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METAFÍSICA II

CURSOS DE GRADUAÇÃO – EAD


Metafísica II – Prof. Dr. Stefan Vasilev Krastanov

Stefan Vasilev Krastanov é autor do livro Nietzsche: pathos artísti-


co versus consciência moral. É professor adjunto de filosofia da
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS. Possui dou-
torado em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos –
UFSCar. Além disso, é graduado, pós-graduado e mestre em Filo-
sofia pela Universidade de Sofia, na Bulgária. Desde o ano de
2002, atua como professor universitário, principalmente nas áre-
as da História da Filosofia, Estética e Metafísica, além de ser autor
de vários materiais para cursos de graduação na modalidade EaD.
e-mail: stefanve@terra.com.br

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Stefan Vasilev Krastanov

METAFÍSICA II
Caderno de Referência de Conteúdo

Batatais
Claretiano
2013
© Ação Educacional Claretiana, 2012 – Batatais (SP)
Versão: dez./2013

110 K91m

Krastanov, Stefan Vasilev


Metafísica II / Stefan Vasilev Krastanov – Batatais, SP : Claretiano, 2013.
156 p.

ISBN: 978-85-67425-74-0

1. Principais problemas metafísicos a partir da proposta critica de Kant, as


tentativas posteriores da superação das restrições transcendentais do kantismo
por parte do idealismo alemão. 2. As críticas da metafísica advindas da
corrente fenomenológica e a proposta ontológico-fundamental de Martin Heidegger.
I. Metafísica II.

CDD 110

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Camila Maria Nardi Matos Felipe Aleixo
Carolina de Andrade Baviera Filipi Andrade de Deus Silveira
Cátia Aparecida Ribeiro Paulo Roberto F. M. Sposati Ortiz
Dandara Louise Vieira Matavelli Rodrigo Ferreira Daverni
Elaine Aparecida de Lima Moraes Sônia Galindo Melo
Josiane Marchiori Martins
Talita Cristina Bartolomeu
Lidiane Maria Magalini
Vanessa Vergani Machado
Luciana A. Mani Adami
Luciana dos Santos Sançana de Melo
Luis Henrique de Souza Projeto gráfico, diagramação e capa
Patrícia Alves Veronez Montera Eduardo de Oliveira Azevedo
Rita Cristina Bartolomeu Joice Cristina Micai
Rosemeire Cristina Astolphi Buzzelli Lúcia Maria de Sousa Ferrão
Simone Rodrigues de Oliveira Luis Antônio Guimarães Toloi
Raphael Fantacini de Oliveira
Bibliotecária Tamires Botta Murakami de Souza
Ana Carolina Guimarães – CRB7: 64/11 Wagner Segato dos Santos

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SUMÁRIO

CADERNO DE REFERÊNCIA DE CONTEÚDO


1 INTRODUÇÃO.................................................................................................... 9
2 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO....................................................................... 14

Unidade 1 – KANT E OS PROBLEMAS DA METAFÍSICA


1 OBJETIVOS......................................................................................................... 39
2 CONTEÚDOS...................................................................................................... 39
3 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE................................................ 40
4 INTRODUÇÃO À UNIDADE................................................................................ 40
5 CRÍTICA DA RAZÃO PURA................................................................................. 41
6 A PERGUNTA TRANSCENDENTAL .................................................................... 46
7 ESTÉTICA TRANSCENDENTAL........................................................................... 49
8 LÓGICA TRANSCENDENTAL.............................................................................. 51
9 DIALÉTICA TRANSCENDENTAL......................................................................... 57
10 QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS......................................................................... 61
11 CONSIDERAÇÕES.............................................................................................. 63
12 E-REFERÊNCIAS................................................................................................. 63
13 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................... 64

Unidade 2 – OS PÓS-KANTIANOS E O RETORNO DA METAFÍSICA


1 OBJETIVOS......................................................................................................... 65
2 CONTEÚDOS...................................................................................................... 65
3 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE................................................ 65
4 INTRODUÇÃO À UNIDADE................................................................................ 66
5 PÓS-KANTIANOS: A RECEPÇÃO DA FILOSOFIA CRÍTICA DE KANT................. 68
6 QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS......................................................................... 73
7 CONSIDERAÇÕES............................................................................................... 74
8 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................... 75

Unidade 3 – A METAFÍSICA DO IDEALISMO ALEMÃO


1 OBJETIVOS......................................................................................................... 77
2 CONTEÚDOS...................................................................................................... 77
3 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE................................................ 77
4 INTRODUÇÃO À UNIDADE................................................................................ 79
5 FICHTE................................................................................................................ 80
6 A METAFÍSICA DE SCHELLING.......................................................................... 85
7 HEGEL................................................................................................................. 90
8 QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS......................................................................... 95
9 CONSIDERAÇÕES............................................................................................... 97
10 E-REFERÊNCIAS................................................................................................. 98
11 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................................... 98

Unidade 4 – NIETZSCHE E A CRÍTICA DA METAFÍSICA


1 OBJETIVOS......................................................................................................... 99
2 CONTEÚDOS...................................................................................................... 100
3 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE................................................ 100
4 INTRODUÇÃO À UNIDADE................................................................................ 101
5 ESTRUTURA DA METAFÍSICA NA ANÁLISE DE NIETZSCHE ............................ 101
6 O FIM DA METAFÍSICA DE KANT A HEGEL: A ARTE E O NOVO PROJETO
DE FILOSOFIA..................................................................................................... 108
7 O FIM E A POSSIBILIDADE DE UM NOVO COMEÇO........................................ 111
8 QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS......................................................................... 117
9 CONSIDERAÇÕES............................................................................................... 117
10 E-REFERÊNCIA................................................................................................... 118
11 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................................... 118

Unidade 5 – MARTIN HEIDEGGER: ONTOLOGIA FUNDAMENTAL


1 OBJETIVOS......................................................................................................... 121
2 CONTEÚDOS...................................................................................................... 121
3 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE................................................ 121
4 INTRODUÇÃO À UNIDADE................................................................................ 123
5 A NOVA CONCEPÇÃO FENOMENOLÓGICA..................................................... 125
6 CRÍTICA À METAFÍSICA ..................................................................................... 127
7 A FENOMENOLOGIA......................................................................................... 131
8 QUESTÃO AUTOAVALIATIVA............................................................................. 133
9 CONSIDERAÇÕES............................................................................................... 134
10 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................................... 134

Unidade 6 – HEIDEGGER: ANALÍTICA EXISTENCIAL


1 OBJETIVOS......................................................................................................... 137
2 CONTEÚDOS...................................................................................................... 137
3 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE................................................ 138
4 INTRODUÇÃO À UNIDADE................................................................................ 138
5 ANALÍTICA EXISTENCIAL................................................................................... 139

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6 TEMPORALIDADE, FINITUDE E IMAGINAÇÃO................................................ 142
7 ESPACIALIDADE DO SER-AÍ............................................................................... 145
8 QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS......................................................................... 154
9 CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................... 155
10 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................................... 155

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Caderno de
Referência de
Conteúdo

CRC

Ementa––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Principais problemas metafísicos a partir da proposta crítica de Kant e as tenta-
tivas posteriores da superação das restrições transcendentais do kantismo por
parte do idealismo alemão. As críticas da metafísica advindas da corrente feno-
menológica e a proposta ontológico-fundamental de Martin Heidegger.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

1. INTRODUÇÃO
Toda História da Filosofia desde os pré-socráticos até os dias
de hoje, pode ser compreendida, antes de tudo, como história da
metafísica. Essa importância primordial da metafísica deve-se à
sua origem – a época em que os primeiros pensadores empreen-
deram a pergunta pelo sentido do ser. Se o espanto é a origem da
filosofia, ela também é antes de tudo espanto diante da existência,
o espanto de que ser é e não ser não é. Portanto, o fio condutor e
diretor da especulação filosófica é, essencialmente, a metafísica.
10 © Metafísica II

Neste Caderno de Referência de Conteúdo, você verá que,


apesar das inúmeras rupturas que acompanham esse itinerário,
algo permanece intacto, a pergunta pelo ser. Diante dela se abrem,
desde o início, várias possibilidades de ser tratada. Porém, a filosofia
ocidental, a partir da cisão metafísica operada por Platão, elegeu a
possibilidade da razão como único caminho. Configurou-se, a par-
tir daí, uma espécie de enteléquia racional que, em busca de reali-
zação completa das suas possibilidades, começa desenhar a figura
metafísica. Nessa figura cada pensador contribui para seu desenho
e preenchimento por meio de três aspectos fundamentais: a razão,
o conceito e a verdade.
A razão produz conceitos e estes enunciam a verdade. Essa
enteléquia da razão que tende, em seu destinamento, a cumprir
todas as possibilidades completa-se, como nota Heidegger, a partir
do idealismo lógico de Hegel. Em sua filosofia, realiza-se a tota-
lização do saber absoluto e chega-se ao fim, completando todas
as suas possibilidades. Mas esse percurso metafísico que se inicia
a partir de Platão encontra muitos obstáculos na direção do seu
acabamento.
O preenchimento da figura metafísica de Platão a Kant é re-
lativamente pacífico e sem grandes impactos. O primeiro impacto
se dá com a filosofia crítica de Kant. O criticismo kantiano impõe
limites intransponíveis para o anseio racional do absoluto. O pen-
sador konigsberguiano aprisionou o conhecimento humano em ní-
vel fenomênico, recusando qualquer esperança de se ultrapassar o
campo da experiência. Os idealistas viram nessa restrição um obs-
táculo especulativo e metodológico da tendência racional e dissol-
veram a prisão transcendental, dando a possibilidade de abertura
para o absoluto.
Com Hegel, podemos dizer, as possibilidades da razão en-
contram-se esgotadas, ou melhor, realizadas por completo. Aí sur-
ge uma pergunta urgente que domina radicalmente a especulação
filosófica da contemporaneidade a partir do século 20, a saber: se
a filosofia chegou ao seu fim realizando-se por completo, então,
qual seria o destino posterior da filosofia?
© Caderno de Referência de Conteúdo 11

Os pensadores do século 20, principalmente da corrente feno-


menológica, encontram uma alternativa, uma nova maneira de "re-
-fundar" a metafísica. Os principais protagonistas dessa "re-funda-
ção" são Heidegger e Bérgson. Ambos os pensadores abrem novas
possibilidades diante do pensamento metafísico, não sem a precio-
sa ajuda de Nietzsche, Schopenhauer e Kierkegaard, entre outros.
O conceito da verdade cada vez mais perde sua conotação
objetiva e o seu poder de enunciar o ser. Chega-se, com a filoso-
fia de Heidegger, à "re-descoberta" do elemento perdido durante
toda metafísica tradicional – o ente privilegiado que pergunta pelo
ser. Nessa ontologia fundamental, proposta por Heidegger, a me-
tafísica contemporânea encontra a sua essência e fundamento de
toda interrogação ontológica – o homem como clareira do ser.
Esse percurso metafísico proposto aqui, portanto, tem o intuito
de analisar não apenas as diferentes especulações em torno dos pro-
blemas ontológicos, mas também mostrar o todo itinerário e a visão
global da disciplina essencialmente filosófica chamada de Metafísica.
Para uma melhor reflexão sobre os temas tratados neste
CRC, sugerimos a leitura do texto a seguir, no qual o autor apre-
senta as principais variáveis da Metafísica.

O que é Metafísica? –––––––––––––––––––––––––––––––––––


William James definiu algures a Metafísica como "apenas um esforço extraordi-
nariamente obstinado para pensar com clareza". Não são muitas as pessoas que
assim pensam, exceto quando seus interesses práticos estão envolvidos. Não têm
necessidade de assim pensar e, daí, não sentem qualquer propensão para o fazer.
Excetuando algumas raras almas meditativas, os homens percorrem a vida acei-
tando como axiomas, simplesmente, aquelas questões da existência, propósito e
significado que aos metafísicos parecem sumamente intrigantes. O que sobretudo
exige a atenção de todas as criaturas, e de todos os homens, é a necessidade de
sobreviver e, uma vez que isso fique razoavelmente assegurado, a necessidade
de existir com toda a segurança possível. Todo pensamento começa aí, e a sua
maior parte cessa aí. Sentimo-nos mais à vontade para pensar como fazer isto
ou aquilo. Por isso a engenharia, a política e a indústria são muito naturais aos
homens. Mas a Metafísica não se interessa, de modo algum, pelos "comos da vida
e sim apenas pelos "porquês", pelas questões que é perfeitamente fácil jamais
formular durante uma vida inteira.
Pensar metafisicamente é pensar, sem arbitrariedade nem dogmatismo, nos
mais básicos problemas da existência. Os problemas são básicos no sentido
de que são fundamentais, de que muita coisa depende deles. A religião, por

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12 © Metafísica II

exemplo, não é Metafísica; e, entretanto, se a teoria metafísica do materialismo


fosse verdadeira, e assim fosse um fato que os homens não têm alma, então
grande parte da religião soçobraria diante desse fato. Também a Filosofia Moral
não é Metafísica e, entretanto, se a teoria metafísica do determinismo, ou se a
teoria do fatalismo fossem verdadeiras, então muitos dos nossos pressupostos
tradicionais seriam refutados por essas verdades. Similarmente, a Lógica não é
Metafísica e, entretanto, se se apurasse que, em virtude da natureza do tempo,
algumas asserções não são verdadeiras nem falsas, isso acarretaria sérias im-
plicações para a Lógica tradicional.
Isto sugere, contrariamente ao que em geral se supõe, que a Metafísica vê um
alicerce da Filosofia e não o seu coroamento. Se for longamente exercido. O
pensamento filosófico tende a resolver-se em problemas metafísicos básicos.
Por isso o pensamento metafísico é difícil. Com efeito, seria provavelmente vá-
lido afirmar que o fruto do pensamento metafísico não é o conhecimento, mas
o entendimento. As interrogações metafísicas têm respostas e, entre as várias
respostas concorrentes, nem todas poderão ser verdadeiras, por certo. Se um
homem enuncia uma teoria de materialismo e um outro a nega, então um desses
homens está errado; e o mesmo acontece a todas as outras teorias metafísicas.
Contudo, só muito raramente é possível provar e conhecer qual das teorias é
a verdadeira. O entendimento, porém – e, por vezes, uma profundidade mui-
to considerável do mesmo resulta de vermos as persistentes dificuldades em
opiniões que freqüentemente parecem, em outras bases, ser muito obviamente
verdadeiras. É por essa razão que um homem pode ser um sábio metafísico sem
que, não obstante, sustente suas opiniões e juízos em conceitos metafísicos. Tal
homem pode ver tudo o que um dogmático metafísico vê, e pode entender todas
as razões para afirmar o que outro homem afirma com tamanha confiança. Mas,
ao invés do outro, também vê algumas razões para duvidar e, assim, ele é, como
Sócrates, o mais sábio, mesmo em sua profissão de ignorância. Advirta-se o lei-
tor, neste particular, de que quando ouvir um filósofo proclamar qualquer opinião
metafísica com grande confiança, ou o ouvir afirmar que determinada coisa, em
Metafísica, é óbvia, ou que algum problema metafísico gravita apenas em torno
de confusões de conceitos ou de significados de palavras, então poderá estar
inteiramente certo de que esse homem está infinitamente distante do entendi-
mento filosófico. Suas opiniões parecem isentas de dificuldades apenas porque
ele se recusa obstinadamente a ver dificuldades.
Um problema metafísico é indispensável dos seus dados, pois são estes que,
em primeiro lugar, dão origem ao problema. Ora o datum, ou dado, significa lite-
ralmente algo que nos é oferecido, posto à nossa disposição. Assim, tomamos
como dado de um problema certas convicções elementares do senso comum que
todos ou a maioria dos homens estão aptos a sustentar com alguma persuasão
íntima, antes da reflexão filosófica, e teriam relutância em abandonar. Não são
teorias filosóficas, pois estas são o produto da reflexão filosófica e, usualmente,
resultam da tentativa de conciliar certos dados entre si. São, pelo contrário, pon-
tos de partida para teorias, as coisas por onde se começa, visto que, para que
se consiga alguma coisa, devemos começar por alguma coisa, e não se pode
gastar o tempo todo apenas começando. Observou Aristóteles: "Procurar a prova
de assuntos que já possuem evidência mais clara do que qualquer prova pode
fornecer é confundir o melhor com o pior, o plausível com o implausível e o básico
com o derivativo", (Física, Livro VIII, Cap. 3). Exemplos de dados metafísicos são
© Caderno de Referência de Conteúdo 13

as crenças que todos os homens possuem, independentemente da Filosofia, de


que existem, de que tem um corpo, de que lhes cabe algumas vezes uma opção
entre cursos alternativos de ação, de que por vezes deliberam sobre tais cursos,
de que envelhecem e morrerão algum dia etc. Um problema metafísico surge
quando se verifica que tais dados não parecem concordar entre si, que têm,
aparentemente, implicações que não se revestem de coerência entre si. A tarefa,
então, é encontrar alguma teoria adequada à remoção desses conflitos. Talvez
convenha observar que os dados, como os considero, não são coisas necessa-
riamente verdadeiras nem evidentes em si mesmas. De fato, se o conflito entre
certas convicções do senso comum não for tão-só aparente, mas real, então
algumas dessas convicções estão fadadas a ser falsas, embora possam, não
obstante, ser tidas na conta de dados até que sua falsidade se descubra. É isso
o que torna excitante, por vezes, a Metafísica; nomeadamente o fato de sermos
coagidos, algumas vezes, a abandonar certas opiniões que sempre havíamos
considerado óbvias. Contudo, a Metafísica tem de começar por alguma coisa e,
como não pode começar, obviamente, pelas coisas que já estão provadas, deve
começar pelas coisas em que as pessoas acreditam; e a confiança com que uma
pessoa sustenta suas teorias metafísicas não pode ser maior do que a confiança
que deposita nos dados em que aquelas repousam.
Ora, o intelecto do homem não é tão forte quanto a sua vontade, e os homens,
geralmente, acreditam no que querem acreditar, particularmente quando essas
crenças refletem o mérito próprio entre os homens e o valor de seus esforços.
A sabedoria não é, pois, o que os homens buscam em primeiro lugar. Procuram,
outrossim, uma justificação para aquilo em que crêem seja o que for. Não sur-
preende, portanto, que os principiantes em Filosofia, e mesmo os que já não são
principiantes, tenham uma acentuada inclinação para se apegarem a alguma teo-
ria que os atrai, em face de dados conflitantes, e neguem por vezes a veracidade
dos dados, apenas por aquela razão. Tal atitude dificilmente se pode considerar
propícia à sabedoria. Assim, não é incomum encontrarmos pessoas que, dizem
elas, querem ardentemente acreditar na teoria do determinismo e que, partindo
desse desejo, negam, simplesmente, a verdade de quaisquer dados que com
ela colidam. Os dados, por outras palavras, são meramente ajustados à teoria,
em vez da teoria aos dados. Mas deve-se insistir ainda que é pelos dados, e não
pela teoria, que se terá de começar; pois se não partirmos de pressupostos razo-
avelmente plausíveis, onde irmos obter a teoria, diferente de se esposar apenas
aquilo que os nossos corações desejam? Mais cedo ou mais tarde poderemos ter
de abandonar alguns dos dados do nosso senso comum, mas, ao fazê-lo, será
em consideração a certas outras crenças do senso comum que relutamos ainda
mais em abandonar e não em deferência pelas teorias filosóficas que nos atraem
(In: TAYLOR, R. (1969): Metafísica, Rio de Janeiro: Zahar, p. 13-17).
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Após essa introdução aos conceitos principais do CRC, apre-
sentaremos, a seguir, no Tópico Orientações para o estudo, algu-
mas orientações de caráter motivacional, dicas e estratégias de
aprendizagem que poderão facilitar o seu estudo.

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14 © Metafísica II

2. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO

Abordagem Geral
Neste tópico, apresentamos uma visão geral do que será es-
tudado neste CRC. Aqui, você entrará em contato com os assuntos
principais deste conteúdo de forma breve e geral e terá a oportu-
nidade de aprofundar essas questões no estudo de cada unidade.
Desse modo, essa Abordagem Geral visa fornecer-lhe o conheci-
mento básico necessário a partir do qual você possa construir um
referencial teórico com base sólida – científica e cultural – para
que, no futuro exercício de sua profissão, você a exerça com com-
petência cognitiva, ética e responsabilidade social. Vamos come-
çar nossa aventura pela apresentação das ideias e dos princípios
básicos que fundamentam este CRC.
Primeiras considerações sobre a Metafísica II
O CRC Metafísica II enfatiza o período que se estende entre
o criticismo kantiano e a contemporaneidade, onde o maior desta-
que cabe a Ontologia Fundamental de Martin Heidegger.
Não se trata, porém de analisar esse período de um ponto
histórico-filosófico em que a principal preocupação cabe ao estu-
do e ao reconhecimento das concepções metafísicas dos filósofos
deste período. Trata-se, sim, de enfocar esse itinerário conclusivo
da metafísica do ponto de vista de uma análise genealógica que
revele os movimentos internos que subjaz à própria gênese da me-
tafísica.
O criticismo kantiano – primeiros obstáculos da metafísica
Com o criticismo kantiano, inaugura-se uma etapa nova nas
especulações em torno da metafísica. Na sua obra-prima – Crítica
da razão pura – Kant investiga a possibilidade da metafísica tornar-
se uma ciência rigorosa. Esta, para atender os requisitos de ciên-
cia rigorosa, deve ao mesmo tempo ampliar os limites do conhe-
© Caderno de Referência de Conteúdo 15

cimento e atribuir a este conhecimento um caráter apodítico, tal


como a física newtoniana e a matemática euclidiana.
O pensador konigsberguiano descobre que tais ciências rigo-
rosas (física e matemática) se utilizam de juízos sintéticos a priori.
Portanto, para que a filosofia pudesse alcançar o caráter rigoroso
de ciência, é necessário que suas especulações sejam fundadas
nos juízos sintéticos a priori, algo que a filosofia precedente – ra-
cionalismo e empirismo – não fora capaz de realizar.
A possibilidade de juízos sintéticos a priori, segundo Kant,
requer uma inversão completa da posição, chamada pelo filósofo
de "revolução copernicana".
Esta revolução estabelece que não é o objeto que deve regu-
lar o sujeito, como era na época pré-kantiana da filosofia, mas in-
versamente, os objetos devem regular-se pelo sujeito. Essa virada
kantiana impõe várias implicações, mas o mais importante é a re-
consideração em torno do sujeito e a descoberta da sua estrutura
transcendental que antecede o conhecimento e o torna possível.
Desse ponto de vista, a estrutura transcendental é aquela
que determina o modo de conhecimento dos objetos. Todavia, por
ser ela finita e limitada, uma vez que o sujeito humano é finito
e limitado, tal estrutura conhece os objetos no âmbito dos seus
limites naturais, constituídos pela intuição sensível e pelo enten-
dimento.
O homem conhece por meio do tempo, espaço e categorias,
e justamente essas faculdades cognitivas delimitam o âmbito do
seu conhecimento. Isso que dizer que ao homem é vetado o co-
nhecimento absoluto dos objetos e, por conseguinte, das verda-
des eternas, tão especuladas pela metafísica anterior.
O sujeito kantiano conhece apenas os fenômenos, isto é, as
coisas como aparecem para ele e não como são em si mesmas.
Os objetos metafísicos, tais como Deus, alma e mundo, por outro
lado, vão para além da experiência possível em que, segundo Kant,

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16 © Metafísica II

se encontra o âmbito legítimo do conhecimento humano. Disso


se conclui que tais objetos metafísicos são excluídos do domínio
legítimo do conhecimento teórico e, portanto, a metafísica jamais
irá se tornar uma ciência rigorosa.
A metafísica, portanto, como exercício da razão pura, a partir
do criticismo kantiano, vê-se impossibilitada de continuar operando,
causando assim fortes impactos na formação da figura da metafísica
e na sua tendência de realizar todas as potências da razão.
As restrições kantianas, em contrapartida, aparecem como
obstáculos teóricos e metodológicos diante da especulação filosó-
fica, o que, por sua vez, impõe a necessidade de uma superação
urgente do criticismo kantiano. Aqui podemos perguntar sobre as
razões da filosofia de superar o criticismo kantiano: o que torna
urgente a tarefa da superação da filosofia crítica de Kant?
Inicialmente, vale observar duas características do sujeito kan-
tiano: ele é dogmático e a-histórico. É dogmático no sentido de que
a sua natureza, respectivamente, a estrutura transcendental por
meio da qual ele conhece, não é sujeita a qualquer evolução. Desse
caráter dogmático do sujeito kantiano deriva também a sua a-histo-
ricidade. A história não o afeta e ele não evolui historicamente.
Por outro lado, o criticismo kantiano fechou o acesso às ver-
dades eternas – que constituem os objetos privilegiados de toda fi-
losofia tradicional. Mas essa restrição epistemológica possui certas
implicações práticas e morais. Se não há como acessarmos as ver-
dades eternas, então não há o que nos obrigue a agir moralmente.
Todas essas implicações do criticismo kantiano mobilizam o
período pós-kantiano com a tarefa de superar o criticismo e devol-
ver à razão a direção ao absoluto.
O pós-kantismo não apenas descobre o sentido da filosofia
crítica de Kant, mas também configura uma discussão acirrada em
torno dela que oscila entre sua plena aceitação (Reinhold) a sua
plena recusa (Schulze).
© Caderno de Referência de Conteúdo 17

Reinhold foi o primeiro intérprete kantiano, aquele que o


descobriu e o popularizou. Schulze, por sua vez, mostrou as con-
tradições internas da filosofia crítica.
Em suma, as discussões sobre a filosofia kantiana suscitadas
no período após Kant tornaram possível a transição de Kant ao
Idealismo Alemão, possibilitando assim a abertura de novos ho-
rizontes para a especulação filosófica, horizontes que marcam a
plena realização das possibilidades da razão.
Todavia, cabe a Kant o grande mérito não apenas da desco-
berta do caráter transcendental do sujeito humano e, com isso, a
nova discussão em torno do homem, mas também a significativa
valorização da estética. Kant reserva para a estética um papel fun-
damental, constituindo-a como uma das disciplinas fundamentais
da filosofia.
Em Crítica da Faculdade de Julgar, observamos vários aspec-
tos que influenciaram a especulação estética posterior. Além disso,
destacam-se os importantes aspectos que o pensador konigsber-
guiano introduz referente ao gênio e ao sublime.
Não seria exagerado dizer que a doutrina do gênio de Kant
serve de inspiração para o retrato do gênio desenhado pelo ro-
mantismo. Por sua vez, o conceito kantiano de sublime terá um
papel fundamental na constituição do pensamento dialético dos
idealistas. O sublime serve de modelo do trágico e este, por sua
vez, entendido como antagonismo e reconciliação, serve de mode-
lo da dialética: tese – antítese e síntese.

Idealismo alemão e a realização da metafísica


Justamente a dialética vai protagonizar na especulação ide-
alista a possibilidade de se acessar o absoluto (as verdades eter-
nas). Diferentemente da posição dogmática e a-histórica de Kant
em torno do sujeito, a dialética idealista rompe com os limites do
sujeito, impostos pelo criticismo e constitui a ideia de Bildung (for-
mação), tão marcante para o idealismo, inserindo o sujeito huma-
no na história, tornando o homem seu verdadeiro protagonista.

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18 © Metafísica II

Essa nova posição que surge por meio das concepções histó-
ricas e dialéticas é perfeitamente evidente nas obras dos grandes
idealistas Fichte, Schelling e Hegel. Com este último, a filosofia, en-
quanto metafísica, realiza as possibilidades da razão, chega ao seu
pleno acabamento. A metafísica, como Heidegger nos convence,
com Hegel chega ao fim.
Após o fim enunciado por Hegel, fim no sentido de realiza-
ção integral da metafísica, surgem novas correntes filosóficas que
se configuram como oposições à poderosa metafísica. Correntes
tais com o voluntarismo de Schopenhauer e Nietzsche, o positi-
vismo de Comte e o materialismo dialético de Feuerbach e Marx.
A importância dessas correntes filosóficas para o nosso estudo se
justifica pelas críticas que elas dirigem à metafísica. O que nos in-
teressa é a posição crítica de tais doutrinas.
Materialismo e positivismo
O materialismo dialético surge como contraponto ao idea-
lismo hegeliano e tende a ressaltar a impossibilidade de o Espírito
hegeliano ser o protagonista legítimo do processo histórico.
O Espírito, segundo os materialistas dialéticos, por si mesmo,
sem a força material do homem, não faz nada. A sua dialética não
procede. Ela só se efetiva no solo material. Assim, o Deus da meta-
física é substituído pelo homem, e mais exatamente, pelo gênero
humano (Gattung), que toma em suas mãos a tarefa de aterrissar
o pensamento filosófico em seu verdadeiro âmbito – o âmbito das
relações materiais.
Analogicamente, o positivismo expulsa do domínio das suas
investigações quaisquer instâncias e objetos metafísicos, configu-
rando assim o campo das ciências. Todavia, nem o materialismo
dialético nem o positivismo conseguem se desprender definitiva-
mente das garras da metafísica.
O materialismo dialético, utilizando-se do mecanismo essen-
cialmente metafísico – a dialética, substitui a dialética do espírito ins-
pirado pelo idealismo, com a dialética da matéria, cometendo assim
© Caderno de Referência de Conteúdo 19

um erro fundamental ao tratar a matéria em termos de espírito. Esse


ecletismo começa com Feuerbach, que substituiu o espírito hegeliano
(Geist) com a noção de gênero humano (Gattung), tentando devolver
o homem e, junto com isso, a sua importância no seu devido lugar.
Essa substituição, no entanto, não passa de uma versão
disfarçada da metafísica, pois compreende o homem em sua di-
mensão objetiva, como gênero. Marx também trata o homem em
sentido de gênero, de essência, utilizando-se das ferramentas con-
ceituais da metafísica. A matéria transforma-se em um princípio,
uma espécie de argila metafísica em que se determinam, necessa-
riamente, todas as relações possíveis.
A dialética, nessa versão materialista, retrata um processo de
desenvolvimento, porém, não circular, mas progressivo que leva
do inferior ao superior. Essa suposta "realização" denuncia seu pa-
rentesco com a metafísica. Falta nela uma autêntica interpretação
da realidade humana em suas possíveis perspectivas.
O positivismo, por sua vez, tenta superar o espírito metafí-
sico com o espírito científico. Nessa intenção, o positivismo adota
uma atitude dogmática por meio da qual tenta abolir os pressu-
postos metafísicos. No entanto, essa censura à metafísica se faz a
partir do arcabouço da própria metafísica – o que denuncia, por
sua vez, os pressupostos metafísicos do positivismo. Nesse senti-
do, Habermas dirá:
O positivismo só pode exprimir-se em termos compreensíveis atra-
vés de conceituações metafísicas. Ao desfazer-se delas sem as re-
fletir, tais conceituações mantêm sua têmpera substancial também
contra o adversário (Positivismo, pragmatismo e historicismo. In:
Conhecimento e interesse: com um novo posfácio. Rio de Janeiro:
Zahar, 1982, cap. II, p. 100).

Além do mais, o positivismo mostra-se pouco filosófico na


medida em que se prende no fato, mas se recusa de remontar ao
seu fundamento, este que determina a diferença entre a filosofia
e as ciências.

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20 © Metafísica II

Vale, portanto, concluir que tanto o materialismo dialético


como o positivismo operam uma concepção teórica que denuncia
a sua raiz metafísica. Não há, portanto, nem no materialismo dia-
lético nem no positivismo quaisquer índices de superação total da
metafísica e elaboração de nova proposta filosófica.
A nova proposta só pode advir do perspectivismo, que, ao
se originar das profundezas da subjetividade humana, rompe com
o caráter universalista da metafísica. Esse perspectivismo apare-
ce no horizonte especulativo a partir do filósofo alemão Friedrich
Nietzsche e difunde-se profundamente na corrente existencialista
e, principalmente, na filosofia heideggeriana.
Nietzsche e a superação da metafísica
O que apresenta esse perspectivismo e porque ele é o princi-
pal protagonista não apenas do processo de dissolução da metafí-
sica, mas também da constituição de uma nova proposta filosófica
e, mais especificamente, de uma maneira nova de filosofar?
No século 19, a partir da filosofia de Schopenhauer, nota-
-se uma inversão significativa na reflexão filosófica que se origina
da substituição da razão pela Vontade, substituição esta operada
por Schopenhauer. Este pensador coloca no topo da sua filosofia a
vontade; e a razão, até então considerada como principal protago-
nista, vira apenas uma mera serva a serviço da vontade.
Todavia, a concepção filosófica de Schopenhauer continua
sendo afinada no registro da metafísica, enquanto considerada
como a essência mais fundamental de toda realidade.
A partir da distinção entre representação e vontade,
Schopenhauer enuncia a falta de sentido da existência. As faculda-
des cognitivas configuram o mundo de modo próprio para ser co-
nhecido, porém, como representação. É aqui que o filósofo retoma
certos aspectos da filosofia kantiana, reformulando-os de acordo
com a sua filosofia da vontade.
© Caderno de Referência de Conteúdo 21

A divisão entre o fenômeno e a coisa em si soaria bastante


convergente à herança kantiana, se não fosse enfatizado o con-
traste entre a pluralidade e a unidade. A pluralidade fenomênica
manifesta-se na representação, configurada pelo princípio da indi-
viduação constituído pelo espaço e tempo e pelo princípio da cau-
salidade em que o fenômeno aparece como efeito de causas que o
manifestam de uma determinada maneira no espaço e no tempo.
Todavia, a representação, para Schopenhauer, não passa de
uma ilusão. Para ele, diferentemente de Kant, por trás do fenôme-
no não há um dado que o manifeste, por meio de uma relação cau-
sal que, para Schopenhauer, não passa de uma criação quimérica
das faculdades cognitivas.
Além da pluralidade fenomênica que, em última instância,
não passa de mera ilusão, existe uma unidade fundamental, es-
sência e causa de toda aparência, o mundo do em si, que para
Schopenhauer é a Vontade.
A Vontade, na concepção schopenhaueriana, apresenta-se
como profunda e cega força obscura que atua no fundo do ser e
não cede às formas da razão. Assim, ela adquire um estatuto alógi-
co e irracional. Portanto, o mundo como em si seria o mundo "sem
razão" (grundlos), sem sentido para o intelecto humano.
O dinamismo da Vontade revela-se pela guerra perpétua da
existência entre suas formas fenomênicas (representações), que
são nada mais do que a própria Vontade. Então, conforme Schope-
nhauer, a guerra ocorre entre a Vontade e ela mesma.
Partindo desse pressuposto, a saber, da filosofia da vontade,
Nietzsche vai ainda mais longe ao operar, por assim dizer, a plura-
lização da vontade, de modo tal pôde substituir a Vontade una de
Schopenhauer que revela um caráter essencialmente metafísico
pelas vontades plurais.
Isso permitiu, por um lado, que o mundo e a vida fossem con-
cebidos em termos de relação de forças e não em termos de princí-
pio ontológico como é no caso da Vontade schopenhaueriana.

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22 © Metafísica II

As vontades plurais de Nietzsche exaltam uma constante dis-


puta e enfatiza o caráter agônico da própria vida. Disso resulta a
noção de perspectivismo. Transferido para o campo do humano,
este perspectivismo inspira que cada indivíduo, conforme a sua
organização psicofisiológica, cria sua própria perspectiva para o
mundo e a vida.
Essa concepção perspectivista implica, por sua vez, no rom-
pimento com o caráter unitário e universalista da razão e, por con-
sequência, impõe a dissolução do alicerce da metafísica.
No lugar da poderosa razão venerada pela tradição metafí-
sica aparece a Vontade de Poder, que não apenas rompe com os
pressupostos ontoteológicos, mas também introduz um novo ar-
cabouço filosófico, embasado, por assim dizer, em um logos meta-
fórico. Isso se evidencia ainda pela mudança do estilo que valoriza
a metáfora em detrimento do conceito.
A partir do foco artístico que Nietzsche adota como critério,
o filósofo não apenas descobre a vontade de conservação que se
oculta por trás da concepção teórica que a metafísica exalta por
meio da estrutura lógico formal da razão, mas também põe diante
da cultura ocidental um novo destino.
O mundo das essências, das verdades apodíticas, dos valores
universalmente válidos, da concepção universal do homem etc., a
partir desse novo destino, vai se dissolvendo por meio da valori-
zação do individual, do único, do autêntico que habita no homem.
A partir de Nietzsche, começa a florescer a pedagogia de "tor-
nar-se o que é" exaltada pelo perspectivismo. Essa nova tendência
que Nietzsche coloca como protagonista da sua filosofia encontra
um solo bastante fértil nas especulações da corrente existencialis-
ta que abandona, em sua "analítica existencial", quaisquer defini-
ções que pretendem definir e responder metafisicamente, isto é,
por meio de definições abstratas e universais o que é o homem.
© Caderno de Referência de Conteúdo 23

Esse novo destino e desafio não metafísico diante da filo-


sofia após Nietzsche encontra sua plena realização na ontologia
fundamental de Heidegger.
Martin Heidegger – Ontologia Fundamental
A Ontologia Fundamental de Martin Heidegger configura-se
como crítica total da metafísica anterior, isto é, da metafísica tradi-
cional que se estende de Platão a Hegel. É incontestável, para Heidegger,
que a filosofia surge como pergunta pelo ser, isto é, como ontolo-
gia. Mas diante dessa pergunta mais fundamental, surgem várias
possibilidades de resposta.
Uma delas é a possibilidade da razão que a filosofia, por
meio de Platão, aderiu como seu destino. Circunscreveu-se, assim,
a figura da metafísica, que, ao longo do seu percurso, tende à rea-
lização das possibilidades da razão. É como se a metafísica, aberta
pelo gênio grego, configura-se a partir de várias nuanças de um
e mesmo projeto unidas por uma tendência interna da razão de
chegar a sua plena realização ou acabamento.
Esse acabamento, segundo Heidegger, dá-se com o histori-
cismo hegeliano. Nesse sentido, o filósofo dirá, em seu ensaio O
fim da filosofia e a tarefa do pensamento, que: "O fim da filosofia
é o lugar em que se une a totalidade da sua história em sua possi-
bilidade mais radical" (1991, p. 268).
Mas se a metafísica já realizou as suas potências, o que será,
então, da filosofia no limiar do seu acabamento? Haverá uma
nova tarefa, um novo problema para o pensamento filosófico? Um
prolongamento do espírito metafísico, segundo Heidegger, não
é apenas inútil e infrutífero, mas também causa um efeito fatal
e mortífero para o próprio pensamento. E justamente por isso o
existencialista alemão insiste que está na hora:
[...] de liberar aquela que foi a possibilidade primeira, possibilidade
original, não no sentido de que se haveria simplesmente apresen-
tado em primeiro lugar e em relação a que sempre se pode dizer
que afinal das contas uma outra 'escolha' inicial haveria sido possível,
mas porque essa possibilidade é já origem de possibilidades, origem
possível de experiências novas? (COURTINE, 2006, op. cit., p. 34).

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24 © Metafísica II

O trecho citado inspira a ideia de que a nova tarefa da filoso-


fia só pode originar-se de uma atitude destruidora da metafísica,
pelo "gesto mesmo da destruição da tradição; assim a destruição
liberta [...]" (COURTINE, 2006, p. 34). Uma atitude que Nietzsche
inaugurou com seus "golpes de martelo".
Agora, resta reconhecer a possibilidade primeira, aquela que
deu origem à figura metafísica. Para Heidegger a arché - possibilida-
de que se oculta no pathos. Segundo o filósofo, o pathos é o espanto
e "o espanto é, enquanto pathos, a arkhé da filosofia. [...] Designa
aquilo de onde algo surge [...]" (COURTINE, 2006, p. 219). A expres-
são "algo surge" significa que é do pathos que a filosofia surge.
É necessário, portanto, um retorno a essa origem absoluta-
mente fundadora da qual deve surgir a alternativa de um novo re-
começo. Aliás, essa nova alternativa já foi sugerida por Nietzsche,
a alternativa de um logos metafórico.
Assim, podemos entender que a crítica heideggeriana da
metafísica atenta ao fato de que os pilares da metafísica – a razão,
o conceito e a verdade – não foram capazes de manter em aberto
a pergunta pelo ser. O conceito não fora capaz de "de-finir" o ser,
pois o conceito de ser – nos diz Heidegger – é indefinível. O concei-
to fecha, a metáfora abre. A poesia e a arte viram a clareira do ser
e o poeta e o artista – seus guardiões.
Mas para entendermos melhor essa impotência do conceito
de "des-velar" o ser, recorreremos à noção de ser em sua obra
fundamental Ser e tempo. Nessa obra, o filósofo coloca em pauta
três noções do conceito do ser:
1. "Ser" é conceito mais universal [...] (Uma compreensão
do ser já está sempre incluída em tudo que se apreende
no ente). A "universalidade" do "ser", porém, não é a do
gênero. A "universalidade" do ser transcende toda uni-
versalidade genérica (HEIDEGGER, 2000, p. 28).

Essa primeira definição estabelece praticamente a diferença


entre "ser" e "ente". Isso significa que o ser não pode ser reduzido
a ente. Se o ente é sujeito à definição, isto é, que pode ser defini-
© Caderno de Referência de Conteúdo 25

do, inversamente, o ser é esse âmbito do qual os entes, concretos


ou abstratos, se podem "de-finir" por meio do conceito. E, justa-
mente, nesse caso urge uma pergunta: o ser pode ser de-finido? Aí
vem a segunda noção para esclarecer essa dúvida:
2. O conceito de "ser" é indefinível. Essa é a conclusão tirada
da máxima universalidade. De fato, o "ser" não pode ser
concebido como ente (...) o "ser" não pode ser determi-
nado, acrescentando-lhe um ente. Não se pode derivar
o ser no sentido de uma definição a partir de conceitos
superiores nem explicá-lo através de conceitos inferiores.
Daí pode-se apenas concluir que o "ser" não é um ente.
Por isso o modo de determinação do ente, legítimo den-
tro de certos limites – como a definição da lógica tradicio-
nal que tem seus fundamentos na antiga ontologia – não
pode ser aplicado ao ser (HEIDEGGER, 2000, p. 29).

A citação não deixa dúvida no que diz respeito às razões que


não permitem que o ser seja reduzido em ente (indefinível e maxima-
mente universal). Estas razões fundamentais não foram consideradas
pela metafísica clássica, que acabou reduzindo, assim, o ser em ente.
Uma atitude que Heidegger denuncia como o esquecimento do ser.
Se as ciências particulares e a nossa atitude cotidiana se ocu-
pam com os entes, cabe, porém, ao ofício dos filósofos explorarem
essa categoria mais universal que é o Ser. Mas, visto pela crítica
heideggeriana que os filósofos se esqueceram do Ser, confundin-
do-o com o ente, surge a necessidade de se colocar novamente,
em todo seu vigor, a pergunta pelo sentido do ser.
É o que podemos concluir da terceira noção de ser exposta
por Heidegger:
3. O "ser" é o conceito evidente por si mesmo. Em todo co-
nhecimento, proposição ou comportamento com o ente
e em todo relacionamento consigo mesmo, faz-se uso do
"ser" e, neste uso, compreende-se a palavra "sem mais".
Todo mundo compreende: "o céu é azul", "eu sou feliz".
Mas a essa compreensão comum demonstra apenas a
incompreensão. Revela que um enigma já está sempre
inserido a priori em todo ater-se e ser para o ente, como
ente. Esse fato de vivermos sempre numa compreensão
do ser e o sentido do ser estar, ao mesmo tempo, envolto
em obscuridade demonstra a necessidade de princípio
de se repetir a questão sobre o sentido do ser (HEIDEGGER,
2000, p. 29-30).

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26 © Metafísica II

Daí emerge o ponto crucial da crítica que Heidegger dirige à


tradição metafísica. Pelas três noções fundamentais de "ser" esbo-
çadas por Heidegger, demonstrou-se que a pergunta pelo sentido
do ser não é passível de resposta, o que, por sua vez, impõe a ne-
cessidade de se colocar essa questão em pauta novamente.
A tradição metafísica, cuja ferramenta é o conceito, como
vimos, é condenada ao fracasso quando pretende determinar o
ser. Esquece-se do ser, vela-o, transformando-o em ente. Mas com
os entes, nos diz Heidegger, ocupam-se as ciências particulares.
Então, a filosofia, como o templo mais altivo do pensamento hu-
mano, deve manter em aberto a pergunta pelo fundamento, isto
é, pelo "ser".
O filósofo do ser não pretende responder o que é o "ser",
mas apenas ser um guardião do ser e, para isso, ele conta com a
poderosa arma do logos da poesia, ou seja, do logos metafórico
que desperta a autenticidade humana de um sonho profundamen-
te clássico.
Esperamos que essa abordagem do desenvolvimento da me-
tafísica, que você irá conhecer em pormenores ao longo do estudo
deste CRC, tenha contribuído para aguçar sua curiosidade pelos
temas que serão nela discutidos. Bom estudo!

Glossário de Conceitos
O Glossário de Conceitos permite a você uma consulta rá-
pida e precisa das definições conceituais, possibilitando-lhe um
bom domínio dos termos técnico-científicos utilizados na área de
conhecimento dos temas tratados no CRC Metafísica II. Veja, a se-
guir, a definição dos principais conceitos:
1) A priori e a posteriori: a distinção entre a priori e a pos-
teriori refere-se aos modos pelos quais conhecemos. A
priori é um tipo de conhecimento que é independente
da experiência, por exemplo: "7 + 3 = 10"; "todo solteiro
é não casado". Não é necessário comprovar empirica-
mente que "7 + 3 = 10" ou que "todo solteiro é não casa-
© Caderno de Referência de Conteúdo 27

do". São raciocínios logicamente válidos. Segundo Kant,


"Todos os juízos analíticos assentam inteiramente no
princípio da contradição e são, segundo a sua natureza,
conhecimentos a priori, os quais são conceitos que lhe
servem de matéria e podem ser ou não ser empíricos"
(Crítica da razão pura, B11). A posteriori é um tipo de
conhecimento que é totalmente dependente da experi-
ência, por exemplo: "a maça é verde"; "João é alto"; "a
rua é asfaltada". Para comprovar que João é mentiroso
é preciso que eu conheça João, ou seja, que faça a expe-
riência, pois não posso estabelecer a altura de alguém
antes de conhecê-lo. O mesmo se dá no caso da maça,
só posso estabelecer se ela é verde depois de comprovar
pelos sentidos qual a cor da maça. Jamais poderia esta-
belecer a cor da maça antes de vê-la.
2) Analítico e sintético: "Uma frase é analítica se, e somen-
te se, a compreensão do seu significado é suficiente para
determinar o seu valor de verdade. Uma frase é sintética
caso a compreensão do seu significado não seja suficien-
te para determinar o valor de verdade. P. ex. a frase "A
neve é branca" é sintética, dado que compreender o seu
significado não é suficiente para determinar se a frase é
verdadeira ou falsa. Já a frase "Ou a neve é branca ou a
neve não é branca" é uma verdade analítica, dado que
compreender o seu significado é suficiente para deter-
minar que é verdadeira. [...] A noção de analiticidade foi
introduzida por Immanuel Kant (1724-1804). Contudo,
Kant pressupunha que todas as frases eram do tipo su-
jeito-predicado, isto é, da forma A é B, definindo as fra-
ses analíticas (a que ele chamava "juízos") como aquelas
em que o sujeito está contido no predicado (1787, A6-7,
B10). [...] Além de essa noção captar um fenômeno se-
mântico em si importante, ela desempenhou e desem-
penha um papel central na discussão entre racionalistas
e empiristas sobre a existência do conhecimento a priori.
A idéia basilar do empirismo é que todo o conhecimen-
to substancial deriva da experiência. Contudo, a maioria
dos empiristas aceita também a intuição de que o modo
como conhecemos as verdades da lógica e da matemá-

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28 © Metafísica II

tica, p. ex., é diferente do modo como conhecemos as


verdades empíricas. A maneira como os empiristas con-
ciliam ambas as idéias consiste em defender que todas
as verdades a priori são analíticas. Se o conhecimento
a priori for mero conhecimento de verdades analíticas,
então o conhecimento a priori, é mero conhecimento
lingüístico. E conhecimento lingüístico é algo que os em-
piristas podem aceitar, pois não é conhecimento subs-
tancial acerca do mundo, mas mero conhecimento de
significados, ou convenções linguísticas, ou de relações
entre os nossos conceitos. E isso não colide com a tese
empiristas basilar de que todo o conhecimento substan-
cial é conhecimento que deriva da experiência" (BRAN-
QUINHO; MURCHO; GOMES, p. 37).
3) Apodítico: "(do gr. apodeiktikós, demonstrativo) Tradi-
cionalmente, dizia-se que os juízos apodíticos afirmam a
NECESSIDADE, contrastando com os assertivos, que afir-
mam a atualidade e com os problemáticos, que afirmam
a POSSIBILIDADE" (BRANQUINHO; MURCHO; GOMES, p.
42). Como se trata de um juízo necessário, diz-se que
este é um juízo rigoroso. Kant relaciona o juízo apodíti-
co com o juízo científico (ou rigoroso) como os da física
newtoniana e da geometria euclidiana.
4) Coisa-em-si: "Kant usa este termo para designar um grupo
de significados atribuídos a noumena e a idéias transcen-
dentes. A coisa-em-si-mesma compartilha com estes últi-
mos a qualidade negativa de limitar o emprego do entendi-
mento e da razão ao que pode ser um objeto de intuição, e
a qualidade positiva de caracterizar um espaço problemá-
tico para além desses limites. Assim, a coisa-em-si-mesma
não pode ser conhecida, uma vez que o saber está limitado
à experiência possível" (CAYGILL, 2000, p. 58).
5) Conhecimento: "Um dos temas epistemológicos mais recor-
rentes e sobre o qual foi manifestado razoável acordo entre
os filósofos modernos é o caráter dualista do conhecimento,
isto é, o fato de ele ser composto por dados dos sentidos, de
um lado, e, de outro, por conceitos ou qualquer espécie de
esquema formal organizador daqueles dados" (BRANQUI-
NHO; MURCHO; GOMES, p. 181).
© Caderno de Referência de Conteúdo 29

6) Consciência: "'Ter consciência' ou 'estar consciente' são ex-


pressões que apontam para certas qualidades cognitivas, as-
sociadas a ESTADOS MENTAIS, em que a subjetividade ou a
PERSPECTIVA DA PRIMEIRA PESSOA parece ser irredutível"
(BRANQUINHO; MURCHO; GOMES, p. 189). Segundo Duro-
zoi e Roussel, "Como 'dado imediato', a consciência, cuja eti-
mologia latina sugere a idéia de conhecimento, define antes
de mais nada, a presença vivida do indivíduo em si mesmo e
com relação ao mundo. Enquanto a filosofia clássica – prin-
cipalmente com Descartes, que identifica o pensamento à
consciência – considera naturalmente o indivíduo conscien-
te transparente para si mesmo, a reflexão contemporânea
desde o século XIX (Marx, Nietzsche e Freud) contesta esse
domínio do espírito sobre o conjunto de suas produções"
(2005, p. 103). Na filosofia de Reinhold a Consciência é o
núcleo central pelo qual pretende a união das três críticas
da razão efetuadas por Kant. Tratava-se de uma tentativa de
transformar a filosofia de Kant em um sistema filosófico.
7) Cosmologia: "A cosmologia é um dos três ramos da 'Me-
tafísica especial' que, com a ontologia, faz parte do in-
fluente sistema de metafísica desenvolvido por Christian
Wolff (1719). [...] A cosmologia crítica de Kant é 'canôni-
ca' em seu sentido de fornecer critérios para o estabe-
lecimento da falsidade. A sua cosmologia é apresentada
como medida acauteladora tomada contra a 'ilusão na-
tural' da razão humana que procura alcançar o conhe-
cimento absoluto do mundo. Mostra que, quando a ra-
zão amplia os conceitos do entendimento para além do
mundo das aparências no tempo e no espaço, entra em
conflito consigo mesma. Com isso, Kant abandonou efe-
tivamente o projeto de uma cosmologia filosófica, muito
embora deixasse aberta a possibilidade de um uso re-
gulativo dessas idéias cosmológicas. Depois dele, Hegel
e Schelling tentaram resgatar a iniciativa com a filosofia
da natureza, mas isso foi, em grande parte, uma ação de
retaguarda em face do movimento de transferência dos
interesses cosmológicos do campo da filosofia para o da
ciência natural" (CAYGILL, 2000, p. 80).

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30 © Metafísica II

8) Dialética: "Primitivamente é a arte do diálogo (do verbo


dialegei: falar 'através' do espaço que separa os interlocu-
tores) como método de interrogação, talvez elaborado por
Zenão de Eléia, em todo caso praticada por Sócrates e cuja
colocação em forma literária é empreendida por Platão.
9) O termo grego porém designa igualmente a divisão ló-
gica – sentido também platônico – que chega a desco-
brir gradualmente os conceitos fundamentais ou idéias:
evoca-se naturalmente a propósito de Platão uma dia-
lética ascendente (que parte do concreto para chegar à
idéia do Bem) e uma dialética descendente (retornando
da contemplação do Bem ao cotidiano), cujo movimento
complementar, esboçado na República, e mais particu-
larmente na alegoria da caverna, deve ocupar a vida do
filósofo verdadeiro.
10) Para Aristóteles – antiplatônico nesse ponto assim como
em muitos outros – assume nuances pejorativas: por
oposição à analítica, cujo objeto é a demonstração ver-
dadeira, a dialética tem por objeto apenas raciocínios
elaborados a partir de opiniões simplesmente prováveis.
Na mesma ótica, em Crítica da razão pura, Kant deno-
minará 'dialética transcendental' o estudo da ilusão por
meio da qual o espírito humano acredita poder ultrapas-
sar os limites da experiência para determinar a priori os
conceitos da alma, do mundo ou de Deus.
[...]
É no século XIX, com Hegel, que a dialética adquire um
sentido filosófico novo – e de tal modo que a enerva ain-
da a maioria daquilo que se pensa hoje: é compreendida
[...] como lei do pensamento e do real, que, progredindo
por negações sucessivas (tese, antítese), resolve as con-
tradições chegando a sínteses, elas próprias parciais e
convidadas a ser ultrapassadas. Esse 'trabalho negativo',
inscrito no coração do devir, anima para Hegel qualquer
história particular, seja a história da natureza ou da pró-
pria filosofia" (DUROZOI; ROUSSEL, p. 135).
11) Ente: "O que é, ou seja, tem de ser sem coincidir com a
totalidade do último: é portanto também o ser em situa-
ção, ou seja, o existente" (DUROZOI; ROUSSEL, p. 152).
© Caderno de Referência de Conteúdo 31

12) Espírito: "Na filosofia hegeliana, o Espírito – que é a ver-


dade da Natureza – é a princípio subjetivo (na consci-
ência e nos fatos psíquicos individuais); torna-se depois
objetivo (na moral e no direito) e finalmente absoluto
por intermédio da arte, da religião e da filosofia. Esse
desdobramento progressivo anima a História e permite
sua compreensão" (DUROZOI; ROUSSEL, p. 164).
13) Essência: "Em metafísica, a essência, por oposição aos
acidentes, constitui o fundo da coisa e torna-a tal qual
é. Desse modo, a essência distingue-se do fato de estar
aí, ou seja, da existência. A determinação lógica do con-
teúdo das essências provocou a Querela dos Universais
na escolástica. Para o existencialismo, a essência do ho-
mem é a sua própria existência. Oposto à essa doutrina,
o essencialismo é uma filosofia do conceito que concede
primazia à essência sobre a existência, que abstrai. Ca-
racteriza principalmente o pensamento de Spinoza e de
Hegel. O termo essencial qualifica originalmente o que
pertence à essência. Por extensão: o que é importante
ou indispensável" (DUROZOI; ROUSSEL, p. 166).
14) Eu: "Pode-se igualmente qualificar de transcendental
[como em Kant] o eu absoluto de Fichte, ato constitutivo
do sujeito ao mesmo tempo que do pensamento cuja
autonomia absoluta o eu exprime" (DUROZOI; ROUSSEL,
p. 173).
15) Fenômeno: Segundo Caygill, "Os fenômenos são distin-
tos de noumena e aparências, mas os termos em que
Kant baseou a distinção mudaram radicalmente durante
a sua carreira. Em sua primeira obra [...] fenômeno no
sentido de uma manifestação externa, de uma força in-
visível, como na proposição "o movimento é apenas o
fenômeno externo do estado do corpo"" (2000, p. 149).
Num segundo momento (1770), "mudaram-se os termos
da distinção: fenômenos não se referiam a manifestação
externa de forças ou objetos invisíveis mas simplesmen-
te "objetos da sensibilidade", em oposição à noumena
ou objetos inteligíveis, os quais só poderiam ser "conhe-
cidos através da inteligência" (CAYGILL, 2000, p. 149).
Por fim, há uma distinção entre fenômeno e aparência,

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32 © Metafísica II

"Os fenômenos também se distinguem das aparências


na medida em que combinam as leis do conhecimento
sensível e intelectual ou, para usar a linguagem de CRP
[Crítica da razão pura], são "aparências na medida em
que são pensadas como objetos de acordo com a unida-
de das categorias" (A 248)" (CAYGILL, 2000, p. 149).
16) Juízo: "O juízo fornece a matriz de toda a filosofia de
Kant. Cada uma das três críticas está orientada para a
análise de uma determinada classe de juízo: juízos teó-
ricos em CRP [Crítica da Razão Pura], juízos práticos em
CRPr [Crítica da Razão Prática], juízos estéticos e teológi-
cos em CJ [Crítica da Faculdade de Julgar] [...]" (CAYGILL,
2000, p. 205).
17) Ser aí: em alemão "Dasein". Segundo Loparic, "Em Ser
e tempo, a facticidade da vida é tematizada como ob-
jeto de estudo da ontologia fundamental. [...]. O ser do
homem, o Dasein, tem a estrutura ontológica de um
ser-no-mundo, cujos elementos fundamentais são três:
identidade pessoal, mundo e habitar o mundo. Os mo-
dos mais primitivos de habitar o mundo são ocupação
com as coisas e a solicitude para com os outros. A tema-
tização científica e a conseqüente objetivação das estru-
turas do Desein são modos derivados de ser-no-mundo,
podendo, por isso mesmo, ser modificados pelo Dasein
individual em posse de seu poder-ser originário. [...] O
ente estruturado como Dasein pode até morrer, isto é,
não-mais-estar-no-mundo e, neste sentido, tanscender
o mundo. Enquanto ser-para-a-morte, o ser humano é
um transcendente, desde sempre em movimento de ir
além do mundo e de si mesmo enquanto mundano.
O último sentido ou horizonte do movimento de trans-
cendência é o tempo, finito e circular, específico do exis-
tir humano enquanto antecipação resoluta da morte,
radicalmente distinto, portanto, do tempo infinito e line-
ar que caracteriza o sentido de ser de coisas materiais"
(2004, p. 48-49).
18) Síntese: "Contrário da análise: conduta intelectual que,
por experiência (por exemplo em química) ou logica-
mente, vai das noções ou enunciados mais simples aos
© Caderno de Referência de Conteúdo 33

mais complexos. A esse título é praticada na maioria das


ciências (principalmente em história) ou até, no senti-
do amplo, nas atividades artísticas, quanto o pintor ou
escultor organiza num todo estruturado os elementos
que selecionou para sua obra. Descartes faz dela a ter-
ceira regra de seu método. Na filosofia de Hegel, a sín-
tese designa o terceiro momento da dialética, que une,
"ultrapassando"-as, a tese e sua negação. Podemos ob-
servar que essa "negação da negação" equivale à afirma-
ção de uma nova tese que deve por sua vez ser negada"
(DUROZOI; ROUSSEL, p. 437).
19) Vontade de poder: "No pensamento de Nietzsche, a
expressão (que constitui o título de uma de suas obras
essenciais) opõe-se ao querer-viver pessimista de Scho-
penhauer. Designa a vontade de dominar, própria a
qualquer vida, e mais especialmente, a energia conquis-
tadora dos homens mais dotados que serão capazes de
criar novos valores após derrubarem valores tradicio-
nais" (DUROZOI; ROUSSEL, p. 490).

Esquema dos Conceitos-chave


Para que você tenha uma visão geral dos conceitos mais
importantes deste estudo, apresentamos, a seguir (Figura 1), um
Esquema dos Conceitos-chave. O mais aconselhável é que você
mesmo faça o seu esquema de conceitos-chave ou até mesmo o
seu mapa mental. Esse exercício é uma forma de você construir o
seu conhecimento, ressignificando as informações a partir de suas
próprias percepções.
É importante ressaltar que o propósito desse Esquema dos
Conceitos-chave é representar, de maneira gráfica, as relações entre
os conceitos por meio de palavras-chave, partindo dos mais com-
plexos para os mais simples. Esse recurso pode auxiliar você na or-
denação e na sequenciação hierarquizada dos conteúdos de ensino.
Com base na teoria de aprendizagem significativa, entende-
-se que, por meio da organização das ideias e dos princípios em
esquemas e mapas mentais, o indivíduo pode construir o seu co-

Claretiano - Centro Universitário


34 © Metafísica II

nhecimento de maneira mais produtiva e obter, assim, ganhos pe-


dagógicos significativos no seu processo de ensino e aprendiza-
gem.
Aplicado a diversas áreas do ensino e da aprendizagem es-
colar (tais como planejamentos de currículo, sistemas e pesquisas
em Educação), o Esquema dos Conceitos-chave baseia-se, ainda,
na ideia fundamental da Psicologia Cognitiva de Ausubel, que es-
tabelece que a aprendizagem ocorre pela assimilação de novos
conceitos e de proposições na estrutura cognitiva do aluno. Assim,
novas ideias e informações são aprendidas, uma vez que existem
pontos de ancoragem. Tem-se de destacar que "aprendizagem"
não significa, apenas, realizar acréscimos na estrutura cognitiva
do aluno; é preciso, sobretudo, estabelecer modificações para que
ela se configure como uma aprendizagem significativa. Para isso,
é importante considerar as entradas de conhecimento e organizar
bem os materiais de aprendizagem. Além disso, as novas ideias e
os novos conceitos devem ser potencialmente significativos para o
aluno, uma vez que, ao fixar esses conceitos nas suas já existentes
estruturas cognitivas, outros serão também relembrados.
Nessa perspectiva, partindo-se do pressuposto de que é
você o principal agente da construção do próprio conhecimento,
por meio de sua predisposição afetiva e de suas motivações in-
ternas e externas, o Esquema dos Conceitos-chave tem por ob-
jetivo tornar significativa a sua aprendizagem, transformando o
seu conhecimento sistematizado em conteúdo curricular, ou seja,
estabelecendo uma relação entre aquilo que você acabou de co-
nhecer com o que já fazia parte do seu conhecimento de mundo
(adaptado do site disponível em: <http://penta2.ufrgs.br/eduto-
ols/mapasconceituais/utilizamapasconceituais.html>. Acesso em:
11 mar. 2010).
© Caderno de Referência de Conteúdo 35

PROJETO DE TORNAR A FILOSOFIA


UMA CIÊNCIA RIGOROSA

RACIONALISMO CRITICISMMO EMPIRISMO


IMANUEL KANT

Primeiro grande obstáculo


PÓS-KANTIANOS para a realização do projeto
PRÓS E CONTRAS filosófico iniciado com os gregos,
Primeiras tentativas no qual a razão foi eleita a única
de superação do via para responder a pergunta
criticismo. pelo ser – como Metafísica
(a razão no tribunal da razão)

IDEALISMO ALEMÃO
Superação dos limites do criticismo ao
desenvolvimento pleno da metafísica

SCHELLING - IDENTIDADE FICHTE - EU ABSOLUTO


Limites do criticismo superados Limites do criticismo superados
pela intuição estética. pela ação prática.

HEGEL - ESPÍRITO ABSOLUTO


SCHOPENHAUER Limites do criticismo superados
Metafísica da Vontade pelo conhecimento.
A razão submetida à Vontade Fim da Filosofia entendida como Metafísica.

NIETZSCHE - FILOSOFIA DO MARTELO


Crítica da Metafísica
Crítica sobre o valor da verdade.
Vontade de Poder - Superação da Metafísica.

HEIDEGGER - ONTOLOGIA FUNDAMENTAL


Recolocação da pergunta pelo sentido do Ser.
Analítica existencial e Fenomenologia.

Figura 1 Esquema dos Conceitos-chave do Caderno de Referência de Conteúdo Metafísica II.

Como você pode observar, esse Esquema dá a você, como


dissemos anteriormente, uma visão geral dos conceitos mais im-
portantes deste estudo. Ao segui-lo, você poderá transitar entre

Claretiano - Centro Universitário


36 © Metafísica II

um e outro conceito deste CRC e descobrir o caminho para cons-


truir o seu processo de ensino-aprendizagem. Por exemplo, o Con-
ceito Espírito Absoluto da filosofia hegeliana implica conhecer as
etapas da formação do pensamento do idealismo alemão com Fi-
chte e Schelling e do esforço empreendido por esses filósofos na
superação dos limites impostos ao conhecimento racional que se
dá com Kant e o seu criticismo; sem o domínio conceitual desse
processo explicitado pelo Esquema, pode-se ter uma visão confusa
do tratamento da temática do ensino de Filosofia proposto pelos
autores deste CRC.
O Esquema dos Conceitos-chave é mais um dos recursos de
aprendizagem que vem se somar àqueles disponíveis no ambien-
te virtual, por meio de suas ferramentas interativas, bem como
àqueles relacionados às atividades didático-pedagógicas realiza-
das presencialmente no polo. Lembre-se de que você, aluno EaD,
deve valer-se da sua autonomia na construção de seu próprio co-
nhecimento.

Questões Autoavaliativas
No final de cada unidade, você encontrará algumas questões
autoavaliativas sobre os conteúdos ali tratados, as quais podem ser
de múltipla escolha, abertas objetivas ou abertas dissertativas.
Responder, discutir e comentar essas questões, bem como re-
lacioná-las com a prática do ensino de Filosofia pode ser uma forma
de você avaliar o seu conhecimento. Assim, mediante a resolução de
questões pertinentes ao assunto tratado, você estará se preparando
para a avaliação final, que será dissertativa. Além disso, essa é uma
maneira privilegiada de você testar seus conhecimentos e adquirir
uma formação sólida para a sua prática profissional.
Você encontrará, ainda, no final de cada unidade, um gabari-
to, que lhe permitirá conferir as suas respostas sobre as questões
autoavaliativas de múltipla escolha.
© Caderno de Referência de Conteúdo 37

As questões de múltipla escolha são as que têm como respos-


ta apenas uma alternativa correta. Por sua vez, entendem-se por
questões abertas objetivas as que se referem aos conteúdos
matemáticos ou àqueles que exigem uma resposta determinada,
inalterada. Já as questões abertas dissertativas obtêm por res-
posta uma interpretação pessoal sobre o tema tratado; por isso,
normalmente, não há nada relacionado a elas no item Gabarito.
Você pode comentar suas respostas com o seu tutor ou com seus
colegas de turma.

Bibliografia Básica
É fundamental que você use a Bibliografia Básica em seus
estudos, mas não se prenda só a ela. Consulte, também, as biblio-
grafias complementares.

Figuras (ilustrações, quadros...)


Neste material instrucional, as ilustrações fazem parte inte-
grante dos conteúdos, ou seja, elas não são meramente ilustra-
tivas, pois esquematizam e resumem conteúdos explicitados no
texto. Não deixe de observar a relação dessas figuras com os con-
teúdos do CRC, pois relacionar aquilo que está no campo visual
com o conceitual faz parte de uma boa formação intelectual.

Dicas (motivacionais)
O estudo deste CRC convida você a olhar, de forma mais apu-
rada, a Educação como processo de emancipação do ser humano.
É importante que você se atente às explicações teóricas, práticas
e científicas que estão presentes nos meios de comunicação, bem
como partilhe suas descobertas com seus colegas, pois, ao com-
partilhar com outras pessoas aquilo que você observa, permite-se
descobrir algo que ainda não se conhece, aprendendo a ver e a
notar o que não havia sido percebido antes. Observar é, portanto,
uma capacidade que nos impele à maturidade.

Claretiano - Centro Universitário


38 © Metafísica II

Você, como aluno do curso de Graduação na modalidade


EaD, necessita de uma formação conceitual sólida e consistente.
Para isso, você contará com a ajuda do tutor a distância, do tutor
presencial e, sobretudo, da interação com seus colegas. Sugeri-
mos, pois, que organize bem o seu tempo e realize as atividades
nas datas estipuladas.
É importante, ainda, que você anote as suas reflexões em
seu caderno ou no Bloco de Anotações, pois, no futuro, elas pode-
rão ser utilizadas na elaboração de sua monografia ou de produ-
ções científicas.
Leia os livros da bibliografia indicada, para que você amplie
seus horizontes teóricos. Coteje-os com o material didático, discuta
a unidade com seus colegas e com o tutor e assista às videoaulas.
No final de cada unidade, você encontrará algumas questões
autoavaliativas, que são importantes para a sua análise sobre os
conteúdos desenvolvidos e para saber se estes foram significativos
para sua formação. Indague, reflita, conteste e construa resenhas,
pois esses procedimentos serão importantes para o seu amadure-
cimento intelectual.
Lembre-se de que o segredo do sucesso em um curso na
modalidade a distância é participar, ou seja, interagir, procurando
sempre cooperar e colaborar com seus colegas e tutores.
Caso precise de auxílio sobre algum assunto relacionado a
este CRC, entre em contato com seu tutor. Ele estará pronto para
ajudar você.
EAD
Kant e os Problemas
da Metafísica

1
[...] as obras de Kant [...] elas mesmas louvarão seu mestre e, mes-
mo que talvez não vivam em letra, com certeza viverão para sem-
pre em espírito sobre a face da terra (Arthur Schopenhauer, Crítica
da filosofia kantiana, p. 524).

1. OBJETIVOS
• Conhecer os principais aspectos do pensamento de Im-
manuel Kant no que diz respeito à metafísica.
• Analisar as partes principais da Crítica da razão pura.
• Avaliar as consequências da revolução copernicana no que
diz respeito à questão do transcendentalismo kantiano –
as possibilidades da metafísica como ciência rigorosa.

2. CONTEÚDOS
• Juízos sintéticos a priori, sintéticos a posteriori e analíti-
cos a priori.
40 © Metafísica II

• As possibilidades da metafísica como ciência rigorosa.


• Estética transcendental.
• Lógica transcendental.
• Analítica transcendental.

3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE


Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que
você leia as orientações a seguir:
1) Não deixe nenhuma dúvida pendente no estudo desta
unidade, pois ela é fundamental para que você compre-
enda o desenvolvimento da metafísica que será arrolado
nas próximas unidades.
2) Para melhor compreender os temas aqui tratados, reco-
mendamos que você leia a Crítica da razão pura, obra
principal de Immanuel Kant. Uma boa leitura de uma
obra filosófica tem como prerrogativa a leitura dos co-
mentários feitos a ela; nesse sentido, recomendamos
a leitura da obra Compreender Kant, de Georges Pascal
(ver Tópico 12. Referências Bibliográficas).
3) Se bem utilizada, a internet pode ser uma ferramenta
útil para suas pesquisas. Utilize um site de busca e pro-
cure vídeos ou artigos de professores ou especialistas
que tratem de Kant. Indicamos os vídeos: La aventura
del pensamiento Immanuel Kant, PARTE I, II e III e Filoso-
fia aqui y ahora, Kant cap. 5, PARTE I, II e III.

4. INTRODUÇÃO À UNIDADE
De Platão a Kant, a figura da metafísica desenvolve-se relativa-
mente sem grandes abalos ou impactos, o que quer dizer que a cisão
metafísica entre o físico e aquilo que vai para além do físico se man-
tém intacta. A grande ruptura acontece com Kant e a sua filosofia crí-
tica. Justamente por isso, para a compreensão integral do destino da
metafísica a partir de Kant, torna-se necessária uma análise pormeno-
© U1 - Kant e os Problemas da Metafísica 41

rizada da sua filosofia e as implicações que dela derivam, eis o objeti-


vo que esperamos que você alcance com o estudo desta unidade.

5. CRÍTICA DA RAZÃO PURA


A Crítica da razão pura é a obra funda-
mental de Kant na qual se revela claramente a
sua proposta crítica aos desenfreados anseios
metafísicos da tradição inaugurada desde a
época de Platão e Aristóteles. A questão fun-
damental com a qual se abre a especulação
crítica é: como é possível a metafísica como
ciência rigorosa? Figura 1 Immanuel Kant

Segundo Kant, é só do poder da Razão Pura responder a essa


questão; com efeito, somente ela pode decidir sobre a possibilida-
de ou não da metafísica como ciência rigorosa. A época anterior a
Kant, apesar de ser dilacerada pelo antagonismo entre empiristas
e racionalistas, revela um objetivo comum – a transformação da
filosofia numa ciência rigorosa, objetivo ao qual aderem tanto os
racionalistas como também os empiristas. Todavia, como mostra
Kant, os resultados dessa tendência comum mostram-se demasia-
do infrutíferos e sem qualquer avanço considerável.

Avaliação crítica da metafísica


Somente a proposta crítica, segundo Kant, pode resolver essa
questão embaralhada e dar a ela um amparo legítimo. A palavra
"crítica", tal como é entendida por Kant, vale observar, não possui
uma conotação essencialmente negativa, pois o seu objetivo con-
siste em colocar claras distinções entre o conhecimento puro, com
efeito, aquilo que pertence unicamente à razão, e o conhecimento
científico, isto é, aquilo que se origina da experiência. Com essa
distinção, Kant descreve os limites da Razão Pura e seu uso legíti-
mo que, por sua vez, assegura a legitimidade do conhecimento.

Claretiano - Centro Universitário


42 © Metafísica II

Como você viu, a questão fundamental diante da razão, tal


como é exposta na Crítica, é sobre a possibilidade da metafísica
como ciência rigorosa. Para tal fim, inicialmente, o filósofo é obri-
gado a esclarecer os termos principais da pergunta, a saber: o que
é metafísica e o que é ciência rigorosa? Só de posse do esclare-
cimento do que é metafísica e do que é ciência rigorosa é que
teremos margem para a solução do problema: de se a metafísica é
possível como ciência rigorosa.
Começaremos então com a pergunta: o que é metafísica?
A metafísica, tal como é compreendida pela tradição, a partir
da definição aristotélica, é a ciência superior que se ocupa com as
primeiras causas e razões, entre as quais cabe destaque: Deus, a
alma e o mundo. "A ciência, porém, cujo objetivo último está diri-
gido com todo o seu aparato à solução desses problemas, [segun-
do Kant], denomina-se metafísica" (KANT, 1973, p. 25).
A metafísica, assim entendida, apesar de ser negada como
ciência rigorosa por Kant, como veremos mais adiante, revela-se
como sendo disposição natural do sujeito humano e como hori-
zonte conceitual e critério norteador de toda experiência. Sem tais
ideias metafísicas da razão, que exercem uma função regulativa,
nenhuma experiência humana é pensável, uma vez que, como fins
últimos, toda experiência remonta a elas.
Formalmente, Kant concebe a metafísica como a ciência
pura da razão que vai para além de qualquer conteúdo empíri-
co, utilizando-se para tal fim de conceitos. O âmbito próprio da
metafísica, portanto, é definido por três áreas: teologia (ciência
de Deus), psicologia (ciência da alma) e cosmologia (ciência do
mundo). Essas áreas do conhecimento puro da razão constitui a
chamada Metafísica Especialis.
Além dessa metafísica, por assim dizer, especial, Kant distingui
outra metafísica – a Metafísica Generalis, que compreende a onto-
logia e a gnosiologia. Esta metafísica trata de abstrair os primeiros
princípios e as leis gerais absolutamente válidas de todos os obje-
© U1 - Kant e os Problemas da Metafísica 43

tos possíveis. Constitui uma investigação formal sobre os princípios,


por meio de um puro, isento de qualquer conteúdo empírico, pen-
samento da razão. A Metafísica Generalis, assim entendida, deve
postular se a Metafísica Especialis em suas três versões, a saber:
teologia, psicologia e cosmologia, são possíveis como ciência.
Resta, agora, analisar qual a concepção kantiana de ciência.
Com efeito, o que é ciência rigorosa?

Fundamentos da ciência rigorosa


Na época de Kant, duas ciências destacam-se com seu cará-
ter rigoroso que Kant toma como modelos, a saber: a matemática
euclidiana e a física newtoniana. O caráter rigoroso dessas ciências,
segundo o filósofo, deriva dos seus juízos universalmente válidos
e necessários, ou seja, do seu caráter apodítico. Portanto, toman-
do como referência tais ciências, Kant julga que se a Metafísica
Especialis pretende ser uma ciência rigorosa, ela deve fornecer,
tal como a matemática e a física, conhecimentos novos de caráter
apodítico. Em outras palavras, ela deve ampliar o conhecimento à
base de uma apoditicidade rigorosa.
Mas a questão com a qual Kant se depara é: como são possí-
veis tais juízos, que ampliam o conhecimento e atribuem a ele ca-
ráter apodítico? Com essa pergunta, Kant dirige uma crítica tanto
aos racionalistas como aos empiristas.
O teor da crítica consiste no fato de que os racionalistas, en-
fatizando os juízos analíticos a priori que são de ordem apodítica,
negligenciaram a ampliação do conhecimento, conforme exige o
modelo da ciência rigorosa e os empiristas, inversamente, enfati-
zando os juízos sintéticos a posteriori que ampliam o conhecimen-
to, negligenciaram o seu caráter apodítico. Ao que parece, ambas
as vertentes contêm uma das exigências, mas carecem da outra
para a constituição da filosofia como ciência rigorosa.
Essa observação, Kant atesta ainda na introdução da sua Crí-
tica...:

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44 © Metafísica II

[...] ou o predicado B pertence ao sujeito A como algo contido


(ocultamente) neste conceito A; ou B jaz completamente fora do
conceito A, embora esteja em conexão com ele. No primeiro caso
denomino o juízo analítico, no outro sintético [...]. Os primeiros
poderiam também denominar-se juízos de explicação e os outros
juízos de extensão (KANT, 1973, p. 27).

A partir dessa crítica, Kant rejeita ambos os tipos de juízos,


afirmando que o conhecimento científico não se funda nem nos
juízos analíticos a priori, nem nos sintéticos a posteriori, pois os
juízos analíticos são explicativos, eles revelam o que já se sabe im-
plicitamente e, portanto, não ampliam o conhecimento. A falta de
ampliação do conhecimento, segundo Kant, não pode legitimar a
metafísica como ciência rigorosa e, portanto, as suas áreas de in-
vestigação (Deus, Alma e Mundo). Com isso ele rejeita a posição
metodológica do racionalismo.
Em contrapartida, os juízos sintéticos, devido ao seu caráter
contingente, não são capazes, segundo o filósofo, de assegurar a
devida apoditicidade requerida das ciências rigorosas, e, apesar de
ampliarem o conhecimento, tais juízos também fracassam em sua
tendência de fundamentar uma ciência rigorosa.
Apenas juízos sintéticos a priori são capazes de atender à
exigência de uma ciência rigorosa, por estes ampliarem o conhe-
cimento a atribuírem a ele um caráter apodítico. Kant demonstra
com muitos exemplos que justamente esses tipos de juízos funda-
mentam as posições da matemática euclidiana e da física newto-
niana. Até mesmo uma simples proposição da aritmética, tal como
5 + 7 = 12 – afirma Kant – é um juízo sintético a priori, pois o nú-
mero 12 não se encontra nem no 5 nem no 7, mas está entendido
na sua validade geral necessária, não de modo a posteriori, mas a
priori. Os mesmos juízos são válidos também na física. Assim, por
exemplo, o enunciado "Em toda mudança no mundo corpóreo a
quantidade da matéria permanece a mesma" revela o caráter sin-
tético a priori do enunciado.
Dessa análise, podemos sintetizar:
© U1 - Kant e os Problemas da Metafísica 45

1) Juízo analítico a priori: é universal (válido em todos os


casos), mas não amplia o conhecimento (o predicado
está contido no sujeito). Exemplo: "todo corpo é exten-
so". Note que o predicado da oração (extensão) está
contido no próprio sujeito (corpo), o que garante a uni-
versalidade da proposição, mas não acrescenta nada ao
sujeito, portanto, não amplia o conhecimento.
2) Juízo sintético a posteriori: é particular (válido apenas
nos casos particulares), mas amplia o conhecimento
(o predicado não está contido no sujeito). Exemplo: "a
maça é verde". Note que o predicado (verde) não está
contido no sujeito (a maçã) de forma antecipada, o que
limita a proposição aos casos particulares (apenas esta
maçã). Algo é acrescentado ao sujeito (maça + verde =
maça verde) e, portanto, amplia o conhecimento.
3) Juízo sintético a priori: é universal (válido em todos os casos)
e amplia o conhecimento (o predicado não está contido no
sujeito). Exemplo: "Vm (velocidade média) = ∆s (distância) /
∆t (tempo)". Supomos que a distância (∆s) entre duas cidades
seja de 100 km e que um carro vai de uma cidade à outra em
duas horas (∆t). Caso eu queira saber qual será a velocida-
de média (Vm) que o carro levará para fazer o percurso é só
dividir 100 por 2, então, temos que a velocidade média do
veículo no percurso foi de 50 km/h. Note que a fórmula é uni-
versal (pode ser aplicada a todos os casos) e que ela amplia
o conhecimento (antes sabíamos a distância percorrida e o
tempo gasto, agora sabemos também a velocidade média).
Assim, temos a seguinte tabela:
Tabela 1 Quadro comparativo dos juízos
Juízo Universal? Amplia o conhecimento?
Analítico a priori Sim Não
Sintético a posteriori Não Sim
Sintético a priori Sim Sim

Se os juízos sintéticos a priori legitimam as ciências rigoro-


sas, então, a metafísica, caso queira ser uma ciência rigorosa deve
constituir-se sobre tais juízos. Mas seria possível desenvolver uma
metafísica nesta condição?

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46 © Metafísica II

6. A PERGUNTA TRANSCENDENTAL
Encontrando, a partir dos juízos sintéticos a priori, um cri-
tério firme para definir o que é ciência rigorosa, Kant parte para a
fundamentação de tais juízos no âmbito especulativo. É aí que en-
tra a originalidade da concepção transcendental. A questão trans-
cendental ocupa um lugar privilegiado no projeto crítico de Kant,
na medida em que deve esclarecer: o que, num juízo sintético, é a
priori e o que, em geral, é a priori?
Esta pergunta, a partir de Kant, foi formulada como pergunta
transcendental. Para entendermos esta pergunta, inicialmente te-
mos que esclarecer a noção de transcendental. Na Crítica da razão
pura, o filósofo define a noção de transcendental:
Denomino transcendental todo conhecimento que em geral se ocu-
pa não tanto com objetos, mas com o nosso modo de conhecimen-
to de objetos, na medida em que ele deva ser possível a priori. Um
sistema de tais conceitos denominar-se-ia filosofia transcendental
(KANT, 1973, p. 33).

Você compreendeu bem o que Kant quer dizer com o termo


transcendental? Obviamente, a noção de transcendental descarta
qualquer conhecimento que se refere aos objetos da experiência.
Vale notar que Kant toma a noção de transcendental empresta-
da da metafísica tradicional, que compreende sob essa noção as deter-
minações transcendentais (proprietates transcendentales) do Ser, tais
como unidade, bondade, verdade, etc., que são a priori relacionadas
ao ser. Kant aceita essa noção enquanto ela se refere às condições a
priori de todo objeto do conhecimento. Todavia, ele não compreende
a necessidade a priori como sendo objetiva e ontológica (que se funda
ao ser do existente), mas como necessidade subjetiva e lógica (que se
funda ao modo de conhecimento do sujeito). E aqui Kant distingue
claramente a noção de transcendente da noção de transcendental.
Transcendente refere-se às noções que ultrapassam a experiên-
cia. Transcendental, ao contrário, refere-se ao conhecimento a priori das
condições subjetivas que antecedem a experiência, e a tornam possível.
© U1 - Kant e os Problemas da Metafísica 47

Como a fórmula física do cálculo da velocidade média é a priori


(universal) e apodítica independe da experiência, entretanto, ela
fundamenta a experiência de tal modo que qualquer experiência
possível está condicionada por ela. Portanto, posso utilizá-la para
calcular a velocidade média de qualquer veículo possível.

A revolução copernicana
Com isso, a pergunta transcendental remete ao sujeito, ou
seja, analisa a estrutura cognitiva do sujeito humano que, confor-
me a noção de transcendental, antecede o conhecimento e o torna
possível. Nesse sentido, esclarece Kant na Crítica..., o conhecimen-
to não se origina apenas da posição passiva (percepção) do sujeito
diante do objeto, mas também de uma função ativa por parte do
sujeito para a constituição do objeto. Isso requer que a explicação
sobre o objeto deve partir do sujeito – a posição que inverte a rela-
ção cognitiva entre o sujeito e o objeto. Agora, não é o objeto que
determina o sujeito, mas o contrário: é o sujeito que determina o
objeto. Essa ruptura com a visão representacionista entra em vigor
a partir da Revolução Copernicana:
Até agora [afirma Kant] se supôs que todo nosso conhecimento de-
veria regular-se pelos objetos; porém todas as tentativas de estabe-
lecer algo a priori sobre ele através de conceitos, por meio dos quais
o nosso conhecimento seria ampliado, fracassaram sob essa pressu-
posição. Por isso, tente-se ver uma vez se não progredimos melhor
nas tarefas da metafísica admitindo que os objetos devam regular-se
pelo nosso conhecimento, o que concorda melhor com a desejada
possibilidade de um conhecimento a priori deles, o qual deve estabe-
lecer algo sobre os objetos antes de eles nos serem dados. O mesmo
aconteceu com os primeiros pensamentos de Copérnico, que, depois
de não ter conseguido ir adiante com a explicação dos movimentos
celestes ao admitir que todo o corpo de astros girava em torno do
espectador, tentou ver se não seria melhor deixar que o espectador
se movesse em torno dos astros imóveis (1973, p. 12).

O que significa essa virada do pensamento e quais as suas


implicações no âmbito especulativo? Evidentemente, a revolução
operada por Kant recusa que o sujeito se regula pelo objeto, ela

Claretiano - Centro Universitário


48 © Metafísica II

estabelece justamente o contrário, que o objeto se regula pelo su-


jeito. Assim, segundo Kant, é possível estabelecer algo sobre os
objetos antes de serem nos dados, ou seja, é possível que se esta-
beleça algo a priori sobre eles e, portanto, algo apodítico (lembra-
se da fórmula para calcular o tempo?).
Todavia, o sujeito, sendo um sujeito humano, portanto fini-
to, que não produz seu objeto como Deus, mas o percebe como
algo contraposto (Gegen-stand), não é capaz de um conhecimento
absoluto, ou seja, o sujeito humano não conhece o objeto como
ele é em si mesmo, como coisa em si, mas apenas como ele se
manifesta, aparece, ou seja, como fenômeno.
Como sujeito finito, o homem jamais poderá romper os li-
mites do fenômeno e conhecer o objeto, assim como aparece no
conhecimento arquetípico de Deus, em seu ser absoluto, como
coisa em si. Justamente por isso, Kant aprisiona o conhecimento
humano no campo do fenômeno, assim como este aparece, mas
não como ele é.
O conhecimento humano é finito e receptivo, portanto exi-
ge que o objeto lhe seja dado. O conhecimento receptivo é, para
Kant, intuição, isto é, a faculdade de sermos afetados por algo de
fora, pelo objeto, por exemplo. Essa faculdade, portanto, é a sen-
sibilidade. Segundo Kant, a intuição nunca poderá ser outra, senão
sensível, uma vez que, para o sujeito intuir, isto é, ser afetado, ne-
cessita de um afetante que venha de fora (o objeto).
A faculdade de pensar um objeto dado pela intuição é o en-
tendimento. Sem a intuição nenhum objeto poderá ser dado, sem
o entendimento nenhum objeto poderá ser pensado. Nesse senti-
do, Kant precisa:
O nosso conhecimento surge de duas fontes principais do ânimo, das
quais a primeira consiste na capacidade de receber as representa-
ções (a receptividade das impressões), e a segunda no poder de co-
nhecer um objeto por meio dessas representações (espontaneidade
dos conceitos). Pela primeira um objeto nos é dado, pela segunda
ele é pensado [...]. Pensamentos sem conteúdo são vazios, intuições
sem conceitos são cegas (KANT, 1973, p. 57, grifo nosso).
© U1 - Kant e os Problemas da Metafísica 49

É somente a partir da síntese da intuição e do entendimento


que o conhecimento brota.
Mas, se o conhecimento brota desta síntese, então, segue-
se que ele é limitado no campo da experiência possível, embora
duplamente limitado. Com efeito, por um lado ele é limitado na es-
fera da experiência que jamais poderá ser ultrapassada; por outro
lado, na sua validade fenomênica, uma vez que o conhecimento,
por ser limitado, nunca acessa a coisa em si.
A seguir, faremos uma análise sobre essa dupla faculdade de
conhecer, a saber, a intuição sensível e o entendimento.

7. ESTÉTICA TRANSCENDENTAL
Referente à descoberta das condições formais do sujeito hu-
mano que, conforme a sua natureza transcendental, antecedem
o conhecimento humano e o tornam possível, Kant serve-se do
método redutivo transcendental. Esse método toma como pon-
to de partida o fato (o objeto empiricamente dado) e remonta às
suas condições formais, com outras palavras, retorna àquilo que o
torna possível...
Este procedimento norteia-se pelo princípio de que todo co-
nhecimento é síntese do múltiplo. O múltiplo, segundo a copreen-
são kantiana, é o material desordenado das impressões sensíveis
que os nossos sentidos fornecem em seu contato com a realidade
externa. Esse material desordenado é levado à unidade, consti-
tuindo a integralidade do objeto, por meio da função sintética da
intuição sensível pura. Trata-se, grosso modo, de ordenar o múl-
tiplo resultante das impressões em certas relações, uma vez que
toda síntese do múltiplo pressupõe um princípio a priori por meio
do qual resulta a unificação do múltiplo.
Justamente por isso, todo ato cognitivo deve ser determina-
do por formas a priori que, na realidade, exercem função sintética
e unificadora. Essa função é válida tanto para a intuição sensível

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50 © Metafísica II

pura, como também para as categorias do entendimento que pos-


sibilitam a realização da síntese entre intuição e pensamento das
quais resulta o objeto do conhecimento.
A análise referente às condições formais da sensibilidade
pura, Kant trata na primeira parte da sua Crítica... intitulada Estética
Transcendental. Nessa análise, o filósofo deve dar solução para a
seguinte indagação: que tipo de condições formais de sensibilidade
o sujeito deve possuir para que um objeto empírico esteja dado? A
resposta a essa questão só pode advir quando o objeto é reduzido,
de modo transcendental, à sua possibilidade. Essa redução ocorre
quando o objeto é considerado independente do seu modo empíri-
co, e também independente de qualquer conceito formal produzido
pelo entendimento. Toma-se apenas em geral como um objeto da
intuição sensível. Mas o que ele apresenta como tal?
As formas da sensibilidade pura, Kant descobre nas noções
de espaço e tempo. O espaço é definido por Kant como sendo o
sentido externo, enquanto o tempo o sentido interno. O conteúdo
do sentido externo, ou seja, todos os objetos percebidos exter-
namente encontram-se no espaço como situados uns ao lado de
outros. Todos eles, sempre e necessariamente, encontram-se sob
a forma do espaço. Todavia, segundo Kant, a noção de espaço não
resulta de abstração de conceitos, mas é uma condição a priori de
uma percepção empírica. Portanto, a intuição pura de espaço que
antecede a experiência é a forma pura, isto é, isenta de conteúdo,
da sensibilidade externa.
O tempo, por sua vez, é a forma pura dos conteúdos internos,
ou seja, de todos os eventos que acontecem no tempo e sucedem
uns depois de outros. A representação pura e, portanto, não empí-
rica do tempo é a condição a priori não apenas do sentido interno,
mas também do sentido externo. Com outras palavras, a forma
pura do tempo assume um papel fundamental para a constituição
da intuição sensível, uma vez que tanto os acontecimentos exter-
nos, como também os internos decorrerem no tempo. Em contra-
© U1 - Kant e os Problemas da Metafísica 51

partida, os eventos internos não ocorrem no espaço. Justamente


por isso, Kant atribui ao tempo um papel mais importante entre as
condições formais da sensibilidade pura.
Todavia, como condições formais do sujeito humano, o es-
paço e o tempo possuem uma validade subjetiva, uma vez que o
sujeito transcendental é um sujeito finito. É interessante lembrar
que embora os fenômenos sejam determinados de maneira espa-
ço-temporal, as coisas-em-si-mesmas jamais são. Como são em-si
tais coisas para nós permanecem um x totalmente indefinidas.

8. LÓGICA TRANSCENDENTAL
Vimos que a intuição sensível configura a faculdade pura de
sermos afetados pelos objetos à base do espaço e do tempo. Mas
o conhecimento, no sentido forte da palavra, surge da união entre
a intuição sensível e o entendimento, pois, como Kant nota:

"Pensamentos sem conteúdo são vazios, intui-


ções sem conceitos são cegas" (1973, p. 57).
Essa frase mostra que o conteúdo fornecido pela sensibili-
dade deve ser submetido ao entendimento para se obter o conhe-
cimento propriamente dito, uma vez que há uma clara diferença
entre conhecer e pensar.
O pensar só revela a faculdade formal de entendimento. Mas
sem o conteúdo esse pensar permanece vazio, apenas como uma facul-
dade. Justamente por isso, o conhecimento brota dessa dupla fonte: da
sensibilidade que fornece o conteúdo e do pensamento que pensa este
conteúdo. A análise referente ao entendimento será tratada por Kant
na segunda parte da Crítica, na seção intitulada Lógica Transcendental,
e mais exatamente na parte dedicada à Analítica Transcendental.
A Analítica Transcendental, portanto, refere-se ao processo
de decomposição e análise dos componentes do entendimento.
Esta parte será dividida em dois livros como segue:

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52 © Metafísica II

• Analítica dos conceitos, em que se ocupa dos conceitos


do entendimento;
• Analítica transcendental, em que analisa os princípios do
entendimento, mais especificamente o esquematismo e
as sínteses em geral.
Todo conhecimento é síntese do múltiplo. A intuição sensível
é uma síntese do múltiplo oferecido pelas impressões sob as formas
puras do espaço e do tempo. Ainda mais, a síntese é o entendimen-
to que deve levar à unidade do objeto da intuição e produzir o con-
ceito. No entendimento, a função sintética cabe às categorias.
Aqui novamente se pressupõe que o conteúdo da experiência
não é dado e não se encontra a priori nenhuma síntese ou unidade. A
síntese deve ser produzida puramente a priori a partir das categorias.
Uma vez que a síntese do entendimento se realiza por con-
ceitos, o filósofo deriva as categorias das formas do juízo. Assim,
ele divide os juízos em quatro grupos:
Tabela 2 Tabela dos Juízos.
Juízos de Quantidade Gerais, Particulares e Singulares.
Juízos de Qualidade Afirmativos, Negativos, Infinitos.
Juízos de Relação Categóricos, Hipotéticos, Disjuntivos.
Juízos de Modalidade Problemáticos, Assertórios, Apodíticos.

Das funções dos juízos, Kant deriva as categorias. De acordo


com os quatro grupos dos juízos, originam-se também quatro gru-
pos de categorias:
Tabela 3 Tabela das Categorias.

De Quantidade Unidade, Pluralidade e Totalidade.


De Qualidade Realidade, Negação e Limitação.
Inerência e Subsistência, Causalidade e Dependência,
De Relação
Comunidade.
Possibilidade e Impossibilidade, Existência e não ser,
De Modalidade
Necessidade e Contingência.
© U1 - Kant e os Problemas da Metafísica 53

Vale observar que as categorias, como se pode notar, se di-


ferem completamente das ideias inatas de Descartes e, portanto,
de modo algum podem ser assemelhadas. Para Kant, as categorias
são isentas de qualquer conteúdo e possuem um sentido pura-
mente formal. Nesse sentido, elas são apenas condições formais
do sujeito, a partir das quais se produzem, enquanto aplicadas ao
conteúdo da intuição sensível, os conceitos. As categorias, portan-
to, não são formas inatas do pensamento, mas se produzem pelo
juízo espontaneamente, quando este deve transformar o conteú-
do da intuição em conceitos:
A síntese de um múltiplo produz [...] antes de tudo um conhecimento
[...]. Levar essa síntese a conceitos é, todavia, uma função que cabe
ao entendimento e pela qual ele nos proporciona pela primeira vez o
conhecimento em sentido próprio (KANT, 1973, p. 70).

Apesar de as categorias de entendimento não se originarem


da experiência, elas devem ser válidas para ela. Mas como isso será
possível, uma vez que não derivam da experiência, na qual está o
ponto de comunicação entre as categorias puramente a priori e a
realidade objetiva?

Dedução transcendental
A questão referente à relação entre as categorias e a experiên-
cia é colocada por Kant na seção sobre dedução transcendental. O
filósofo toma emprestada a palavra "dedução" da terminologia jurí-
dica. A demonstração não de um fato (quid facti), mas de um direito
(quid júris) se denomina dedução (aqui, o vocábulo "direito" deve ser
entendido em termos de base, fundamento, origem ou condição).
No caso de Kant, a pergunta norteia-se pela competência ou
legitimidade das categorias puras do juízo:
[...] denomino dedução transcendental a explicação da maneira
como conceitos a priori podem relacionar-se com objetos, e distin-
go-a da dedução empírica, que indica a maneira como um conceito
foi adquirido mediante experiência e reflexão sobre a mesma, e diz
respeito, portanto, não a legitimidade, mas ao fato pela qual a pos-
se surgiu (KANT, 1973, p. 76).

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54 © Metafísica II

Há conceitos empíricos resultantes da experiência. Tais con-


ceitos pressupõem outros conceitos puros que, todavia, não deri-
vam da experiência, pois a experiência mesma, sendo uma síntese
da intuição e do entendimento, é possível somente por meio de
conceitos puros do juízo. Segundo Kant, apenas em casos que haja
conceitos puros do juízo será possível o conhecimento, uma vez
que, para o filósofo:
Não podemos pensar nenhum objeto senão mediante categorias;
não podemos conhecer nenhum objeto pensado senão median-
te intuições, que correspondam àqueles conceitos. Ora, todas as
nossas intuições são sensíveis, e tal conhecimento, enquanto o
seu objeto é dado, é empírico. O conhecimento empírico, porém,
é experiência. Conseqüentemente, a nós não é possível nenhum
conhecimento a priori senão unicamente com respeito a objetos da
experiência possível (1973, p. 96).

Aqui, Kant debruça-se com uma dificuldade anteriormente


citada, a saber: como as categorias puras do juízo, que não provêm
da experiência, podem ser válidas para ela?

Esquematismo Transcendental
A resposta para a questão anterior Kant encontra a partir da
noção do Esquematismo Transcendental, que deve explicar como
é possível uma síntese a priori puramente isenta de conteúdo em-
pírico entre a intuição pura e o entendimento puro e que pudesse
servir como condição e fundamento do conhecimento empírico,
pois a síntese empírica só é possível a partir de uma síntese pura
que a antecede e a torna possível, conforme exige a noção de
transcendental.
O pensamento puro e a intuição pura são duas faculdades for-
mais bem distintas uma da outra. A primeira caracteriza-se pela sua
espontaneidade e a segunda, pela receptividade. Torna-se impres-
cindível, portanto, a inclusão de uma faculdade intermediária que
possa vincular ambas. Tal faculdade mediadora Kant encontra na fa-
culdade transcendental de imaginação. Ela deve vincular as catego-
rias puras do entendimento com a forma pura do tempo, realizando
© U1 - Kant e os Problemas da Metafísica 55

assim temporalização das categorias que se compreende pela noção


de esquema transcendental. A esse respeito, Kant afirma:
Então é claro que deveria haver um terceiro elemento que deve
estar em igualdade, por um lado, com a categoria e, por outro, com
o fenômeno e torna possível a aplicação daquela a este. Essa repre-
sentação mediadora deve ser pura (sem qualquer elemento em-
pírico): por um lado, porém, intelectual; por outro, sensível. Uma
representação desse tipo é um esquema transcendental (1976, p.
197, tradução nossa).

De acordo com a tabela das categorias, o filósofo desenvolve


os esquemas, entre os quais cabe mencionar os seguintes:
• o esquema puro de quantidade é o número;
• o da substância – a permanência real no tempo;
• o da causalidade – o real após o qual segue outro;
• o da comunhão – a existência simultânea.
Tais exemplos mostram que os esquemas fornecem regras a
priori de como algo na intuição se transforma em dado, para ser
definido pelas categorias. Este Esquematismo transcendental for-
nece um esquema ou regra prévia de como algo deve aparecer no
tempo para ser pensado sob as formas das categorias.
Sendo assim, fica claro que todo conhecimento brota da sín-
tese entre as formas heterogêneas do ânimo. Esta síntese, porém,
requer mais uma síntese que seja capaz de atribuir unidade supre-
ma às sínteses supracitadas, e, contudo, deverá ser puramente a
priori. Kant a encontra na noção de apercepção transcendental.

Apercepção Transcendental
A síntese suprema do todo conhecimento Kant encontra no
caráter puramente formal do Eu Penso, chamada por ele de aper-
cepção transcendental. Desde a época de Leibniz, o termo "aper-
cepção" designa a autoconsciência, diferenciando-a da percepção
que revela os atos da consciência. Utilizando-se dessa noção, Kant
considera três funções de "Eu", a saber: Eu Empírico, Eu Transcen-
dental e Eu Metafísico.

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56 © Metafísica II

O Eu Empírico é aquele princípio de apercepção que se ca-


racteriza pela temporalidade e se configura à base da experiên-
cia do sujeito consigo mesmo. E como essa experiência sucede no
tempo, o Eu Empírico é temporal. O papel fundamental do Eu Em-
pírico é de acompanhar todas as nossas experiências, sendo a sín-
tese suprema dessas experiências. Com outras palavras, para que
possamos dizer que tais experiências são nossas e não de outro,
ele (o Eu) deve ser o polo unificador de tais experiências. Em con-
trapartida, o Eu Empírico por ser imerso na experiência que suce-
de no tempo, obviamente, ele não constitui o fundamento último
da unidade da apercepção e, portanto, pressupõe uma unidade
anterior que o torna possível. Trata-se do Eu Transcendental.
O Eu Transcendental é o puro Eu Penso que antecede qual-
quer experiência possível, sendo a síntese suprema e a condição
necessária de todo conhecimento. Se o conhecimento em geral é
uma síntese da diversidade, esta síntese pressupõe como condi-
ção uma síntese suprema, um polo unificador de todas as sínteses.
Por exemplo, o princípio unificador da sensibilidade pura é o es-
paço e o tempo; o mesmo princípio integrante no entendimento
desempenham as categorias, mas, ainda assim, estes apresentam
um múltiplo que, para ser levado à unidade, requer um princípio
último que se encontra na apercepção transcendental.
Desta se originam as funções sintéticas da intuição e do en-
tendimento, que estão rigorosamente referidas a esta apercepção,
formando assim a unidade da toda experiência.
A apercepção transcendental, pensada em termos de fun-
damento último, não é conhecida imediatamente, mas deduzida.
Visto por esse ângulo, a apercepção transcendental é o fundamen-
to de todo conhecimento, mas não se conhece. Com esse papel de
fundamento último, o Eu transcendental distingui-se daquilo que
Kant denomina de Eu Metafísico. Este, por sua vez, é chamado na
tradição metafísica de alma ou de ânimo e é compreendido como
substância espiritual.
© U1 - Kant e os Problemas da Metafísica 57

O ânimo, desse ponto de vista, é compreendido na filosofia


crítica como ideia da razão pura que pode ser pensada, mas não
conhecida. Com isso, a temática desloca-se para a última parte da
Crítica... que faz referência às ideias puras da razão na Dialética
Transcendental.

9. DIALÉTICA TRANSCENDENTAL
A Dialética Transcendental é a segunda parte da seção sobre
a Lógica Transcendental e ocupa-se, sobretudo, com a análise da
faculdade superior do sujeito, ou seja, a razão pura e a possibilida-
de da Metafísica Especialis.
De acordo com a questão fundamental: como é possível a
metafísica como ciência rigorosa, que encaminhou o projeto crí-
tico, Kant, nas primeiras duas partes, tratou a Metafísica Genera-
lis não enquanto a doutrina do ser, mas enquanto a doutrina dos
princípios do conhecimento. Ela servia para o exame da "meta fi-
nal": a possibilidade da Metafísica Especialis e seus temas princi-
pais – Deus, alma e mundo.
A distinção operada por Kant entre entendimento e razão,
respectivamente entre a Analítica Transcendental e a Dialética
Transcendental remonta às velhas distinções inauguradas desde a
época de Platão e Aristóteles, conforme as quais o entendimento
constitui a faculdade inferior do intelecto e a razão – faculdade
superior, que estende seu conhecimento além da esfera do con-
creto e do finito, ou seja, além daquilo que possa ter referência
na experiência. Vale lembrar aqui que a função do entendimento
na concepção kantiana é referida somente no âmbito da experiên-
cia possível. Em contrapartida, a função da razão é de transcender
essa experiência.
Na seção sobre a Dialética Transcendental, Kant analisa cri-
ticamente os temas principais da Metafísica Especialis. As ideias
da razão, conforme tal análise, envolvem o conhecimento huma-

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58 © Metafísica II

no em antinomias, que em nada contribuem para o conhecimento


rigoroso, mas, pelo contrário, difundem ideias ilusórias com pro-
cedência ilegítima, do ponto de vista do conhecimento científico
rigoroso.
Certamente, conforme os resultados das duas partes ante-
riores da Crítica..., viu-se que o conhecimento humano brota de
duas fontes – a intuição e o entendimento e, portanto, só se refere
ao âmbito da experiência possível, na qual se dá o seu uso legíti-
mo. Enquanto, porém referido a entidades metafísicas, tais como
Deus, alma e mundo, que não possuem referência na experiência
possível, o conhecimento humano nada pode atestar ou compro-
var. A refutação dessas conclusões errôneas e a descoberta das
suas contradições é a tarefa da Dialética Transcendental.
A Dialética Transcendental, portanto, deve enunciar a sen-
tença sobre a Metafísica Especialis e a impossibilidade de se deno-
minar ciência rigorosa. Todavia, ela constitui a disposição natural
absolutamente necessária para qualquer conhecimento possível.
O problema é que, quando deixada a si mesma, de acordo com
Kant, a razão gera conclusões infundadas, justamente por que as
suas ideias não se referem à experiência, mas a transcendem.
Todavia, segundo Kant, as ideias da razão, mesmo não pos-
suindo função constitutiva, tal como as categorias, possuem fun-
ção regulativa, ou seja, servem de horizontes conceituais de toda
experiência, pois não será possível, segundo Kant, que se pense
racionalmente as coisas se não referimos tais pensamentos às di-
mensões metafísicas – Deus, alma e mundo. Essa importante fun-
ção regulativa remete todos os conteúdos da experiência às unida-
des metafísicas supremas:
• a unidade do sujeito pensante (alma);
• a unidade absoluta de todos os objetos e fenômenos do
pensamento (mundo);
• a unidade suprema da possibilidade de tudo (Deus).
© U1 - Kant e os Problemas da Metafísica 59

Essa função regulativa, portanto, cabe à razão e suas ideias.


Mas a razão só pode regular o conhecimento possível, como ho-
rizonte conceitual de tudo, porém sem poder constituir novo co-
nhecimento. Quando a razão confunde a função regulativa com a
função constitutiva, ela entra em antinomias.

As antinomias e os paralogismos da razão pura


As antinomias atestam o uso ilegítimo da razão. Por meio
delas, Kant coloca em evidência as suas ilusões. A esse respeito,
ele afirma:
Uma tese dialética da razão pura deverá, por conseqüência, possuir
algo que a distinga de todas as proposições sofísticas e é o seguinte:
que não se ocupe de uma questão arbitrária, levantada apenas por
capricho, mas de um problema que se depara necessariamente à
razão humana na sua marcha; e, em segundo lugar, que apresente,
como proposição contrária, não uma aparência artificial que logo
desaparece desde que como tal se examina, mas uma aparência
natural e inevitável que, mesmo quando já não engana, continua
ainda a iludir, embora não a enredar, e que, por conseguinte, pode
tornar-se inofensiva sem nunca poder ser erradicada (s/d, p. 389).

As antinomias mostram os inevitáveis paradoxos em que a ra-


zão se enreda, enquanto toma os objetos do mundo como coisas em
si mesmas e não como fenômenos. Diz Kant: "antinomia da razão
pura que consiste em usar idéias transcendentes com o fim de obter
conhecimentos relativos ao mundo" (s/d, p. 389). Esses paradoxos
da razão pura derivam das quatro espécies de categorias, a saber:
1) Quantidade.
2) Qualidade.
3) Relação.
4) Modalidade.
Cabe dizer que as quatro espécies são compostas por tese e
antítese entre as quais a razão é incapaz de decidir.
A antinomia de quantidade postula:
• Tese: "O mundo tem um começo no tempo e é também
limitado no espaço."

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60 © Metafísica II

• Antítese: "O mundo não tem começo nem limites no es-


paço; é infinito tanto no tempo como no espaço."
A antinomia de qualidade postula:
• Tese: "Toda a substância composta, no mundo, é constitu-
ída por partes simples e não existe nada mais que o sim-
ples ou o composto pelo simples."
• Antítese: "Nenhuma coisa composta, no mundo, é consti-
tuída por partes simples, nem no mundo existe nada que
seja simples."
A antinomia de relação postula:
• Tese: "A casualidade segundo as leis da natureza não é
a única de onde podem ser derivados os fenômenos do
mundo no seu conjunto. Há ainda uma casualidade pela
liberdade que é necessário admitir para os explicar."
• Antítese: "Não há liberdade, mas tudo no mundo aconte-
ce unicamente em virtude das leis da natureza."
A antinomia de modalidade postula:
• Tese: "Ao mundo pertence qualquer coisa que, seja como
sua parte, seja como sua causa, é um ser absolutamente
necessário."
• Antítese: "Não há em parte alguma um ser absolutamen-
te necessário, nem no mundo, nem fora do mundo, que
seja a sua causa."
Kant trata as antinomias em dois aspectos – qualitativo e
quantitativo. A ideia do mundo, quantitativamente, representa a
totalidade absoluta da toda experiência possível, que, no entanto,
jamais poderá ser objeto de experiência, porque nós nunca temos
uma referência sensível do mundo na sua totalidade. Nesse senti-
do, o mundo como tal não é objeto da experiência, mas projeção
da razão, cuja importância é apenas regulativa.
Na sua versão qualitativa, a ideia de mundo representa uni-
dade de coisas em si mesmas. Em tal unidade, como sabemos, o
© U1 - Kant e os Problemas da Metafísica 61

mundo é absolutamente incognoscível, visto que a coisa em si não


se encontra no âmbito da experiência possível.
O ideal da razão pura
Com o conceito de Ideal da razão pura, Kant alude à ter-
ceira e mais fundamental ideia da razão – ideia de Deus. Neste
caso, a questão é saber se esse Ser sumamente perfeito possa ser
objeto de uma demonstração ontológica. Analisando as demons-
trações ontológicas tais como as de Anselmo, Descartes, Spinoza
etc., nas quais a existência de Deus é deduzida da sua essência e
submetendo-as a exame crítico, Kant mostra que em todas essas
demonstrações ocorreu uma transposição indébita do lógico para
ontológico, ou seja, do pensamento sobre algo, não se pode dedu-
zir a existência de algo, justamente porque se trata de duas esferas
completamente distintas.
Com esse exame crítico, Kant demonstra definitivamente que
a metafísica, na sua versão especial (psicologia, cosmologia e teolo-
gia), não pode postular o status de ciência rigorosa. Todavia, ela per-
manece como a disposição natural não como objeto de um conheci-
mento teórico, mas como conteúdo indispensável da ação prática.

10. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS


Sugerimos que você procure responder, discutir e comentar as
questões a seguir que tratam da temática desenvolvida nesta unida-
de, ou seja, da proposta de uma filosofia crítica de Immanuel Kant.
A autoavaliação pode ser uma ferramenta importante para
você testar o seu desempenho. Se você encontrar dificuldades em
responder a essas questões, procure revisar os conteúdos estuda-
dos para sanar as suas dúvidas. Esse é o momento ideal para que
você faça uma revisão desta unidade. Lembre-se de que, na Edu-
cação a Distância, a construção do conhecimento ocorre de forma
cooperativa e colaborativa; compartilhe, portanto, as suas desco-
bertas com os seus colegas.

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62 © Metafísica II

Confira, a seguir, as questões propostas para verificar o seu


desempenho no estudo desta unidade:
1) Um dos principais desafios da metafísica, segundo Kant, é alcançar o estatu-
to de ciência rigorosa. Esse foi, segundo o filósofo, o objetivo que norteava
tanto os empiristas como também os racionalistas. Todavia, nenhuma des-
sas correntes conseguiu transformar a filosofia em ciência rigorosa. Mas o
que Kant entendia por ciência rigorosa?
a) A ciência rigorosa é apenas matemática.
b) A ciência rigorosa é aquela que amplia o conhecimento e atribui a ele
caráter apodítico.
c) A ciência rigorosa é aquela que atribui ao conhecimento caráter apodíti-
co e universalmente válido.
d) A ciência rigorosa é apenas a física.
2) Qual o entendimento kantiano de metafísica? Assinale a alternativa correta.
a) A metafísica é ciência pura da razão que vai para além de qualquer con-
teúdo empírico, utilizando-se para tal fim de conceitos.
b) A metafísica é uma disciplina fundamental da filosofia prática.
c) A metafísica é uma disciplina preparatória para o estudo da física.
d) A metafísica é um estudo empírico sobre a estrutura do mundo.
3) Segundo Kant, o conhecimento humano está restrito num campo aparente
(do fenômeno) e, portanto, é incapaz de se elevar ao nível do conhecimento
absoluto (coisa em si). Quais os argumentos de Kant a respeito de tal afirma-
ção? Assinale a alternativa correta.
I – Porque o conhecimento experimental envolve contradição devido ao
seu caráter mutável.
II – Porque o conhecimento humano não pode ir além do campo de uma
experiência possível, que se determina pelo espaço, pelo tempo e pelas
categorias – estes limitando o conhecimento na esfera fenomenal.
III – Porque a razão humana entra em contradições consigo mesma.
IV – Porque o juízo é servo da razão e a razão, por sua vez, se contradiz.
V – Porque o homem é limitado por suas próprias faculdades cognitivas.
a) Apenas I, II e V estão corretas.
b) Apenas II e V estão corretas.
c) Apenas II e III estão corretas.
d) Apenas I e III estão corretas.
4) A Estética Transcendental é o estudo sobre:
a) Intuição pura intelectual.
b) Princípio da razão suficiente.
c) Sensibilidade pura.
d) Sensibilidade intuitiva.
e) Esquematismo transcendental.
© U1 - Kant e os Problemas da Metafísica 63

5) A revolução copernicana operada por Kant indica a possibilidade de:


a) Conhecimento metafísico rigoroso.
b) Juízos sintéticos a posteriori.
c) Juízos analíticos a posteriori.
d) Juízos sintéticos a priori.
e) Juízos hipotéticos.

Gabarito
1) b.
2) a.
3) b.
4) c.
5) d.

11. CONSIDERAÇÕES
Nesta unidade, você teve contato com a crítica kantiana e suas im-
plicações mais importantes na questão de se a metafísica poderia se tor-
nar uma ciência rigorosa. Sua Crítica da razão pura é a obra fundamental
que marca o pensamento filosófico dos séculos 18 e 19. Logo, sua leitura
é fundamental para que você possa acompanhar as discussões que esta
obra irá suscitar nos debates filosóficos da contemporaneidade.
Assim como a compreensão do assunto tratado nesta unida-
de é fundamental para que, nas outras unidades, você possa dis-
cernir claramente de que maneira os filósofos procuraram supe-
rar as teses kantianas sobre a metafísica. Ora partindo do próprio
Kant, ora se opondo radicalmente à Kant, todos os filósofos que
iremos estudar são devedores de Kant em algum sentido.

12. E-REFERÊNCIAS

Lista de figuras
Figura 1 Immanuel Kant. Disponível em: <http://www.cdcc.usp.br/ciencia/artigos/
art_26/sartre.html>. Acesso em: 02 maio 2011.

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13. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


KANT, I. Crítica da razão pura. São Paulo: Abril, 1973. (Os Pensadores)
______. Kritic der reinen Vernunft. Hamburg: Felix Meiner, 1976.
______. Crítica da razão pura. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, s/d.
PASCAL, G. Compreender Kant. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2008. (Série Compreender)
ROVIGHI, S. V. História da filosofia moderna. São Paulo: Loyola, 1999.
SCHOPENHAUER, A. Crítica da filosofia kantiana. In: O mundo como vontade e como
representação. São Paulo: Editora UNESP, 2005.
SCIACCA, M. F. História da filosofia do humanismo a Kant. São Paulo: Mestre Jou, 1968.
EAD
Os Pós-kantianos
e o Retorno da
Metafísica
2
1. OBJETIVOS
• Conhecer os primeiros problemas que a obra de Kant sus-
citou em sua recepção.
• Analisar os primeiros comentários à obra de Kant: prós e
contras.

2. CONTEÚDOS
• Reinhold e as tentativas de unificação sistemática da filo-
sofia de Kant: a tese da consciência.
• Schulze e a crítica cética aos pontos fracos da filosofia de
Kant.

3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE


Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que
você leia a orientação a seguir:
66 © Metafísica II

1) Pode ser interessante conhecer um pouco sobre os pen-


sadores, cujos pensamentos norteiam o estudo deste
CRC. Para saber mais, procure os artigos citados.

Reinhold
Reinhold tentara reformular toda a filosofia crítica a partir de um princípio funda-
mental. Este princípio diz que a consciência é essencialmente um "representar"
de algo, referindo-se sempre a algum objeto através de uma representação. Se-
gundo Reinhold, toda a filosofia kantiana pode ser vista como uma abordagem
acerca das implicações da estrutura representacional da consciência. Como con-
seqüência deste projeto, Reinhold analisa também a autoconsciência como um
caso particular de representação: na autoconsciência, o sujeito representante
representa a si mesmo através de uma representação (KLOTZ, 2010, p. 135).

Schulze
Schulze retoma no Enesidemo a objeção de Jacobi, apontando a petição de princípio
que está no fato de Kant ter admitido, sem provas, a proposição de que todo conhe-
cimento humano começa com a ação de objetos sobre nossos sentidos, sendo que
tais objetos "fornecem a ocasião para que a mente se exteriorize". Para Schulze há
uma contradição entre as premissas e os resultados da Crítica: os resultados da De-
dução transcendental das categorias mostram que as categorias de causa e realida-
de só se aplicam a intuições empíricas. Ora, o objeto que afeta nossa sensibilidade
teria de ser algo diverso e independente dela e, portanto, não se pode aplicar-lhe as
categorias de causa e realidade. Se a dedução estiver correta, um dos mais impor-
tantes princípios da Crítica,"o de que todo o conhecimento começa com a atividade
de objetos sobre nossa mente é incorreto e falso" (CACCIOLA, 2007, p. 138).

4. INTRODUÇÃO À UNIDADE
Certamente, a filosofia crítica de Kant causa fortes impactos
na figura metafísica e na sua tendência de realizar todas as potên-
cias da razão. Surge, portanto, a necessidade de novas propostas
especulativas e tentativas que visam superar os limites diante da
razão colocados por Kant.
Aqui vale perguntarmos: o que torna urgente a superação da
prisão transcendental, por assim dizer, que Kant impôs, ou melhor,
por que afinal é necessária a superação do criticismo kantiano?
É claro que essa resposta não pode partir de uma compreen-
são restrita, mas deve enfocar, sobretudo, quais são os obstáculos
metodológicos que Kant coloca diante da razão, que tradicional-
mente anseia ao Absoluto.
© U2 - Os Pós-kantianos e o Retorno da Metafísica 67

A filosofia crítica de Kant fundamenta-se a partir de duas ca-


racterísticas do sujeito humano, aparentemente inaceitáveis para
a tradição, a saber: o dogmatismo e o a-historicismo do sujeito
transcendental.
Não será difícil de notar que o sujeito kantiano possui um
caráter dogmático, uma vez que a sua estrutura transcendental se
encontra aprisionada nas suas faculdades cognitivas (espaço, tem-
po e as categorias) – o que não lhe permite transcender para além
do campo fenomênico.
O sujeito transcendental, por ser dogmático, é também a-
histórico, ou seja, a história não o afeta e ele não evolui historica-
mente. Disso se pode concluir que o sujeito transcendental não é
sujeito a qualquer transformação, e, portanto, incapaz de descor-
tinar o véu para o Absoluto (as verdades eternas). Nesse sentido, o
anseio para o Absoluto promovido pela metafísica tradicional en-
contra, na filosofia crítica de Kant, obstáculos intransponíveis.
Todavia, vale notar que a restrição kantiana referente à Me-
tafísica Especialis coloca esta em outro patamar que, além de cen-
surar a metafísica tradicional, prepara o solo para uma profunda
transformação no entendimento da relação entre o intelectus e a
res, rompendo, por assim dizer, com o representacionismo ante-
rior a Kant em que vigorava a fórmula de adequitio intelectus et
rem (adequação do intelecto com a coisa).
Os motivos kantianos dessa restrição, vale notar, são bastan-
te compreensíveis. Em prol da liberdade humana que é o funda-
mento da moral e será tratada na Crítica da razão prática, Kant
sacrifica a razão teórica, pois, caso permitisse que o sujeito trans-
cendental pudesse acessar o Absoluto, isto é, conhecer a coisa em
si, isso, automaticamente, negaria a liberdade humana que é o
fundamento da moral. Com outras palavras, a autonomia do outro
consiste justamente no fato de não poder ser conhecido em sua
essência, isto é, como coisa em si. Que autonomia e liberdade te-
ria o homem se ele fosse conhecido em sua essência? Justamente

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68 © Metafísica II

essa é a maior razão que levou Kant a sacrificar o conhecimento


absoluto da Razão Teórica, em prol da liberdade da Razão Prática.
Essa posição liberalista de Kant coloca em incerteza o pro-
blema do conhecimento e impede que o movimento enteléquico
da razão se realizasse integralmente. Essa é a razão pela qual a
necessidade da superação da filosofia crítica de Kant se torna ur-
gente. Uma tarefa que será iniciada pelos filósofos Pós-kantianos e
realizada pelo idealismo alemão.

5. PÓS-KANTIANOS: A RECEPÇÃO DA FILOSOFIA


CRÍTICA DE KANT
A história do pós-kantismo começa com Karl Leonard Reinhold,
responsável pela descoberta da filosofia kantiana e também pela
sua popularização. A partir daí, a filosofia crítica de Kant entrou
na cena como o principal tema da discussão filosófica. Vale notar
que a configuração do idealismo só se torna possível graças a es-
sas discussões que aos poucos contribuíram para a supressão da
"prisão transcendental" imposta por Kant, e para redirecionar o
sujeito humano em direção ao Absoluto.
Se o sujeito transcendental, como você pôde conhecer, mos-
trou-se impróprio para a transformação em termos de formação
(bildung), por ser dogmático e a-histórico, então os idealistas, a
partir da introdução da história e da dialética na especulação fi-
losófica, conseguiram remover os obstáculos metodológicos que
a kantismo impôs. Portanto, com a supressão da estrutura trans-
cendental e com a reinscrição do homem no movimento histórico
e dialético, diante da especulação idealista se abriu margem para
o acesso ao Absoluto.
Todavia, a ruptura com a filosofia crítica de Kant não ocorre
de modo imediato. Como ressaltamos, a partir das discussões acir-
radas em torno da filosofia kantiana, realizadas pelos pós-kantianos
que vão se configurar em dois polos extremos, de plena aceitação
© U2 - Os Pós-kantianos e o Retorno da Metafísica 69

à plena recusa, é que o idealismo vai remover definitivamente os


limites impostos por Kant e retomar o rumo ao saber absoluto.
A seguir, faremos uma breve análise das contribuições de
dois dos grandes nomes do pós-kantismo que deram o ponto de
partida da transição do kantismo ao idealismo. Entretanto, é inte-
ressante notar que o pós-kantismo possui duas posições diame-
tralmente opostas das discussões em torno da filosofia kantiana, a
saber: a de Reinhold e a de Schulze.

Reinhold
A posição de Reinhold referente à filosofia kantiana é bas-
tante favorável; com efeito, dos pós-kantianos, Reinhold é o filóso-
fo que segue quase em pormenores o criticismo. Todavia, ele en-
xergou a possibilidade de fazer algumas pequenas correções que
acarretariam um grande impacto na filosofia posterior.
Segundo Reinhold, a Crítica..., na sua parte teórica, especu-
lava sobre a experiência e na sua parte prática – sobre a moral. Fal-
tava, portanto, um fio condutor, ou princípio unitário que pudesse
vincular as duas partes irreconciliáveis e constituir um sistema uni-
tário do qual tudo possa derivar. Tal princípio Reinhold encontra
na consciência.
Na consciência, nota Reinhold, a representação mostra-se
distinta tanto do representado (objeto) como do representante
(sujeito), todavia, referindo-se a ambos. Sendo assim, conforme o
filósofo, a representação enraíza-se ao mesmo tempo no objeto e
no sujeito. No elemento que se radica no sujeito, Reinhold encon-
tra a forma, e no elemento que se radica no objeto – a matéria. As-
sim, Reinhold aproxima-se bastante da posição kantiana, segundo
a qual toda representação consiste na união de matéria e forma.
De acordo com isso, o aspecto formal é produzido pela consciên-
cia, ao passo que o aspecto material é dado a ela. Isso significa que
a consciência possui a faculdade tanto de produzir forma como de
receber matéria. Nesse sentido, podemos dizer que a represen-

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70 © Metafísica II

tação se produz na consciência e, no entanto, não é totalmente


criada por ela.
Essa concepção de Reinhold, apesar de estar bastante afi-
nada no registro kantiano, introduz uma pequena mudança que
terá como consequência grandes impactos. A mudança consiste
no fato de que Reinhold, diferentemente de Kant, trata a intuição
sensível como faculdade de receber, não como receptividade, mas
como espontaneidade. A razão disso está no fato de que, como
faculdade de receber, é um poder formal que deve ser tratado em
termos de espontaneidade.
É dessa pequena correção que se origina o grande impacto,
pois enquanto a receptividade kantiana requer um dado externo
como causa da afecção e, portanto, fundamenta-se a um realismo
empírico, a faculdade de receber, enquanto tratada em termos de
espontaneidade no caso de Reinhold, negligencia, por assim dizer,
a importância do aspecto material e, com isso, abre margem, como
veremos mais adiante, para uma interpretação bastante idealista
que Fichte – o primeiro idealista – vai levar às últimas consequên-
cias, de acordo com seu idealismo.
Assim, a interpretação formal que Reinhold dá à faculdade
de receber vai enfraquecer a força do realismo empírico, uma vez
que esse dado sobre o qual ele se sustenta, em Kant, transformar-
se-ia, em Fichte, por meio da imaginação produtiva, em mero pro-
duto do seu idealismo transcendental que cumprirá, como vere-
mos, um papel em favor da dialética, servindo como incentivo de
superação para a razão teórica. Nesse sentido, podemos dizer que
as modificações reinholdianas preparam o solo para uma mudança
mais radical. Todavia, a tese da consciência ainda não é capaz de
mostrar como seria possível que as duas críticas fossem derivadas
de um princípio só.
Lembremos que essa questão moveu a proposta reinhol-
diana. De qualquer maneira, o intérprete kantiano encontra uma
solução bem ousada que fora utilizada pelo próprio Kant para a
© U2 - Os Pós-kantianos e o Retorno da Metafísica 71

descoberta da estrutura transcendental. Trata-se, grosso modo,


do método redutivo transcendental, que parte do fato (quid facti)
e remonta ao direito (quid júris) deste fato. Reinhold, utilizando-
se do mesmo procedimento, encontra o direito da razão teórica
curiosamente na razão prática, concebido em termos de faculdade
apetitiva. Vejamos como Hartmann explica esse procedimento:
Segue nisso o método kantiano que ascende do 'fato da experiên-
cia' para as 'condições da sua possibilidade'. Mas no sentido duma
tal ascensão, é bem possível deduzir a 'faculdade apetitiva' da 'fa-
culdade de representação' e tornar compreensível e inteligível a ra-
zão prática partindo da razão teórica (HARTMANN, 1960, p. 21).

Com outras palavras, o que está em jogo neste procedimen-


to é o fato de a razão prática preceder como a origem ou direito da
razão teórica, uma vez que todo conhecimento deve ser originado
de um querer conhecer que o precede. Mas como Reinhold expli-
cará esse procedimento unificador entre as duas críticas?
A sua resposta se baseia na ideia de um impulso original que
põe em movimento a faculdade de conhecer, trata-se de um que-
rer conhecer que origina a função teórica. Sendo assim, o desejo
não seria consequência, mas pressuposto – dirá Hartmann a esse
respeito (1960, p. 22).
As modificações que Reinhold realiza frente ao projeto kan-
tiano conduzem, como você pôde verificar, à elaboração de uma
nova proposta, a proposta idealista que vai dominar por completo
o cenário especulativo da filosofia alemã. Mas essa proposta não
irá se configurar sem as grandes contribuições dos críticos kantia-
nos, entre os quais se destaca Schulze.

Schulze
Apesar das correções que Reinhold realiza referente à filo-
sofia crítica de Kant, ele permanece um kantiano devoto. Não é
o mesmo caso de Schulze. Entre os pós-kantianos, Schulze assu-
me uma posição crítico-cética diante do criticismo kantiano. Ele
ataca a filosofia kantiana em seu núcleo mais essencial, a saber,

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72 © Metafísica II

a estrutura transcendental. Além disso, critica rigorosamente as


deduções kantianas e tenta demonstrar que o ceticismo de Hume
não foi superado por Kant.
Schulze ataca o criticismo kantiano em dois pontos funda-
mentais, que podemos designá-los como crítica a partir do erro
ontológico e crítica a partir da categoria causalidade.
Para demonstrar a incoerência do criticismo referente ao
erro ontológico, Schulze parte da lógica do próprio raciocínio kan-
tiano. Esse raciocínio obedece à seguinte lógica: se o conhecimen-
to rigoroso é possível por meio de juízos sintéticos a priori, então,
é necessário que haja tais juízos sintéticos a priori. Por sua vez, os
juízos sintéticos a priori só são possíveis caso exista uma faculdade
pura e, neste caso, deve haver tal faculdade. Todavia, conforme
Schulze, o raciocínio supracitado encaminha o projeto crítico de
Kant para erros ontológicos, uma vez que Kant não mostra nenhu-
ma possibilidade de revelar o ser a partir do pensamento. A tarefa
crítica de Kant pretendia demonstrar o caráter apodítico do juízo;
todavia, a necessidade de tal juízo é subjetiva e, por sua vez, não
necessariamente envolve a necessidade ontológica.
Não se pode passar indiscriminadamente, segundo Schulze,
do lógico (estrutura do pensamento) para o ontológico (estrutura
do ser). Com outras palavras, Schulze nega a possibilidade de in-
ferir de uma faculdade subjetiva uma necessidade objetiva. Desta
transposição indébita do pensamento ao ser deriva outro erro, a
saber: como é possível partindo da estrutura formal do sujeito que
não é dada empiricamente, mas suposta e deduzida, demonstrar
a realidade objetiva? Ou seja, é possível que se especule sobre a
coisa dada (empiricamente) a partir de uma estrutura formal não
empiricamente dada e, portanto, desconhecida? Com efeito, é
possível explicar o conhecido pelo desconhecido?
A segunda objeção que Schulze dirige a Kant diz respeito à
utilização ilegítima da categoria causalidade. Segundo Kant – nota
Schulze – a categoria causalidade só é legitimamente utilizada no
© U2 - Os Pós-kantianos e o Retorno da Metafísica 73

interior do campo fenomênico, pois ela faz parte da estrutura formal


que condiciona o conhecimento humano que é, como sabemos, de
nível fenomênico. Todavia, tanto a coisa em si (realismo empírico)
como a estrutura transcendental (idealismo transcendental) encon-
tram-se para além do conhecimento fenomênico em que a categoria
causalidade opera. No entanto, Kant não vacilou em deduzir ambos
os polos (realismo empírico – coisa em si e o idealismo transcenden-
tal – estrutura formal do sujeito) por via causal. Ou seja, ele utilizou
a categoria causalidade para além do seu uso legítimo, o que levou
Schulze a colocar Kant contra si mesmo.
Essas críticas de Schulze abalaram profundamente os pilares
do criticismo, forjando assim a proposta idealista.

6. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS
Sugerimos que você procure responder, discutir e comentar
as questões a seguir que tratam da temática desenvolvida nesta
unidade, ou seja, do impacto que a filosofia de Immanuel Kant
causou em sua recepção, dos prós e dos contras dos filósofos pós-
kantianos.
Confira, a seguir, as questões propostas para verificar o seu
desempenho no estudo desta unidade:
1) Segundo Reinhold, Kant teria produzido as duas Críticas, mas não teria pro-
duzido um sistema unitário. Reinhold pretende encontrar o princípio do qual
é possível derivar o sistema todo:
a) Na representação.
b) No representante.
c) No representado.
d) Na consciência.
e) Na imaginação.
2) Por que, segundo Schulze, Kant se coloca contra si mesmo?
a) Pelo uso ilegítimo da categoria "substância".
b) Pelo uso ilegítimo da categoria "comunidade".
c) Pelo uso ilegítimo da categoria "totalidade".
d) Pelo uso ilegítimo da categoria "causalidade".
e) Pelo uso ilegítimo da categoria "entendimento".

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74 © Metafísica II

3) Segundo Reinhold, o método redutivo-transcendental (quid facti a quid jú-


ris) pode ser utilizado entre as duas Críticas a fim de descobrir o princípio do
qual tudo pode ser derivado. Ele deduz:
a) A Razão Prática da Razão Pura.
b) A Razão Pura da Razão Prática.
c) A Crítica da Faculdade de Julgar da Crítica da Razão Pura.
d) A Razão Prática da Faculdade Transcendental da Imaginação.
4) No que consiste, conforme Schulze, o erro ontológico de Kant?
a) Não poder deduzir de uma faculdade subjetiva do conhecimento a ne-
cessidade objetiva do ser.
b) Não poder deduzir de uma faculdade subjetiva do conhecimento a ne-
cessidade objetiva do juízo.
c) Não poder deduzir de uma faculdade subjetiva do conhecimento a ne-
cessidade objetiva do agir.
d) Não poder deduzir de uma faculdade subjetiva do conhecimento a ne-
cessidade objetiva de apreciar.
e) Não poder deduzir de uma faculdade subjetiva do conhecimento a ne-
cessidade objetiva da intuição.

Gabarito
1) d.

2) d.

3) a.

4) a.

7. CONSIDERAÇÕES
Nesta unidade, você pôde conhecer alguns dos principais
problemas que a filosofia crítica de Immanuel Kant suscitou em
sua primeira aparição. A filosofia de Kant logo se tornou o principal
objeto de investigação dos filósofos do século 18 e 19.
Alguns filósofos colocaram-se a favor da teoria de Kant e
tentaram encontrar o elo de unificação que garantiria a unificação
entre a Crítica da razão pura, a Crítica da faculdade de julgar e a
Crítica da razão prática.
© U2 - Os Pós-kantianos e o Retorno da Metafísica 75

Entre os que procuraram encontrar na própria filosofia de


Kant este elo de unificação está Reinhold, que, como você pôde
conhecer, elabora a tese da consciência. Essa tentativa de superar
as barreiras impostas pela crítica kantiana só será plenamente al-
cançada com os idealistas Fichte, Schelling e Hegel, que você estu-
dará na próxima unidade.
Outros filósofos foram contrários à filosofia de Kant, encon-
trando dificuldades complexas que invalidariam as teses defen-
didas por Kant. Como você pôde conhecer, entre estes filósofos
estava o cético Schulze, que apresentou fortes argumentos contra
a posição kantiana, propondo que Kant não havia superado o ceti-
cismo de Hume.
Esperamos que você tenha se interessado pelos temas apre-
sentados nesta unidade. Não deixe de investigar, pois, na modali-
dade EaD, como já sabe, é você quem constrói o conhecimento.
Bons ventos!

8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CACCIOLA, M. L. O "eu" em Fichte e Schopenhauer. Doispontos, Curitiba, São Carlos, vol.
4, n. 1, abril, 2007.
HARTMANN, N. A filosofia do idealismo alemão. 2 ed. Lisboa: Fundacao Calouste
Gulbenkian, 1960.
JACOBI, F. Scritti e testimonianze. Turim, 1966.
KANT, I. Crítica da razão pura. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Os Pensadores)
______. Kritic der reinen vernunft. Hamburg: Felix Meiner, 1976.
______. Crítica da razão pura. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, s/d.
KLOTZ, H. C. Subjetividade no idealismo alemão. Inquietude. Goiânia, vol. 1, n° 1, jan/
jul, 2010.
ROVIGHI, S. V. História da filosofia moderna. São Paulo: Loyola, 1999.
SCIACCA, M. F. História da filosofia do humanismo a Kant. São Paulo: Mestre Jou, 1968.

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EAD
A Metafísica do
Idealismo Alemão
3
1. OBJETIVOS
• Conhecer as propostas da metafísica dos Idealistas alemães.
• Compreender o movimento do Idealismo Alemão, como a
busca pelo Absoluto.
• Analisar as características básicas da especulação dos
idealistas.

2. CONTEÚDOS
• O idealismo de Fichte e o Eu absoluto.
• Schelling e a superação do solipsismo de Fichte.
• Hegel e a realização da metafísica.

3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE


Antes de iniciar o estudo desta unidade, confira as orienta-
ções a seguir:
78 © Metafísica II

1) Para aprofundar seus estudos sobre o Idealismo Alemão,


é importante que leia a obra A filosofia do idealismo ale-
mão, de N. Hartmann (veja a referência completa no Tó-
pico: Referências Bibliográficas).
2) Utilize um site de busca e pesquise vídeos sobre o ide-
alismo alemão. Para conhecer mais o pensamento de
Hegel, indicamos o vídeo: "Hegel" do Prof. Dr. Edu-
ardo Luft. Disponível em: <http://www.ustream.tv/
recorded/9042772>. Acesso em: 29 mar. 2011.
3) Antes de iniciar os estudos desta unidade, pode ser in-
teressante conhecer um pouco da biografia dos pensa-
dores, cujos pensamentos norteiam o estudo deste CRC.
Para saber mais, acesse os sites indicados.

Fichte
Contemporâneo de acontecimentos decisivos da histó-
ria da Europa (revolução francesa, revolução industrial,
guerras napoleônicas, a emergência dos primeiros na-
cionalismos…), o seu pensamento soube captar como
poucos o espírito da época e transportá-lo para o debate
filosófico. A sua irrupção no panorama alemão na década
de 90 polarizou os debates em torno da sua obra e da
interpretação da herança kantiana, estabelecendo assim
as bases para os sistemas idealistas que se sucederam.
Foi em 1794, ao ocupar a cátedra de Reinhold, que a
sua figura ficou célebre e captou os entusiasmos de uma
jovem geração de filósofos que acorriam a Jena com o
intuito de ouvir as suas aulas, para as quais publicou um manual intitulado Grundlage
der gesammten Wissenschafstlehre (Fundamentação de toda a Doutrina da Ci-
ência). Esta última expressão – "doutrina da ciência" – serviu daí em diante para
nomear a sua filosofia (MARÍN, 2007. Imagem: disponível em: <http://www.mar-
xists.org/subject/philosophy/german.htm>. Acesso em: 21 mar. 2011).

Friedrich Wilhelm Joseph Schelling (1775-1854)


Filósofo guia da escola romântica, pertence – segundo a
história da filosofia – àquela corrente de pensamento de-
nominada "idealismo alemão". Partindo de Kant, os idea-
listas Fichte, Schelling e Hegel desrespeitaram os limites
que aquele impusera à razão humana. Se a razão kantia-
na (Vernunft) estava limitada aos fenômenos, ao mundo
tal como aparece para a consciência, o espírito idealista
(Geist) buscava o Absoluto, a essência que Kant designou
como incognoscível, sob o nome de "coisa-em-si". Fichte,
com a ideia de um Eu absoluto e ativo, e Hegel, com sua
dialética histórica que busca o Absoluto, são exemplos de
© A Metafísica do Idealismo Alemão 79

um pensamento que transgride os conselhos kantianos de prudência quanto ao


Absoluto. O Geist dos idealistas alemães sonha com a totalidade do real, e foi,
sobretudo, Schelling quem ilustrou essa opção por uma metafísica da infinitude,
oposta à finitude kantiana (BRUN, 2005. Imagem: disponível em: <http://www.
marxists.org/archive/schelling/index.htm>. Acesso em: 21 mar. 2011).

Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831)

Estudou no seminário da Igreja Protestante (Tübinger Stift) 


em Württemberg. Fascinou-se pelas obras de Spinoza, Kant e
Rousseau, assim como pela Revolução Francesa. É con-
siderado um dos expoentes do idealismo filosófico do sé-
culo 19.
Suas principais obras são:
• Fenomenologia do Espírito (Phänomenologie des
Geistes), 1807
• Ciência da Lógica (Wissenschaft der Logik), 1812-1816
• Enciclopédia das Ciências Filosóficas (Enzyklopaedie
der philosophischen Wissenschaften), 1817-1830
• Elementos da Filosofia do Direito (Grundlinien der Philosophie des Rechts), 1817-
1830 (MARXISTS INTERNET ARCHIVE, 2011. Imagem: disponível em: <http://
www.marxists.org/portugues/hegel/index.htm>. Acesso em: 21 mar. 2011).

4. INTRODUÇÃO À UNIDADE
Conforme vimos na unidade anterior, as posições referentes
à filosofia kantiana podem ser resumidas em duas:
1) Aquelas que seguem fielmente o kantismo, propondo le-
ves correções da teoria original, como faz Reinhold, por
exemplo.
2) Aquelas que tentam encontrar as contradições internas
da teoria kantiana, sem ter qualquer pretensão de ela-
borar uma nova teoria, como é o caso de Schulze.
Basicamente, com tais tendências se esgota o período inter-
mediário entre Kant e o Idealismo. Todavia, as discussões travadas
deste período engendraram as possibilidades para tornar possível
a especulação dos idealistas Fichte, Schelling e Hegel, os quais ire-
mos conhecer a seguir. Acompanhe!

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80 © Metafísica II

5. FICHTE

A Teoria das ciências


A partir da leitura da filosofia de Kant, Fichte teve a inspi-
ração de produzir um novo sistema filosófico. Ele aderiu a ideia
reinholdiana, segundo a qual Kant teria produzido as duas críticas,
mas não um sistema unitário. Fichte encontra nas especulações
sobre a razão prática o ponto de partida da sua proposta idealis-
ta. Nela, segundo o primeiro idealista, encontrava-se o precioso
guia que abre margem para o alcance do Absoluto. A esse respeito,
Hartmann observa:
Para ele (Fichte) a obra do criticismo como tal já não é essencial, mas
sim somente a idéia da ativa originalidade moral do ser humano,
com a qual se deparam ao homem todas as barreiras e grilhões me-
tafísicos próprios de um ser natural deterministicamente vinculado e
se abre a perspectiva do absoluto (HARTMANN, 1960, p. 52).

No entanto, a proposta idealista para ser realizada necessita


de uma transformação genética do conceito de Eu que Fichte em-
preende. Por um lado, Fichte concorda inicialmente com Reinhold
sobre o primado da razão prática sobre a razão pura; por outro lado,
discorda absolutamente de Reinhold referente à posição reinholdia-
na que trata a consciência em termos de um fato. No que diz respei-
to a essa crítica de Fichte a Reinhold, Hartmann esclarece:
Um princípio supremo da dedução de um sistema nunca pode ser
um fato no sentido da tese da consciência de Reinhold. Todos os
fatos são primeiramente qualquer coisa para a consciência. Daqui
que os fatos não podem ser os primeiros pontos de partida incon-
dicionados [...]. Há na consciência qualquer coisa de mais original
do que o fato: a ação produtora. Pois, a consciência é no fundo
ativa – a 'razão é prática' –, a sua essência particular não se esgota,
portanto, no caráter de ser um fato (HARTMANN, 1960, p. 59).

Podemos notar, a partir do trecho citado, que Fichte privile-


gia a razão prática, entendida como ação produtora em detrimen-
to da razão teórica. Assim se dá um novo rumo da especulação
filosófica, ela já caminha na direção do idealismo. Retomando a
© U3 - A Metafísica do Idealismo Alemão 81

posição de Reinhold, Fichte afirma que a faculdade de conhecer


(chamada por Fichte de Eu teórico) não é autossuficiente, isto é,
ela não é uma faculdade autônoma, pois ela naturalmente se de-
para com seu limite natural – o objeto (que será chamado por Fichte
de Não-eu).
Em contrapartida, a atividade moral (que será chamada pelo
filósofo de Eu prático) é concebida por Fichte como a produtora da
realidade e, como tal, não conhece limites que se opõem a ela, tal
como é o caso do Eu teórico. Neste caso, evidentemente, os obje-
tos (não-eus) são produtos da atividade prática do Eu.
Percebe-se que Fichte se refere a dois tipos de Eu – o teórico
e limitado e o prático e ilimitado.
Enquanto prático, o Eu, como vimos, é produtor da realidade
e, como tal é infinito. O eu teórico, por sua vez, é finito enquanto
se depara com o objeto (Não-eu). A relação entre o eu teórico e
reflexivo e o Não-eu é de oposição. Vê-se, portanto, que o filósofo
distinguiu claramente o Eu que produz (prático) e o Eu que reflete
(teórico). O eu prático produz a realidade (não-eu) espontanea-
mente e sem consciência dessa produção, ou seja, ele não sabe
que a produz.
O segundo – o Eu que reflete – configura-se a partir do não-
eu (objeto) com qual se depara. Uma explicação bastante clara nos
oferece Sciacca:
O Eu enquanto absoluto é infinito, é a fonte de toda realidade; en-
quanto finito empírico se encontra diante (oposto) ao não Eu com
o qual está em reciprocidade de ação. Este limite é captado pelo Eu
empírico, que assim se torna consciência (com-ciência) individual.
Explica-se assim o mundo, ainda que produzido pela atividade do
Eu, aparece externo ao próprio Eu (SCIACCA, 1968, p. 28).

A relação entre a ação produtiva e a ação reflexiva confi-


gura-se do seguinte modo: o Eu produtivo, ao produzir o não-eu
inconscientemente, opõe-no como obstáculo ou limite para ser
superado em seguida pelo conhecimento do Eu reflexivo (teórico),
realizando uma invasão e domínio do núcleo do não-eu. Assim,

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82 © Metafísica II

o processo reflexivo do Eu teórico vai em direção a um processo


ininterrupto de superação do não-Eu. Mas essa expansão teórica –
vale observar – origina-se na ação moral.
Diferentemente do que ocorre na ação prática (moral), na ação
teórica surge um limite (objeto) a ser superado – o não-eu, que após
a sua superação se reduz ao Eu. Todavia, para a realização integral da
ação moral em que ocorre o retorno a si mesmo, seria necessário que
os limites (não-eus) fossem superados. Essa tendência de superação
dos limites do não-Eu, em cujo esforço se origina uma ação, origina-se
apenas na presença da resistência do outro (não-Eu).

Resistência e superação –––––––––––––––––––––––––––––––


O movimento de superação já de antemão supõe uma resistência. O próprio mo-
vimento é uma superação de resistência. Resistência existe quando temos duas
forças em oposição entre si: no caso Eu e não-Eu.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Portanto, esse outro (objeto, o não-Eu) deve ser pressuposto.
A grande originalidade de Fichte, que lhe atribui o mérito de
ser o primeiro filósofo idealista, é o fato de ter pensado a possibili-
dade de uma ação sem agente. Conforme a filosofia anterior, toda
ação possui, como sua causa, um agente. Isso quer dizer que toda
ação necessariamente deve se originar por um agente que apare-
ce como sendo seu princípio, substância ou causa da ação.
Essa concepção da metafísica moderna, segundo Fichte, tor-
na impossível qualquer tipo de transformação da substância, uma
vez que esta é compreendida como sendo aquilo que em si e por
si existe, ou aquilo que para sua existência não necessita de nada.
Essa autossuficiência da substância recusa, por sua vez, qualquer
mudança que pode ocorrer nela, uma vez que ela não depende de
nada externo. Recusa-se, também, que essa substância possa ser
sujeita à formação e ao desenvolvimento e, com isso, é possível
manter a esperança de alcance do Absoluto.
Descartes, por exemplo, ao postular o cogito, destaca a ne-
cessidade de o pensamento originar-se de uma substância pen-
© U3 - A Metafísica do Idealismo Alemão 83

sante. Mas tal substancialismo, assim entendido, não fornece mar-


gem para pensar a dialética. Para dar espaço ao desenvolvimento
do sujeito, Fichte empreende um procedimento totalmente con-
trário, afirmando a existência apenas de ação, sem a substância
que a produz. Assim, nota Hartmann: "O Eu é nada fora da ação
produtora, é nele que consiste. Não é um Eu real o que produz a
ação; unicamente na ação real surge o substrato ilusório, o Eu"
(1960, p. 68).
É claro que Kant, na medida em que concebeu o Eu como
condição formal e não como substância, já dá um passo consi-
derável para a superação da posição substancialista. Todavia, foi
Fichte que levou ao fim essa tendência, revelando a possibilidade
de um tratamento dialético.
Essa superação do substancialismo pode ser observada com
base na figura a seguir:

Figura 1 Desenvolvimento da concepção na História da Filosofia Moderna de Eu.

Vale observar que a nova concepção do Eu, entendido em


termos de ação sem agente, engendra uma dificuldade teórica, a
saber: se tudo é ação e essa ação se origina da atividade prática
do Eu, como, então é possível explicar o não-eu, isto é, o objeto
com a qual o Eu reflexivo se depara? Este problema envolve dois
aspectos: a liberdade e o conhecimento.
Nos sistemas anteriores, parte-se do objeto para enfatizar o co-
nhecimento, não se coloca, portanto o problema da liberdade ou da
livre produção. Para resolver esse problema, o filósofo recorre a Kant:
A idéia primária de Kant toma aqui o valor de uma revolução, e
Fichte coloca-a na cúpula do sistema como primeiro princípio. Ao
condenar em favor da ação primária o ser autônomo, ele assegura-
se, logo a primeira diligência da solução do problema da liberdade
(HARTMANN, 1960, p. 69).

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84 © Metafísica II

Ao privilegiar a liberdade (a ação) em detrimento do conhe-


cimento (o objeto), Fichte deixa o problema do conhecimento na
incerteza. O Eu que reflete não pode surgir sem o objeto com o
qual se depara e este, por sua vez, não surge sem o Eu que o pro-
duz; então, o problema do conhecimento é resolvido a partir da
atividade produtora do Eu.
Outra implicação dessa posição consiste nas seguintes con-
siderações: se o não-eu (objeto) é produto do Eu, então, ele não
possui um estatuto de coisa em si, ou seja, de um dado empirica-
mente real, mas de representação necessária do Eu. Esse poder do
Eu de produzir o não-eu (a realidade) em termos de representação
Fichte atribui à Imaginação Produtiva.
Enquanto produz a imaginação não reflete, caso contrário
seria reflexiva e não produtiva. O Eu reflexivo percebe o não-eu
como algo externo e autônomo, isto é, como coisa em si, justa-
mente pela sua função passiva que se resume na sua faculdade de
ser afetado. Hartmann esclarece essa relação:
O Eu põe-se a si mesmo como determinado pelo não Eu. O que o
Eu põe aqui é um ser em si do não Eu, mas este ser em si só é posto
pelo Eu; portanto não existe um ser em si absoluto definitivamente
válido, mas sim, um ser em si só para a consciência teoricamen-
te limitada e que não se apercebe do seu fundamento autônomo
(1960, p. 73).

Vale observar que essa relação envolve uma antinomia: a


imaginação produz um não-eu diante do qual o Eu reflexivo con-
figura uma representação. Trata-se, portanto, de uma represen-
tação da representação. Nesse caso, a intuição, como a faculdade
de ser afetado, ignora que o Eu mesmo é autor da realidade com
a qual o Eu que reflete passivamente se depara. Como Hartmann
diz: "A intuição não reflete sobre a gestação da coisa, mas somente
sobre a sua constituição acabada" (1960, p. 74).
Para que possamos entender o sentido pleno e integral do
sistema idealista de Fichte, resta respondermos uma última ques-
tão:
© U3 - A Metafísica do Idealismo Alemão 85

Por que o Eu prático sendo ilimitado, sendo capaz de ir até o


Absoluto, deve cindir-se em Eu teórico?
A explicação funda-se no fato de que todo agir é agir sobre
alguma coisa, o que, por sua vez, implica a vontade de superação,
pois a oposição é a base da superação:
O Eu absoluto tem de tornar-se teórico para ser prático; tem de
criar primeiro o mundo dos objetos em cuja resistência há de
tornar-se ativo. [...] A atividade originária que é a essência do Eu
absoluto, não pode consistir em dirigir-se centrifugamente para o
infinito partindo do Eu, para perder-se sem plano e sem sentido
(HARTMANN, 1960, p. 78).

O Eu deve ser prático – o que só é possível se criar o mundo


dos objetos em oposição aos quais o Eu teórico aspira a superá-
los. Nesse sentido, o mundo dos objetos é a condição dessa aspi-
ração. O Eu prático produz para o Eu teórico seus obstáculos – os
não-eus – para estimular essa aspiração.
Com o idealismo de Fichte e seus pressupostos dialéticos, a
metafísica se vê diante de um desafio novo, cuja superação pro-
mete o almejado acesso ao Absoluto. A metafísica, no idealismo,
caminha para sua realização completa que se dá com Schelling e
Hegel.

6. A METAFÍSICA DE SCHELLING
Como você pôde ver, o idealismo de Fichte privilegia a ati-
vidade produtora do Eu em detrimento da realidade objetiva (o
Não-eu). Schelling, por sua vez, mostra-nos uma valorização signi-
ficativa da realidade objetiva, que constitui o ponto de partida da
especulação schellinguiana. Trata-se da Filosofia da Natureza.
A natureza, conforme essa nova concepção, encarna o Espí-
rito, que ainda não passou pelo processo de se reconhecer como
tal e, nesse sentido, é considerada por Schelling como inteligência
petrificada. Essa inteligência adormecida (a natureza), por meio
de um processo dialético, vai-se elevar até ao ponto em que toma-

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86 © Metafísica II

rá a consciência de si mesma. Esse ponto culminante do processo


dialético da natureza é a subjetividade humana. Dito de outra ma-
neira, a natureza, que inicialmente se apresenta como indiscerni-
bilidade absoluta, guiada pela razão, vai produzindo, a partir de
um processo de diferenciação, as diferentes formas naturais – um
processo que culmina no Eu.
O processo dialético da natureza, Schelling chama de ativi-
dade real do Absoluto. Esta consiste em produção inconsciente
da realidade. Mas essa não é a única atividade. Existe, também,
a atividade ideal, a partir da qual se adquire consciência do ob-
jeto, que antes fora produzido inconscientemente. A consciência,
enquanto se depara com objeto é finita, mas enquanto atividade
que vai além do limite (objeto que limita), é infinita. Esses dois
aspectos do Eu se resolvem numa identidade, visto que o Eu é o
sujeito de ambos. Nesse ponto, pode-se observar certa influência
fichteana na filosofia schellinguiana. No entanto, a grande diferen-
ça entre ambos os pensadores consiste na valorização da natureza
que Schelling atesta na sua especulação metafísica.
A Filosofia da natureza de Schelling revela dois aspectos fun-
damentais
1) A reflexão a partir da qual a produção inconsciente aos
poucos se transforma em objeto da reflexão (despertar
da consciência).
2) O movimento inverso ocorre com a tendência de a reflexão
adquirir plena consciência do processo da produção incons-
ciente, que no último grau termina com a unificação absoluta
entre o subjetivo e o objetivo, configurando o Absoluto.
A realidade natural é concebida em termos de natureza or-
gânica, que tende ininterruptamente à expansão. Mas para a rea-
lização dessa expansão, a natureza, em sua interioridade, precisa
produzir oposições. A expansão, desse ponto de vista nada mais é
do que um processo dialético. Este, por sua vez, revela-se como sen-
do a tendência interna que conduz à unidade original de tudo. Isso
quer dizer que a natureza é teleologicamente determinada, ou seja,
© U3 - A Metafísica do Idealismo Alemão 87

o processo dialético que ocorre nela possui um telos ou fim deter-


minado. Essa finalidade organizadora que tende à unidade absoluta,
Schelling encontra no próprio Espírito. Todavia, essa finalidade últi-
ma não é transcendente à natureza, mas imanente a ela.
A visão naturalista de Schelling pode ser resumida da seguin-
te forma: inicialmente existe uma unidade absolutamente indis-
cernível que deve se tornar multiplicidade e diferenciação para,
no fim, produzir o Eu. Aí surge a pergunta: como de uma unidade
homogênea e indiscernível se produz a diferenciação e a multipli-
cidade?
Para resolver essa dificuldade, Schelling introduz a ideia de
um princípio de polaridade, que é capaz de realizar a diferencia-
ção. Tal princípio, segundo Schelling, possui dois aspectos: atração
e repulsão. Por meio deste princípio, a natureza cinde-se em sujei-
to e objeto, configurando assim uma oposição cuja solução se dá
no grau superior como síntese, como produção de uma realidade
natural mais elevada. A esse respeito, Hartmann observa:
O processo evolutivo da natureza obedece a um princípio de dife-
renciação progressiva em cujos primórdios se encontra a 'indiferen-
ça absoluta', mas, ao mesmo tempo, obedece também a um prin-
cípio de produção progressiva do superior no qual se exemplifica a
tendência original da unidade do todo (1960, p. 139).

Para Schelling, a dialética, pensada em termos de ascensão


gradativa (tese, antítese e síntese), retrata o percurso do Espírito
de uma inteligência petrificada até ao ponto culminante em que o
Eu surge. Esta é a sua meta final. A esse respeito, Hartmann nota:
A inteligência inconsciente, que tudo penetra e forma, não pode
alcançar-se, chegar a apoderar-se de si mesma, ser para si em ne-
nhum outro ser além do homem. Por isso, o homem, partícula im-
perceptível na estrutura do organismo universal, é aquele membro
que, dentro do organismo universal, o completa e coroa porque
unicamente nele se cumpre o fim último que dá sentido a todos os
outros membros (1960, p. 140).

Portanto, a tarefa principal da filosofia da natureza consiste


em mostrar o percurso dialético que termina com o surgimento do

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88 © Metafísica II

Eu. Essa é a primeira parte da sua filosofia da identidade. O segun-


do momento dessa filosofia é mostrar como a inteligência toma
como objeto a própria natureza, e mostrar como será possível da
natureza inconsciente brotar a inteligência. Isso será realizado na
segunda parte do seu projeto de filosofia da identidade, intitulada
Idealismo transcendental. Um papel fundamental desta parte para
a solução do problema citado cabe à filosofia da arte. Podemos
aqui notar que, pela primeira vez, a arte entra como organon da
especulação filosófica. A esse respeito, Hartmann nota:
[...] ao espírito criador inconsciente da natureza não corresponde na
consciência nem o saber, nem o querer, mas unicamente a criação artís-
tica. A força produtora da natureza e a força produtora no sujeito são, no
fundo, o mesmo espírito criador. A natureza produz um mundo real de
objetos, a arte um mundo ideal. Ambas são puramente produtoras. O
cosmos não é só um organismo vivo, mas também uma obra realizada
unitariamente, a poesia original, inconsciente do espírito; a obra de arte
é um cosmos semelhante, mas em ponto pequeno, a mesma revelação
do mesmo espírito, só que criada conscientemente (1960, p. 145).

Vale observar que a partir da arte o filósofo encontra a ma-


neira de explicar a identidade entre a natureza e o espírito. Segun-
do ele, nem a ética, nem as ciências são capazes de representar o
Absoluto, mas somente a intuição estética.
Na obra de arte – de acordo com Schelling – todos os aspec-
tos antagônicos como sujeito/objeto, finito/infinito, consciente/
inconsciente, liberdade/necessidade se unificam. No ato da cria-
ção artística, o filósofo encontra subsídios para fundamentar a in-
tuição intelectual. Esta, segundo Schelling, só é acessível pelo viés
estético, enquanto fundamenta o âmbito artístico e este, por sua
vez, apresenta-se como representação sensível do Absoluto.

Intuição estética ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––


A partir da intuição estética, segundo Schelling, viabiliza-se a representação do
Absoluto, pois a arte envolve infinitos significados, assim como o Absoluto os
contêm.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Todavia, essa representação é simbólica e o símbolo, como
expressão artística, serve como "espelho" que revela o que está
© U3 - A Metafísica do Idealismo Alemão 89

por trás, o que não se pode comunicar de maneira conceitual e em


qual o Absoluto se reconhece.

Compreensão conceitual –––––––––––––––––––––––––––––––


O conceito designa um sentido só, que deve ser compreendido sem equívocos.
Todavia, o Absoluto apresenta sentidos infinitos. Justamente por isso o conceito
é incapaz de expressar o Absoluto.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Não se trata, porém, de um Absoluto real, mas do símbolo
do Absoluto, ou seja, da representação sensível do Absoluto que
só se comunica pela arte. Justamente por isso, Schelling vai reco-
nhecer no gênio artista o domínio desta intuição estética. O gênio
é definido no Sistema do idealismo transcendental como aquele
que realiza na sua obra a união entre a necessidade natural e a li-
berdade, inspirado por forças inconscientes que se unem às forças
conscientes, dando origem, assim, à obra de arte. Nesse sentido, a
obra de arte simboliza o Absoluto, é uma atividade do Absoluto.
Como você pôde ver, até agora o problema da realidade (na-
tureza) resolve-se a partir da Filosofia da natureza e o aspecto ide-
al resolve-se a partir do Idealismo transcendental. Todavia, esses
dois eixos da filosofia schellinguiana apresentam uma diversida-
de que se deve levar à unidade. Portanto, há de se encontrar um
princípio que possa realizar a síntese de ambos. Schelling encontra
esse princípio sintético no princípio da identidade.
No Absoluto, não há diferença entre o sujeito e o objeto. To-
davia, a sua tendência de se reconhecer como Absoluto instaura
a necessidade de cisão entre o sujeito e o objeto, uma vez que
o conhecimento se dá somente nessa oposição. Mas o princípio
da identidade assegura a unidade a despeito de toda diferencia-
ção, uma vez que tudo está em vínculo com o seu oposto. Visto
por esse ângulo, pode-se observar que não há diferença genética
entre o sujeito e o objeto, uma vez que apenas a preponderância
momentânea de um referente a outro dá a margem para pensá-los
ora como objeto, ora como sujeito. É o que Hartmann atesta a esse
respeito:

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90 © Metafísica II

[...] na série das coisas, cada uma é um membro limitado que supõe
já a série inteira, assim como supõe a identidade. É apenas a pre-
ponderância do sujeito ou do objeto que constituem a natureza da
finitude (1960, p. 159)

Do ponto de vista da eternidade, como Spinoza diria, tudo se


encontra em unidade absoluta.

7. HEGEL
Com a filosofia hegeliana, a metafísica encontra sua plena
realização. Hegel ensina que tudo é Razão, desde os graus inferio-
res da realidade até os superiores, mas, para encontrar a si mes-
ma, a razão deve percorrer um percurso dialético. O absoluto só no
final – afirma Hegel – será o que ele é na realidade. Neste percurso
todo modo particular é apenas um aspecto finito da infinidade do
Absoluto:
Toda a forma fenomenal do Espírito cujos graus se desenvolvem na
fenomenologia é apenas um aspecto parcial do verdadeiro e encon-
tra o seu complemento ou a realização total fora, ou antes acima de
si mesmo: em primeiro lugar no grau imediatamente superior, de-
pois, visto que este também tende a elevar-se – em todos os graus
superiores da cadeia e, finalmente, na autopenetração do Espírito
Absoluto. Deste modo o Absoluto é infinito no finito. E cada grau do
ser se penetra na sua verdadeira essência, volta a encontrar-se em
todos os outros. Mais ainda: tem de encontrar-se, porque o simples
ser-em-si necessita elevar-se até o ser-para-si. E o ser para si con-
siste na apreensão de si mesmo o qual não é inerente ao modo de
manifestar-se mas à essência (HARTMANN, 1960, p. 319).

Na Fenomenologia do Espírito – a obra fundamental de Hegel


– descreve-se a marcha dialética do Espírito em seus graus suces-
sivos em direção ao seu estado Absoluto. Um percurso que se ini-
cia com o mundo inorgânico, orgânico, plantas, vegetais, animais,
homens e a sua história, elevando-se gradativamente do inferior
para o superior.
A dialética, por meio da qual o Espírito se move em dire-
ção a sua realização, compreende três momentos: tese, antítese
e síntese. A tese e a antítese configuram a relação de oposição,
© U3 - A Metafísica do Idealismo Alemão 91

cuja anulação se dá pela síntese. Esta última indica que o Espírito


alcançou um grau maior de plenitude. Vale observar que o que
está em jogo é o movimento negativo da dialética, que, ao negar
a oposição entre a tese e a antítese, chega um grau maior de per-
feição. Com outras palavras, a negação é, para Hegel, o motor de
desenvolvimento. O percurso dialético do Espírito mostra como
cada vez mais surge uma vida mais organizada e completa, mostra
o aperfeiçoamento do Espírito. Por trás desse movimento dialético
do Espírito opera a ideia de Bildung (formação), em que o Espíri-
to se desenvolve gradativamente, libertando-se do inessencial, do
aparente, adquirindo cada vez mais realidade.
A Fenomenologia do Espírito, em linhas gerais, apresenta-se
como uma introdução ao saber absoluto, que é conquistado gra-
dativamente no decorrer da história mundial. Este processo envol-
ve a noção de consciência e autoconsciência.
A consciência é a noção de objeto, uma vez que a consci-
ência é sempre consciência de um objeto. Tal consciência Hegel
denomina de certeza sensível, que o filósofo a define com os se-
guintes termos: "O saber que primeiro e imediatamente é nosso
objeto não pode ser outro do que aquele que é, ele mesmo, saber
imediato, saber do imediato, ou saber do que é" (1992, p. 73).
Todavia, aos poucos, a consciência percebe que o objeto que
a defronta é o contrário do que aparenta ser na sua presença con-
creta do "aqui" e "agora" (determinações que nada exprimem do
seu conteúdo) e ela se vê, portanto, diante da sua superação e
passa para um grau mais elevado – a percepção da coisa.
A percepção avança mais e capta o sentido universal do
objeto. O elemento sensível ainda está presente, mas não como
particular e, sim, como um universal. Nesta fase, diferentemen-
te da certeza sensível, o objeto já não depende mais do fato
de ser pensado, o que significa que o aspecto sensível já se en-
contra superado. Porém, essa relação vai se transformando.
À medida que a consciência percebe que o objeto diante dela não

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92 © Metafísica II

é algo estranho a ela, mas é ela mesma, configura-se a autocons-


ciência. A esse respeito, Hegel afirma: "Autoconsciência é a des-
coberta que o em-si do objeto é a própria consciência de que a
consciência é a própria verdade" (1992, p. 152).
Chegar a essa descoberta exige, segundo Hegel, que a cons-
ciência passe por uma formação que a própria dialética impõe por
meio da sua marcha negativa. Nesse sentido, pode-se dizer que a
autoconsciência é produto do percurso autoformativo do Espírito.
A autoconsciência surge inicialmente de modo confuso, ma-
nifesta-se principalmente como tendência de autoconservação.
Essa tendência exprime-se na luta, não apenas pela sobrevivência,
mas também pelo reconhecimento. E o reconhecimento exige que
o vitorioso conserve o derrotado, pois somente assim ele será re-
conhecido.
Essa luta pelo reconhecimento é descrita por Hegel no fa-
moso caso de "Senhor e servo", segundo o qual dois homens se
enfrentam numa luta de reconhecimento. Um deles aposta a sua
vida em prol da vitória e do reconhecimento; o outro, por medo de
arriscar a sua vida, perde. Forma-se, dessa maneira, a relação en-
tre senhor e servo. Evidentemente, o senhor é reconhecido como
tal pelo seu servo e vice-versa, o servo – reconhecido como tal
pelo seu senhor. Nenhum deles é o que é sem o outro. O vencedor
(o senhor) não mata seu adversário vencido (o servo), mas o con-
serva, pois é por ele que o vitorioso é reconhecido como senhor.
Assim, o servo começa a servir ao seu senhor, produzindo coisas
que são de posse do senhor, pois a condição em que o servo se
encontra o obriga a servir. Ao produzir coisas e serviços que são
para o gozo do senhor, o servo encontra-se alienado dos produtos
que ele mesmo produz. Nesse sentido, dirá Hegel, o seu desejo é
refreado, uma vez que os produtos que ele produz não são de sua
posse.
No entanto, essa relação vai mudando, pois se percebe que
o senhor, de algum modo depende, para a sua condição de senhor,
© U3 - A Metafísica do Idealismo Alemão 93

dos produtos que o servo produz, ele depende também do servo;


torna-se uma espécie de servo do seu servo, por depender dele.
Ao mesmo tempo, o infeliz servo ganha um bem, ele se forma,
aprendendo a produzir coisas, a ter disciplina, a superar-se pelas
privações. Dá-se, assim, a verdadeira inversão dialética, em que
pelo trabalho servil o servo aprende a vencer as necessidades da
vida e isso o torna livre. O servo transformado pelas provações ga-
nha mais liberdade do que o seu senhor, que depende do servo.
Essa relação dialética, desenhada pelo senhor e servo, mos-
tra, de modo inequivocamente, o próprio desenvolvimento histó-
rico que obedece à lógica dialética. Essa nova lógica introduzida
por Hegel, para dar conta de toda realidade em seu desenvolvi-
mento unitário, retrata perfeitamente a gênese da razão absoluta
na direção da sua realização.
No interior da Fenomenologia..., Hegel apresenta a autocons-
ciência em duas modalidades sucessivas, como Espírito subjetivo
– o indivíduo – e o Espírito objetivo – a sociedade organizada. Em
sua marcha dialética, o Espírito, inicialmente, apresenta-se como
Espírito subjetivo (consciência individual) – como liberdade, sa-
ber e querer de um si-natural. Transforma-se, em seguida, em Es-
pírito objetivo encarnado nas instituições organizadas, passando,
portanto, do estado de natureza em que predomina o egoísmo
para o estado de sociabilidade. O Espírito objetivo, enquanto en-
carnado na sociedade organizada, desenvolve-se novamente em
três etapas: direito, moralidade e eticidade.
Entre o direito que obriga por meio de leis externamente e
a moralidade que obriga, por meio do dever, internamente, surge
uma oposição (tese – antítese). A reconciliação desse antagonismo
ocorre num grau mais elevado na síntese que realiza a eticidade.
Esta última, enquanto síntese das oposições anteriores, também
envolve três momentos, a saber: a família, em que os interesses
dos indivíduos se encontram isolados no interior da família; a so-
ciedade civil – o acordo geral entre os indivíduos e o Estado – a

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94 © Metafísica II

vontade universal que anula como síntese a oposição entre a fa-


mília e a sociedade civil.
O Estado, portanto, seria a síntese do antagonismo entre a família
e a sociedade civil. Nesta última etapa, o Espírito encontra a sua plena
realização. Nesse sentido, Hegel dirá que o Estado é o Deus terrestre.
No mundo da cultura, sendo o trajeto final do Espírito, isto é,
o ponto final do seu desenvolvimento, o Espírito se objetiva suces-
sivamente em três graus: Arte, Religião e Filosofia.
A arte representa a realização do Espírito, mas numa versão sen-
sível. O trajeto artístico do Espírito envolve três graus de manifestação:
1) Arte Simbólica (a arte oriental), em que predomina o
aspecto material em detrimento do aspecto formal ex-
presso pela arquitetura;
2) Arte Clássica, que expressa a perfeição das expressões
artísticas porque o aspecto material e o aspecto formal
se encontram em perfeito equilíbrio. Esse equilíbrio se
expressa pela escultura da figura humana e é realizada
pela arte grego-romana;
3) Por fim, vem a Arte Romântica – enfatizada pela poesia,
música e pintura. A Arte Romântica enfatiza o elemento
formal em detrimento do material.
Com a arte romântica, o elemento sensível encontra-se pra-
ticamente superado, mas com tal superação se realiza o estado
terminal da arte – o que significa que o Espírito ascendeu num
grau superior de espiritualidade e menos sensível – a religião.
Enquanto encarnada nas manifestações religiosas, o Espíri-
to, novamente, passa por três etapas:
1) A Religião Natural, marcada pela utilização de objetos
naturais para cultos e ritos;
2) A Religião da Liberdade – ocorre a substituição de obje-
tos naturais pelas entidades espirituais;
3) Por fim, a Religião Absoluta, encarnada pelo cristianis-
mo, em que se realiza a síntese suprema entre o divino e
o humano na pessoa de Cristo.
© U3 - A Metafísica do Idealismo Alemão 95

A última etapa do Espírito, no mundo da cultura, Hegel re-


serva para a filosofia. A sua essência consiste na síntese entre a
arte e a religião. O conceito com o qual a filosofia opera não é
nem intuitivo (arte) nem representativo (religião), mas síntese de
ambos. Mas a filosofia também descreve um percurso longo na di-
reção da sua realização. Esse percurso Hegel vê na própria História
da Filosofia. Nela a razão da filosofia se forma.
Conforme Hegel, a filosofia nada mais é do que uma história
sagrada que manifesta a própria formação do Absoluto. E justamente
por esse motivo, Hegel vê na sua própria filosofia a realização absoluta
do Espírito. De acordo com isso, Sciacca nota: "A última filosofia (a de
Hegel) é o resultado de todas as filosofias anteriores" (1960, p. 45).

8. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS
Confira, a seguir, as questões propostas para verificar o seu
desempenho no estudo desta unidade:
1) No que consiste a crítica que Fichte dirige a Reinhold.
a) De que a representação nunca pode ser algo original.
b) De que a consciência nunca pode ser um fato, mas somente ação pura.
c) De que a Razão Prática nunca pode ser direito da Razão Teórica.
d) De que a Razão Teórica nunca pode ser direito da Razão Prática.
e) De que a receptividade nunca pode ser espontânea.
2) Como se dá a dialética entre o Eu e o não-Eu (objeto), segundo Fichte?
a) O Eu prático põe para si mesmo um não-Eu, para engendrar e estimular o
Eu teórico que, em seguida supera (conhece) o não-Eu. Assim se realiza o
movimento dialético de constante superação, em que o Eu teórico toma
consciência do seu caráter absoluto.
b) O Eu teórico põe um não-Eu, para que o Eu prático se supere. Assim, o Eu práti-
co tende a superar (conhecer) o não eu, realizando o movimento dialético.
c) O Eu prático, por ser finito, põe um não-Eu, para que o Eu teórico o supe-
re. Assim, o eu teórico tende a superar (conhecer) o não-Eu, realizando
o movimento dialético.
d) O Eu teórico, por ser infinito, põe um não-Eu, para que o Eu prático o
supere. Assim, o Eu teórico tende a superar (conhecer) o não-Eu, reali-
zando o movimento dialético.
e) O Eu teórico, utilizando-se da imaginação produtiva, põe a si mesmo um não-
Eu, para o conhecer e assim superá-lo. Nisso se dá a dialética fichteana.

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96 © Metafísica II

3) A Filosofia da Natureza de Schelling mostra:


a) O movimento dialético cuja finalidade é produzir o Eu prático.
b) O movimento dialético que realiza a diferenciação da indiscernibilidade
do Absoluto para que este tome consciência do seu caráter absoluto.
c) Mostra como surgem as diferentes espécies de natureza.
d) Mostra a enteléquia da intuição artística.
e) Mostra como nasce o gênio.
4) Para Schelling, o Eu possui um aspecto duplo: ele é finito e infinito. Qual o
fundamento desta afirmação? Assinale a alternativa correta.
a) O Eu enquanto produz o não-Eu é finito, enquanto produz a si mesmo é
infinito.
b) O Eu enquanto limitado por outro objeto é infinito (nas suas possibilida-
des), enquanto atividade que vai além do limite é finito (por perder as
suas possibilidades).
c) O Eu enquanto guiado pela fé é infinito, enquanto guiado por si mesmo
é finito.
d) O Eu enquanto limitado por outro objeto é finito, enquanto atividade
que vai além do limite (do objeto) é infinito.
5) Hegel concebe três graus fundamentais no percurso da realização do Espíri-
to, a saber: Arte, Religião e Filosofia. Qual é, ordenadamente, a sucessão dos
três graus e os aspectos constitutivos e expressivos de cada uma, guindo-se
pelo critério lógico – historicista da sua filosofia.
a) Arte (romântica, clássica, simbólica); Religião (religião natural, religião da
liberdade, religião absoluta); Filosofia (conceito).
b) Arte (simbólica, clássica, romântica); Religião (religião natural, religião da
liberdade, religião absoluta); Filosofia (conceito).
c) Religião (religião natural, religião de liberdade, religião absoluta); Filoso-
fia (conceito); Arte (simbólica, clássica, romântica)
d) Filosofia (conceito); Arte (simbólica, clássica, romântica); Religião (reli-
gião natural, religião de liberdade, religião absoluta)

Gabarito
1) b.

2) a.

3) b.

4) d.

5) b.
© U3 - A Metafísica do Idealismo Alemão 97

9. CONSIDERAÇÕES
O período do Idealismo Alemão é considerado um dos gran-
des períodos históricos da filosofia. Ele representa o ápice de um
esforço de pensamento da metafísica em direção à superação dos
limites impostos pelo criticismo kantiano.
O primeiro movimento desta superação se dá com Fichte, o
grande propositor do Idealismo Alemão, com o qual há uma mu-
dança no paradigma na compreensão do Eu. Em Kant, como vi-
mos, o Eu era entendido como a condição do conhecimento; com
Fichte, o Eu é entendido como ação, fundamento e produtor de
toda a realidade, o que acaba fazendo de sua filosofia um solipsis-
mo absoluto, em que a realidade se torna pura ilusão, (produto do
Eu) para sua autossuperação e autopossessão.
A importância de Schelling está no próprio movimento de
superação do solipsismo, em que a filosofia de Fichte caia inevita-
velmente. Como você pôde acompanhar, com o idealismo propos-
to por Schelling, há uma união entre objetivo e subjetivo, e a Natu-
reza ganha o mesmo status ontológico do Espírito. Trata-se de um
desenvolvimento gradual, um processo por meio do qual o Espírito
ainda inconsciente na natureza empreende uma longa trajetória
até tomar consciência de si e retornar à sua identidade absoluta.
Essa identidade absoluta Schelling encontra na intuição estética,
na obra de arte do gênio, em que a matéria é espiritualizada, onde
o objetivo e o subjetivo encontram-se em identidade absoluta.
Já com Hegel, a metafísica alcança o seu ponto mais alto. A
razão desenvolve todas as suas potências e a filosofia torna-se o
saber absoluto. É no conceito que todas as contradições são su-
peradas. Hegel desenvolve uma filosofia capaz de sintetizar todo
o conhecimento humano em sua dialética, o Espírito Absoluto
encontra-se consigo mesmo e realiza-se no mundo. O desenvol-
vimento histórico da humanidade seja na esfera do direito, seja
na da filosofia, seja na arte, seja na religião, são sintetizados na

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98 © Metafísica II

filosofia de Hegel. Filosofia que é resultado de todo movimento


histórico do espírito dos povos.
Esperamos que o conteúdo aqui apresentado possa servir de
estímulo para você aprofundar suas pesquisas. Nesse sentido, não
deixe de ler a bibliografia indicada. Bons estudos!

10. E-REFERÊNCIAS
MARÍN, V. S. Biographie Fichte Portugiesisch. Tradução de Teresa Gomes Pedro. Madrid,
marzo de 2007. Disponível em: <http://www.fichte-gesellschaft.de/phpfusion/viewpage.
php?page_id=91>. Acesso em: 23 mar. 2011.
MARXISTS INTERNET ARCHIVE. G. W. F. Hegel. Disponível em: <http://www.marxists.org/
portugues/hegel/index.htm>. Acesso em: 23 mar. 2011.

11. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


BRUM, J. T. O primado do artista sobre o filósofo. Concinnitas. Rio de Janeiro, v. 1, n. 8,
jul. 2005.
HARTMANN, N. A filosofia do idealismo alemão. 2 ed. Lisboa: Fundacao Calouste
Gulbenkian, 1960.
HEGEL, F. Fenomenologia do Espírito. Tradução de Paulo Meneses. Petrópolis: Vozes,
1992.
ROVIGHI, S. V. História da filosofia moderna: da revolução científica a Hegel. 2 ed. São
Paulo: Loyola, 2000. 
SCIACCA, M. F. História da filosofia do humanismo a Kant. São Paulo: Mestre Jou, 1968.
EAD
Nietzsche e a
Crítica da Metafísica

4
1. OBJETIVOS
• Compreender a crítica de Nietzsche ao pensamento me-
tafísico ocidental.
• Analisar os pressupostos que configuram a metafísica na
análise de Nietzsche.
• Conhecer o período de esgotamento do pensamento me-
tafísico.
• Comparar as categorias filosóficas da metafísica com as
categorias que possibilitariam um novo começo para o
pensamento filosófico na filosofia da vontade de poder.
• Avaliar a possibilidade de um novo projeto filosófico a
partir da crítica à metafísica de Friedrich Nietzsche.
100 © Metafísica II

2. CONTEÚDOS
• A compreensão de Nietzsche sobre a metafísica.
• O problema da metafísica e a sua decadência.
• O fim da metafísica e a proposta de uma nova forma de
filosofar.

3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE


Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que
você leia a orientação a seguir:
1) A vontade de poder, enquanto entendida como relação
de forças, exime a filosofia nietzschiana de quaisquer
implicações metafísicas. Essa questão foi tratada devi-
damente no meu livro: Nietzsche: pathos artístico versus
consciência moral. Jundiaí: Paco, 2011. p. 34.
1) Antes de iniciar os estudos desta unidade, pode ser
interessante conhecer um pouco da biografia de
Nietzsche, cujos pensamentos norteiam o estudo
deste CRC. Para saber mais, acesse os sites indicados.

Friedrich Nietzsche (1844-1900)


Poucos autores em filosofia foram objetos de apropria-
ções tão numerosas e diversas quanto Nietzsche – da
leitura nazista de Bäumler, no começo do século XX, às
interpretações de Deleuze, Foucault e Derrida, na França
imediatamente pré e pós-maio de 1968, um grande esfor-
ço interpretativo colocou em disputa o sentido desse difícil
arquipélago que se convencionou, não de forma unívoca
ou definitiva, chamar sua "obra". A maior dificuldade des-
sa tarefa – e indicá-la tornou-se um lugar-comum entre
os comentadores de Nietzsche nas últimas décadas – se
deve, em grande parte, à própria resistência que esse gru-
po de textos oferece em fornecer um critério de unidade
constante ou, ao menos, uniformemente indexável. Nesse sentido, é impossível
abordar esses escritos sem que se decida, antes, que tipo de intenção se procura
fazer funcionar em seu interior, e mesmo uma proposta como a da edição das
obras de Nietzsche precisa levar em conta seu risco – é Derrida quem levanta
esse problema, questionando o critério de unidade que está em jogo na mais
recente dessas edições (BRITO, 2011. Imagem: disponível em: <http://www.pia-
noclassico.org/2009/07/friedrich-nietzsche.html>. Acesso em: 31 mai. 2011).
© U4 - Nietzsche e a Crítica da Metafísica 101

4. INTRODUÇÃO À UNIDADE
Segundo Heidegger (1991), com a filosofia hegeliana, a fi-
gura da metafísica encontra-se plenamente realizada. Lembremos
que, movida por uma necessidade interna, ou por uma enteléquia
da razão, a metafísica, desde Platão, desenhou uma figura em que
cada um dos filósofos metafísicos deixou a sua marca e contribuiu
para o preenchimento dessa figura.
Vimos que o desenho da figura metafísica foi interrompido
pela filosofia crítica de Kant. Todavia, a sua necessidade interna e
seu destinamento exigiram rápida superação do obstáculo kantia-
no, realizada pelos idealistas e, sobretudo, por Hegel. Mas aí surge
uma pergunta: se a filosofia é, sobretudo, metafísica e se a meta-
física chegou ao fim, isto é, realizou todas as potências da razão, o
que então se pode esperar da filosofia? Afinal, qual o destino da
filosofia após ela ser realizada por completo?

5. ESTRUTURA DA METAFÍSICA NA ANÁLISE DE


NIETZSCHE
Antes de especular sobre o destino da filosofia – algo que fa-
remos em nossa última unidade –, vale demorarmo-nos um pouco
e observar o que ocorre nessa reta final em que a metafísica se
encontra realizada a partir do idealismo hegeliano.
Temos de observar que, se a metafísica chega ao seu fim, en-
tão, ela teria esgotado a sua problemática e discussão peculiar, o
que significa dizer que ela não apresenta nenhum interesse e, por
essa razão, ela naturalmente deve "morrer". Entretanto, a filosofia
atesta seu direito de ser e existir pelas questões insolúveis que a
sua natureza peculiar especula.
Se ela realizou as suas potências, então não há mais nada a
oferecer. Antes, porém, de declararmos o fim da metafísica e, nesse
sentido, o fim da filosofia, vale observarmos que na própria neces-

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102 © Metafísica II

sidade histórica da superação da metafísica se engendra um novo


trajeto filosófico. O primeiro protagonista dessa superação da meta-
física e desse novo trajeto é o filósofo alemão Friedrich Nietzsche.
Para compreendermos por que Nietzsche assume a impor-
tância de primeiro protagonista, faremos uma breve explanação
do mecanismo por meio do qual a metafísica ocidental opera no
trajeto de Platão a Nietzsche.
Para responder a pergunta pelo Ser, o mundo ocidental elegeu,
mediante Sócrates, Platão e Aristóteles, a possibilidade da razão. Nes-
se sentido, a metafísica descreveu em sua história a figura de um único
e mesmo destino, ou melhor, destinamento. Ao longo da "odisseia da
razão", a metafísica encontra vários obstáculos e limites que, porém,
serão derrubados em nome da razão e sua destinação.
Colocando a razão, em nosso escopo investigativo, em sua
função de disposição ou possibilidade diante do desafio ontológico,
necessitamos de reconstituir a importância de alguns aspectos que
acreditamos serem os pilares de todo processo especulativo ao lon-
go do pensamento filosófico, ao menos no trajeto de Platão a Hegel,
a saber: o homem, a verdade, a moral, a arte e a pedagogia.
Nesse caso, a compreensão genealógica desses aspectos
poderá nos mostrar o que está por trás da gênese filosófica ao
longo do seu trajeto. Mas antes disso necessitamos de um norte-
ador que possa guiar essa análise. Elegemos, então, duas frases
de Nietzsche, extraídas do seu ensaio juvenil – Sobre a verdade e
mentira num sentido extra moral –, que acreditamos serem mais
compatíveis às nossas intenções de encontrar um guia que possa
nos encaminhar na investigação sobre a natureza da razão huma-
na. As frases escolhidas são:
1) "Para o intelecto não há outra missão mais vasta que
transcender a vida" (1991, p. 8).
2) "O intelecto, como meio de conservação do indivíduo,
desenvolve as suas forças dominantes na dissimulação"
(1991, p. 8).
© U4 - Nietzsche e a Crítica da Metafísica 103

Mas o que essas frases podem nos revelar? Entre muitas ou-
tras coisas, revelam que o intelecto ou a razão não operam na vida
em que a soberana lei é a do devir, eles transcendem a vida. Para
essa missão mais vasta – como Nietzsche diz – o intelecto produz
seus artefatos metafísicos a partir da sua principal ferramenta –
o princípio da não contradição, cuja missão é imobilizar o devir,
o que significa: transcender a vida, ou dito mais acertadamente:
transcender o abismo nadificante da vida. Vamos observar, então,
esse demiurgo metafísico e seus artefatos conceituais?
Registramos, inicialmente, que os produtos da razão, molda-
dos pelo princípio da não contradição, constituem a camada me-
tafísica, descartando a phisis, uma vez que esta é contraditória. Em
contrapartida, a razão, com seu caráter não contraditório, assume
a importância de critério lógico de existência, conforme o qual o
verdadeiramente existente não pode ser contraditório. Aqui nos
aparece a face moral da razão por meio da crença explícita de que
o não contraditório se conservará.
Justamente essa face moral é a marca registrada da funda-
mental disposição racional da metafísica. Nessa solução teórica,
explicitamente aparece a dicotomia "existência – morte", que de-
termina e conduz as especulações metafísicas. Estas, cuja história
se estende de Platão a Hegel, são protagonizadas pela razão e seus
artefatos conceituais.
A seguir, iremos nos deter sobre tais artefatos representa-
dos pela concepção antropológica, a concepção epistemológica, a
concepção moral e a concepção pedagógica. Por ora, deixaremos
de lado a natureza da arte, acreditando que ela realiza, a partir de
Nietzsche, a ruptura com a metafísica.

Antropologia metafísica versus antropologia existencialista


A concepção antropológica deve responder à pergunta: "o
que é o homem?". Conforme a orientação metafísica dessa con-
cepção, o homem não pode ser o indivíduo concreto, mas a sua

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104 © Metafísica II

dimensão genérica, pois, como a natureza física do indivíduo é


impossível de ser conhecida, conforme o parecer do princípio da
não contradição, então, o homem deve ser compreendido em sua
estrutura metafísica, enquanto ideia de homem, de modo abstrato
e objetivo.
Todavia, é incontestável que as especulações teóricas em
torno da realidade humana passam por várias transformações no
trajeto descrito de Platão a Hegel e de Hegel a Nietzsche e poste-
riormente ao existencialismo. Suspeitamos, porém, que a concep-
ção antropológica em sua versão metafísica padece definitivamen-
te com a introdução da Vontade de Poder operada por Nietzsche.
Essa vontade plural, entendida como relação de forças, implica,
por sua vez, no perspectivismo, o qual manifesta o indivíduo em
sua presença e modo único.
A transformação, portanto, dá-se como passagem gradativa
de definições essenciais do homem, isto é, definições genéricas e
objetivas (exemplo: o homem é animal racional etc.), para "defini-
ções" existenciais em que se enfatizam os aspectos individuais e
autênticos da realidade humana. Uma passagem que arranca da
metafísica seu principal argumento, sem o qual ela perde vigor e
relevância.
Na vertente existencialista, por exemplo, notamos uma clara
tendência de se eliminar quaisquer definições genéricas. Portanto,
a especulação antropológica genealogicamente se configura como
passagem da essência para a existência, isto é, do gênero ao indi-
víduo, do metafísico ao físico.

Epistemologia: verdade versus verdades


A concepção epistemológica, por sua vez, encontra-se inti-
mamente vinculada à concepção antropológica, uma vez que é por
esta que aquela se determina. Sendo assim, à ideia do homem,
isto é, do homem objetivo, correspondem verdades universalmen-
te válidas, com efeito, objetivas. Caso não se possa conhecer ver-
© U4 - Nietzsche e a Crítica da Metafísica 105

dadeiramente o que se transforma, então, a verdade não pode ser


referida ao físico (em constante devir), mas, sim, ao metafísico.
Com seus indicadores físicos (os sentidos), o indivíduo não
é capaz de ascender às verdades apodíticas (universalmente vá-
lidas). Requer-se, então, uma concepção metafísica do homem
que, ao enfatizar a sua natureza racional e objetiva, esteja capaz
de acessar aeternae veritas. Disso deriva o segundo aspecto fun-
damental, o aspecto epistemológico.
A gênese da concepção antropológica implica, na mesma
medida, a gênese (transformação) da concepção epistemológica
em que o principal papel cabe à verdade. Não será difícil de no-
tar que a concepção da verdade de Platão a Nietzsche, apesar das
suas variações, mantém-se relativamente intacta em sua dimen-
são universal e objetiva. Em ensaio Sobre a verdade e mentira...,
Nietzsche já denuncia a inconsistência da pretendida verdade.
Se à definição metafísica do homem corresponde paralela-
mente uma concepção objetiva da verdade, a mesma verdade, à
medida que a realidade humana passa a ser concebida em sua sin-
gularidade e unicidade, perde sua atualidade e vigência objetiva.
Ela começa a ser concebida subjetivamente, de modo autônomo e
singular. Portanto, com a pluralização das vontades ocorre a plura-
lização das verdades.

Universalidade versus perspectiva de valores


Chegamos, assim, à concepção moral. Evidentemente, ao
homem objetivo, ao qual corresponde a verdade objetiva, devem
corresponder também valores universalmente válidos, isto é, ob-
jetivos, que não se transformem conforme o acaso ou a adversida-
de do acaso.
Segundo Nietzsche, a verdade e a moral, no domínio da me-
tafísica, são intimamente ligadas, pois a moral, em última instân-
cia, visa à felicidade, mas a felicidade só pode ser constituída no
solo da verdade em que nada muda e nada se transforma. É nesse

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106 © Metafísica II

sentido que a verdade é o meio de driblar a transitoriedade. Ou


como Nietzsche diz a partir da frase anteriormente citada: o inte-
lecto é meio de conservação.
A conservação dá-se no plano metafísico, uma vez que no
plano físico nada se conserva. E somente a verdade objetiva, uni-
versalmente válida, fornece o suporte imóvel para a conservação.
Talvez seja por isso que a ideia de "ponto fixo" esteja sempre pre-
sente no pensamento ocidental. Esse "ponto fixo" nada mais é que
a metáfora da verdade. Nesse sentido, a verdade é essencialmente
moral. Mas não somente ela. A razão, em última instância, é, tam-
bém, essencialmente moral. A verdade é, portanto, a possibilidade
e o fundamento da moral e dos valores universalmente válidos. A
verdade garante a validade dos valores morais.
Essa é, em poucas palavras, a relação íntima entre verdade
e moral. Basta relembrar a frase marcante de Sócrates: "conheci-
mento é virtude", a partir da qual é possível concluir que o "sábio é
feliz". Ou dito de outra maneira, o conhecimento não serve apenas
à sua essência epistemológica, mas, antes disso, aos fins essencial-
mente morais.
Com o impacto sobre a verdade causado por Nietzsche,
ocorre a gradativa substituição dos valores objetivos, isto é, uni-
versalmente válidos, pelos valores próprios do indivíduo que se
engendram de acordo com o perspectivismo.

Pedagogia: igualação do não igual versus tornar-se o que é


Por fim, chegamos à concepção pedagógica. Esta, enquanto
determinada pela metafísica, ou melhor, enquanto desempenha
um papel de instrumento metafísico, ininterruptamente tende a
transformar ("formar") o indivíduo concreto e deixá-lo mais próxi-
mo possível da sua dimensão ideal.
Essa tendência é igualmente válida tanto para o primeiro
metafísico – Platão, como também para o último – Hegel. Ou seja,
a estratégia é conduzir o homem do físico (o indivíduo concreto)
© U4 - Nietzsche e a Crítica da Metafísica 107

ao metafísico (o homem em sua dimensão genérica). Portanto, a


formação ou a paideia, que se referem à mesma coisa, consistem
na ação que leva o informe e o possível a sua forma genérica ou
ideal. Nisso consiste a etimologia do termo formação, ou seja,
ação que tende à forma.
Vendo por esse ângulo, fica claro que a educação, assim en-
tendida, cumpre anseios metafísicos ao conduzir o indivíduo à sua
dimensão genérica. Essa ascensão metafísica promovida pela for-
mação torna possível o acesso às verdades eternas e aos valores
universalmente válidos. Nisso consiste o papel da dialética, que
deve conduzir do concreto ao abstrato, do informe ao uniforme
igualando o não igual.
Mas esse processo que Nietzsche chama de igualação do
não igual, e que a chamada "formação" nos apresenta auxiliada
pelo método dialético, parece ser mais uma ação de formatação.
Todavia, com o declínio do homem objetivo, da verdade objetiva e
da moral objetiva, declina também a pedagogia objetiva. No lugar
desta começa florescer a pedagogia de "tornar-se o que é", que
valoriza o concreto, o individual, o único.

Conclusões sobre a análise de Nietzsche sobre a metafísica


Para tornarmos mais evidente esse mecanismo metafísico
que lida com o tenebroso da existência e reconstitui a vida em
camadas metafísicas, apresentamos um mapa conceitual que ex-
plicita figurativamente esse mecanismo metafísico:

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108 © Metafísica II

Figura 1 Mapa conceitual sobre a Metafísica.

Dando continuidade à nossa análise genealógica, observa-se


que, com o declínio da fé na razão, ocorrem transformações signi-
ficativas. Se a metafísica estende-se de Platão a Hegel e neste últi-
mo ela se realiza; se a realização da metafísica proclama, simulta-
neamente, o seu fim, porém, enunciando supostamente um novo
projeto filosófico, a partir de Nietzsche, então, vale a pena analisar
quais são as causas que preparam o solo desse novo projeto filo-
sófico. Para tal fim, precisamos reconstituir o trecho final da figura
metafísica que abrange o período de Kant a Hegel.

6. O FIM DA METAFÍSICA DE KANT A HEGEL: A ARTE E


O NOVO PROJETO DE FILOSOFIA
Com Kant e sua revolução copernicana, começa uma virada
notável no pensamento metafísico e a sua anulação enquanto co-
nhecimento legítimo no âmbito da razão teórica. Mas aqui o que
nos interessa mais é o processo de significativa valorização da es-
tética. Kant reserva para a estética um papel fundamental, consti-
© U4 - Nietzsche e a Crítica da Metafísica 109

tuindo-a como uma das disciplinas fundamentais da filosofia.


Em sua obra Crítica da faculdade de julgar, observamos vá-
rios aspectos que influenciaram a especulação estética posterior.
Além disso, destacam-se os importantes aspectos que o pensador
konigsberguiano introduz referente ao gênio e ao sublime. Não se-
ria exagerado dizer que a doutrina do gênio de Kant serve de ins-
piração para o retrato do gênio desenhado pelo romantismo. Já o
conceito kantiano de sublime terá um papel fundamental na cons-
tituição do pensamento dialético dos idealistas. O sublime serve
de modelo do trágico e este, por sua vez, entendido como anta-
gonismo e reconciliação, serve de modelo para a dialética: tese,
antítese e síntese.
Com Schelling, a estética e, mais especificamente, a arte tor-
nam-se organon da filosofia. Com o idealista alemão, dá-se uma
valorização muito significativa aos gêneros poéticos, o que cer-
tamente ocorre por via do romantismo. Notemos, também, que
Schelling é o primeiro que coloca o trágico no escopo da especu-
lação filosófica, tornando-o um problema ontológico, constituin-
do-o como problema da condição humana. Além do mais, para o
idealista romântico, o acesso ao Absoluto se dá não por meio do
conceito, como é no caso de Hegel, mas por meio da intuição esté-
tica – esta, entendida como símbolo do Absoluto. Assim, não res-
ta dúvida de que as especulações em torno da estética e da arte,
cada vez mais, atestam o seu direito e lugar reservado no itinerário
filosófico, uma pretensão que chegará o seu ponto culminante
com os filósofos da vontade – Nietzsche e Schopenhauer.
Com Schopenhauer e Nietzsche, a estética sai do domínio da
especulação teórica e torna-se princípio vital. Em Schopenhauer,
nota-se uma curiosa inversão da doutrina das ideias de Platão,
inversão que possibilita o acesso às verdades eternas, isto é, às
ideias platônicas por meio da experiência estética. Ou seja, dife-
rentemente de Platão, para o qual o acesso às verdades se dá ex-
clusivamente por meio da razão e para quem a arte desempenha-

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110 © Metafísica II

va um papel secundário e insignificante, Schopenhauer elegeu a


arte como reveladora do Absoluto.
No entanto, o grande passo na superação da metafísica por
meio da arte é inaugurado por Nietzsche e sua concepção de von-
tades múltiplas. Estas, por sua vez, requerem diferentes perspecti-
vas engendradas por diferentes indivíduos. Assim ocorre a ruptura
com a concepção antropológica objetiva que dominava o projeto
metafísico e, com ela, corta-se o laço umbilical com a concepção
epistemológica, ética e pedagógica. A partir do perspectivismo ja-
mais será possível se falar sobre verdades absolutas, valores uni-
versalmente válidos e formação que em sua efetivação deve al-
cançar a suposta ideia do homem. Essa tendência antimetafísica
estende-se plenamente sobre a problemática existencialista, da
qual o grande protagonista vem a ser Martin Heidegger.
Dessa breve análise, podemos concluir, então, que com a va-
lorização da arte e da estética parece dissolver-se, naturalmente,
a camada metafísica.
Outra constatação que emerge dessa investigação revela
que a análise da gênese da concepção antropológica não pode ser
separada ou tratada separadamente da análise da gênese episte-
mológica, da ética ou da pedagógica. Todas elas devem ser obser-
vadas em seu conjunto, possibilitando, assim, a descoberta do mo-
vimento genealógico desse destinamento filosófico que a História
da Filosofia nos desvela. E se a crítica à soberba razão iniciada,
sobretudo, por Nietzsche rompe aos poucos com a pretendida ver-
dade objetiva e, a partir daí, com a poderosa metafísica ocidental,
uma vez que a verdade objetiva é uma das mais sublimes manifes-
tações da metafísica e vigora enquanto esta vigora, então, após a
"morte da metafísica", proclamada por Nietzsche, a verdade ob-
jetiva também é condenada a morrer, levando consigo os valores
universalmente válidos e a própria concepção de formação obje-
tiva. Nesse caso, urge uma pergunta: que tipo de projeto novo, se
há que há um projeto novo, os "filósofos do porvir" reservaram
© U4 - Nietzsche e a Crítica da Metafísica 111

para a filosofia? De Platão a Hegel, por mais de dois mil anos, a


filosofia desenha a sua figura e realiza todas as potências da razão
chegando ao fim.
Terá, então, outro começo? Como podemos imaginar e como
será possível, no domínio do discurso filosófico, a substituição de
conceitos tais como o de homem genérico, verdade objetiva, va-
lores objetivos e pedagogia objetiva, conceitos que alimentavam
o discurso filosófico durante milênios e sem os quais tal discurso
seria impensável? Evidentemente, requer-se um novo projeto fi-
losófico, até mesmo oposto ao seu célebre ancestral. Um projeto
positivo que envolva uma visão autêntica do homem e dos seus
artefatos, sejam verdades, sejam valores, sejam formações.
Chegamos ao momento, então, de especular sobre a nova
proposta, bem como de levantar a hipótese de que esta possa
emergir de um logos metafórico.

7. O FIM E A POSSIBILIDADE DE UM NOVO COMEÇO


Como contraponto da concepção teórica, as especulações
em torno da arte e da estética começam a entrar, de modo tímido
inicialmente e, cada vez mais manifestante no discurso filosófico.
Talvez não seja ficção o fato de que com a decadência do caráter
metafísico das concepções (antropológicas, epistemológicas, éti-
cas e pedagógicas) as especulações em torno da arte se intensifi-
cam ou vice-versa: talvez essa intensificação produza o declínio das
concepções metafísicas. Não seria a arte, então, essa nova propos-
ta de filosofia? Caso seja, como ela funcionaria, que discurso ela
indicaria e em que desenvolvimento ela se encontra atualmente?
Ainda hoje, pouco depois do suposto mentor do novo proje-
to (Nietzsche), poderíamos afirmar que, devido à forte tendência
de inautentificação e massificação promovida pelo contexto social,
político e econômico, esse projeto não sofreu uma "morte prema-

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112 © Metafísica II

tura", ou ainda não entrou em vigor definitivamente por causa dos


resíduos tóxicos do antigo testamento filosófico que ainda domina
e mantém em "ressaca" a filosofia contemporânea?
Para Heidegger, a destruição da metafísica é uma tarefa ur-
gente para a liberação de novas possibilidades do pensamento fi-
losófico. Uma destruição que Nietzsche teria inaugurado com seus
"golpes de martelo". O mesmo Heidegger reconhece isso ao afir-
mar que a ideia de martelo:
[...] possui um sentido múltiplo: ela não significa que se deva ferir
grosseiramente ou destruir. Significa, antes, fazer jorrar, a golpes
redobrados, a consistência e a essência, a estrutura da pedra. Sig-
nifica, antes de tudo: experimentar todas as coisas com o martelo,
perceber se elas soam ocas, perguntar se ainda possuem gravidade
e peso, ou se todo peso foi retirado delas (1961, p. 66).

Mas onde se devem procurar as fontes originárias dessa nova


possibilidade, que deve surgir por um ato de destruição? Talvez se
deva procurar no entendimento do pathos.
É por um ato de destruição que se pode retornar às fontes
originárias da filosofia, das quais pode emergir uma nova proposta
e um novo destino a partir de um pathos que cria.
Vejamos como Nietzsche descreve genealogicamente essa
destruição ou superação da metafísica no § 5 de seu livro Crepús-
culo dos Ídolos, intitulado História de um erro ou Como o verda-
deiro mundo se tornou fábula. O aforismo apresenta a origem e a
gênese da metafísica aludida por Nietzsche como sendo a história
do niilismo.
O primeiro ponto inicia-se com Platão e seu mundo verda-
deiro: "O verdadeiro mundo, alcançável ao sábio, ao devoto, ao
virtuoso – eles vivem nele, são ele (Forma mais antiga da ideia.
Transcrição da proposição 'eu Platão' sou a verdade)".
Evidentemente, para Nietzsche, a metafísica começa com a
cisão entre mundo sensível e mundo ideal. A camada metafísica,
estabelecida por Platão e apresentada pelas ideias, revela as ver-
© U4 - Nietzsche e a Crítica da Metafísica 113

dades eternas, uma vez que apenas as ideias estão de acordo com
o princípio de não contradição. Este é critério lógico que deve ates-
tar o que realmente existe e o que é apenas sombra da verdadeira
realidade. Nesse primeiro ponto, observamos ainda que o acesso
às verdades eternas é reservado para o sábio, pois somente este é
capaz de agarrar a dialética e ascender a tais verdades.
Diferente do primeiro ponto em que se frisa a possibilidade
de acesso às verdades eternas pelo sábio, o segundo ponto já re-
cusa esse acesso, considerando-o apenas uma promessa que se
cumprirá para o devoto, o virtuoso, para o pecador que faz peni-
tência:
O verdadeiro mundo, inalcançável por ora, mas prometido ao sábio,
ou devoto, ao virtuoso (ao pecador que faz penitência). Progresso
da idéia: ela se torna mais refinada, mais cativante, mais implacável
– ela vira mulher, ela se torna cristã.

O segundo ponto do aforismo retrata a metafísica cristã, em


que claramente não se dá tanta ênfase ao acesso às verdades eter-
nas pelo sábio, mas, sobretudo, à submissão do devoto, do "pe-
cador que faz penitência" (promessa para aquele que crê). Agora,
não é o sábio junto à força da dialética que acessa soberanamente
às verdades eternas (os valores eternamente válidos - a moral),
mas é o devoto, apoiado pela fé, agarrado à promessa de alcançar
as verdades eternas, que aparece como o principal protagonista
da moral.
A "odisseia" da vontade de verdade que a metafísica prota-
goniza ao longo do seu itinerário encontra um obstáculo teórico e
metodológico em Kant. Essa situação é retratada por Nietzsche no
terceiro ponto do seu aforismo:
O verdadeiro mundo – inalcançável, indemonstrável, imprometível,
mas já, ao ser pensado, um consolo, uma obrigação, um imperativo
(O velho sol ao fundo, mas através de neblina e skepsis: a idéia tor-
nada sublime, desbotada, nórdica, konjgsberguiana).

O terceiro ponto, diferentemente dos primeiros dois ante-


riormente citados, recusa definitivamente o acesso às verdades

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114 © Metafísica II

eternas. Kant, em sua Crítica da razão pura, separa radicalmente o


mundo dos fenômenos do mundo das coisas em si. Este último é
inacessível para o conhecimento humano, todavia, é pressuposto
por dedução com a origem do mundo fenomênico. Todavia, essa
impotência teórica do sujeito humano, causada pela determinação
prévia da estrutura transcendental, abre as portas da metafísica,
antes negada no âmbito teórico já como regulador prático da ação
moral.
Depois das restrições críticas da empresa kantiana, que ba-
nem do âmbito teórico qualquer objeto metafísico, a dissolução
da metafísica é definitivamente pré-enunciada. O quarto ponto do
aforismo nietzschiano mostra exatamente isso:
O mundo verdadeiro – inalcançável? Em todo caso inalcançado. E
como inalcançado também desconhecido. Consequentemente não
consolador, redentor, obrigatório: o que poderia algo desconhecido
nos obrigar?... (cinzenta manhã. Primeiro bocejo da razão. Canta o
galo do positivismo).

E realmente, o positivismo, com a sua proposta quantitativa,


expulsa do âmbito teórico quaisquer objetos metafísicos. Agora,
a investigação filosófica dirige-se ao concreto, ao real, ao quanti-
tativamente mensurável, com efeito, ao mundo físico, deixando a
impressão de que o metafísico já deixou de ser um problema da
filosofia. Com o declínio da metafísica, Nietzsche mostra o declínio
também de toda obrigação moral: "o que poderia algo desconhe-
cido nos obrigar?".
Todavia, o positivismo, ao tentar superar a metafísica, difun-
de uma crença exagerada no conhecimento científico. Constrói o
mundo da ciência e pretende substituir com ela o mundo da me-
tafísica. Nessa sua intenção, não será difícil de enxergar a atitude
dogmática por meio da qual o positivismo tenta abolir os pres-
supostos metafísicos. Todavia, ele o faz a partir do arcabouço da
própria metafísica.
O positivismo só pode exprimir-se em termos compreensíveis atra-
vés de conceituações metafísicas. Ao desfazer-se delas sem as re-
fletir, tais conceituações mantêm sua têmpera substancial também
contra o adversário (HABERMAS, 1982, p. 100).
© U4 - Nietzsche e a Crítica da Metafísica 115

Além do mais, o positivismo mostra-se como uma vertente


pouco filosófica enquanto atenta ao fato concreto e se recusa a
remontar ao seu direito. Além do positivismo, o fim da metafísica,
após Hegel, é requisitado pela vertente do materialismo dialético
e da filosofia da vontade. Exceto essa última, as outras duas ver-
tentes, apesar das suas intenções, parecem retomar certos traços
do espírito metafísico e, portanto, a pretensão de uma ruptura
definitiva com os pressupostos da ontoteologia ocidental não se
justifica.
O materialismo dialético, ao pretender substituir a dialética
do espírito pela dialética da matéria, comete um erro fundamen-
tal ao tratar a matéria como se fosse espírito. Feuerbach substitui
o espírito hegeliano (Geist) pelo gênero humano (Gattung), pre-
tendendo, assim, recuperar o lugar privilegiado do homem que
ele mesmo se recusou, a partir da sua consciência religiosa. Essa
substituição, no entanto, não passa de uma versão disfarçada da
metafísica, pois compreende o homem em sua dimensão objetiva,
como gênero.
Marx também trata o homem em sentido de gênero, de es-
sência, utilizando-se das ferramentas conceituais da metafísica.
A matéria transforma-se em um princípio, uma espécie de argila
metafísica em que se determinam, necessariamente, todas as re-
lações possíveis. A dialética, nessa versão materialista, retrata um
processo de desenvolvimento, porém, não circular, mas progressi-
vo que leva do inferior ao superior. Essa suposta "realização mo-
vente" de qualquer modo denuncia seu parentesco com a metafí-
sica. Falta nela uma autêntica interpretação da realidade humana
em suas possíveis perspectivas.
Não há, portanto, nem no materialismo dialético, nem no
positivismo quaisquer índices de superação total da metafísica e
elaboração de nova proposta. A nova proposta só pode advir do
perspectivismo que, ao se originar das profundezas da subjetivi-
dade humana, cria e produz ininterruptamente obras inéditas.

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116 © Metafísica II

Nesse sentido, podemos dizer que a filosofia da vontade parece


ser a precursora da filosofia existencialista, na qual se intensifi-
cam as especulações acerca da subjetividade humana. Por isso,
seguiremos o fio que conduz ao voluntarismo, representado por
Schopenhauer e Nietzsche. Estamos, então, no último ponto do
aforismo nietzschiano, em que se enuncia a superação total de
metafísica.
O verdadeiro mundo nós o expulsamos: que mundo resta? o apa-
rente talvez?... Mas não! Com o verdadeiro mundo expulsamos
também o aparente! (meio dia; instante da mais curta sombra; fim
do mais longo erro; ponto alto da humanidade; Incipt Zaratustra)(O
crepúsculo dos ídolos, §5, p. 77).

Para que possamos entender esse último ponto do aforis-


mo, temos de ter em mente que a metafísica opera por meio da
cisão entre verdadeiro e aparente. Nesse dualismo de mundos, ela
toma sentido, vigor e segurança. Mas a constante busca de verda-
de, exercida pela vontade de verdade – o traço fundamental de
toda metafísica – acaba por realizar uma subversão que denuncia
o caráter vão dessa busca.
Um papel fundamental no reconhecimento da fraqueza da
razão metafísica de encontrar a verdade pretendida exerce a fi-
losofia pessimista de Schopenhauer. Se Kant recusou o acesso às
verdades eternas e reservou para o conhecimento apenas a apa-
rência fenomenal, Schopenhauer vai mais longe ao negar que por
trás da aparência fenomenal exista algo que a fundamente, algo
como coisa em si. Mas justamente esse caráter alógico da exis-
tência que Schopenhauer alude como anticristo, leva o filósofo a
considerar este mundo como o pior dos mundos possíveis.
É justamente nesse ponto de extremo pessimismo que co-
meça a tarefa de Zaratustra, que consiste em devolver o sentido
da terra, mas não o sentido moral e sim o sentido estético. Com
essa inovação, Nietzsche parece apontar para uma nova proposta
de filosofia que surge na base de um logos metafórico. A arte é
eleita como a nova possibilidade da filosofia – uma possibilidade
que Heidegger e o existencialismo vão aderir integralmente.
© U4 - Nietzsche e a Crítica da Metafísica 117

8. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS
Confira, a seguir, as questões propostas para verificar o seu
desempenho no estudo desta unidade:
1) Por que é possível afirmar que, com a introdução da Vontade de Poder de
Nietzsche, a metafísica se encontra impossibilitada de operar?
a) Porque a Vontade de Poder entendida como "vontade plural" implica no
perspectivismo, que, por sua vez, rejeita a visão universalista implícita
em cada metafísica.
b) Porque a Vontade de Poder implica no esquecimento do ser que é, por
sua vez, o objeto privilegiado da metafísica.
c) Porque a Vontade de Poder rompe com as relações de forças típicas de
cada metafísica
d) Porque a Vontade de Poder rompe com o perspectivismo e estabelece
uma visão unitária.
2) O que ocorre com a noção de verdade a partir do perspectivismo operado
por Nietzsche?
a) Ocorre a relativização da verdade, de modo tal que não se pode falar
mais de verdade universal.
b) Ocorre a universalização das verdades.
c) Ocorre a objetivação das verdades particulares.
d) Ocorre a objetivação das eternas verdades.
3) Qual, segundo Nietzsche, é a implicação da verdade para a moral?
a) A verdade contrapõe-se à moral.
b) A verdade e a moral se excluem mutuamente.
c) As verdades são formas disfarçadas da moralidade.
d) A verdade é o meio de se escapar da transitoriedade.

Gabarito
1) a.

2) a.

3) d.

9. CONSIDERAÇÕES
Nesta unidade, você entrou em contato com alguns dos pon-
tos de oposição da filosofia de Friedrich Nietzsche em relação ao

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118 © Metafísica II

pensamento metafísico ocidental. De Platão a Hegel, a razão dese-


nhou uma figura metafísica na qual todas as diferenças tinham de
desaparecer no conceito que tudo abarca com sua universalidade.
Esta figura metafísica orientou os aspectos mais importantes da
cultura ocidental: sua antropologia, sua pedagogia, sua moral e
sua epistemologia.
Nietzsche toma para si a tarefa de protagonista de uma nova
direção espiritual para os seres humanos. Essa nova forma de pen-
sar a realidade deve partir de outra base epistemológica. Nietzsche reto-
ma a metáfora e a arte como modelos de compreender o mundo,
o mundo como ele se apresenta, com suas contradições e sofri-
mentos.
Enquanto os filósofos metafísicos condenavam esse mundo
como um mundo ruim, pelo seu aspecto de transitoriedade, Nietzsche
percebeu que justamente esse aspecto do mundo que o torna um
mundo em constante disputa de forças e, portanto, sempre em
guerra consigo mesmo, constituía sua beleza e importância. As-
sim, Nietzsche justificou o mundo não por ele ser o melhor dos
mundos, mas por ele ser assim como é. Mesmo que fosse o pior
dos mundos, ainda assim, seria um mundo cheio de beleza e vida.
Esperamos que você tenha aprendido um pouco mais sobre este
grande filósofo. Bom estudo!

10. E-REFERÊNCIA
BRITO, F. de L. Dar-se uma vida: autobiografia como metodologia filosófica no jovem
Nietzsche. Cadernos de Ética e Filosofia Política. São Paulo, 2008. p. 21-38. Disponível
em: <http://www.fflch.usp.br/df/cefp/Cefp12/britto.pdf>. Acesso em: 31 mai. 2011.

11. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


HABERMAS, J. Positivismo, pragmatismo e historicismo. In: ______. Conhecimento e
interesse: com um novo pósfácio. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.
HEIDEGGER, M. Nietzsche. Tradução de Pierre Klossowski. Paris: Gallimard, 1961.
© U3 - A Metafísica do Idealismo Alemão 119

______. O fim da filosofia e a tarefa do pensamento. São Paulo: Nova Cultural, 1991. (Os
Pensadores)
NIETZSCHE, F. Sobre verdade e mentira num sentido extra moral. São Paulo: Nova
Cultural, 1991. (Os Pensadores)
______.  Crepúsculo dos ídolos ou a filosofia a golpes de martelo.  Rio de Janeiro:
Companhia das Letras, 2006.
KRASTANOV, S. V. Nietzsche: pathos artístico versus consciência moral. Jundiaí: Paco,
2011.

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EAD
Martin Heidegger:
Ontologia
Fundamental
5
1. OBJETIVOS
• Analisar as principais diferenças entre Husserl e Heidegger.
• Compreender a crítica à metafísica de Martin Heidegger e
o esquecimento do ser.
• Conhecer a proposta fenomenológica existencialista de
Heidegger.

2. CONTEÚDOS
• Heidegger X Husserl: essência x existência.
• Heidegger e o problema da metafísica ocidental.
• A análise fenomenológica do Dasein.

3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE


Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que
você leia as orientações a seguir:
122 © Metafísica II

1) No decorrer do estudo, utilizaremos ser-aí e Dasein como


sinônimos. Ser-aí é a tradução portuguesa de Dasein.
2) É importante que você leia as obras de Heidegger indica-
das no Tópico Referências bibliográficas.
3) A fim de contextualizar o conteúdo desta unidade e o da
próxima, vamos conhecer um pouco da vida e da obra de
Martin Heidegger, esse importante filósofo alemão.

Martin Heidegger
Martin Heidegger nasceu em 1889 em Messkirch e
morreu em 1976 em Friburgo, na Alemanha. Dono de
conhecimento filosófico bastante profundo, reflete em
sua obra a influência de Husserl, Max Scheler, Kierkegaard
e Dilthy, além dos excelentes conhecimentos de língua
grega e da filosofia de Aristóteles, Platão, Santo Agos-
tinho, Descartes, Hegel e Bergson.
Leão (1977) assim o define:
[...] como pensador, ele é a linguagem do pensamento.
É um pensamento tão originário que não se deixa clas-
sificar. Parece estar fora de uma história crescente de
conformismo e progressiva imposição de estereótipos
imposta pela civilização ocidental.
Considerado, ao lado de Nietzsche, o mais socrático e
trágico dos pensadores modernos, nada mais foi que
um ser simples, pobre e sensível que, durante os seus
86 anos de vida, viveu a angústia do homem diante de
um mundo quebrado; a inquietação de um espírito diante do mistério do ser; do
homem esmagado pelas coisas.
As figuras mais comuns em suas meditações são lenhadores, camponeses e
artesãos, demonstrando sua identidade com a terra, sua tradição e linguagem
natal.
Heidegger foi professor de filosofia da Universidade de Marburg, Friburgo e Ber-
lim e, então, desenvolveu uma terminologia própria e muito pessoal para expres-
sar seus pensamentos, o que torna complicada a compreensão de suas idéias.
Chegou a ser reitor da Universidade de Friburgo. Foi amigo de Karl Jaspers e
discípulo de Hurssel. Foi também severamente visado pelo partido nazista e en-
viado, no último ano de guerra, para trabalhar nas escavações de trincheira no
norte do Reno.
Em Heidegger, os nomes não bastam para nomear as coisas, pois para ele a
nomenclatura não é senão uma profusão de significados arrumados em prate-
leiras conceituais. Esclarecendo melhor esta sua visão, explica que há mais de
dois milênios o pensamento humano desenvolve a representação num processo
inversamente proporcional à omissão da presença do ser.
Mas é na palavra, na linguagem que as coisas para ele, chegam a ser. No fazer-
se linguagem do ser, o homem vem a si mesmo e o mundo vem ao homem. Por-
tanto, a linguagem é para ele, ao mesmo tempo, um velar-se e um desvelar-se
© U5 - Martin Heidegger: Ontologia Fundamental 123

do ser na história da humanidade.


Para que possamos entender melhor suas idéias é preciso conhecer certas ex-
pressões dais quais faz uso freqüente.
ser = (com s minúsculo) modo de ser do ente enquanto ente.
Ser = diferença ontológica, fundamento de possibilidade do ser e do ente/ou/
energia que faz com que o ente seja o que o ente é.
Dasein = ser aí, ou abertura de espaço para o Ser passar. Que eleva o homem à
condição de ente privilegiado, por permitir o advento do Ser.
Verdade = iluminação em que o ente se revela, em seu ser como ente.
Linguagem = "Casa do Ser", onde habita o homem - fundamento.
linguagem = (com l minúsculo) concepção lógica, gramatical, filosófica e científi-
ca desenvolvida através da história ocidental - fundado.
Existência = Ser para a morte.
História = vicissitudes da verdade do ser
Essencializar = processo ontológico em que o ente revela o seu ser.
Homem = mensageiro do Ser. Canal por onde o Ser passa e se revela. Espelho
da verdade do Ser.
Pensar = expor-se ao mistério da realidade, numa conversão radical de todo o
nosso modo de ser para sua própria essência.
Radical = aquilo que é capaz de atingir o âmago da questão, o início.
Refletir = tentativas para atingir as raízes do mistério do ser (SLEUTJES, 2001, p.
190. Imagem: disponível em: <http://www.marcuse.org/herbert/people/heidegger/
heideggersig300pxw.jpg>. Acesso em: 03 mai. 2011).

4. INTRODUÇÃO À UNIDADE

Da fenomenologia husserliana à filosofia da existência


Para uma compreensão integral da filosofia heideggeriana,
torna-se imprescindível uma breve retomada de alguns dos pontos
fundamentais da fenomenologia husserliana. Entre tais pontos,
cabe ressaltar os seguintes:
• Intencionalidade da consciência;
• O apelo: "Vamos para as próprias coisas";
• Redução fenomenológica e transcendental;
• Essência e existência.
Inicialmente, vale observar que o conceito de "intenciona-
lidade da consciência" desempenha um papel fundamental não

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124 © Metafísica II

apenas na fenomenologia husserliana, mas também nas suas ver-


sões existencialistas. Todavia, Heidegger substitui a intencionalida-
de pela transcendência, trazendo uma compreensão ontológica da
proposta fenomenológica. A esse respeito, Heidegger afirma:
Se considerarmos qualquer relação com o ente como intencional,
então a intencionalidade é possível apenas com base na transcen-
dência, mas é preciso atentar: intencionalidade e transcendência
não se identificam e esta não se funda naquela (1973, p. 283).

Se pensarmos a intencionalidade como sendo o modo pelo


qual nós temos acesso ao objeto em sua essência, como sendo o
modo pelo qual se constitui a relação cognitiva entre um sujeito
e um objeto, então, a intencionalidade na versão husserliana diz
respeito unicamente à teoria do conhecimento. Em contraparti-
da, a transcendência, no interior da ontologia fundamental de
Heidegger, designa o modo de ser de um ente privilegiado que
é capaz, por meio da transcendência, de acessar o mundo e, em
particular, constituir uma relação epistemológica com esse mun-
do. É neste sentido que Heidegger dirá que a intencionalidade (na
sua importância epistemológica) é possível apenas com base na
transcendência (a estrutura ontológica do homem).
Referente ao segundo aspecto, a saber, ao apelo husserliano
– "Vamos para as próprias coisas", conforme o qual as próprias
coisas são os fenômenos puros, projetados na tela da consciência,
Heidegger submete à aguda crítica o entendimento husserliano de
próprias coisas. Nas suas aulas de 1925, o filósofo explicará, para
seus alunos, por que não pode e não deve aceitar o entendimento
husserliano de fenomenologia:
• O campo temático da análise husserliana [afirma Heidegger]
é a consciência. Como tal ela não é um novo campo te-
mático, pois ela não é "para as próprias coisas", mas um
retorno para a tradicional ideia filosófica da consciência.
Com isso, conforme Heidegger, perde-se o intuito da feno-
menologia e ela regressa nos labirintos da tradição, cuja principal
preocupação consiste em fazer ontologia da consciência e, portan-
© U5 - Martin Heidegger: Ontologia Fundamental 125

to, não é o método que possa compreender toda ontologia. A filo-


sofia, em sua originalidade, deve-se ocupar não com a consciência,
mas com o ser. Justamente isto é, para Heidegger, ontologia funda-
mental. Com outras palavras, o discípulo critica o mestre, por este
ter traído o seu principal apelo: "vamos para as próprias coisas" e
ter se voltado para investigar a consciência.
Para alcançar a verdadeira essência das coisas, Husserl intro-
duz o método fenomenológico da redução, segundo o qual tem de
se colocar entre parentes, além de todas as outras restrições, tam-
bém o aspecto existencial das coisas. Mas justamente o aspecto
existencial das coisas é o que interessa à ontologia fundamental.
Em prol do significado lógico das coisas, isto é, da sua essência,
Husserl descarta o problema ontológico, isto é, a questão da sua
existência. Heidegger, ao contrário de Husserl, retoma a questão
do ser como problema fundamental da existência – o que, natural-
mente, impõe uma mudança no entendimento da fenomenologia.
Esta virada prepara os primeiros passos de uma profunda reflexão
sobre o sentido do ser no âmbito de ontologia fundamental.

5. A NOVA CONCEPÇÃO FENOMENOLÓGICA


Para difundir o novo conceito de fenomenologia que preten-
de alcançar uma altura ontológica, Heidegger recupera etimologica-
mente do grego a palavra "fenomenologia". Como se pode observar,
a palavra é composta por dois termos: fenômeno e logos. Em sua
originalidade grega, o fenômeno é: o que se revela, o que se mostra
em si mesmo (HEIDEGGER, 2000, p. 58). Temos de deixar bem claro
que essa "mostração" nada tem a ver com aquilo que Husserl cha-
mava de manifestação. Manifestar-se – diz Heidegger contrariando
o seu mestre – é um não se mostrar (2000, p. 59).
Sutilmente podemos observar que a diferença entre manifesta-
ção e mostração reflete a diferença entre o entendimento husserlia-
no de fenomenologia e o entendimento de Heidegger sobre o mesmo

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126 © Metafísica II

conceito. A manifestação desempenha a sua função no âmbito episte-


mológico em que nós queremos conhecer determinados aspectos de
alguma coisa, mas esse conhecimento só é possível pelo fato de algo
mostrar-se. É o que Heidegger ressalta em Ser e Tempo:
Apesar de a "manifestação" não ser nunca um mostrar-se [...], qual-
quer manifestação só é possível com base no mostrar-se de alguma
coisa [...]. Pois, aquilo em que alguma coisa se manifesta diz somen-
te aquilo em que uma coisa se mostra (2000, p. 59).

Assim como a transcendência torna possível a intencionalidade,


como sendo a condição de uma atitude epistemológica, do mesmo
modo a "mostração", entendida em sua dimensão ontológica é a con-
dição da "manifestação" entendida em sua dimensão epistemológica.
A palavra logos em sua originalidade, conforme Heidegger,
significa: "deixar e fazer ver, deixar e fazer perceber o ente" (2000,
p. 64). Justamente por isso é que o logos pode ser verdadeiro ou
falso. Não no sentido tradicional da concepção da verdade como
correspondência, mas no sentido de aleteia. Aquilo que se deixa
ver é o "des-coberto" (aleteia). Também o falso é o resultado do
"em-cobrimento", quando não se deixa ver a coisa como ela se
mostra. A verdade, no sentido de correspondência, que atribui ao
juízo o lugar da verdade, segundo Heidegger, é uma concepção er-
rônea que deturpa o conceito grego da verdade. A percepção sen-
sível é que tem o poder de deixar ver as coisas como elas são - em
sua verdade de ser. A esse respeito, Heidegger afirma:
[...] a visão sempre descobre cores, a audição descobre sempre
sons. "Verdadeiro" no sentido mais puro e originário, isto é, no sen-
tido de só poder dês-cobrir e nunca poder em-cobrir, é a pura per-
cepção que percebe singelamente as determinações mais simples
do ser dos entes como tais (2000, p. 64).

Talvez por isso, para Heidegger, o silêncio tenha o poder de


revelar o que se mostra em si e por si, o que se deixa ver. Mais
adiante ele dirá que a própria ciência na qual opera a concepção
da verdade como correspondência tem o estranho poder de velar,
de "em-cobrir" a verdade do ser dos entes. Vemos o que ele diz
literalmente:
© U5 - Martin Heidegger: Ontologia Fundamental 127

O que já não possui a forma de exercício de um puro deixar e fazer


ver, mas que, para de-monstrar [procedimento da ciência], recorre
sempre a uma outra coisa e assim deixa e faz ver cada vez algo
como algo, assume, junto com essa estrutura sintética, a possibili-
dade de encobrir (HEIDEGGER, 2000, p. 64).

Você pode notar, portanto, que, para recuperar o sentido ple-


no de fenômeno, de logos e de verdade, Heidegger praticamente
se opõe e submete à crítica toda a concepção teórica desde quan-
do, com a concepção correspondente da verdade, se encobriu a
verdade do ser dos entes, quando deixou de se manter em aberto
a pergunta pelo sentido do ser.

6. CRÍTICA À METAFÍSICA
Antes de tudo e primordialmente, a filosofia surge como per-
gunta pelo sentido do ser, isto é, como ontologia. Aberta pelo gê-
nio grego a pergunta pelo ser, segundo Heidegger, ofereceu várias
possibilidades de ser respondida.
A concepção teórica inaugurada, sobretudo por Platão e Aris-
tóteles, elegeu o caminho da razão e fundou a metafísica clássica
na base racional. Circunscreveu-se, assim, a figura da metafísica
que, ao longo do seu percurso, tende ao preenchimento. Confor-
me Courtine (2006), preenchimento que, determinado por uma
necessidade da própria filosofia, por uma enteléquia da razão, ten-
de a chegar ao fim (Bedürfnis), isto é, no sentido positivo assim
como Heidegger a entende, realizar as suas potências:
'A destinada' [diz Courtine ao comentar a posição heideggeriana]
no sentido que a metafísica descreveu em sua história a figura de
um único e mesmo destino, ou melhor, destinamento ('Geschick')
(COURTINE, 2006, p. 21).

Isso quer dizer que a metafísica iniciada pelos gregos se confi-


gura a partir de várias nuances de um e mesmo desenho unidos por
uma tendência interna da razão de chegar a sua plena realização ou
acabamento. Em direção ao seu acabamento, a metafísica encontra
muitos obstáculos, dentre os quais cabe destacar o criticismo kan-

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128 © Metafísica II

tiano, que impôs, provisoriamente, a essa tendência racional limites


intransponíveis que, só por um golpe de mestre do idealismo, se-
riam derrubados em nome da razão e sua destinação.
Nesse sentido, Schelling afirma que: com a crítica a filosofia
não chega ao fim. Mas com o idealismo alemão parece que esse
fim encontra a sua verdadeira realização. Diz Heidegger (1991, p.
268): "O fim da filosofia é o lugar em que se une a totalidade da
sua história em sua possibilidade mais radical". Esse acabamento
parece que se realiza a partir do historicismo hegeliano, mas
Heidegger insiste que talvez esteja na hora,
[...] de liberar aquela que foi a possibilidade primeira, possibilidade
original, não no sentido de que se haveria simplesmente apresen-
tado em primeiro lugar e em relação a que sempre se pode dizer
que afinal das contas uma outra 'escolha' inicial haveria sido possível,
mas porque essa possibilidade é já origem de possibilidades, origem
possível de experiências novas? (COURTINE, 2006, op. cit., p. 34).

Experiências novas e novas escolhas, segundo Heidegger, só


podem advir pelo "[...] gesto mesmo da destruição da tradição;
assim a destruição liberta [...]" (COURTINE, 2006, p. 34). Um gesto
- podemos completar - que Nietzsche teria inaugurado com seus
golpes de martelo. O mesmo Heidegger reconhece isso em seu
Nietzsche, ao afirmar que a ideia de martelo:
[...] possui um sentido múltiplo: ela não significa que se deva ferir
grosseiramente ou destruir. Significa, antes, fazer jorrar, a golpes re-
dobrados, a consistência e a essência, a estrutura da pedra. Significa,
antes de tudo: experimentar todas as coisas com o martelo, perceber
se elas soam ocas, perguntar se ainda possuem gravidade e peso, ou
se todo peso foi retirado delas (HEIDEGGER, 1961, p. 66).

Evidentemente, Heidegger aponta para um recomeço, para ou-


tra escolha e outra possibilidade. Mas onde se devem procurar as fon-
tes originárias dessa nova possibilidade que deve surgir por um ato de
destruição? Talvez se deva procurar no entendimento do pathos.
A palavra pathos em sua origem grega, que Heidegger pretende
recuperar em sua originalidade, seria a 'dis-posição afetiva funda-
mental' (HEIDEGGER, 2004, p. 218-219) que está na base de todo
filosofar. O pathos é o espanto e 'o espanto [diz Heidegger] é, en-
quanto pathos, a arkhé da filosofia. [...] Designa aquilo de onde
© U5 - Martin Heidegger: Ontologia Fundamental 129

algo surge [...]' (HEIDEGGER, 2004, p. 219). Esse 'algo surge' remon-
ta a um processo em que algo se engendra, aparece, algo vem a
ser, enfim, em que algo se cria. Esse 'algo' é a filosofia e ela se cria
nesse pathos.
Aristóteles também confirma esse significado: "Pelo espanto (pa-
thos por excelência) os homens chegam agora e chegaram à ori-
gem imperante do filosofar" (ARISTÓTELES, 2001, I, 2, 982 b 12).
Até mesmo Platão atribuiu ao pathos a origem da filosofia: "É ver-
dadeiramente de um filósofo este pathos, o espanto; pois não há
outra origem imperante da filosofia que este" (PLATÃO, 2005, 155
d) (KRASTANOV, 2011, p. 15).

Platão, Aristóteles e Heidegger concordam plenamente que a


origem, ou melhor, a arché da filosofia deve ser procurada no pathos.
Nesse caso, os grandes sacerdotes da razão (Platão e Aristóteles), ao
considerar o pathos como arché da filosofia, reconheceram, curiosa-
mente, a origem não racional da filosofia. E, nesse sentido, Heidegger
tem razão ao afirmar que é por um ato de destruição que se pode
retornar às fontes originárias da filosofia, nas quais pode surgir um
novo remeço e um novo destino a partir de um pathos que cria. E esse
pathos move, segundo Heidegger, a necessidade de uma retomada
da primeira pergunta filosófica – a pergunta pelo sentido do ser.
A necessidade da destruição da metafísica deriva do fato de
que os "nortes" da tradição metafísica – a razão, o conceito e a
verdade – foram impotentes para manter em aberto a pergunta
pelo sentido do ser. O conceito não fora capaz de "de-finir" o ser,
pois o conceito de ser – nos diz Heidegger – é indefinível. O concei-
to fecha, a metáfora abre. A poesia e a arte viram a clareira do ser
e o poeta e o artista – seus guardiões.
Mas para entendermos melhor essa impotência do conceito
para "des-velar" o ser, vale observar como Heidegger compreende
a noção de ser. Em Ser e Tempo, o filósofo coloca em pauta três
noções do conceito do ser:
1. "Ser" é conceito mais universal (...) (Uma compreensão do ser
já está sempre incluída em tudo que se apreende no ente) A
"universalidade" do "ser", porém, não é a do gênero. A "uni-
versalidade" do ser transcende toda universalidade genérica
(HEIDEGGER, 2000, p. 28).

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130 © Metafísica II

Essa primeira definição estabelece praticamente a diferença


entre o "ser" e o "ente" – uma diferença fundamental no interior
da ontologia fundamental de Heidegger.
Evidentemente, o trecho citado faz referência à impossibilidade
da redução do ser em qualquer instância ôntica. O ente é tudo o que se
pode "de-finir" por meio do conceito. "De-finir" aqui significa "pôr limi-
tes", delimitar, circunscrever algo dentro de um âmbito universal, de um
horizonte universal. Ser é esse âmbito geral no interior do qual os entes,
concretos ou abstratos, podem se "de-finir" por meio do conceito. E, jus-
tamente, nesse caso urge uma pergunta: o Ser pode ser de-finido?
Daí surge uma segunda noção para esclarecer essa dúvida:
2. O conceito de "ser" é indefinível. Essa é a conclusão tirada da
máxima universalidade. De fato, o "ser" não pode ser concebido
como ente (...) o "ser" não pode ser determinado, acrescentan-
do-lhe um ente. Não se pode derivar o ser no sentido de uma
definição a partir de conceitos superiores nem explicá-lo atra-
vés de conceitos inferiores. Daí pode-se apenas concluir que o
"ser" não é um ente. Por isso o modo de determinação do ente,
legítimo dentro de certos limites – como a definição da lógica
tradicional que tem seus fundamentos na antiga ontologia – não
pode ser aplicado ao ser (2000, p. 29).

A segunda noção de "ser" exposta por Heidegger é bastante


clara na tarefa de estabelecer linhas limítrofes entre a compreen-
são do ser e a do ente.
Fica claro pela citação que o "ser" nunca pode ser reduzido
em ente, embora a possibilidade da determinação do ente requei-
ra, necessariamente, a sua realização no âmbito do ser, na região
superior que podemos denominar heideggerianamente de totali-
dade dos entes. E, assim como o olho é o fundo da visão a partir
do qual vemos as coisas, do mesmo modo, o ser é posição de fun-
do a partir da qual os entes se determinam.
As ciências particulares e a nossa atitude cotidiana – dirá
Heidegger – ocupam-se com os entes. Cabe, porém, ao ofício dos
filósofos explorarem a posição de fundo que é o Ser. É o que pode-
mos concluir da terceira noção de Ser exposta por Heidegger:
© U5 - Martin Heidegger: Ontologia Fundamental 131

3. O "ser" é o conceito evidente por si mesmo. Em todo conheci-


mento, proposição ou comportamento com o ente e em todo re-
lacionamento consigo mesmo, faz-se uso do "ser" e, neste uso,
compreende-se a palavra "sem mais". Todo mundo compreende:
"o céu é azul", "eu sou feliz". Mas a essa compreensão comum
demonstra apenas a incompreensão. Revela que um enigma já
está sempre inserido a priori em todo ater-se e ser para o ente,
como ente. Esse fato de vivermos sempre numa compreensão
do ser e o sentido do ser estar, ao mesmo tempo, envolto em
obscuridade demonstra a necessidade de princípio de se repetir
a questão sobre o sentido do ser (2000, p. 29-30).

Aí vem o ponto crucial da crítica que Heidegger dirige à tradição


metafísica. Mediante as três noções fundamentais de "Ser" esboça-
das por Heidegger, demonstrou-se que a pergunta pelo sentido do
ser não é passível de resposta, o que, por sua vez, impõe a neces-
sidade de se colocar essa questão em pauta novamente. A tradição
metafísica, cuja ferramenta é o conceito, como vimos, é condenada
ao fracasso quando pretende determinar o ser. Ela esquece-se do ser,
vela-o, transformando-o em ente. Mas com os entes, nos diz Heidegger,
ocupam-se as ciências particulares. Então, a filosofia, como o templo
mais altivo do pensamento humano, deve manter em aberto a per-
gunta pelo fundamento, isto é, pelo "ser". O filósofo do ser não pre-
tende responder o que é o "ser", mas apenas ser um guardião do ser
e, para isso, ele conta com a poderosa arma da fenomenologia.

7. A FENOMENOLOGIA
Tomando como referência a interpretação feita por Heide-
gger dos dois termos que compõem a palavra "fenomenologia",
podemos afirmar que a fenomenologia significa "des-coberta" do
que se mostra por si mesmo e a partir de si mesmo. Ou para dizer
de modo mais acertado com as palavras próprias de Heidegger, a
fenomenologia é "[...] deixar e fazer ver por si mesmo aquilo que
se mostra, tal como se mostra a partir de si mesmo" (2000, p. 65).
Aqui, surge a necessidade de explicarmos a peculiaridade de qual-
quer "mostração".

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132 © Metafísica II

Tomado isoladamente, o verbo "mostrar-se" não se faz enten-


der integralmente. Ele como que se põe à necessidade de ser pen-
sado a partir de um complemento que revela esta mostração, pois
o "mostrar-se" sempre pressupõe alguém para o qual a mostração
se dirige. Caso não exista alguém para o qual algo se mostra, a mos-
tração perde todo sentido e significado, ela deixa de ser mostração.
Portanto, "o mostrando-se" exige uma estrutura existencial aberta
que é capaz de ser receptor desta mostração. É a partir dessa in-
terpretação fenomenológica que se delineia o caráter específico da
ontologia fundamental e seus pilares fundamentais: a mostração e
o ente privilegiado que "des-cobre" essa mostração.
Veja, a seguir, como Heidegger define as tarefas da ontologia
fundamental:
Em seu conteúdo, a fenomenologia é a ciência do ser dos entes – é onto-
logia. Ao se esclarecer as tarefas de uma ontologia, surgiu a necessidade
de uma ontologia fundamental, que possui como tema a presença, isto
é, o ente dotado de um privilégio ôntico-ontológico. Pois, somente a
ontologia fundamental pode-se colocar diante do problema cardeal, a
saber, da questão sobre o sentido do ser em geral (2000, p. 68).

Mas aqui surge a dúvida: quem será então, entre todos os exis-
tentes, aquele ente capaz de receber e interpretar o significado desta
mostração? A dificuldade poderia ser facilmente removida, uma vez
verificado que, realmente, não há senão um único ser privilegiado que
é capaz de se interrogar sobre o sentido do ser. Este ente privilegiado
Heidegger chama de Dasein, isto é, ser-aí do homem. A esta conclu-
são fundamental Heidegger chega por meio da análise da pergunta.
Cada pergunta, qualquer que ela seja, envolve três momentos:
1) Para que se pergunta (Gefragtes)? – sempre para o sen-
tido de ser (das Sein).
2) Aquilo que se pergunta (Befragtes) – é o Dasein (ser-aí
do homem) sendo ele primado ôntico – isto é, essência
do homem reside na sua existência. Ele é também pri-
mado ontológico – uma vez que somente o homem se
interroga sobre o sentido do ser.
3) O resultado da pergunta (Erfragtes) – é o próprio Dasein,
pois o resultado surge a partir da estrutura existencial
© U5 - Martin Heidegger: Ontologia Fundamental 133

do Dasein (a pergunta sobre o ser presume sempre uma


"pré-compreensão" do objeto do qual se pergunta). Diz
Heidegger:
Enquanto procura, o questionamento necessita de uma orientação
prévia do procurado. Para isso o sentido do ser já nos deve estar, de
alguma maneira, disponível [...]. Nós não sabemos o que diz 'ser'
nós nos mantemos numa compreensão do 'é' (2000, p. 31).

O trecho citado não deixa dúvida de que qualquer pergunta


ôntica, isto é, sobre os entes, que podemos dirigir ao mundo, torna-
se possível no âmbito do ser. Assim, por exemplo, quando pergunta-
mos sobre algo, mesmo quando não sabemos o que é esse algo ou
onde ele está, nós pelo menos temos a "pré-compreensão" de que
ele "é", que "existe". Não podemos perguntar sobre algo que não
sabemos se existe. Eu não posso perguntar sobre um aroma que
nunca senti, por exemplo. E é nesse sentido que: enquanto procura
o questionamento precisa de uma orientação prévia do procurado.
Mas o que acontece quando no escopo ontológico se coloca a ques-
tão sobre o sentido do ser, isto é, a condição de tudo que é?
Para a compreensão dessa interrogação ontológica, temos
que inicialmente analisar o modo de ser daquele ente que pergunta
pelo sentido do ser, a saber, analisar a primazia ontológica do ser-aí
(Dasein) do homem. Essa análise é denominada por Heidegger de
analítica existencial. Dela falaremos na Unidade 6. Bons estudos!

8. QUESTÃO AUTOAVALIATIVA
Confira, a seguir, as questões propostas para verificar o seu
desempenho no estudo desta unidade:
1) Qual a principal crítica que Heidegger dirige à Metafísica?
a) Inautenticidade dos filósofos ao tratarem as questões metafísicas.
b) De esquecer que a origem da problemática metafísica se encontra na
própria razão humana.
c) De esquecer o sentido do ser como problema fundamental da metafísi-
ca, transformando-o em ente.
d) De ignorar Deus e, com isso, "assassinar" a metafísica.

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134 © Metafísica II

Gabarito
1) c.

9. CONSIDERAÇÕES
Como você pôde acompanhar, nesta unidade foi possível
identificar as principais temáticas da estrutura da ontologia fun-
damental de Heidegger. Nessa análise, você conheceu alguns as-
pectos essenciais para a compreensão do pensamento de Martin
Heidegger no que diz respeito à questão da metafísica. Para isso,
analisamos as principais diferenças entre a concepção da fenome-
nologia como Husserl a entendia e a concepção fenomenológica
de Heidegger. Um destaque cabe à questão existencial, que com
Husserl deveria ficar entre parênteses para que se possam encon-
trar as essências das coisas em si mesmas, mas para Heidegger a
questão fundamental da filosofia não são as essências, mas a exis-
tência mesma, isto é, o ser.
Essa compreensão heideggeriana da fenomenologia faz com
que Heidegger olhe para a história da metafísica, como para a his-
tória do esquecimento do ser. Heidegger acusa toda a tradição de
ter esquecido o verdadeiro objeto de análise da filosofia, isto é, o
ser. Então, propõe que o fundamental da análise filosófica não é se-
não a pergunta pela própria existência, ou seja, a pergunta pelo ser
que está no fundamento de toda a questão, no fundamento de tudo
aquilo que é. Mas, afinal, por que existe o ente e não o nada?

10. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


ABBAGNANO, N. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
ARISTÓTELES. Metafísica. Tradução de Giovanni Reale. Rio de Janeiro: Loyola, 2001.
COURTINE, J. F. A tragédia e o tempo da história. São Paulo: Editora 34, 2006.
GILES, T. História do existencialismo e da fenomenologia. São Paulo: EPU, 2003.
HEIDEGGER, M. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes, 2000.
______. O que é metafísica. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Os Pensadores)
© U5 - Martin Heidegger: Ontologia Fundamental 135

______. Carta sobre o humanismo. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Os Pensadores)
______. Que é isto - a filosofia. São Paulo: Nova Cultural, 2004. (Os Pensadores)
______. Sobre a essência do fundamento. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Os
Pensadores)
______. Nietzsche. Tradução de Pierre Klossowski. Paris: Gallimard, 1961.
______. Sobre a essência do fundamento. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Os
Pensadores)
______. O fim da filosofia e a tarefa do pensamento. São Paulo: Nova Cultural, 1991. (Os
Pensadores)
KRASTANOV, S. V. Nietzsche: pathos artístico versus consciência moral. Jundiaí: Paco,
2011.
PLATÃO. Teeteto. Lisboa: Fundação Caloust Gulbenkian, 2005.
ROVIGHI, S. V. História da filosofia contemporânea. São Paulo: Loyola, 1999.
SLEUTJES, M. H. Pós-modernidade em Heidegger. Rev. Univ. Rural, Sér. Ciênc. Humanas.
Vol. 23(2): 189-193, jul./dez. 2001.
STEGMÜLLER, W. A filosofia contemporânea. São Paulo: EPU, 1977.

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EAD
Heidegger:
Analítica Existencial

6
1. OBJETIVOS
• Compreender a análise do ente que se pergunta pelo sen-
tido do ser: analítica existencial.
• Analisar a questão do tempo e da finitude como espaço
privilegiado para o Dasein.
• Conhecer os principais conceitos na questão do tempo e
do espaço heideggeriana: tempo autêntico e inautêntico.

2. CONTEÚDOS
• Essentia versus existentia.
• Temporalidade e finitude: "ser-para-morte".
• Autenticidade e inautenticidade.
• Espacialidade do ser-aí: "ser-com" ou "ser-entre".
• A questão do nada: por que, afinal, existe o ente e não
antes o nada?
138 © Metafísica II

3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE


Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que
você leia as orientações a seguir:
1) É hora de fazer um balanço de tudo o que você aprendeu
neste curso de Graduação. Todas as teses dos grandes fi-
lósofos que estudou, ou pelo menos alguma, das várias
filosofias com as quais teve contato, deve ter lhe causado
o espanto necessário para tornar-se não só um professor
de filosofia, mas um filósofo. Para isso, o mais importante
é que você comece a questionar a realidade em que vive
e procurar seus fundamentos, seu sentido, seu "quê", seu
"por que" etc. É hora de recolocar a pergunta sobre o ser
das coisas e esperamos que já tenha se deparado com
algum desses problemas filosóficos, um desses "proble-
mas com chifres", que lhe deixaram perplexo e admira-
do. Um verdadeiro filósofo, um verdadeiro cientista, tem
de estar envolvido com um problema, um problema que
lhe inquiete a alma, deve estar em crise, pois só fazemos
ciência, só fazemos filosofia, porque o mundo tem pro-
blemas, caso ele não tivesse e tudo já estivesse resolvido,
para que serviria a pesquisa? Reflita sobre isso e boa sorte
em sua caminhada!

4. INTRODUÇÃO À UNIDADE
Nossa aventura pela metafísica, que se iniciou no CRC Meta-
física I, está prestes a terminar. Você percorreu um longo caminho,
ou melhor, acompanhou o longo percurso da aventura filosófica
em busca da resposta para aquela pergunta originária sobre a ar-
ché, ou princípio de todas as coisas, a pergunta pelo ser, tão pro-
priamente inaugurada pelos filósofos pré-socráticos.
De Platão e Aristóteles, passando pelo período medieval e pela
modernidade, foram várias as tentativas de responder à pergunta que
tinha sido inaugurada pelo gênio grego. No entanto, vimos que o ca-
minho percorrido pela filosofia neste longo percurso teve como guia,
© U6 - Heidegger: Analítica Existencial 139

mapa e condutor, única e exclusivamente, o pensamento racional, o


logos e o conceito. O desenvolvimento das possibilidades de se res-
ponder a esta pergunta pelo logos tem, afinal, um acabamento.
É na filosofia do Idealismo Alemão que a razão desenvolve
todas as possibilidades, torna-se saber absoluto com a filosofia de
Hegel. Mas é com Nietzsche, com suas "marteladas", que o tipo de
pensamento que denominamos metafísica tem seu último suspiro
e, ao mesmo tempo, faz surgir uma nova possibilidade de respon-
der à pergunta pelo ser.
O que vamos estudar nesta unidade não se trata mais de res-
ponder à pergunta inaugurada pelos gregos, mas, antes, recolocar
a pergunta, refundar a possibilidade de respondê-la. Heidegger é o
filósofo que toma para si esta tarefa: reinaugurar a pergunta pelo
sentido do ser. Chega a hora de recolocarmos a questão: mas, afi-
nal, por que existe o ente e não o nada?

5. ANALÍTICA EXISTENCIAL
Partindo do pressuposto de que a pergunta pelo sentido do
ser requer uma análise daquele ente que pergunta pelo sentido
do ser descrevemos a especulação heideggeriana sobre a estrutu-
ra do primado ôntico e ontológico que se expressa em termos de
analítica existencial.
O homem é primado ôntico e, por isso mesmo, é também
primado ontológico. Mas em que sentido ele é primado ôntico?
A principal causa dessa primazia é a descoberta de que a es-
sência do Dasein reside na sua existência (2000, p. 42). A análise
existencial, portanto, deve descrever os modos do ser do homem
como ser no mundo. A realidade humana, Heidegger definirá como
Dasein – literalmente – ser-aí.
O ser-aí do homem dissolve totalmente a sua essência, re-
jeitando qualquer distinção entre alma, corpo e espírito, negando,

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140 © Metafísica II

assim, qualquer possibilidade de uma determinação essencial. Ao


contrário: "A essência do Dasein reside na sua existência".
Para que você compreenda essa frase, necessitamos escla-
recer o significado dos dois termos constitutivos da frase, essentia
e existentia.
Na metafísica clássica, há uma clara distinção entre a essen-
tia e a existentia. No que diz respeito ao mundo criado, a essentia
não implica necessariamente a existentia. Essencialmente pode-
mos definir o homem o que ele deve ser para ser homem, mas
essa definição essencial não necessariamente implica que esse
homem deve existir.
Somente em Deus, a essentia implica existentia, pois, recor-
rendo à demonstração ontológica mais preconizada (Tem-se em
vista a demonstração ontológica de Anselmo: "Deus é ser do qual
não se pode pensar nada maior", no sentido de mais perfeito), po-
demos observar que no caso do conceito de Deus, como sendo ser
sumamente perfeito, para ser perfeito, ele deve necessariamente
existir, pois, que perfeição seria a perfeição não existente?
Mas caso Heidegger identifique a essência com a existência,
uma vez que a essência do Dasein reside na sua existência, ele não
vai à contramão de toda metafísica clássica, como se afirmando
que a essência do Dasein implica a sua existência? Não seria, nes-
se caso, o ser-aí do homem um Deus? Para Heidegger, somente o
homem "existe", os outros entes "são" e, justamente, esse caráter
peculiar da realidade humana é a sua essência.
Mas essa explicação ainda não é suficiente para elucidar a
questão. No geral, o termo essentia pode ser pensado como algo
comum e determinante. Nota-se que esse determinante, no caso
do homem, conforme Heidegger, é a própria existência. Essência,
no sentido tradicional, significa determinação genérica a partir da
qual a coisa é definida e não uma determinação própria da coisa.
Nesse sentido, pode-se pensar na essência como a natureza da
coisa. A originalidade do filósofo advém da interpretação do termo
© U6 - Heidegger: Analítica Existencial 141

existentia como ek-sistencia. Mas o que é ek-sistencia? Veja o que


Heidegger nos diz a esse respeito:
A palavra [existência] designa um modo de ser e, sem dúvida, do
ser daquele ente que está aberto para a abertura do ser, na qual se
situa, enquanto a sustenta. [...] A essência ekstática da existência é,
por isso, ainda insuficientemente entendida, quando representada
como "situar-se fora de", concebendo o "fora de" como o "afastado
da" interioridade de uma imanência da consciência e do espírito;
pois, assim entendida, a existência ainda sempre seria representa-
da a partir da "subjetividade" e da "substância", enquanto o "fora"
deve ser pensado como o espaço da abertura do próprio ser
(HEIDEGGER, 1979, p. 59).

Em sua Carta sobre o humanismo, Heidegger lança ainda


mais luz sobre o termo eks-sistencia:
O estar postado na clareira do ser denomino eu a eks-sistencia do ho-
mem. Este modo de ser só é próprio do homem. A eks-sistencia as-
sim entendida não é apenas o fundamento da possibilidade da razão,
ratio, mas a eks-sistencia é aquilo em que a essência do homem con-
serva a origem da sua determinação (HEIDEGGER, 1973b, p. 352).

Vale observar que o termo ek-sistencia Heidegger cunhou


do termo grego "êxtase", que significa "sair fora de si", isto é, o
movimento ek-statico temporal por meio das três êxtases (futuro,
passado e presente) que me lança sempre para fora de um polo
unificador. Trata-se, grosso modo, de um lançar-se para fora de si
em direção ao futuro, ao presente ou ao passado; significa nunca
estar em si, mas sempre fora de si. Portanto, o ser-aí do homem
por essência é sempre estar fora de si. Mas estar fora de si ca-
rece de determinação e, portanto, conforme a definição clássica
da essência, como sendo determinação genérica da coisa, resulta
que tal determinação está na falta de determinação e, portanto,
na falta de essência.
Como outras palavras, a essência do Dasein reside na sua exis-
tência, significa que o determinante (essência) do homem está em
falta de determinação (eks-sistencia). A ek-stência, assim entendida,
revela-nos a falta de qualquer determinação no homem, com efeito,
ele não possui um lugar fixo, ele é essencialmente eks-sistente, é um
des-locar-se. Essa falta de determinação faz o homem projetar-se

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142 © Metafísica II

para suas possibilidades, fazendo seu próprio modo de ser, cuja con-
dição é a temporalidade humana fixada pelo horizonte da finitude.

6. TEMPORALIDADE, FINITUDE E IMAGINAÇÃO


Do caráter eks-statico do homem, Heidegger deriva o termo
transcendência, designando com ele aquele modo de ser peculiar
de um ente com primazia ontológica. Todavia, a transcendência,
para ser integralmente entendida no contexto da ontologia fun-
damental de Heidegger, deve incluir necessariamente as noções
de temporalidade, finitude e Imaginação, noções complementares
que tornam possível a compreensão da transcendência.
Referente à temporalidade, podemos dizer que a descoberta
do caráter subjetivo do tempo operado pela Crítica da razão pura
de Kant servirá como base da constituição do caráter temporal do
ser-aí (Dasein), operado por Heidegger. Kant mostrou que o tem-
po não é uma determinação objetiva fora do sujeito humano, mas
subjaz à sua estrutura a priori da intuição sensível, como sendo
uma das condições de qualquer experiência possível. Partindo des-
sa conotação kantiana, Heidegger descobre que a temporalidade
é eks-stática (saindo de si mesma): "Ela não é primeiramente um
ente, que apenas posteriormente sai de si mesma; sua essência é
temporalizar na unidade dos êxtases" [futuro, presente e passado]
(HEIDEGGER, 2000, p. 329).
Os êxtases temporais, enquanto compreendidos como des-
locamentos temporais, possuem uma direção que se determina
de acordo com as ocupações de ser-aí do homem. A esse respei-
to, Heidegger assevera: "Ecstasis não são simplesmente enlevos
que nos transportam para um lugar ou outro. O ecstasis possui um
"onde" para o qual se é transportado" (2000, p. 365).
Esse "onde" significa um destino determinado pela preocu-
pação. Se pensarmos no futuro que ainda não é, mas precisa ser
feito de qualquer maneira, veremos que esse "não é" nos preocu-
© U6 - Heidegger: Analítica Existencial 143

pa. Preocupa-nos porque ninguém além de nós pode fazer o nosso


futuro. Com outras palavras, ciente para sua finitude entendida
como ser para a morte, o Dasein projeta-se para o futuro, queren-
do alcançar a si mesmo – tornar-se autêntico.
O futuro que passa e gera o presente revela a temporalidade
da existência humana como sentimento da situação originária –
estar sozinho com o seu futuro.
Mas a temporalidade deve ser compreendida em função da
finitude. O homem é um ser finito que compreende sua finitude.
Nesse sentido, podemos compreender que a finitude humana é a
condição da transcendência, do projeto. Evidentemente, o projeto
(para o futuro) só vem à tona por meio da finitude, pois todo projeto
perderia seu sentido e significado se o homem fosse um ser infinito.
Ele se projeta porque é finito, a própria projeção só é possível como
sair de si mesmo, como eks-stasis. Sair de si mesmo é ultrapassar-se
e este só se compreende pelo limite, isto é, pela finitude.
Mas o projeto do Dasein depositado no futuro, enquanto en-
volve as preocupações de ser-aí do homem, não é um projeto cego,
ele é experienciado pela imaginação. Quando fazemos projetos
imaginamo-nos de acordo com as possibilidades. Então acontece
que nós nos projetamos no futuro porque nós nos preocupamos
com ele. Essa projeção que ocorre no horizonte de uma finitude
requer que seja imaginada de acordo com as possibilidades pró-
prias do sujeito humano, de acordo com as suas preocupações. Aí
vem a imaginação para compor integralmente o modo de ser do
homem como transcendência. Nesse sentido, podemos dizer que
a temporalidade, a finitude e a imaginação compõem o modo de
ser do ser-aí como transcendência.

Temporalidade autêntica e temporalidade inautêntica


Na ontologia fundamental de Heidegger, exposta em Ser e
Tempo, fica claro que somente o ser-aí do homem possui estrutura
temporal, isto é, possui a condição de fazer o seu tempo. Os ou-

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144 © Metafísica II

tros entes são intratemporais, ou seja, mergulhados no tempo, por


não possuírem esse caráter eks-statico. A temporalidade com seus
êxtases está intimamente envolvida com a atividade de ser-aí. Ele
determina se a sua temporalidade é autentica ou inautêntica. Esta
última pode ser compreendida como uma sequência de agora, isto
é, o tempo vulgar – o tempo concebido para fora das atividades
e dos propósitos do ser-aí, para fora das suas preocupações. É o
tempo do relógio a partir do qual se configura a vida em comum,
mas não aquele tempo que envolve o meu projeto.
A simples constatação que agora são 15 horas, por exemplo,
caso não esteja vinculada aos meus propósitos, em nada afeta a
minha subjetividade, não engendra o sentimento da situação ori-
ginária. Ao contrário, caso às 15 horas saia o resultado de uma pro-
va que eu fiz e da qual, de algum modo, depende o meu destino
futuro, de acordo com a preocupação pelo resultado que eu imagi-
no obter ou não, vivencio, nesse caso, um sentimento da situação
originária, porque é a minha existência que está em jogo.
Inautêntico – podemos dizer – é também o passado porque
ele não é possível, mas é um fato ocorrido como qualquer outro no
mundo das coisas que já não nos preocupa. A temporalidade au-
têntica, por sua vez, deve ser repensada a partir do aspecto "possi-
bilidade". Uma vez que apenas o futuro é possível, então a tempo-
ralidade autêntica está intimamente ligada ao futuro. Preocupado
com o futuro, o ser-aí do homem projeta nele as suas possibilida-
des originárias, que pertencem apenas a ele mesmo e a ninguém
mais. São possibilidades autênticas, portanto, possibilidades que
individualizam o ser-aí de tal modo que ele se sente preocupado
com a sua existência, sente-se ameaçado por algo desconhecido
que apenas se imagina.
A ameaça constante que o futuro engendra deriva da com-
preensão de que o homem é, em última instância, um ser-para-
morte. A morte é a última possibilidade de ser-aí e ela engendra a
sua originalidade, pois nenhum outro pode morrer em meu lugar.
© U6 - Heidegger: Analítica Existencial 145

Essa é a compreensão de que sou eu que vivo e, por isso, sou eu


que devo morrer necessariamente, e que todos os meus projetos,
de alguma forma, recebem sentido e significado por meio desse
ser-para-morte.
Temos que deixar bem claro que Heidegger especula sobre a
morte nos termos da sua ontologia fundamental – algo como con-
dição da abertura para o sentido do ser. Diz ele: "A morte é o maior
e mais elevado testemunho do ser" (2000, p. 284).
A compreensão do ser-para-morte é a preparação da per-
gunta pelo sentido do ser ou, mais exatamente, pela verdade do
ser. E a verdade do ser, entendida em sua originalidade grega como
aleteia do ser, só se deixa mostrar, isto é, dês-velar, na situação ori-
ginária de autenticidade, engendrada pelo ser-para-morte.

7. ESPACIALIDADE DO SER-AÍ
Assim como o homem é temporal, mas não está no tempo,
do mesmo modo o homem é espacial. Novamente aqui aparece
a herança kantiana ressoando na especulação ontológica funda-
mental de Heidegger. Kant concebeu o espaço junto com o tempo
como sendo a condição formal da intuição sensível. Assim como o
tempo, também o espaço não possui uma determinação objetiva,
no sentido de estar fora do sujeito humano. Partindo dessa cons-
tatação kantiana, Heidegger afirma que o homem é espacial. Com
efeito, ele nasce num mundo espacialmente configurado que, po-
rém, no interior do qual o homem se projeta espacialmente. Ele
não é como um copo que está na mesa, não possui um lugar fixo,
ele é um constante projetar-se criando o seu espaço.
A espacialidade do Dasein é determinada pela preocupação e
não pela proximidade ou distanciamento físico. Assim se pode com-
preender que a leitura que me preocupa e é importante para mim
está mais perto do que os óculos com os quais eu efetuo a leitura.
Meu espaço, portanto, configura-se por meio das minhas preocu-

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146 © Metafísica II

pações: "Por existir [diz Heidegger] ele (Ser-aí) já sempre criou um


espaço para seu próprio campo de ação (espaço para jogar, para
mover). As outras coisas ocupam um lugar (2000, p. 368).
Pode-se observar, com base no trecho citado, que "espacial"
quer dizer algo como abrir espaço, como se o espaço fosse um
atributo da própria transcendência, ao passo que os outros en-
tes estão no espaço, ocupam um lugar determinado. Nesse caso,
podemos afirmar que o homem determina o espaço enquanto os
entes são determinados pelo espaço. E uma vez que a vida já apre-
senta uma estruturação espacial no interior da qual o Dasein pro-
jeta suas possibilidades e assim re-configura tal espaço, não resta
dúvida de que existencialmente o ser-aí é espacial.

Ser-no-mundo
O aspecto absolutamente constituinte da analítica existen-
cial de Heidegger é a noção de ser-no-mundo. Evidentemente essa
noção se aplica ao ser-aí do homem e envolve três aspectos:
• O mundo.
• O ser do existente.
• O ser-em.
O aspecto "mundo" é compreendido por Heidegger em sua
ideia de mundanidade. Essa ideia possui caráter a priori, uma vez
que não se refere aos objetos concretos, mas ao mundo do ser-aí.
No seu mundo circundante, o homem é cercado por utensílios dos
quais ele dispõe, ou seja, serve-se. Essa primeira compreensão é
prática e utilitária. As coisas do mundo tornam-se úteis à medida
que são utilizadas pelo homem, uma vez que somente este con-
fere aos objetos utilidade. O mundo, assim, configura-se como o
âmbito das possibilidades do ser-aí e, dessa maneira, os utensílios
são projeções dessas possibilidades.
O ser do existente, por sua vez, refere-se ao próprio ser-aí do
homem enquanto posto na cotidianidade, enquanto se ocupa com
© U6 - Heidegger: Analítica Existencial 147

utensílios. Trata-se, grosso modo, de uma ocupação instrumental


ou como Heidegger diria – um cuidado: "Tratar e cuidar de algu-
ma coisa, produzir algo, [...]. Todos estes modos de ser possuem o
modo de ser da ocupação" (2000, p. 56).
Podemos concluir, portanto, que a nossa primeira compre-
ensão do mundo não é teoreticamente carregada, mas, antes, prá-
tica e utilitária.
O ser-em como aspecto do ser-no-mundo não significa algo
como estar contido em alguma coisa tal como é a água no copo,
por exemplo, mas significa o ser-aí do homem enquanto ligado ao
mundo. Portanto, ser-em ou estar-em não é uma determinação
espacial da coisa, mas o modo de ser do homem como "preocu-
pação", pois a relação entre o ser-aí e o mundo é mediada pela
preocupação, uma vez que ele é um possível estar no mundo.

Ser-com
Ser-com é um dos modos constituintes do ser-no-mundo.
Esse modo de ser do ser-aí expressa a relação entre o ser-aí com
os outros homens.
Os outros [diz Stegmüller ao comentar essa ideia de Heidegger] não
são nem utensílios, nem presenças, mas estão também aí com os
outros. O mundo do homem é um mundo com-os-outros, seu ser
é um ser-com-outros, o ser-por-si dos outros é um estar-aí-com-
outros. Eles não são objetos de cuidado como os utensílios, mas
são objetos de solicitude (STEGMÜLLER, 1977, p. 139).

É importante notar que ser-com é um modo fundamental


de existência por meio do qual nós conhecemos o outro. Ser-com
(os outros) significa, antes de tudo, compartilhar com o outro um
mundo em comum que nos circunda:
O Dasein partilha com os outros o espaço que o circunda. Em sua
ocupação ele se encontra a si mesmo e aos outros. De fato, nesta
possibilidade de ser-com-os-outros, o "estar-só" do Dasein é ser-com
no mundo […]. O próprio Dasein só é na medida em que possui a
estrutura  essencial de ser-com, enquanto co-Dasein que vem ao en-
contro dos outros (HEIDEGGER, 2000, p. 171).

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148 © Metafísica II

O ser-aí do homem está sempre relacionado com os outros,


seja diretamente, nas relações intersubjetivas, seja indiretamente,
por meio dos utensílios. Estes, na sua utilização prática, sempre reme-
tem ao outro, uma vez que eles são algo produzido por alguém para
alguém. Não existe um "eu" isolado, pois o ser-aí é abertura em sua
essência mais íntima entendida como eks-sistencia, projeto. Ao lan-
çar-se às suas possibilidades, como sendo um "poder-ser", ele sempre
cruza com o "poder-ser" do outro, uma vez que o outro é também
uma abertura que se projeta no âmbito das possibilidades.
Observe, nessa compreensão do ser-com-outros, que
Heidegger une o conceito ontológico (alcançado pela analítica
existencial), com o conceito antropológico do homem, como ser
de relação. A relação do homem com o homem não é a mesma da
relação prática e utilitária do homem com as coisas. Com as coisas
o homem se ocupa; com os outros, o homem se encontra. Justa-
mente por isso, como ser-com, o homem pode ser solitário. Mas a
solidão, de acordo com Heidegger, não é negação do ser-com, mas
a sua forma pervertida ou magoada (2000, p. 172).
A convivência em comum, entendida como ser-com, em con-
trapartida, pode ser marcada pela dependência. Em Ser e Tempo,
Heidegger vai se deter longamente sobre a passagem da existência
autêntica para existência inautêntica. Vale observar que a existência
em comum é capaz, às vezes, de dissolver por inteiro o ser-aí do
homem, de cada um, do modo de ser dos outros, a tal ponto que se
perdem suas próprias características, ou seja, a sua autenticidade.
O anúncio claro da inautenticidade é a perda da perspectiva
peculiar do ser-aí. Nesse caso, o homem comporta-se como todo
mundo, fala como todo mundo, veste-se como todo mundo, sonha
o que todo mundo sonha, ocupa-se como todo mundo se ocupa.
Por fim, perde sua própria existência, transforma-se em neutro im-
pessoal que Heidegger em alemão chama de Das man. Algo como
"se" em português. Esse "se" se descobre quando o autor se oculta
por trás dos outros.
© U6 - Heidegger: Analítica Existencial 149

Assim, por exemplo, observamos na nossa fala frases do tipo:


"pensa-se", "acha-se", "cria-se" etc., frases que ocultam o sujeito
que pensa, que acha, que cria. Com outras palavras, perdeu-se a
autenticidade. Vejamos o que Heidegger nos diz a respeito:
Temos prazer e nos divertimos como se (Man) diverte, lemos, vemos
e julgamos sobre literatura e arte como se vê e se julga, mas também
nos afastamos da "grande massa" como dela se afasta... Todo mundo
é outro e ninguém é ele próprio. O impessoal (Das-Man), que corres-
ponde à pergunta Quem? do Dasein cotidiano, é o ninguém, ao qual
cada Dasein já se entregou, no "ser-entre-outros" (2000, p. 181).

Assim, segundo Heidegger, ocorre a virada do ser-com para o


ser-entre-outros. Nesta noção parece inserida a ideia da coisifica-
ção do homem, quando ele não se projeta mais conforme as suas
próprias possibilidades, mas segue os modelos bem-sucedidos.
Assim, a maioria dos jovens quer estudar direito ou administração,
porque esses trazem dinheiro e porque todo mundo faz. O jovem,
nesse caso, pouco se importa com a sua existência própria, as suas
peculiaridades existenciais. Ele simplesmente faz o que os outros
fazem, com outras palavras, perdeu-se na inautenticidade.
Referente à existência inautêntica, a linguagem pode nos di-
zer muita coisa. Por ela, segundo Heidegger, somos capazes de re-
conhecer o impessoal. O discurso inautêntico expressa-se em três
modalidades: o palavreado, a curiosidade e a ambiguidade.
O palavreado tem o poder de não refletir o que se diz na con-
versa. Esta, mantida na sua superficialidade em que o que importa
é passar a notícia, como se de um fato estatístico se tratasse. A
esse respeito, Heidegger afirma:
Não se apreendem tanto as entidades de que se fala, mas dão se ou-
vido apenas ao que é falado como tal. É isso que é entendido; aquilo
sobre o que se fala só o é aproximadamente e por alto (2000, p. 228).

Com outras palavras, a profundidade do que é falado é sim-


plesmente dissolvido na desenfreada vontade de sermos atualiza-
dos, de não sermos pegos de surpresa, por não sabermos tal no-
tícia. E aí vem a curiosidade – a segunda modalidade do discurso
inautêntico:

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150 © Metafísica II

curiosidade [diz Heidegger] é caracterizada por uma peculiar ten-


dência a não se deter sobre o que está mais próximo... Ao não se
deter, a curiosidade está preocupada com a constante possibilida-
de de distração... Ela se preocupa em conhecer, mas apenas com o
fito de tomar conhecimento (2000, p. 240).

Um dos claros exemplos dessa curiosidade superficial é o Li-


vro de Guines.
A partir do palavreado e da curiosidade chega-se à terceira
modalidade da inautenticidade, a ambiguidade:
Tudo parece genuinamente entendido, apreendido, discutido e no
fundo não está. O palavreado e a curiosidade, em sua ambigüida-
de, cuidam para que as novas e genuínas criações já estejam anti-
quadas quando chegam ao público (2000, p. 240).

Vale notar que essas modalidades ou estados de inautentici-


dade, no interior da concepção heideggeriana, não possuem uma
conotação ética ou moral. Na verdade, trata-se de compreender
o homem nesses dois estados existenciais em que este oscila: do
autêntico ao inautêntico e vice-versa.
Mais adiante retornaremos a discutir a linguagem autêntica,
mas antes devemos analisar como o homem faz a retomada da sua
existência autêntica. Falaremos, portanto, sobre a autenticidade
do ser-aí do homem.

Autenticidade
Segundo Heidegger, a possibilidade de ser autêntico ou inau-
têntico do Ser-aí do homem enraíza-se no fato de que o Dasein
(Ser-aí) é sempre meu. Sendo meu, posso perdê-lo ou conquistá-lo.
Posso perdê-lo na ocupação. Nesse caso ele é absorvido pelo mun-
do, torna-se coisa do mundo. Esse estado de queda, como vimos,
é a existência inautêntica. Ser-aí está sempre ligado ao mundo e,
como tal, sempre preocupado. Essa preocupação Heidegger cha-
ma de "cuidado". À medida que nós estamos preocupados é que
nós cuidamos, estamos em alerta. O que nós cuidamos, porém, é
do nosso Dasein. Esse cuidado com o que virá, isto é, cuidado com
© U6 - Heidegger: Analítica Existencial 151

o futuro é compreendido em termos de angústia. A angústia habi-


tualmente se esconde sob a forma de preocupação.
Diferentemente do medo, a angústia nunca é determinada
por algum objeto concreto. No caso de angústia, não há um objeto
determinado que nos angustia, mas existe uma ameaça oculta que
não podemos determinar ou descrever. Assim brota a autenticida-
de, como sentimento de situação originária de abandono. A origi-
nalidade do sentimento mostra que o Dasein está aí, abandonado
no mundo, deixado a si mesmo, sem apoio nenhum, sem abrigo.
Dito de outra maneira, o sentimento da situação originária gera
angústia, e esta expressa-se como medo indeterminado pela exis-
tência do Dasein, pois é o Dasein que nós tememos.
Essa preocupação com o futuro se expressa em transcen-
dência por meio da qual o Dasein tenta antecipar seus possíveis
projetos através da interpretação. Assim, junto ao sentimento da
situação originária, a interpretação também enuncia o modo de
ser autêntico do ser-aí (Dasein). Este aspecto da autenticidade do
ser-aí também foi tratado no CRC Filosofia da Linguagem, lá dizí-
amos:
A interpretação também se origina da preocupação diante das pos-
sibilidades perante o Dasein. O projeto por meio do qual tentamos
antecipar o futuro requer a interpretação, e esta toma forma de
linguagem mediante a qual atribuímos sentido e significado às nos-
sas possibilidades. Mas, segundo Heidegger, nem toda linguagem é
autêntica. Autêntica é apenas aquela que acessa e diz respeito às
possibilidades próprias do Dasein. Linguagem autêntica é da poe-
sia, da arte, até mesmo o silêncio. Pois o silêncio, segundo o filóso-
fo, é a expressão mais autêntica do ser.
O critério heideggeriano de linguagem autêntica deriva da sua
possibilidade de acessar o Dasein, de falar apenas a ele. Tal é a
linguagem poética que, ao utilizar a expressão metafórica, abre
os possíveis sentidos, não fecha como, por exemplo, a linguagem
científica. Assim, por exemplo, várias pessoas podem ler a mesma
poesia, mas as suas experiências com ela serão totalmente únicas.
O que não ocorre com a linguagem científica que fixa, por meio dos
conceitos e dos números, significados rigorosos. Uma frase poética
do tipo: "O sol mergulhou no mar" não diz nada para os cientistas,
é uma frase sem sentido, pois o sentido e o significado não se cor-

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152 © Metafísica II

respondem, mas para alguém que teve, ou melhor, que pressente


no futuro uma decepção amorosa é perfeitamente compreensível
(KRASTANOV, 2011, p. 148).

A angústia é a "porta" que dá acesso à interrogação ontológi-


ca, isto é, à pergunta pelo sentido do ser. Ela dissolve toda segurança
cotidiana e o mundo perde seus contornos. O mundo e as coisas se
nivelam, perdendo seus traços específicos que nos prendem na ocu-
pação. A angústia é o anúncio do nada e o nada vela os entes para
desvelar o ser. Brota, assim, a verdadeira abertura ontológica.

O nada
Como podemos entender esse "véu" dos entes que é o pró-
prio nada? Essa é a pergunta que Heidegger tenta responder no
seu ensaio O que é metafísica?. Na vida cotidiana, o homem ocu-
pa-se com objetos do mundo ou relações com os outros. Assim,
ele vive como coisa entre as coisas. Todavia, encontra obstáculos,
como no fracasso, na perda de um ente querido etc., ele se depara
com o sentimento da situação originária, uma vez que ele é aque-
le que sente esse sentimento. O sentimento angustiante de estar
sozinho com seu futuro, ou de ser abandonado, faz com que as
coisas do mundo com as quais ele se ocupava antes percam seus
traços, percam o poder atrativo. Como se o nada os velasse.
Retirado da ocupação com as coisas, o homem começa a se
interrogar sobre o ser: "afinal, qual o sentido do ser?" O ser-para-
morte, a extrema possibilidade, a mais segura e incontestável é a
certa anulação das outras possibilidades; é a possibilidade da im-
possibilidade. O nada parece brotar da preocupação com a morte.
E esse nada é a condição de abertura para o ser. Vejamos o que
Heidegger nos diz a respeito: "Somente na clara noite do nada da
angústia surge a originária abertura do ente enquanto tal: o fato
de que é ente – e não nada" (HEIDEGGER, 1973a, p. 239).
Ao que parece, para Heidegger, o nada é revelador do ser e a
origem da transcendência, por meio da qual o acessamos:
© U6 - Heidegger: Analítica Existencial 153

Suspendendo-se dentro do nada o Ser-aí já sempre está além do


ente em sua totalidade. Este estar além do ente designamos a
transcendência. Se o ser aí, nas raízes da sua essência, não exer-
cesse o ato de transcender [...], se o Ser aí não estivesse suspenso
previamente dentro do nada, ele jamais poderia entrar em rela-
ção com o ente e, portanto, também, não consigo mesmo. Sem a
originária revelação do nada, não há ser-si-mesmo, nem liberdade
(1973a, p. 239).

Os fragmentos citados não deixam dúvida de que o nada se


encontra dentro do Ser-aí do homem – a região única e privilegia-
da que interroga o ser:
Somente porque o nada está manifesto nas raízes do Ser-aí pode
sobrevir-nos a absoluta estranheza do ente. Somente quando a
estranheza do ente nos acossa, desperta e atrai ele a admiração.
Somente baseado na admiração – quer dizer, fundado na revelação
do nada – surge o 'porquê'. Somente porque é possível o 'porquê',
enquanto tal, podemos nos perguntar, de maneira determinada,
pelas raízes e fundamentar. Somente porque podemos perguntar
e fundamentar foi entregue à nossa existência o destino do pesqui-
sador (1973a, p. 242).

Podemos traduzir esse trecho complicado, dizendo que a


angústia anuncia o nada e carrega consigo mesma o "porquê". O
"porquê" surge na situação originária da angústia. Enquanto ser-aí,
o nada revela-se como abertura para o ser, revela-se como trans-
cendência. O nada vela os entes numa disposição fundamental de
angústia para desvelar o ser.
Esse ato de desvelamento chama-se transcendência. Mas
a transcendência é a própria metafísica. Ambas se confundem de
modo indiscernível. A metafísica – nos diz Heidegger – é o próprio
ser-aí (Dasein). Nenhuma ocupação metafísica é capaz de desvelar o
ser, mas, apenas, o ser-aí enquanto metafísica é capaz de o des-ve-
lar. A metafísica é ir além dos entes para acessar o ser, é a transcen-
dência. Mas para demonstrar esse ato originário de transcendência,
nada melhor do que as palavras do próprio Heidegger. Ele mesmo,
afinal, pode nos responder por que ser e não antes nada?
O ultrapassar o ente acontece na essência do Ser-aí. Este ultrapassar,
porém, é a própria metafísica. Nisto reside o fato de que a metafísi-
ca pertence à natureza do homem. A metafísica é o acontecimento

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154 © Metafísica II

essencial no âmbito do Ser-aí. Ela é o próprio Ser-aí. Pelo fato de a


verdade da metafísica residir neste fundamento abissal possui ela,
como vizinhança mais próxima, sempre à espreita, a possibilidade
do erro mais profundo. É por isso que nenhum rigor de qualquer
ciência alcança a seriedade da metafísica. A filosofia jamais pode
ser medida pelo padrão da idéia da ciência [...]."A filosofia somente
se põe em movimento por um peculiar salto da própria existência
nas possibilidades fundamentais do Ser-aí, em sua totalidade. Para
este salto são decisivos: primeiro, o dar espaço para o ente em sua
totalidade; segundo, o abandonar-se para dentro do nada, quer di-
zer, o libertar-se dos ídolos que cada qual possui e para onde acos-
tuma refugiar-se sub-repticiamente ; e, por último, permitir que se
desenvolva este estar suspenso para que constantemente retorne
a questão fundamental da metafísica que domina o próprio nada:
Por que existe afinal Ser e não antes Nada? (1973a, p 242).

8. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS
Confira, a seguir, as questões propostas para verificar o seu
desempenho no estudo desta unidade:
1) Qual das seguintes afirmações descreve o Dasein da melhor maneira?
a) Dasein é presença do Ser, por meio da existência humana, enquanto esta
é abertura e possibilidade de compreender o Ser.
b) Dasein é a existência epistemológica do homem em que se prepara epis-
temologicamente a questão sobre o sentido do ser.
c) Dasein é abertura para os entes em sua concreta essência.
d) Dasein é uma forma inautêntica de existência.
2) A frase heideggeriana de que a essência de Dasein está na sua ek-sistencia
quer dizer o quê? Aponte a alternativa que melhor responda tal questão.
a) Quer dizer que o homem é um ser cuja essência e a existência coinci-
dem.
b) Quer dizer que o essencial do homem é não ter essência determinada,
pois ele sempre está fora de si.
c) Quer dizer que a sua existência é essencialmente determinada.
d) Quer dizer que o em-si do homem está no seu para-si.
3) Que tipo de problema nos revela a concepção heideggeriana de Nada?
Aponte a alternativa correta.
a) É um problema da ciência.
b) É um problema do budismo.
c) É um problema da epistemologia.
d) É um problema da metafísica.
© U6 - Heidegger: Analítica Existencial 155

Gabarito
1) a.

2) b.

3) d.

9. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Chegamos ao fim de nosso curso de metafísica. Neste CRC,
Metafísica II, você entrou em contato com os principais problemas
metafísicos de Kant a Heidegger. Nossa intenção foi a de expor,
ao longo dos CRCs Metafísica I e Metafísica II, o movimento filo-
sófico que pretendeu alcançar a "verdade" sobre o ser, por meio
do pensamento racional. O desenho metafísico que se desenvolve
de Platão a Hegel, a tentativa de responder à questão do ser teve
um acabamento, mas também engendrou uma abertura para uma
nova possibilidade de responder à questão.
Com isso, o objetivo foi o de, juntamente com você, com-
preender o movimento da metafísica. No entanto, era necessário
deixar em aberto a questão metafísica, para que nós ainda pudés-
semos ter a possibilidade de se envolver no problema mais pro-
priamente filosófico de todos: por que existe algo?
A pergunta continua aberta e, como vimos no decorrer desta
unidade, somente o homem, o ente que escuta o chamado do ser,
pode se colocar a questão, só ele pode tentar respondê-la. Agora é
com você, alea jacta est – "a sorte está lançada"!

10. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


ABBAGNANO, N. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
ARISTÓTELES. Metafísica. Tradução de Giovanni Reale. Rio de Janeiro: Loyola, 2001.
COURTINE, J. F. A tragédia e o tempo da história. São Paulo: Editora 34, 2006.
GILES, T. História do existencialismo e da fenomenologia. São Paulo: EPU, 2003.
HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes, 2000.

Claretiano - Centro Universitário


156 © Metafísica II

______. O que é metafísica?. São Paulo: Abril Cultural, 1973a. (Os Pensadores)
______. O que é metafísica?. São Paulo: Abril Cultural, 1979. (Os Pensadores)
______. Carta sobre o humanismo. São Paulo: Abril Cultural, 1973b. (Os Pensadores)
______. Que é isto - A Filosofia?. São Paulo: Nova Cultural, 2004. (Os Pensadores)
______. Sobre a essência do fundamento. São Paulo: Abril Cultural, 1973c. (Os
Pensadores)
______. Nietzsche. Tradução de Pierre Klossowski. Paris: Gallimard, 1961.
KRASTANOV, S. V. Filosofia da linguagem. Batatais: Ação Educacinal Claretiana, 2011.
______. Nietzsche: pathos artístico versus consciência moral. Jundiaí: Paco, 2011.
PLATÃO. Teeteto. Lisboa: Fundação Caloust Gulbenkian, 2005.
ROVIGHI, S. V. História da filosofia contemporânea. São Paulo: Loyola, 1999.
STEGMÜLLER, W. A filosofia contemporânea. São Paulo: EPU, 1977.

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