDES (TOMÁS DE AQUINO)


1.1 O Pensamento Ético Definitivo de Tomás de Aquino, Contido na Segunda
Parte da Suma de Teologia
Em decorrência de uma exposição desacertada do seu pensamento moral, elaborada
por filósofos e teólogos a partir do século XVI (Francisco Suárez, sobretudo), costuma-se atrelar
a ética tomista ao seguinte esquema: a moral consiste em cumprir livremente a lei (a eterna, a
natural e a humana), e as virtudes têm a função de tornar esse cumprimento mais fácil, estável e até
mesmo agradável. Mas não é isso o que se observa na Segunda Parte da Suma de teologia.
Tomás conheceu a Ética a Nicômaco aos 20 anos de idade, através do seu mestre Alberto
Magno. Mas só redigiu a Segunda Parte da Suma de Teologia, amplissimamente inspirada no
pensamento ético do Estagirita, dezessete anos mais tarde.
Na “Primeira Seção da Segunda Parte” da Suma de Teologia, questão 58, artigo 5, Tomás
explica que qualquer espécie de lei e todo juízo de aplicação da lei por parte da consciência
humana são gerais e teóricos, de modo que não alcançam o caráter particular e prático de cada
ação de um indivíduo humano.
A lei – por vezes – e o juízo da consciência – sempre – são pontos de partida da ação
humana, mas entre esses dois extremos – o princípio teórico e o resultado final prático – é
preciso que medeie a sabedoria prática (a virtude da prudência) do indivíduo, sustentada pelas
suas virtudes morais (justiça, fortaleza e temperança), de modo que o indivíduo impere para si
mesmo uma decisão, uma escolha (eleição), que finalmente desemboque no resultado final da

ÉTICA I | UNIDADE 2
ação prática.
A ação prática conveniente ao ser humano é aquela que escolhe a realização de um bem
que conduza a pessoa à direção do Bem supremo, que é Deus, a quem o ser humano deseja
naturalmente contemplar e apossar-se. É essa vida boa que dá lugar à felicidade absoluta. Quem
age habitualmente desse modo vive o que o Aquinate denomina vida beata, isto é, a vida bem-
aventurada, a vida feliz, que é decorrência necessária da vida boa, isto é, da vida em que se procura
praticar o bem de modo contínuo.
Contudo, a vida feliz nunca será completa no curso terreno da existência humana, mas tão
somente na vida humana interminável após a morte, pois só então o homem poderá contemplar
Deus e tomar posse dEle, o Bem supremo, de maneira cabal.
Para Tomás, a posse de Deus é a beatitude perfeita, isto é, a felicidade completa, a qual
Aristóteles chamava de eudaimonia. Para o Estagirita, a compleição da psique humana exigia que
existisse um estágio em que o ser humano se tornasse plenamente feliz, mas ele era consciente de
que esse estágio não chegaria durante a nossa condição vital atual – e, como não tivera contato
com a revelação judaico-cristã, Aristóteles não pôde dizer o que Tomás disse, a saber: que a
felicidade completa ocorre na vida imorredoura após a morte terrena, mediante a contemplação
de Deus.
Tomás de Aquino afirma que o ser humano tem o desejo e a inclinação naturais à
felicidade, mas também o despreparo natural para alcançá-la. O ser humano quer ser feliz,
porque está dotado, na sua essência mesma, de uma lei moral natural que aponta nesse sentido;
essa lei natural é uma participação na lei eterna, isto é, a lógica ou providência com a qual Deus
governa toda a sua criação. Porém, uma vez que a sua afetividade se dirige desordenadamente
a vários objetos, a sua razão é influenciada por elas e não consegue discernir com nitidez as
realidades apenas aparentemente verdadeiras e boas daquelas que o são autenticamente. Assim, a
razão muitas vezes identifica como efetivamente verdadeiros e bons entes que, na realidade, são
verdadeiros e bons em aparência – ou seja, que consistem em autênticos enganos e maldades.

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Essa informação é transmitida à vontade do indivíduo, que considerará como um bem


algo que é mal, por não se adequar ao desejo natural de felicidade, decorrente, ao fim e ao cabo,
da nossa lei moral natural comum. E, com esse bem aparente em vista, a vontade mobilizará os
afetos (ou paixões) e a razão a comporem uma ação para possuir esse mal disfarçado.
Em face dessa defasagem ontológica entre desejo natural de felicidade e despreparo
natural para alcançá-la, Tomás vê como solução a aquisição e o cultivo de hábitos que aperfeiçoem
a razão, a vontade e as paixões, isto é, a conquista e manutenção de virtudes (palavra que provém
do latim vis, isto é, “força”).
As virtudes possibilitam que a razão humana discirna gradativamente, ao longo de toda a
sua existência temporal, os objetos autenticamente verdadeiros e bons, permitem que as paixões
os desejem e que a vontade os queira, para, então, mobilizar as paixões e a razão a comporem
ações que se destinem à posse de bens verdadeiros. Desse modo, as virtudes são os “motores” da
vida moral excelente, isto é, das ações que elegem o bem, tornando-se, portanto, inviável que o
indivíduo escolha o bem de forma habitual sem as virtudes.
Percebe-se, assim, que, na explicação tomista, só a posse das virtudes e o exercício
de ações virtuosas permitem ao ser humano viver de acordo com a sua lei moral natural e,
consequentemente, participar de forma mais plena e perfeita na lei eterna.
As virtudes são adquiridas através da repetição reiterada e reflexiva de atos bons. Ao
mesmo tempo, não há outra maneira de descobrir quais atos são bons senão observando os atos
de pessoas admiráveis do ponto de vista da busca da felicidade existencial – concretamente, das
pessoas prudentes, que demonstram realizar ações dignas da sua inclinação natural por bem
perfeito e pela consequente felicidade perfeita. Inevitavelmente, o indivíduo que procura adquirir
virtudes procurará saber quais são as fontes motivadoras das ações das pessoas prudentes e,

ÉTICA I | UNIDADE 2
então, descobrirá valores, princípios e regras de índole diversa: religiosa, legislativa, histórica,
literária etc.
É importante destacar novamente que as leis e regras que podem inspirar o processo de
aquisição das virtudes não são capazes dos atos bons de maneira particularizada, mas apenas de
maneira geral ou universal. Só a virtude da prudência do indivíduo, em dependência das suas
virtudes morais (justiça, fortaleza e temperança, além das outras que são anexas a essas), é que
pode especificar, particularizar um ato bom no aqui e agora de cada situação.
As leis e regras são condições necessárias para a aquisição individual das virtudes, porque
ilustram à inteligência prescrições genéricas de ações virtuosas e com proibições genéricas de
ações viciosas. No entanto, em cada situação específica em que deve decidir qual ação realizar, o
ser humano será incitado a optar por uma ação boa por causa das suas virtudes morais (justiça,
fortaleza e temperança, bem como as demais que orbitam em torno dessas), que vão estipular a
finalidade boa a ser alcançada, e irá detalhar, particularizar, compor com eficácia o passo a passo
dessa ação boa graças à sua virtude da prudência.
Uma vez adquiridas, consolidadas e até mesmo quando se encontram em processo de
crescimento, as virtudes têm como efeito tornar o ser humano apaixonado pelo bem, de modo que
a prática do mal se torna dificultosa para ele. Nesse ponto – a fim de afastar qualquer interpretação
narcisista da ética das virtudes –, é de grande valia frisar que alegrar-se com amor pelos outros
é o efeito principal da busca de bem perfeito e de felicidade absoluta através das virtudes. Com
efeito, “(...) acima de tudo, o fruto da conduta que tenta construir o bem devido para o homem
ou a felicidade verdadeira é a alegria do amor às pessoas, mais que a paz da consciência” (ABBÀ,
1992, p. 70).
Não obstante todo o anterior, uma vez que a vontade – que é capacidade de
autodeterminação – nunca deixa de ser livre para escolher o mal, o indivíduo pode optar por
perder as virtudes que conquistou. Quanto a esse ponto, Tomás diz que, além das fontes naturais
que motivam a perseverança na vida virtuosa, também é necessário que o indivíduo recorra a outra

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EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

fonte motivadora, de natureza sobrenatural: o próprio Deus. Nesse sentido, para permanecer na
escolha do bem, o ser humano tem necessidade de empenhar-se em seguir a lei divina revelada
(o decálogo e os conselhos de Jesus Cristo, basicamente) e de pedir a Deus que infunda nas suas
potências anímicas um estímulo suplementar, normalmente denominado graça divina – chama-
se “graça”, porque é dado gratuitamente, e divina, porque é dado por Deus.

1.2 Análise Sistemática da Ética das Virtudes (Aristóteles e Tomás


de Aquino)
Chegando ao término desta exposição sucinta do pensamento ético-filosófico de
Aristóteles e Tomás de Aquino, convém observarmos os seus principais elementos estruturantes.
Em relação a como concebem o comportamento humano e qual aspecto dele consideram
como central, ambos os autores entendem a ética como a totalidade dos atos humanos ao longo
da vida de uma pessoa. Cada ação da pessoa é a concretização do seu modo de viver, o qual é
definido e regulado por um fim último, por um telos normativo.
Quanto ao ponto de vista segundo o qual consideram o comportamento humano, ambos
o enfocam do ponto de vista da primeira pessoa, do eu que age, do sujeito agente, enquanto não
só executor (ator) das suas ações, mas também compositor ou elaborador (autor) dos seus fins
e dos meios para atingi-los. Concretamente, Aristóteles faz notar que a inteligência e o apetite
– partes da alma humana – é que ativam e compõem o agir pessoal, ao passo que Tomás traz à
tona mais elementos anímicos que impulsionam e elaboram as nossas ações: a inteligência, a

ÉTICA I | UNIDADE 2
vontade (apetite racional), os apetites passionais (apetite concupiscível e irascível), a cogitativa
(isto é, a capacidade, de base sensorial, de estimarmos a conveniência ou a nocividade para
nós de um objeto corpóreo externo) e as virtudes (os hábitos excelentes, coadunados ao telos
normativo do ser humano, que aperfeiçoam o funcionamento da inteligência, da vontade e dos
apetites sensíveis). Como consequência, os dois afirmam que o processo gerador da ação tem
a estrutura de um silogismo prático com a seguinte caracterização: a premissa maior revela o
desejo-conhecimento de um fim bom; a premissa menor aponta a percepção das particularidades
da situação, na medida em que são relevantes ao fim bom conhecido e desejado; e, por fim, a
conclusão assinala a escolha-ação feita pelo agente de modo adequado à sua situação particular.
No que tange à importância que dão às virtudes, aos bens e às normas prescritivas, bem
como ao modo como entrelaçam esses três aspectos da conduta moral, tanto Aristóteles como
Tomás dizem que a ação é boa se o desejo (isto é, a vontade – desejo racional – e as emoções
– desejos sensíveis) está inserido na ordem da razão e na ordem do amor através das virtudes.
Se o desejo estiver inserido nessas ordens, então, as ações da pessoa realizam bens no mundo,
tanto para os outros como para si mesma. O Estagirita afirma que as virtudes são definidas pelas
exigências da vida política (ou seja, da vida comum aos membros livres e iguais na polis), a saber:
as atitudes virtuosas de justiça, temperança, coragem, liberalidade, magnanimidade, liberalidade
etc. Segundo o filósofo grego, essas virtudes éticas (que depois Tomás denominou “morais”) não
só dão origem às leis da polis, às normas prescritivas, como também conduzem o indivíduo à vida
contemplativa, que é superior à vida política e que consiste no exercício das virtudes dianoéticas
(denominadas “intelectuais” por Tomás). Por sua vez, o Aquinate diz que as virtudes são definidas
pelas exigências da convivência humana em geral, regulada pelo amor a Deus e, por causa deste,
aos outros. Somente a ordem do amor – que é inseparável da ordem da razão – justifica o nosso
desejo natural e ilimitado de bem perfeito e da consequente felicidade plena (e, por conseguinte, o
nosso dever existencial de adquirir e cultivar as virtudes). Para o pensador de Aquino, as virtudes
não são disposições para que consigamos cumprir normas, mas são, antes, disposições para que

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EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

consigamos querer e sentir de acordo com o nosso próprio desejo natural e ilimitado de bem e
felicidade absolutos. Graças a esse aperfeiçoamento do nosso desejo é que cumpriremos de bom
grado (e não “a fórceps”) as normas prescritivas (obrigatórias, proibitivas e permissivas) justas. É
preciso destacar um importante sinal distintivo da ética filosófica das virtudes: para Aristóteles,
as leis da polis estão em função das virtudes cívicas e éticas dos seus membros, e não o contrário,
de modo que o melhor regime político é aquele cujas leis promovem a convivência intersubjetiva
virtuosa e o caráter individual virtuoso. Na esteira do Estagirita, Tomás de Aquino assevera que
todos os tipos de lei (divina, natural e humana) estão em função das virtudes necessárias para o
bem viver, tanto das comunidades como das pessoas individualmente consideradas.
Por último, no tocante ao fim prático atribuído ao comportamento moral, tanto o
Estagirita como o Aquinate afirmam que o fim último da práxis ou atividade humana é a vida
boa, virtuosa e feliz. Para tanto, as nossas ações têm de realizar bens humanos, resultados que
ajudem a atualizar as potencialidades naturalmente benéficas e perfectivas dos homens, que não é
uma finalidade extrínseca ao nosso agir, mas intrínseca, parte constitutiva dele. Contudo, ambos
os filósofos também concordam em dizer que a vida boa, virtuosa e feliz depende de recursos
como um mínimo de bens materiais voltados à subsistência e ao lazer, respeitabilidade da parte
dos demais, descanso, saúde etc. Uma vez que tais recursos podem vir a faltar, concluem que o
bem moral é vulnerável, frágil, precário. Diante disso, Tomás, por ser teólogo cristão, afirma que
o auxílio de Deus ou graça divina é sempre necessária para a bondade e felicidade – que serão
imperfeitas na vida terrena e perfeitas após esta nossa primeira condição existencial.

1.3 A Concepção do Homem como Sujeito Utilitário: Nota Comum às Quatro


Figuras Restantes de Filosofia Moral

ÉTICA I | UNIDADE 2
Embora Aristóteles e Tomás de Aquino tracem o itinerário das suas versões da ética
das virtudes sempre seguindo a perspectiva da primeira pessoa, do eu que age, o qual vai
descobrindo nas suas ações – nesta ordem – as suas inclinações mais fundamentais, os bens a
que estas apontam, as suas faculdades anímicas que possibilitam as duas constatações anteriores
e as virtudes que aperfeiçoam a atuação dessas suas faculdades, a filosofia moral de ambos os
pensadores faz acenos explícitos e constantes aos elementos metafísicos que sustentam e dirigem
esse percurso de descoberta: a finalidade intrínseca à essência ou natureza do homem (o seu
telos normativo) e, consequentemente, a sua capacidade de conhecimento verdadeiro sobre a
realidade.
As outras quatro correntes de ética filosófica que se estudam nesta disciplina já não têm
essa concepção acerca do ser humano. Lidam antes com a ideia de sujeito utilitário como condição
natural predominante do homem, ou seja, aquele cuja razão não é mais capaz de conhecimento
verdadeiro, justamente porque não possui uma natureza teleológica ou finalista. Subjaz a essas
filosofias morais modernas o entendimento do homem como um ser dotado de uma razão que
conhece somente os seus próprios desejos e interesses.
Isso se deu por uma série de razões histórico-filosóficas que aqui só podemos elencar: a
supressão da causalidade final dos entes e a compreensão da autodeterminação do homem como
mera liberdade de indiferença, a partir do pensamento de Guilherme de Ockham, no século XIV;
a visão dualista e estanque de René Descartes sobre o homem (res cogitans e res extensa – a simples
justaposição entre alma e corpo, e não mais integrantes de uma única realidade composta); o
ceticismo difuso em relação a Deus no final do século XVI e ao longo do XVII; dentre outros
fatores.
A razão humana que é apta apenas a tomar conhecimento dos seus desejos e interesses
dá lugar, inevitavelmente, ao isolamento dos indivíduos humanos, ao individualismo. Contudo,

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EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

ao fim e ao cabo, o individualismo é impraticável, quer no âmbito maior da sociedade política,


quer nos círculos mais restritos de relações interpessoais. Assim, foi preciso arquitetar restrições
externas e internas ao ser humano enquanto sujeito utilitário.
Na moral de Ockham, Duns Scot e Francisco Suárez, por exemplo, a grande restrição
ao sujeito utilitário será a vontade de Deus. Na ética como colaboração social de Hobbes, a
noção de egoísmo racional e as sanções negativas previstas pelas leis estatais no caso de serem
descumpridas. Na ética de Hume, como explicação do comportamento humano, o senso moral
do observador de condutas. Na ética utilitarista, o saldo positivo de prazer que as ações humanas
devem gerar. E na ética da lei tal como proposta por Kant, a hegemonia da razão autônoma,
que, no entanto, é externa ao sujeito utilitário, pois “(...) não transforma as suas motivações nem
os seus critérios de juízo”, mas “(...) simplesmente impõe à busca da sua felicidade subjetiva os
limites requeridos pela lei moral” (ABBÀ, 2017, p. 260), compreendida como um fato da razão,
de modo que “(...) se torna impossível falar de práxis como atuações do apetite informadas pela
razão, de acordo com as excelências virtuosas” (ABBÀ, 2017, p. 260).

2. ÉTICA DA LEI (IMMANUEL KANT)

ÉTICA I | UNIDADE 2
Figura 2 – Immanuel Kant. Fonte: Mente Filosófica (2019).

O elemento central da ética filosófica de Kant (Königsberg, 1724-1804) é a lei moral


emitida pela razão do indivíduo, e não as virtudes morais. Com efeito, uma das suas definições
de virtude deixa isso patente:

Virtude significa uma força moral da vontade, o que, entretanto, não esgota o
conceito, uma vez que tal força poderia também pertencer a um ser sagrado
(sobre-humano) no qual nenhum impulso impeditivo barraria a lei de sua
vontade e que, desse modo, faria jubilosamente tudo em conformidade com a lei.
A virtude é, portanto, a força moral da vontade de um ser humano no cumprir
seu dever, um constrangimento moral através de sua própria razão legisladora,
na medida em que esta constitui ela mesma uma autoridade executando a lei
(KANT, 2003, p. 248).

Diferentemente de Aristóteles e Tomás, o pensador prussiano não concebe as virtudes


como posses do sujeito agente que aperfeiçoam a atuação, o modo de funcionamento das suas
potências anímicas, incluídas aí as paixões (ou emoções), a fim de harmonizá-las com a ordem
da razão que o constitui essencialmente. Ao entendê-las como um constrangimento, isto é,
uma compressão, um prensamento comportamental operado pela razão humana ao dar uma

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EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

determinada lei prática ao seu detentor, Kant demonstra conceber uma coexistência conflituosa
dentro do próprio ser humano; um conflito entre um sujeito que se inclina a agir contrariamente
à lei moral da sua razão (o sujeito utilitário) e um sujeito que procura comprimir essa rebeldia
por meio da imposição da lei moral que habita a sua razão (o sujeito autônomo, possuidor da
“razão legisladora”). Há, assim, como que um dualismo de sujeitos, uma desarmonia insanável na
raiz do ser humano entendido kantianamente.
As obras mais conhecidas em que Kant expõe a sua ética são a Fundamentação da
metafísica dos costumes (1785) – em que concebe a lei moral como lei a priori da razão pura
prática, com caráter de imperativo categórico, prescritora da forma como o ser humano deve
querer para agir –, a Crítica da razão prática (1788) – na qual acrescenta que a lei moral é um
fato da razão (Faktum der Vernunft), justificado pela autonomia da vontade, e indaga quais são as
condições para que a lei moral possa ser realizada – e a Metafísica dos costumes (1797) – em que
explica cabalmente o que é a lei moral.
A ideia que se encontrava em voga à época e que suscitou a formulação da ética kantiana
era a do uso instrumental da razão, proposta por representantes do Iluminismo francês e alemão.
Preconizava que, se o indivíduo usa a sua razão para satisfazer as suas necessidades, desejos e
paixões, ele alcança o bem-estar e, consequentemente, a felicidade. Tratava-se da razão adequada
à concepção do homem como sujeito utilitário.
Em face disso, na esteira de Jean-Jacques Rousseau, o filósofo de Königsberg objeta que,
ao agir assim, o indivíduo só multiplica e intensifica as suas necessidades, desejos e paixões, sem
nunca os satisfazer. Por isso, o uso instrumental da razão causa mal-estar individual e social e
nunca conduz à felicidade. A proposta alternativa de Kant é de que a razão do indivíduo, que é
dotado de vontade livre, tem de aceitar como lei para si mesmo só aquela lei que a sua vontade

ÉTICA I | UNIDADE 2
lhe dita espontaneamente. Isso é o que ele chama de lei moral autônoma. Kant afirma que ela é
um fato da razão, de índole universal e necessária.
A lei moral kantiana proporciona ao agente requisitos formais, incontrovertíveis em
termos racionais e volitivos, para que este lhe submeta as necessidades, desejos e paixões que
se sente impelido a satisfazer, de modo que essa satisfação possa ser moral. Esses requisitos
compõem o que Kant denomina imperativo categórico.
Na Fundamentação da metafísica dos costumes, o filósofo de Königsberg apresenta três
formulações do imperativo categórico: (1) Age somente de acordo com aquela máxima por meio
da qual possas querer, ao mesmo tempo, que se torne uma lei universal (4: 421); (2) Age de modo a
que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e ao mesmo
tempo, como um fim, nunca como um meio (4: 429); e (3) Age de acordo com as máximas de um
membro que emite leis universais para um reino de fins meramente possível (4: 439).
O “reino de fins” da terceira formulação consiste numa sociedade perfeita, em que cada
membro dela respeita livremente o valor intrínseco da humanidade que está presente em todos
os outros membros. Trata-se do telos da razão legisladora, consistente numa “(...) sociedade
de sujeitos utilitários em que cada um tem a sua concepção subjetiva de felicidade, persegue a
própria e favorece a alheia; mas dentro dos limites impostos pela lei moral” (ABBÀ, 2017, p. 262).
Segundo Kant, a razão individual não devia aceitar como lei nada que proviesse de ordens
divinas, de uma suposta natureza humana ou das suas necessidades, desejos e paixões. No seu
aspecto prático, da realização de ações concretas, a razão individual é vontade de liberdade, de
autonomia, de autolegislação. Essa vontade de liberdade não se baseia numa escolha raciocinada
ou arbitrária, mas na pura espontaneidade da razão.
Kant chama de felicidade, ou “sumo bem”, a satisfação do desejo individual com justiça,
isto é, que consiga garantir a liberdade própria e alheia. Se o indivíduo satisfaz o seu desejo sem
justiça, ele vai além daquilo que pode desejar, de modo que destrói a sua própria autonomia,
tornando-se utilitário, isto é, vassalo dos seus desejos e interesses.

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Aparentemente, a ética kantiana é ética da primeira pessoa num sentido novo, a saber, o do
sujeito racional autônomo, contraposto ao sujeito utilitário com o qual convive inevitavelmente.
Mas a análise detida da proposta ética de Kant revela que a sua perspectiva da primeira pessoa,
do eu que age, “(...) desvanece e se dissolve no ponto de vista da terceira pessoa, seja ela a do
observador do comportamento do sujeito utilitário ou a da razão universalmente legisladora”
(ABBÀ, 2017, p. 261).
Há um aspecto muito interessante da filosofia moral kantiana: a sua afirmação de que,
ao voltar-se à ação, a razão humana necessita de três postulados: a liberdade, a imortalidade da
alma e Deus. Ainda que não possamos ter um conhecimento sensível deles, devemos assumi-los
como reais enquanto pré-condição para que as nossas ações sejam morais e para que tenhamos
conhecimento prático efetivo. Contudo, é muito chamativa a definição que Kant dá de Deus na
sua Obra póstuma: “Deus não é um ser fora de mim, mas simplesmente um pensamento em mim.
Deus é a razão prático-moral que dá leis a si mesma. Por isso, Deus não existe senão em mim, em
torno a mim e acerca de mim.” (KANT, 1998, 21: 145).
Juntamente com a ética das virtudes e a ética utilitarista, a versão kantiana da ética da lei
são as tradições morais mais importantes na atualidade. A filosofia moral de Kant é continuada
hoje em dia pelos chamados filósofos deontológicos.
Uma filósofa kantiana em atividade que se destaca é a norte-americana Christine
Korsgaard. Ela afirma-se tanto kantiana como aristotélica, porque, a seu ver, ambos os filósofos
não baseiam a sua ética na metafísica, e os dois têm concepções da razão prática que coincidem
em muitos pontos. Na verdade, os fatos não são como Korsgaard os apresenta, porque toda a
ética de Aristóteles depende da sua metafísica e, em relação às coincidências dos dois filósofos
no tocante à razão prática, não resta dúvida de que são apenas aparentes, uma vez que há uma

ÉTICA I | UNIDADE 2
discordância radical: a razão prática concebida por Kant é pura (não pode proceder ou funcionar
começando pelas emoções), ao passo que a de Aristóteles é “impura” (só pode proceder se
começar pelas emoções). Com efeito, para Aristóteles, as emoções têm uma função cognitiva em
relação à ação que se deve realizar. E a virtude moral é que garante que essa emoção, esse desejo,
esse sentimento, essa inclinação afetiva fiquem localizados na ordem da razão.

3. ÉTICA DA COLABORAÇÃO SOCIAL (THOMAS HOBBES)

Figura 3 – Thomas Hobbes. Fonte: El Juego de Filosofar (2011).

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Nascido e falecido na Inglaterra (1588-1679), Hobbes foi um dos nomes mais destacados
do empirismo filosófico moderno, sobretudo na seara da filosofia prática.
A sua filosofia moral praticamente identifica-se com a sua filosofia política. Em apertada
síntese, a sua ética consiste na investigação de regras que conduzam à colaboração social, ou
seja, à consolidação de uma sociedade justa e pacífica em prol da afirmação de cada indivíduo.
Trata-se de uma visão da ética que exclui a perfeição da vida individual, atentando somente para
a máxima realização e desfrute dos seus interesses e desejos. Em Hobbes, a presença do sujeito
utilitário é manifesta em altíssimo grau.
Nas suas obras Do cidadão (1647) e, sobretudo, Leviatã ou a matéria, forma e poder
de um Estado eclesiástico e civil (1651), Hobbes realiza uma revisão da razão prática de caráter
claramente anti-aristotélico. Enquanto a razão prática aristotélica baseava-se na prudência – a
fim de buscar soluções políticas verdadeiras, que admitem uma gradualidade de correção e, por
isso, sempre são encontradas parcialmente, com base na experiência passada –, a razão prática
hobbesiana – com base na racionalidade matemático-geométrica e na ciência mecanicista de
Galileu – procura soluções políticas certas, nas quais há correção absoluta, de modo a serem,
teoricamente, inequívocas.
Na visão de Hobbes, o nosso conhecimento de determinadas causas eficientes dos
eventos permite-nos fazer uma previsão absolutamente certa dos efeitos que delas derivam.
Assim, propugnou que, ao conhecermos as paixões humanas, prediríamos inequivocamente o
comportamento humano resultante delas.
O objetivo desse expediente não era procurar a vida boa ou excelente, mas evitar o estado
de guerra político-religiosa entre grupos rivais – a “guerra de todos contra todos” (bellum omnium
contra omnes) – a fim de garantir ao menos parcelas do direito natural ilimitado de autoafirmação

ÉTICA I | UNIDADE 2
(o ius in omnia ou right to everything, que Hobbes entendia como a condição humana originária).
Trata-se de passar do estado de natureza para o estado civil por meio do contrato social, que,
de acordo com o próprio Hobbes, não é um fato histórico, mas tão somente um pressuposto
epistemológico, finalizado ao arranjo necessário para a obtenção da paz social, que, por sua vez,
está em função da máxima expansão possível da individualidade utilitária.
A “guerra de todos contra todos”, a constatação de que “o homem é o lobo do homem”
(homo hominis lupus) é o resultado das características do estado de natureza. A base empírica
para que Hobbes o afirme é a verificação de que a vida humana consiste num “teatro de paixões
conflituosas” (Leviatã, §130, 1). Dentre essas, encontram-se o desejo de autoconservação, de
autoafirmação, de aquisição e de dominação.
No entanto, uma dessas paixões conflituosas é o medo de morrer. Graças a ela, é possível
concluir a necessidade de que os indivíduos celebrem entre si um contrato social. Ele consistirá
na eleição de um soberano, que, por sua vez, estabelecerá as verdadeiras leis morais, que são as
leis dotadas de prescrições e sanções, válidas no foro externo, isto é, nas relações intersubjetivas.
Segundo Hobbes, só este último é o campo da razão prática e da ciência moral.
Na figura moral da colaboração social com vistas à paz e à máxima expansão da
subjetividade, os indivíduos são atores, mas não autores das suas ações. A autoria das ações
individuais e o seu conteúdo cabem ao soberano legislador. A liberdade humana encontra-se
somente na decisão de agir ou não, mas não se encontra no conteúdo da própria ação, isto é, na
decisão de como agir. Eis aqui, escancarado, o enfoque ético da terceira pessoa.
Desse modo, a ciência moral hobbesiana presta-se tão somente a desenvolver técnicas de
elaboração de convenções e de instituições sociais eficazes no sentido de instaurar a paz. As leis
estipuladas pelas convenções e instituições é que merecem ser qualificadas moralmente (certas
ou erradas, boas ou más), de acordo com o parâmetro da paz e da autoafirmação.

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Abandona-se, assim, a ideia de ciência moral como o empenho individual de aperfeiçoar


o próprio caráter por meio das virtudes, de acordo com o parâmetro do sumo bem – cuja
participação no ser humano, segundo Tomás de Aquino, se chama lei natural, a qual é perceptível
a partir do discernimento das inclinações naturais.

ÉTICA I | UNIDADE 2

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UNIDADE ENSINO A DISTÂNCIA

03
DISCIPLINA:
ÉTICA I

ÉTICA DA COLABORAÇÃO SOCIAL


(CONTINUADORES DE HOBBES), ÉTICA DA
EXPLICAÇÃO DO COMPORTAMENTO HUMANO
(DAVID HUME) E ÉTICA DA UTILIDADE (OU
UTILITARISMO FILOSÓFICO)
PROF. DR. FREDERICO BONALDO

SUMÁRIO DA UNIDADE

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................................................... 30
1. ÉTICA DA COLABORAÇÃO SOCIAL (CONTINUADORES DE HOBBES) .............................................................31
1.1 DAVID GAUTHIER.................................................................................................................................................31
1.2 JOHN RAWLS ..................................................................................................................................................... 32
1.3 JÜRGEN HABERMAS ......................................................................................................................................... 33
2. ÉTICA DA EXPLICAÇÃO DO COMPORTAMENTO HUMANO (DAVID HUME) ................................................. 34
3. ÉTICA DA UTILIDADE (OU UTILITARISMO FILOSÓFICO) ................................................................................ 38
3.1 JEREMY BENTHAM ........................................................................................................................................... 38
3.2 JOHN STUART MILL.......................................................................................................................................... 39
3.3 ALGUNS CONTINUADORES (E MODIFICADORES) DA ÉTICA DA UTILIDADE ............................................. 40

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INTRODUÇÃO

Hobbes sofreu críticas e foi esquecido nos séculos XVII e XVIII. Voltou a ser estudado no
fim do século XIX por Ferdinand Tönnies, mas sem continuidade por outros autores.
No século XX, o filósofo teuto-americano Leo Strauss pretendeu reviver uma filosofia
política baseada no direito natural, em relação à qual considerava Hobbes como o principal
antagonista. Por isso, escreveu o livro Political Philosophy of Hobbes: Its Basis and Genesis (1936).
Ironicamente, a partir desse livro de Strauss, houve uma retomada histórica e filosófica de Hobbes,
com muitos autores defendendo a sua visão política.
A retomada filosófica de Thomas Hobbes possibilitou que, em filosofia moral, se mantivesse
o subjetivismo de valores então vigentes, mas se reintroduzisse a racionalidade normativa dos
juízos morais, que fora abandonada. Stephen Toulmin e Kurt Bayer contam-se entre os autores
que promoveram essa proposta. Houve diversas versões na retomada hobbesiana, mas, em todas
elas, o enfoque hobbesiano foi mantido: a ética é uma convenção de regras que visa à colaboração
vantajosa para todos.
Entre os reabilitadores, conscientes ou não, da estrutura da ética filosófica hobbesiana,
três tiveram maior influência no debate em nível mundial: David Gauthier, John Rawls e Jürgen
Habermas.

ÉTICA I | UNIDADE 3

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1. ÉTICA DA COLABORAÇÃO SOCIAL (CONTINUADORES DE HOBBES)


1.1 David Gauthier

Figura 1 – David Gauthier. Fonte: University College of Toronto (2022).

Nascido no Canadá em 1932, Gauthier exerceu a sua atividade docente nas Universidades

ÉTICA I | UNIDADE 3
de Toronto e Pittsburgh. As suas obras mais importantes são The Logic of Leviathan. The Moral
and Political Theory of Thomas Hobbes (1969), Morals by Agreement (1986) e a coletânea de
ensaios publicados entre 1974 e 1985 Moral Dealing. Contract, Ethics, and Reason (1990).
Os pontos principais do seu pensamento são estes: (1) o procedimento contratual
estabelece regras de justiça que garantem vantagens a todos, a depender do poder maior ou
menor que cada um tem à hora de celebrar o contrato (com base na chamada teoria econômica
da escolha racional, afirma que os mais fortes economicamente têm mais vantagens); (2) os
valores morais não são objetivos, mas, pelo contrário, “produtos das nossas afeições” (Morals
by Agreement, p. 17; trata-se de uma transposição para a ética da noção de valor econômico,
de preço, que depende do interesse e da demanda das pessoas); (3) segundo o seu conceito
de racionalidade prática, é racional aquilo que maximiza a satisfação dos próprios interesses
(no campo econômico, não há necessidade de regras morais, bastando que se sigam as leis do
mercado, excetuando-se a situação em que não somos lesados, na qual nos é mais vantajoso não
os lesar também. Além disso, concebe as regras morais como restrições racionais que permitem
que se alcancem os próprios interesses em alguma medida, o que, no entanto, é sempre pior que
aquilo que se deseja totalmente, e tais regras são sempre justas, ainda que o senso comum as
qualifique como injustas).

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1.2 John Rawls

Figura 2 – John Rawls. Fonte: Núcleo de Filosofia (2011).

O filósofo norte-americano John Rawls (1921-2002) foi professor em Harvard e Oxford.


Na sua bibliografia, despontam Uma teoria da justiça (1971), Liberalismo político (1993) e A lei
dos povos (1999).
O enfoque de fundo de Uma teoria da justiça foi preparado durante vinte anos e manteve-

ÉTICA I | UNIDADE 3
se intacto nas obras sucessivas de Rawls. A sua proposta é alternativa à do utilitarismo, dominante
no mundo anglo-saxônico nas décadas de 1950 e 1960. O pensamento ético-político rawlsiano
não depende diretamente de Thomas Hobbes, mas, declaradamente, da visão de contrato social
de Locke, Rousseau e Kant. Porém, como Rawls transforma a teoria política do contrato social
em teoria moral, termina aproximando-se muito da posição de Hobbes.
Os pontos mais destacados da sua teoria são os seguintes: (1) o contrato social é apenas
um artifício lógico para pôr em prática as intuições comuns acerca da justiça, presentes nas
sociedades liberais e democráticas ocidentais contemporâneas (Rawls elabora uma teoria que
pretende refletir o ethos da região norte-atlântica do planeta Terra); (2) segundo as intuições
comuns acerca da justiça nessa área do planeta, a justiça consiste em vantagens recíprocas através
da colaboração social, as quais se baseiam na igualdade moral de todos os homens, merecedores
de igual respeito e consideração (o contrato social é construído com base nisso e visa a estabelecer
princípios concretos de justiça iguais para todos); (3) o contrato social de Rawls, denominado
“justiça como equidade” (justice as fairness), define as noções de agentes racionais, posição
originária e objeto da escolha racional. Exploremos com algum detalhamento essas noções da
justiça como equidade rawlsiana.
Os agentes racionais são as pessoas com desejos e objetivos, desprovidas de inveja e que
não fazem questão de ver realizados posicionamentos éticos seus que são controversos. Trata-se
daqueles que entendem que o bem é um desejo pessoal com alta probabilidade de ser satisfeito
na convivência social.
A posição originária é a situação inicial em que os agentes racionais devem pôr-se
mentalmente para estabelecer os princípios de justiça iguais para todos. Em primeiro lugar,
todos devem considerar-se igualmente merecedores de consideração e respeito, ou seja – no
léxico de Rawls –, imparciais. Para serem imparciais, precisam situar-se detrás do que o filósofo
estadunidense chama de véu de ignorância, o qual subtrairia das mentes dos agentes racionais
os conhecimentos particulares, deixando intactos, porém, os seus conhecimentos gerais.
Concretamente, nenhum deles saberia a que classe social pertence, qual o status que tem na

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EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

sociedade, o nível da sua inteligência e força física, a sua própria concepção sobre o que é bom e
o que é mau, as suas características psicológicas personalíssimas, a situação econômico-política
da sociedade em que habita, o grau de civilização e cultura que esta atingiu, a geração histórica de
que fazem parte etc. Por outro lado, todas as pessoas saberiam que a sua sociedade é suscetível de
ser justa ou injusta, conheceriam o funcionamento das relações políticas, os princípios da teoria
econômica, a estrutura básica da organização social e as diretrizes gerais da psicologia humana,
além de todas as outras leis e teorias gerais existentes. Mediante essa operação, todos os agentes
racionais escolheriam como princípios reitores do contrato social – da justiça como equidade – a
igualdade e a liberdade.
O objeto da escolha racional são os princípios coletivos de justiça que garantem a
vantagem recíproca. Também há alguns princípios individuais de justiça (os direitos subjetivos,
ou seja, as liberdades que o Estado permite de que os sujeitos usufruam), mas eles só são legítimos
se servem para garantir a vantagem recíproca. Os princípios coletivos de justiça devem ser gerais
(não levam em conta as particularidades dos indivíduos), universais (devem valer para todos),
públicos (estabelecidos entre todos, não entre alguns e muito menos por um só) e definitivos (são
o critério máximo a que os indivíduos podem recorrer para esclarecer como devem agir). Além
disso, os princípios de justiça devem submeter as pretensões conflitantes a um regulamento, isto
é, às leis públicas, ao ordenamento jurídico.
Outro aspecto importante da proposta ética de Rawls é que, numa sociedade
adequadamente ordenada, aquilo que é justo (pactuado, contratado pelos agentes racionais) tem
de sobrepor-se àquilo que cada um considera como bom. Escreve ele:

Em geral, é uma boa coisa que as concepções dos indivíduos acerca de seu bem

ÉTICA I | UNIDADE 3
devam diferir de forma significativa, enquanto o mesmo não acontece para as
concepções do justo. Em uma sociedade bem-organizada, os cidadãos defendem
os mesmos princípios do justo e tentam atingir os mesmos juízos em casos
particulares (RAWLS, 2000, p. 496).

Para Rawls (2000), o pluralismo das concepções de bem impede que se chegue a um
consenso sobre o que é o bem comum (no linguajar rawlsiano, o overlapping consensus, isto é,
o consenso político superposto ou consenso parcialmente coincidente acerca do bem). Essa é a
razão para deixar-se de lado as concepções compreensivas (abarcadoras, abrangentes, completas)
de bem. Embora os princípios da justiça como equidade não componham a moral como um
todo, nas sociedades democráticas pluralistas, esses princípios são a única moral publicamente
compartilhável.

1.3 Jürgen Habermas

Figura 3 – Jürgen Habermas. Fonte: Rodríguez (2011).

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Nascido em Düsseldorf, Alemanha, em 1929, Habermas uniu-se aos estudos da teoria


crítica, inaugurada na década de 1930 por Max Horkheimer, ao tornar-se assistente de Theodor
Adorno, na segunda metade dos anos 1950, no Instituto para Pesquisa Social (popularmente
conhecido como Escola de Frankfurt).
A partir da década de 1970, em diálogo com o filósofo Karl-Otto Apel, Habermas
começou a desenvolver a sua ética do discurso, cujo primeiro fruto sólido – muito influente em
todo o mundo – foi a obra Teoria do agir comunicativo, publicada em dois volumes no início dos
anos 1980. Nesses escritos, o pensamento habermasiano é abertamente tributário da semiótica
de Peirce, Austin e Searle, bem como do pensamento prático-filosófico de Immanuel Kant. Não
obstante, constata-se que a ética do discurso habermasiana compartilha do mesmo enfoque
político-moral de Thomas Hobbes.
A ética do discurso procura ser uma alternativa à racionalidade científica, técnica e
avalorativa que, à época, era predominante nas ciências sociais. É construído de modo a afastar-
se do puro decisionismo em matéria de valores, assim como da crença na impossibilidade de
se justificar e criticar as normas da colaboração social. Como consequência disso, a proposta
habermasiana é preservar o convívio humano da estratégia do domínio e do poder, encontrando
um caminho para que ele possa ocorrer entre pessoas livres e capazes de acordo, de consenso.
Por discurso, Habermas entende o ato de comunicação linguística entre vários
participantes, que segue quatro critérios: (1) as declarações dos participantes têm de ser inteligíveis
(precisam fazer sentido aos interlocutores); (2) as suas declarações devem corresponder ao
mundo objetivo (ao menos como pretensão); (3) os participantes têm de emitir declarações que
correspondam ao seu mundo subjetivo; e (4) as declarações necessitam ser corretas segundo as
regras da comunicação intersubjetiva.

ÉTICA I | UNIDADE 3
Para que alguém seja participante do discurso, é preciso que preencha cinco condições:
(1) que concorde com a igualdade de oportunidades para si e para os demais participantes; (2)
que esteja imbuído de reconhecimento recíproco; (3) que esteja situado num âmbito público não
dominado pela política e pela economia; (4) que possa abordar qualquer tipo de assunto; (5) que
submeta a sua concepção de bem àquilo que é pactuado ou consensuado como justo.
O alcance do consenso entre os participantes do discurso tem como resultado a formulação
de normas sociais válidas, que deverão ser obedecidas por todos. Nota-se, assim, que a proposta
ético-filosófica de Habermas – tal como a de Thomas Hobbes, David Gauthier e John Rawls –
é fundamentalmente procedimental e que pode ser dita racional apenas pela forma como se
desenvolve, e não pelos conteúdos que introjeta nas normas sociais válidas.

2. ÉTICA DA EXPLICAÇÃO DO COMPORTAMENTO HUMANO (DAVID


HUME)

Figura 4 – David Hume. Fonte: Lumen Learning (2022).

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Até Kant – que conseguiu harmonizar essas duas correntes –, a modernidade filosófica
foi principalmente uma pugna entre o racionalismo e o empirismo. O primeiro – cujos principais
representantes foram René Descartes, Baruch Espinoza, Nicolas Malebranche e Gottfried
Wilhelm Leibniz – ocupava-se mais de temas metafísicos a partir de uma perspectiva apriorista,
ao modo da matemática, enquanto o segundo – que teve como maiores vultos Francis Bacon,
Thomas Hobbes, John Locke, George Berkeley e David Hume – investigava mais questões ligadas
à gnosiologia e à filosofia política, adotando como método a experiência sensível.
Hume (Edimburgo, Escócia, 1711-1776) foi o expoente máximo do empirismo filosófico.
No que concerne à filosofia moral, é o autor dos três volumes do célebre Tratado da natureza
humana (1739-1740) e da Investigação sobre os princípios da moral (1751). Em lugar do “eu
penso” cartesiano, adotou como ponto de partida do pensar filosófico o fato de que “nós agimos”;
ou seja, para Hume, o lugar da nossa consciência, da nossa razão, não é o nosso pensamento, mas
a nossa prática, as nossas ações. Na filosofia humeana, a ética tornou-se uma ciência explicativa
e descritiva do comportamento humano, prescindindo de qualquer recurso à metafísica ou à
religião.
No Tratado da natureza humana, o filósofo escocês procurou explicar o comportamento
humano nos moldes da física de Isaac Newton, concluindo que o comportamento humano era o
resultado de poucos princípios, simples e constantes. Porém, na Investigação sobre os princípios da
moral, Hume trocou o modelo da física newtoniana pelo modelo da cultura, passando a afirmar
que o comportamento humano se explicava através dos conceitos historicamente variáveis que
utilizamos nos nossos discursos.
Um dos feitos marcantes da filosofia de Hume foi a elaboração de uma teoria da ação
humana. Até a atualidade, essa construção teórica humeana sempre angaria simpatizantes e

ÉTICA I | UNIDADE 3
defensores.
Segundo esse insigne edimburguês, os elementos da natureza humana que dão origem às
nossas ações são quatro: a razão, as paixões, os juízos morais e os sentimentos morais.

Figura 5 – Esquema para análise. Fonte: O autor.

A razão constata fatos, forma ideias e capta relações entre fatos e entre ideias, mas não é
capaz de motivar as nossas ações, o nosso comportamento. As paixões (amor próprio, orgulho,
benevolência limitada, humildade, ódio etc.) são os princípios do comportamento humano. São
definidas por Hume como “impressões de reflexões violentas”. Os juízos morais são informações
que a razão fornece às paixões; por exemplo, o modo de ser dos fatos do mundo, os meios

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EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

possíveis para o atingimento de um fim, as ações mais convenientes para dar vazão às paixões
etc. E os sentimentos morais – compostos pelo senso moral e pelo senso estético – são definidos
como “impressões de reflexões calmas”, constituindo a base dos juízos morais ao transmitirem as
impressões calmas à razão, a qual, por sua vez, forma os juízos morais, os quais são fornecidos às
paixões.
De acordo com essa explicação, o comportamento humano seria hegemonicamente
passional e, por conseguinte, amoral, uma vez que, ao agir assim, a pessoa estaria desprovida
de um critério que revelasse se a sua relação com os outros era, ou não, harmoniosa. Mas a
exposição de Hume inclui o tratamento da paixão da simpatia, a qual conduz o indivíduo a sentir
as paixões de prazer e desprazer dos demais. A simpatia permite que saibamos o que é benéfico
ou maléfico para os nossos semelhantes.
Ainda que a paixão da simpatia seja condição necessária para que nos comportemos
moralmente, não é condição suficiente para tanto, porque pode fazer com que nos enganemos
acerca do que é agradável ou desagradável àqueles com quem convivemos. A simpatia necessita,
portanto, ser corrigida, endireitada; e a atitude nossa que produz esse resultado é assumirmos
o que Hume denomina ponto de vista moral; por meio dessa tomada de posição, tornamo-nos
aptos a termos simpatia eficaz e, consequentemente, a equilibrarmos todas as nossas paixões
restantes.
O ponto de vista moral é a ótica do observador, do espectador das condutas alheias. Para
que aquilo que o seu prisma de observação concluir possa valer universalmente, isto é, possa ser
vinculante para todos os indivíduos humanos, o expectador do comportamento alheio deve ser
imparcial e desinteressado. Se adotássemos o ponto de vista moral do espectador, conseguiríamos
avaliar quais condutas são aprováveis ou reprováveis, tanto para os outros como para nós mesmos.

ÉTICA I | UNIDADE 3
O critério dessa avaliação é o sentimento de satisfação ou de insatisfação que experimentamos ao
observarmos as condutas alheias. As condutas aprováveis dos outros são virtudes, e as reprováveis,
vícios. As virtudes – condutas aprováveis – não são adquiridas mediante disciplina e exercício,
como diz a teoria clássica sobre as virtudes: são, antes, fatos naturais, motivações que possuímos
ou não. Desse modo, a filosofia moral de Hume configura-se como uma ética da segunda pessoa,
ou seja, o critério do acerto ou desacerto das ações humanas não é nem o telos normativo que
o sujeito agente possui por natureza (ética da primeira pessoa), nem o legislador externo ou
interno a nós que estipula leis para que as cumpramos.
Hume faz distinção entre virtudes naturais e virtudes artificiais. As virtudes naturais
são comportamentos aprováveis praticados independentemente dos sistemas de regras
convencionadas socialmente, ao passo que as virtudes artificiais consistem em comportamentos
aprováveis que são praticados para que se possam cumprir as regras sociais convencionadas
(exemplos de virtudes artificiais são a justiça, a fidelidade, a lealdade e a moderação nos
prazeres). Evidentemente, Hume afirma que as virtudes artificiais são as mais importantes para
a convivência social.
Em contraste com toda a filosofia anterior, é muito interessante e, pelo menos, intrigante
a noção humeana de obrigação moral. Escreve o filósofo sobre ela:

Toda moralidade depende de nossos sentimentos; quando uma ação ou


qualidade da mente nos agrada de uma determinada maneira, dizemos que é
virtuosa; e quando o descuido ou a não realização dessa ação nos desagrada de
maneira semelhante, dizemos que temos obrigação de realizá-la (HUME, 2000,
p. 556 – Livro 3, Parte 2, Seção 5, § 4).

Ou seja, para Hume, a obrigação moral é o nome que se dá a um incômodo que se sente
quando alguém não realiza determinada ação.
O destino histórico da filosofia moral humeana é impactante. Por um lado, Hume não

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teve discípulos imediatos; pelo contrário, a sua ética filosófica foi atacada por contemporâneos
seus e por filósofos posteriores, sobretudo por causa do seu ceticismo religioso e do seu ceticismo
moral. Por outro lado, entre as décadas de 1930 e de 1960, foi abundantemente aproveitada pela
filosofia analítica, que então gozava de um prestígio praticamente hegemônico no mundo anglo-
saxônico.
No campo ético-filosófico, a filosofia analítica caracteriza-se, de modo geral, por não
propor uma ética, mas uma metaética, isto é, um discurso que discorre sobre a ética, uma análise
do significado dos termos morais e da lógica dos raciocínios morais. Uma vez que, do ponto de
vista lógico, as normas éticas são proposições prescritivas, isto é, emitem ordens (obrigatórias,
proibitivas ou facultativas), elas não descrevem fatos observáveis, de maneira que podem ser
classificadas como verdadeiras ou falsas, como acontece com as proposições descritivas (também
conhecidas como aléticas ou apofânticas), que fazem afirmações ou negações entre termos. Com
base nisso, a maior parte dos filósofos analíticos desse intervalo de três décadas considerava que
as normas éticas não tinham sentido racional. E a ética humeana era muito conveniente para essa
consideração, porque Hume preconizava que as diferenciações morais (certo e errado, bem e mal,
virtude e vício etc.) não se baseavam na razão, mas somente nas paixões ou sentimentos.
Na década de 1970, diversos filósofos (John L. Mackie, Donald Livingstone, Annete
Baier, Philippa Foot etc.) repropuseram a filosofia moral de Hume como contraponto às filosofias
morais baseadas na razão, especialmente a utilitarista, a kantiana, a neocontratualista e a ética do
discurso habermasiana.
Nos dias de hoje, observamos amplas coincidências entre o ethos social de grande parte
do mundo com a proposta ético-filosófica de David Hume:

ÉTICA I | UNIDADE 3
1. Costuma-se pensar que os seres humanos são motivados a agir principalmente por
causa dos seus desejos ou paixões e que a razão tem um papel secundário nesse campo,
qual seja, o de mostrar ao sujeito agente como e em que medida ele consegue satisfazer os
seus desejos, além de procurar evitar que haja conflito entre os desejos de vários sujeitos
agentes;
2. Em matéria de ética, encontra-se muito difundida a ideia de que não pode haver
imperativos categóricos – absolutos, que não admitem exceção –, porque estes tornam
inviável que os desejos dos agentes sejam satisfeitos totalmente. Assim, os imperativos
éticos têm de ser apenas hipotéticos, condicionados ao acontecimento de determinados
eventos;
3. As virtudes e os vícios são amplamente concebidos como Hume os pensou: desejos
que se concretizam em condutas aprováveis ou reprováveis pelos observadores. Desse
modo, as virtudes, além de serem tidas como irracionais, são vistas como potenciais
geradoras de conflitos irresolúveis, porque os observadores podem divergir a respeito da
sua aprovação;
4. A justiça entendida como imparcialidade – própria das tradições éticas kantiana,
utilitarista e neocontratualista – pode ser incompatível com outras virtudes que Hume
considerava necessárias, como a fidelidade a pessoas e a compromissos assumidos. De
todo modo, na atualidade, procura-se estabelecer uma justiça baseada em convenções
sociais fragmentadas, estabelecidas por vários grupos de cidadãos comuns, e não por
aquelas poucas pessoas que participam dos debates, consensos e pactos que pretendem
valer para a sociedade como um todo.

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3. ÉTICA DA UTILIDADE (OU UTILITARISMO FILOSÓFICO)


Preliminarmente ao que se vai expor neste tópico, é preciso advertir que a ética da utilidade
não nasce com Jeremy Bentham e John Stuart Mill, que são os dois maiores representantes do
utilitarismo clássico. Costuma-se identificar o seu surgimento teórico no âmbito religioso,
especialmente com Martinho Lutero e alguns teólogos cristãos – sobretudo anglicanos – dos
séculos XVII e XVIII. Mas, por razões de brevidade e para destacar o que é mais significativo nos
estudos éticos da atualidade, veremos somente o pensamento do utilitarismo clássico e de alguns
dos seus continuadores no século XX.

3.1 Jeremy Bentham

ÉTICA I | UNIDADE 3
Figura 6 – Jeremy Bentham. Fonte: LostPedia (2022).

Em 1789, publicou-se na Inglaterra Uma introdução aos princípios da moral e da legislação,


de autoria do jurista, economista e filósofo Jeremy Bentham (Londres, 1748-1832), no qual ele
pretendeu elaborar uma filosofia moral como ciência rigorosa: a ética deveria ter um só princípio
(o princípio da utilidade) e um método algorítmico (o cálculo hedonista).
Segundo Bentham, o princípio da utilidade era irrefutável, impossível de ser provado, óbvio
e aceito por todos. Com o auxílio do cálculo hedonista, esse princípio permitiria a identificação
da decisão e da ação justas, tanto no campo da conduta privada como no campo da legislação
pública, excluindo quaisquer fundamentos teológicos ou metafísicos, pois o único fundamento
da ciência utilitária era a constatação empírica de que a humanidade está submetida à dor e ao
prazer. Essa ciência objetivava o alcance do máximo prazer sensível possível. A pretensão de rigor
racional, somada à exclusão de realidades imateriais e ao propósito palpável do maior prazer,
foram os principais motivos da atratividade despertada pela proposta ética benthamiana.
Em 1822, Bentham agregou uma nota ao livro para precisar a sua proposta originária:
substituiu o princípio da utilidade pelo princípio da maior felicidade, que, no entanto, continuava
a preconizar o maior prazer e a menor dor sensíveis como o critério da moralidade em qualquer
ação humana. Desse modo, uma ação só pode ser considerada moral ou imoral não por causa
das suas intenções ou da materialidade do ato em que se concretiza, mas, sim, por causa das
consequências que produz, que serão prazer e/ou dor.
A filosofia moral benthamiana é a ciência da utilidade ou da felicidade, consistente numa
técnica para a produção de estados sensíveis de prazer, que ele identifica com a felicidade. O
indivíduo prudente passa a ser, então, aquele que se interessa pela sua própria felicidade.

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Para Bentham, se cada indivíduo aumenta a sua felicidade (mais prazer e menos dor), a
sociedade também a aumenta, porque a sociedade é, segundo palavras suas, “um corpo fictício”
e o seu interesse é “a soma dos interesses dos diversos membros que a compõem”. Mas como
motivar o indivíduo prudente a que também seja probo e benéfico, isto é, a promover a felicidade
alheia? Eis a resposta de Bentham:

É imperioso admitir que os únicos interesses para cuja salvaguarda uma


pessoa possa encontrar, com certeza e sempre, motivos adequados são os seus
próprios interesses. Não obstante isto, não existe nenhuma ocasião em que
uma pessoa não tenha alguns motivos para promover a felicidade de outras.
Em primeiro lugar, tem, em todas as ocasiões, o motivo puramente social da
simpatia ou benevolência; em segundo lugar, na maior parte das ocasiões, os
motivos semi-sociais do amor à amizade e do amor à reputação. O motivo da
simpatia agirá sobre ele com maior ou menor eficiência conforme a tendência
da sua sensibilidade; os dois outros motivos, de acordo com uma variedade de
circunstâncias, sobretudo conforme a força das suas faculdades intelectuais, a
firmeza e a constância da sua inteligência, o quantum da sua sensibilidade moral
e os tipos das pessoas com as quais tenha de tratar (BENTHAM, 1974, p. 71 –
XVII, 7).

Nota-se claramente nesse trecho a tese de Giuseppe Abbà de que o sujeito utilitário,
aquele que busca precipuamente a satisfação dos seus desejos e interesses, também é a tônica da
figura moral utilitarista. Aqui, o lado benfazejo do sujeito utilitário é manifestamente residual.

3.2 John Stuart Mill

ÉTICA I | UNIDADE 3
Figura 7 – John Stuart Mill. Fonte: Wikipédia (2022).

Aos dezesseis anos de idade, o futuro economista, filósofo e membro do parlamento


britânico John Stuart Mill (1806-1873) leu uma obra que o marcou profundamente: Uma
introdução aos princípios da moral e da legislação, de Jeremy Bentham, que auxiliara o seu
pai a educá-lo no domicílio da família desde tenra idade. Desde então, as ideias de Bentham
constituíram para Mill como que uma estrela-guia em todas as atividades da sua vida.
Mais de quarenta anos depois, Stuart Mill publicou o seu livro Utilitarianism (1863), em
que defendia Bentham das críticas ao princípio da maior felicidade. Nessa obra, cunhou o termo
“utilitarismo”, criou a famosa fórmula da ética utilitarista – a máxima felicidade para o maior
número de pessoas – e modificou a proposta de Bentham, tornando-a mais aceitável ao senso
moral corrente das pessoas, mas também mais complexa e menos coerente do ponto de vista do
rigor lógico.

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Utilitarianism manteve o núcleo da filosofia moral de Bentham, qual seja, que a moralidade
das ações é avaliada somente pelas suas consequências, pelos seus efeitos, sem importar quem age
e por que motivo age. Embora a felicidade entendida como prazer sensível tenha continuado a ser
o cerne da filosofia moral de Mill, ele introduziu no utilitarismo elementos de outras tradições
éticas, tais como a noção de virtude, de consciência moral, de liberdade e de autonomia. Contudo,
todos esses elementos eram concebidos por Stuart Mill como capazes de proporcionar mais
felicidade (prazer sensível) ao indivíduo.
Mill procurou demonstrar o princípio da maior felicidade – que, para Bentham, era óbvio
e não necessitava ser provado – com base na constatação de que todos buscam o prazer sensível
e fogem da dor física. Mas também acolheu princípios secundários e inferiores, isto é, regras
de justiça, que ajudavam a produzir um estado de coisas social favorável ao prazer individual.
No entanto, para Mill, se ocorresse um conflito entre regras de justiça, dever-se-ia recorrer ao
princípio da utilidade, que era o primário e superior.

3.3 Alguns Continuadores (e Modificadores) da Ética da Utilidade


Em 1874, Henry Sidgwick (1838-1900) publicou The Methods of Ethics, em que refuta
a demonstração de Mill acerca do princípio da utilidade, procurando demonstrá-lo de outra
maneira, parecida à do imperativo categórico de Kant.
George Edward Moore (1873-1958), discípulo de Sidgwick, escreveu uma obra muito
influente no século XX, intitulada Principia ethica (1903). Nela, critica o utilitarismo originário
ao dizer que, além do prazer, a satisfação estética e o afeto pelas pessoas são bens intrínsecos.
Traça uma diferença entre a teoria do bem (good) e a teoria do justo (right). Para Moore, o bem

ÉTICA I | UNIDADE 3
não é uma propriedade natural da realidade, mas uma intuição da inteligência humana; quem
disser que há bem na realidade e que esse bem gera deveres incorre no que Moore denomina
falácia naturalista, ou seja, o erro lógico de extrair proposições prescritivas a partir de proposições
descritivas. De acordo com ele, “justas” são as ações que produzem o bem; as ações que produzem o
bem não são boas em si mesmas, mas somente na medida em que geram efeitos bons (prazerosos,
de satisfação estética e de demonstração de afeto pelos outros):

O que quero assinalar em primeiro lugar é que ‘justo’ só significa e só pode


significar ‘causa de um bom resultado’, sendo, portanto, idêntico a ‘útil’; daí se
segue que o fim sempre justificará os meios e que nenhuma ação pode ser justa
se não for justificada pelos seus resultados (MOORE, 1922, p. 147 – V, 89, grifo
nosso).

Numa generalização aproximativa, Moore considera que as ações mais justas são aquelas
universalmente aceitas pelo senso comum.
No decorrer do século XX, a filosofia moral da utilidade ficou dividida em dois grandes
grupos: o dos autores que defendiam o utilitarismo da regra e daqueles que sustentavam o
utilitarismo do ato. Para o primeiro grupo, o utilitarismo consiste em regras que representam
vantagens para todos e que são aprováveis por juízes imparciais (ou também ditos racionais);
para o segundo, o utilitarismo consiste em atos que produzem efeitos bons, no sentido de
sensivelmente prazerosos (trata-se de uma reabilitação do utilitarismo originário). Em Ethical
Theory and Utilitarianism (1976), Richard Hare procurou aglutinar as duas correntes utilitaristas;
porém, esclareceu que, em nível intuitivo, convém seguir o utilitarismo da regra e que, em caso de
conflitos, isto é, em nível crítico, é recomendável seguir o utilitarismo do ato.

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UNIDADE ENSINO A DISTÂNCIA

04
DISCIPLINA:
ÉTICA I

CONFRONTO DIALÉTICO ENTRE AS TRADIÇÕES


DE ÉTICA FILOSÓFICA, A ÉTICA DAS VIRTUDES
PERANTE DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS (1 E 2)
PROF. DR. FREDERICO BONALDO

SUMÁRIO DA UNIDADE

1. CONFRONTO DIALÉTICO ENTRE AS FIGURAS DE FILOSOFIA MORAL ......................................................... 43


1.1 A ÉTICA DAS VIRTUDES ABORDA ASPECTOS DA EXPERIÊNCIA MORAL NÃO RECEPCIONADOS PELOS
OUTROS ENFOQUES ............................................................................................................................................... 43
1.2 A ÉTICA DAS VIRTUDES CONTEMPLA AS PROPOSTAS DOS OUTROS ENFOQUES ................................... 44
2. A ÉTICA DAS VIRTUDES PERANTE DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS (I) ....................................................... 45
2.1 PERANTE O PRESTÍGIO DA CIÊNCIA ............................................................................................................... 45
3. A ÉTICA DAS VIRTUDES PERANTE DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS (II) ..................................................... 45
3.1 PERANTE EXIGÊNCIAS DA VIDA PÚBLICA...................................................................................................... 45
3.1.1 A EXIGÊNCIA DE UMA ÉTICA PÚBLICA ......................................................................................................... 45
3.1.2 A EXIGÊNCIA DO PLURALISMO..................................................................................................................... 46
3.1.3 A EXIGÊNCIA DAS NORMAS .......................................................................................................................... 46

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3.1.4 A EXIGÊNCIA DA SOCIEDADE DE MERCADO ............................................................................................... 46


3.1.5 A EXIGÊNCIA DA SECULARIZAÇÃO ............................................................................................................... 47
3.2 EM FACE DE ALGUMAS EXIGÊNCIAS DA VIDA INDIVIDUAL ........................................................................ 47
CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................................................................................... 48

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1. CONFRONTO DIALÉTICO ENTRE AS FIGURAS DE FILOSOFIA MORAL


1.1 A Ética das Virtudes Aborda Aspectos da Experiência Moral Não Recep-
cionados pelos Outros Enfoques
Há, ao menos, cinco razões que atestam esse fato:

1. Esta figura de filosofia moral procura ajustar-se maximamente à nossa experiência


moral do dia a dia, que é a seara em que nos manifestamos como sujeitos agentes.
Concretamente, na nossa experiência moral, formulamos – compomos – as nossas
ações e, ainda que indiretamente, procuramos com elas ser felizes e melhorar a nossa
interioridade;
2. De forma programática, a ética das virtudes recorre às obras literárias narrativas e
dramáticas, porque é nelas que a experiência moral encontra a sua expressão mais variada;
3. A ética da vida boa procura explicar filosoficamente o nosso desejo natural de felicidade;
a nossa atração pelo bem perfeito em cada ação que realizamos; como se desenrola a
dinâmica interior das nossas escolhas e das intenções embutidas nelas; dentro disso, como
podemos optar por bens efetivamente reais ou meramente aparentes; qual é o processo
intelectual, volitivo e passional que desencadeia as nossas ações exteriores; e, finalmente,
como essas ações configuram a trajetória biográfica (a conduta) do seu autor e ator;

ÉTICA I | UNIDADE 4
4. Trata-se de uma tradição de ética filosófica que considera as virtudes como perfeições
ou excelências de caráter conducentes a ações habitualmente boas e, consequentemente,
à felicidade. As virtudes têm uma função normativa na ação humana. Além disso, as
virtudes são a matriz a partir da qual é possível atingir com eficácia os objetivos propostos
pelas outras tradições éticas: o cumprimento de regras e deveres; a colaboração social e a
justiça das instituições públicas; e a produção de um estado de coisas vantajoso para todas
as pessoas ou, ao menos, para a maioria delas;
5. Por fim, a ética das virtudes enfrenta e dá soluções para questões cruciais da vida
humana, como a fragilidade do bom caráter e o fracasso moral.
De outra parte, observam-se carências importantes nas outras tradições éticas examinadas.
Por exemplo, as seguintes:

1. As outras quatro figuras de filosofia moral enfocam a moralidade não do ponto de


vista do sujeito agente compositor das próprias ações, mas do decisor puramente racional
(ética da lei), de um terceiro legislador (ética da colaboração social), do observador
das condutas alheias (ética como explicação do comportamento humano) e do sujeito
portador de desejos e paixões que se serve da razão instrumental e calculadora (ética da
utilidade);
2. Centram a sua atenção na coordenação ou colaboração das liberdades individuais
(ética pública), reduzindo a ética pessoal a instrumento para o seu alcance;
3. Consideram as ações individuais isoladamente, e não dentro da trajetória de toda uma
vida (conduta);

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EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

4. Quando muito, as virtudes têm nelas uma função meramente executiva, subordinada a
outras finalidades. Jamais são encaradas como concretizações parciais do bem perfeito e
da felicidade completa, como ocorre na ética das virtudes;
5. E negligenciam olimpicamente o caráter decisivo para o julgamento da moralidade das
nossas ações de todo o vasto campo das intenções com que as praticamos, como se se
tratasse de uma questão de somenos.

1.2 A Ética das Virtudes Contempla as Propostas dos Outros Enfoques


É sempre oportuno repisar que a ética da vida boa não rejeita os aportes ou propostas das
outras tradições éticas, porque os acolhe também. O que ela rechaça é o seu enfoque reducionista
da experiência moral concreta, cotidiana.
A filosofia moral das virtudes acolhe a proposta ética de explicação do comportamento
humano com base no juízo alheio. De fato, quando o sujeito agente não conhece a opinião dos
outros sobre o seu modo de agir, fica desorientado quanto às ações que deve continuar a realizar
e aquelas que deve corrigir a fim de adquirir e cultivar virtudes com vistas ao bem e à felicidade.
As paixões ou desejos têm uma função imprescindível na composição das nossas ações. Contudo,
a ética da vida boa propõe que o sujeito agente canalize as suas paixões para o bem moral por
meio da guia da razão.
Também abriga a proposta ética da colaboração social, pois a vida boa ou é um
empreendimento comum, compartilhado, ou não existe em absoluto. Ademais, o consenso é

ÉTICA I | UNIDADE 4
necessário para a ética da vida que busca realizar o bem, mas com a condição de que se reconheça
que existe uma moral que pode ser reconhecida como válida e justificada independentemente de
qualquer consenso intersubjetivo que se estabeleça.
Da mesma maneira, a corrente ético-filosófica das virtudes dá guarida à proposta ética do
cumprimento da lei. Com efeito, a raiz da ética da vida boa é a lei moral natural, que é descoberta
pelo sujeito à medida que ele usa a sua prudência para adquirir comportamentos virtuosos.
Além disso, as regras e preceitos que impomos a nós mesmos também são necessários desde que
funcionalizados à conquista das virtudes; são como um abecedário da vida virtuosa. E a ética das
virtudes considera a razão humana como hegemônica, mas não como absolutamente autônoma;
em vez de autônoma, a razão é autora, compositora de condutas com base numa descoberta da
própria razão: a verdade acerca do bem humano.
Por último, a ética eudaimônica também recepciona o enfoque da ética utilitária, isto
é, o da produção de um estado de coisas vantajoso para o maior número de pessoas, porque a
vida boa inclui a previsão das consequências das ações humanas no sentido de que um estado
de coisas maximamente vantajoso seja estabelecido. Mas o critério é diverso: enquanto a ética
da utilidade propugna como critério a satisfação máxima dos desejos individuais, a ética da vida
boa preconiza como critério a ordenação virtuosa – racional e amorosa, doadora – dos desejos
individuais.

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2. A ÉTICA DAS VIRTUDES PERANTE DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS


(I)
2.1 Perante o Prestígio da Ciência
Devido a exigências metodológicas, a ciência contemporânea aborda a realidade de
maneira abstrata, dedutiva, e considera os fatos da vida de modo neutro, desprovidos de valor
moral. Isso vai de encontro à perspectiva prática propugnada pela ética das virtudes, na qual o
sujeito age com base na sua razão e também nos seus valores perante bens reais.
Contudo, diante das éticas filosóficas modernas, elaboradas também para coadunar-se às
exigências da índole abstrata da ciência moderna, a ética da vida boa é muito oportuna uma vez
que o seu método consiste precisamente em tomar em consideração todas as propostas morais
que se suscitam na vida social.
Não obstante o anterior, é preciso assinalar que, há várias décadas, existe uma devoção
quase religiosa à ciência empírica. Perante assuntos éticos (como os valores, as virtudes, o bem,
a felicidade, as emoções etc.), observa-se um verdadeiro culto fideísta (cego e injustificado) à
ciência. É comuníssimo ouvir dos devotos da ciência que “um dia, a ciência empírica explicará
tudo isto, mostrando matematicamente que não passam de reações físico-químicas do nosso
corpo”, ao mesmo tempo em que se aponta o dedo condenador àqueles que investigam os assuntos
éticos através de meios não empíricos, como acontece com os que se dedicam à filosofia, tidos
como supersticiosos e irracionais; ficam de braços cruzados, não agem, não se empenham e, ainda

ÉTICA I | UNIDADE 4
por cima, julgam os outros depreciativamente, com escárnio. Ao viverem pendentes e carentes
dos afagos e da simpatia do beautiful people do establishment científico, não conjeturam, não
especulam, não indagam, não buscam as respostas em outros canais, atrevendo-se, paradoxal e
petulantemente, a achincalhar as pessoas que trabalham para dar respostas aos questionamentos
mais decisivos e prementes da existência humana. Com essa postura, esquecem-se (ou fingem se
esquecer) de que a ciência empírica é necessariamente indutiva, que parte de dados particulares
para atingir corolários universais, os quais – sempre vale lembrar – nunca deixam de estar sujeitos
à revisão, à correção e, eventualmente, ao descarte, como Karl Popper fez muito bem em destacar
por meio da formulação do princípio da falseabilidade das ciências.

3. A ÉTICA DAS VIRTUDES PERANTE DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS


(II)
3.1 Perante Exigências da Vida Pública
3.1.1 A exigência de uma ética pública

A vida pública contemporânea é marcada pelo pluralismo das concepções acerca do


bem. Pelo contrário, as versões aristotélica e tomista da ética da vida boa propõem uma única
concepção normativa do bem, embora esta seja alcançada por via dialética por meio do diálogo
intersubjetivo.
Perante o pluralismo de concepções sobre o bem, o remédio que se costuma apresentar
como eficaz é o abandono dessas concepções particulares e a convenção de regras sociais
elaboradas mediante procedimentos formais a fim de que se constitua uma ética pública. Porém,

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EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

essa ética pública não pode atribuir qualquer importância a qualquer bem, porque os bens
pessoais são reais e prévios à elaboração das regras.
Assim, a ética da vida boa, ao propugnar a primazia dos bens reais sobre as regras
convencionadas, resguarda a dignidade humana quando incentiva as pessoas a julgarem as regras
sociais com base nas suas concepções particulares acerca do bem e a resistirem à arbitrariedade e
à manipulação por parte dos interesses daqueles que têm poder na sociedade.

3.1.2 A exigência do pluralismo

Neste quesito, a questão é a seguinte: a ética da vida boa consegue aceitar o pluralismo,
defender o primado do bem sobre as leis políticas e, ao mesmo tempo, evitar a imposição
intolerante?
Segundo a ética das virtudes, não é razoável exigir que os decisores políticos prescindam da
sua própria concepção sobre o bem; o que é razoável é exigir que eles a examinem e desenvolvam,
até mesmo revendo-a, de modo que a sua concepção sobre o bem abra espaço à comunicação
discursiva e à busca comum de soluções a fim de que se possa alcançar uma concepção verdadeira
acerca do bem humano.
A concepção do bem verdadeiro gera uma regra moral. Porém, ainda que se alcance a
concepção do bem verdadeiro por via dialética, a regra moral que se obtém daí não pode compor
o conteúdo das regras sociais que se estabeleçam para todos, porque constatamos que o ser
humano é moralmente falível, que o seu conhecimento da regra moral originada da concepção
do bem verdadeiro é gradual – tanto nos indivíduos como nas coletividades – e que as regras
sociais devem visar à convivência justa e pacífica entre as pessoas.

ÉTICA I | UNIDADE 4
Dadas as condições limitadas do conhecimento humano, o pluralismo é benéfico, porque
favorece uma concepção do bem mais articulada e rica, que permite muitas formas de vida, ainda
que não ilimitadas.

3.1.3 A exigência das normas

A ética da vida boa concretiza-se na promoção das virtudes entre as pessoas. Mas, na
situação de pluralismo ético atual, considera-se mais urgente do que a promoção das virtudes a
elaboração de normas públicas de conduta individual que possam ser compartilhadas por todos.
No entanto, as normas públicas sempre têm origem na concepção de bem – e, em alguma
medida, nas virtudes ou vícios – dos sujeitos que as elaboram.
Por outro lado, quando se devem aplicar as normas públicas a casos concretos, tanto os
cidadãos como os juízes têm de exercer o seu juízo prático, que é necessariamente pautado pelo
seu caráter, isto é, pelas virtudes ou vícios que possuem.
A ideia de que as pessoas podem escolher qualquer plano de vida, contanto que cumpram
as normas públicas, é ingênua. Se o plano de vida dos destinatários das normas públicas não
inclui dar importância à paz e à justiça, as normas públicas tornam-se ineficazes.

3.1.4 A exigência da sociedade de mercado

Outra objeção à proposição da ética das virtudes na contemporaneidade é a afirmação


de que ela foi formulada antes da era moderna, a qual é marcada pela sociedade de mercado,
que se caracteriza por uma vida pública constituída pelas relações de mercado, por um desejo de
crescimento ilimitado de bem-estar e de poder regulado pela legislação do Estado-nação. Alega-
se que a polis grega da época de Aristóteles e a sociedade medieval cristã dos tempos de Tomás
de Aquino podiam transformar-se em comunidades de pessoas virtuosas; já na sociedade de

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EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

mercado, o cultivo das virtudes é muito difícil, senão impossível.


Trata-se de uma alegação que não corresponde aos fatos históricos, pois a ética das
virtudes era minoritária tanto na polis grega como na sociedade cristã medieval. Na verdade,
nesses períodos históricos, ela era uma moral crítica das diversas morais então vigentes na
sociedade. Além disso, nem Aristóteles nem Tomás elaboraram a ética filosófica das virtudes
pensando que ela poderia ser adotada na sociedade como um todo, mas apenas para que fosse
possível que existissem comunidades de pessoas virtuosas dentro da sociedade, uma vez que
estavam cientes de que as virtudes só são virtudes quando o ser humano as adquire livremente.
Pelo caminho da imposição legislativa, o ser humano, no máximo, pode fingir que adquiriu as
virtudes.
Apesar da macroestrutura mercadológica da sociedade contemporânea, há espaço dentro
dela para virtudes: os bens humanos almejados pelas práticas sociais, tais como a justiça nas
relações comerciais, a busca pela saúde, a atividade lúdica e artística, o conhecimento, a geração
e a educação dos filhos, além da busca de Deus. Esses e outros bens humanos não podem ser
alcançados e melhorados sem que as pessoas cultivem virtudes como a temperança, a coragem, a
veracidade, a generosidade etc.

3.1.5 A exigência da secularização

A secularização é a tendência de conduzir a vida pessoal e a dinâmica social descartando-


se o transcendente, isto é, sem enraizamento religioso. De fato, essa tendência é crescente na
sociedade contemporânea. Diante desse quadro, a ética da vida boa – principalmente a tomista,
elaborada dentro do âmbito da teologia cristã – parece completamente inadequada.

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A questão, no entanto, é que, diferentemente do que se costuma pensar, a versão tomista
da ética da vida boa não se baseia nos mandamentos divinos tais como expressos na Bíblia. A
ética de Tomás de Aquino é programaticamente uma ética dos bens humanos, que são alcançáveis
mediante as virtudes, as quais compõem uma regra moral tal como descoberta paulatinamente
pela razão humana. Só depois de esclarecer isso é que Tomás explica que essa regra moral
resultante das virtudes pode ser descoberta, porque os seres humanos possuem uma lei natural,
isto é, uma participação na lei eterna com a qual Deus governa todas as criaturas, de modo que os
seres humanos possam chegar livremente à bem-aventurança eterna. Ou seja, Tomás deixa claro
que a vida humana temporal tem certa autonomia em relação à vida eterna à qual está destinada
– ou melhor, convidada.

3.2 Em face de Algumas Exigências da Vida Individual


Como sempre ocorreu na história, a vida individual contemporânea é marcada pelo desejo
e pela busca da felicidade e, nisso, coincide formalmente com a proposta da ética das virtudes. No
entanto, o conteúdo da busca da felicidade predominante nos dias de hoje está bastante afastado
daquilo que a ética das virtudes propugna. Eis alguns exemplos:

• Separa totalmente o âmbito privado do âmbito público, incluídos os seus objetivos


correspondentes;
• Esquiva-se da preocupação por saber se há uma finalidade que rege a vida como um todo,
isto é, em todos os seus aspectos e em toda a sua duração;
• Considera que os desejos, sentimentos e impulsos têm prioridade em relação ao
discernimento racional e prudente de como se deve agir.

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Segundo a ética das virtudes, essas exigências da vida individual contemporânea podem
ser alvo das seguintes objeções:

• A separação dos âmbitos privado e público pode tornar incompatíveis e, por conseguinte,
conflituosos os planos de vida individuais com as exigências da justiça social, da
colaboração social e do maior bem-estar para todos;
• A consideração acerca de uma finalidade que rege a vida como um todo é precisamente
o remédio para que se restrinja a possível incompatibilidade entre os âmbitos privado
e público, pois essa finalidade seria buscada por todos não só individualmente, mas
também, de modo necessário, coletivamente uma vez que a prática moral cotidiana é
essencialmente individual e coletiva;
• A livre expansão dos desejos, sentimentos e impulsos individuais não pode ser absoluta,
pois inviabiliza a coordenação da vida em sociedade. No entanto, se estiver integrada a
uma finalidade que rege a vida como um todo, a um telos normativo, essa expansão não
só é legítima como benéfica para o aprendizado da diversidade de caminhos para a busca
e efetivação da vida boa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tal como anunciado na Introdução deste e-book, apresentam-se agora os pontos principais

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do artigo Shared Virtue: The Convergence of Valued Human Strenghts Across Culture and History,
de autoria de Martin Seligman – um dos pioneiros da chamada psicologia positiva –, Katherine
Dahlsgaard e Christopher Peterson, publicado em 2005 na Review of General Psychology.
Vejamos o abstract desse artigo científico:

A psicologia positiva necessita estabelecer um caminho de classificação de traços


positivos, a modo de sustentáculo para a pesquisa, para o diagnóstico e para
a intervenção clínica. Como primeiro passo em direção a essa classificação, os
autores examinaram tradições filosóficas e religiosas na China (o confucionismo
e o taoismo), no sul da Ásia (o budismo e o hinduísmo) e no Ocidente (a filosofia
ateniense, o judaísmo, o cristianismo e o islamismo), a fim de obter as respostas
que cada uma delas fornece a questões de comportamento moral e vida boa. Os
autores encontraram seis virtudes recorrentes nesses escritos: coragem, justiça,
humanidade, temperança, sabedoria e transcendência. Essa convergência sugere
um fundamento não arbitrário para a classificação de forças e virtudes humanas
(SELIGMAN; DAHLSGAARD; PETERSON, 2005).

Nas oito tradições que examinam, essas seis virtudes, denominadas ubíquas pelos autores
do escrito, têm a mesma descrição comportamental, que é a seguinte:

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Quadro 1 – Esquema para análise. Fonte: O autor.

Além disso, cada uma dessas seis virtudes está explícita ou implícita – com a exceção da
coragem no confucionismo, no taoísmo e no budismo – nos textos fundamentais das tradições
estudadas. O Quadro 2 especifica uma a uma.

Convergência das virtudes

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Tradição Coragem Justiça Humanidade Temperança Sabedoria Transcendência
Confucionismo E E T E T
Taoísmo E E E E T
Budismo E E E T E
Hinduísmo E E E E E E
Filosofia ateniense E E E E E T
Cristianismo E E E E E E
Judaísmo E E E E E E
Islamismo E E E E E E
Nota: E = explicitamente nomeada; T = tematicamente subentendida.
Quadro 2 – Esquema para análise. Fonte: O autor.

O último parágrafo do artigo é muito eloquente:

Com frequência, os filósofos referem-se às virtudes como corretivas, no


sentido de que elas contrabalanceiam alguma dificuldade inerente à condição
humana, alguma tentação que precisa ser resistida ou alguma motivação que
necessita ser recanalizada para algo bom. Não precisaríamos propor a virtude
da coragem se as pessoas não titubeassem (às vezes) para fazer a coisa certa por
medo ou a virtude da temperança se as pessoas não fossem (às vezes) relapsas.
Sem os mecanismos predispostos biologicamente que permitiram aos nossos
antepassados gerar, reconhecer e celebrar virtudes corretivas, os seus grupos
sociais ter-se-iam extinguido rapidamente. Acreditamos que as virtudes ubíquas
são as que permitem que o animal humano lute contra aquilo que é mais obscuro
dentro de nós e triunfe sobre ele (SELIGMAN; DAHLSGAARD; PETERSON,
2005).

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Como já se disse, esse texto é uma confirmação quase empírica, no campo da ética
evolutiva, de que a figura de filosofia moral da ética das virtudes é a que reflete melhor a nossa
prática moral do dia a dia.
Resta-nos agora reencontrarmo-nos na disciplina Ética II para explorarmos com detalhe
esse imenso oceano que é a ética filosófica das virtudes na sua versão mais bem acabada, isto é,
aquela elaborada por Tomás de Aquino.

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ENSINO A DISTÂNCIA

REFERÊNCIAS
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Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência “Raimundo Lúlio” (Ramon Llull), 2017.

BENTHAM, J. Uma introdução aos princípios da moral e da legislação. Tradução de Luiz João
Baraúna. São Paulo: Abril Cultural, 1974.

EL JUEGO DE FILOSOFAR. Retrato de Thomas Hobbes. 2011. Disponível em: https://


eljuegodefilosofar.blogspot.com/2011/01/thomas-hobbes-1588-1679-padre-de-la.html. Acesso
em: 5 maio 2022.

FRANCISCAN MEDIA. Retrato de Tomás de Aquino. 2021. Disponível em: https://www.


franciscanmedia.org/saint-of-the-day/saint-thomas-aquinas. Acesso em: 5 maio 2022.

GEORGE, R. P. Making men moral: civil liberties and public morality. Oxford: Clarendon Press,
1995.

HUME, D. Tratado da natureza humana: uma tentativa de introduzir o método experimental


de raciocínio nos assuntos morais. 2. ed. Tradução de Déborah Danowski. São Paulo: Editora
UNESP, 2000.

KANT, I. A metafísica dos costumes. Tradução de Edson Bini. Bauru: EDIPRO, 2003.

KANT, I. Opus postumum. In: KANT, I. Gesammelte Schriften (Akademie-Ausgabe), I-XXIII.


Deutschland: InteLex Corporation, 1998.

LOSTPEDIA. Jeremy Bentham. 2022. Disponível em: https://lostpedia.fandom.com/wiki/


Philosophers. Acesso em: 6 maio 2022.

LUMEN LEARNING. David Hume. 2022. Disponível em: https://courses.lumenlearning.com/


atd-epcc-introtophilosophy/chapter/david-hume/. Acesso em: 5 maio 2022.

MENTE FILOSÓFICA. Retrato de Immanuel Kant. 2019. Disponível em: https://www.


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NÚCLEO DE FILOSOFIA. John Rawls. 2011. Disponível em: https://filobaltar.wordpress.


com/2011/03/21/john-rawls/. Acesso em: 5 maio 2022.

RAWLS, J. Uma teoria da justiça. Tradução de Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves. São Paulo:
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RODRÍGUEZ, J. A. A. Jürgen Habermas. 2011. Disponível em: http://josearnedo.blogspot.


com/2011/10/habermas-etica-del-discurso.html. Acesso em: 5 maio 2022.

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ENSINO A DISTÂNCIA

REFERÊNCIAS
SELIGMAN, M. P.; DAHLSGAARD, K. D.; PETERSON, C. Shared virtue: the convergence of
valued human strenghts across culture and history. Review of General Psychology, v. 9, n. 3,
2005.

UAPAS - UNIDADES DE APOYO PARA EL APRENDIZAJE. Busto de Aristóteles. 2022.


Disponível em: https://uapas.bunam.unam.mx/creditos/sociales. Acesso em: 4 maio 2022.

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WHITEHEAD, A. N. Remarks. The Philosophical Review, v. 46, n. 2, 1937.

WIKIPÉDIA. John Stuart Mill. 2022. Disponível em: https://fr.wikipedia.org/wiki/University_


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