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Apostila II

- ÉTICA E POLÍTICA -

2º ano do Ensino Médio

Professores: Laerte Moreira dos Santos


e
Maria Patrícia Candido Hetti

Área de Sociedade e Cultura


(Filosofia, Sociologia, História, Geografia)

http://www.cefetsp.br/sociedade
ou
http://www.geocities.com/sociedadecultura

Fevereiro de 2003
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ITEM 3.0 - TEXTOS DE E SOBRE NIETZSCHE

I - TEXTOS SOBRE NIETZSCHE

Nietzsche: este nosso mundo dos fracos


(Do livro: Nietzsche: a vida como valor maior, Alfredo Naffah Neto, FTD, São Paulo, 1996)

Apenas os medíocres têm perspectivas de prosseguir, procriar - eles são os homens do futuro, os único sobreviventes: "sejam
como eles! Tornem-se medíocres!", diz a única moral que agora tem sentido, que ainda encontra ouvidos. (Friedrich
Nietzsche, Além do bem e do mal, § 262)

No dia 15 de outubro de 1844, na cidade de Rocken (antiga Prússia, atual Alemanha), nascia aquele que se tornaria um dos
pensadores mais importantes da contemporaneidade: Friedrich Wilhelm Nietzsche.
Desprezado e incompreendido em sua época, seu pensamento acabaria por ser distorcido, utilizado pelos nazistas na Segunda
Guerra Mundial como justificativa para "a purificação de uma suposta "raça ariana". A que levou essa ideologia racista o
mundo todo soube através do massacre de milhões de judeus, comunistas, homossexuais, deficientes físicos e mentais,
considerados pelos nazistas como a escória da humanidade. Infelizmente, Nietzsche permaneceu confundido com o
pensamento nazista até há pouco tempo. Só muito recentemente - e por iniciativa de alguns pensadores franceses, como
Michel Foucault, Gilles Deleuze e Pierre Klossowski, entre outros - iniciou-se um processo de releitura dos textos
nietzschianos. Descobriu-se, então, que Nietzsche havia sido um dos mais contundentes críticos do anti-semitismo apregoado
pelos nazistas. Leia alguns trechos de afirmações de Nietzsche que comprova a sua posição contrária ao anti-semitismo:

Os judeus são, sem qualquer dúvida, a raça mais forte, mais tenaz e mais pura que atualmente vive na Europa; eles sabem se
impor mesmo nas piores condições (até mais que nas favoráveis), mercê de virtudes que hoje se prefere rotular de vícios.
[...] O que eles desejam e anseiam, com insistência quase importuna, é serem absorvidos e assimilados na Europa, pela
Europa; querem finalmente se tornar estabelecidos, admitidos, respeitados em algum lugar, pondo um fim à sua vida
nômade, ao "judeu errante"; esse ímpeto e pendor (que talvez já indique um abrandamento dos instintos judaicos) deveria
ser considerado e bem acolhido: para isso talvez fosse útil e razoável expulsar do país os agitadores anti-semitas. (aforismo
251 de Além do bem e do mal)

Em outro momento escreve: "Confesso que me sinto por demais distante do espírito alemão para ter paciência com suas
idiossincrasias particulares, especialmente o anti-semitismo."

Nietzsche chegou a sugerir a necessidade de se criar uma liga européia anti-alemã, sendo perfeito na visão lançada em carta
ao anti-semita Schmeitzner: "Prevejo terremotos europeus de monstruosas proporções, todos os movimentos indo nessa
direção, inclusive o seu anti-semita.". Cortou relações com o compositor Richard Wagner, em função do germanismo e anti-
semitismo daquele. Também rompeu radicalmente com a irmã, em função da mesma ser "tola, vingativa e anti-semita".

"Nada representa obstáculo maior à minha influência do que a associação do meu nome com anti-semitas. Sou
capaz de jogar porta afora quem quer que me inspire a menor dúvida a esse respeito."

"Desejo, cada vez mais, que os judeus ascendam ao poder na Europa, para que não precisem mais serem os
oprimidos. O alemão que, apenas por ser alemão, pretende ser mais que um judeu, faz parte de uma comédia, a
menos que encontre seu lugar num asilo de loucos. O que desejo, finalmente, é que se obrigue os anti-semitas a
deixarem a Alemanha."

A origem do mal-entendido deveu-se a dois fatos distintos. O primeiro deles é que a única irmã de Nietzsche, Elizabeth - ela
sim, claramente anti-semita -, deturpou vários dos seus textos, chegando mesmo a forjar cartas inexistentes.
Nietzsche não pôde evitar tal usurpação porque estava fora de seu juízo e sob tutela familiar desde 1890. Foi Elizabeth quem
publicou, por exemplo, uma suposta obra inédita de Nietzsche denominada Vontade de potência, composta de textos
escolhidos a dedo no caos de notas redigidas pelo filósofo e organizados desrespeitando a cronologia dos escritos. Foi ela,
também, quem possibilitou a utilização de seus textos pelos nazistas e quem foi enterrada, em 1935, com honras nacionais
pelo III Reich.

O segundo motivo do mal-entendido deveu-se a incompreensões do próprio pensamento de Nietzsche, notadamente de suas
críticas aos rumos que havia tomado o mundo ocidental. Autor de uma obra assistemática por natureza, ou, mais do que isso,
avessa à idéia de sistema, escrevia por meio de aforismos, o que dá margem a diferentes leituras, articulações, ângulos de
visão.
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Isso contribui para que cada qual a utilize do jeito que bem entender. Além disso, as noções controvertidas de nobre e de
escravo ajudariam a "colocar mais lenha na fogueira". Embora seja muito difícil sintetizar seu pensamento, convém, pelo
menos, tentar esclarecer os mal-entendidos que cercam essas noções básicas.

Nietzsche via na cultura judaico-cristã, dominante no mundo ocidental, uma preponderância de valores fracos, escravos, em
oposição aos valores fortes, nobres, que haviam vigorado em épocas passadas, notadamente na Grécia arcaica, na cultura
trágica. Mas, para ele, nobre e escravo compunham dois tipos bastante característicos, bem diferentes dos que comumente se
entendem por esses termos.

O tipo nobre define uma forma de existir capaz de dizer "sim" à vida integralmente, em todos os seus aspectos, afirmando-a,
criando valores e participando ativamente da produção de sentido do mundo. Isso caracteriza uma maneira de viver
expandida, potente, onde estar-aí significa acolher e amar a existência, com tudo o que ela traz de prazer, alegria, mas
também de dor, sofrimento, pois nessa perspectiva as imperfeições da vida - geradoras de infelicidade - são a própria
condição de o homem crescer, potencializar-se, tornar-se capaz de se vergar sem se despedaçar. Por isso, esse tipo de vida
implica fundamentalmente uma capacidade de esquecer: metabolizar as injúrias, ofensas, transformando-as em proveito desse
existir exuberante, que se quer pleno de riscos, de aventura, sabendo-se habitar em um mundo que não é feito de
permanência, mas de movimentos perenes de transformação. É, pois, uma vida que se desdobra em morte e renascimento
contínuos, em movimentos de destruição e de construção, como parte do mesmo devir criador.

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Dominância de valores escravos queria dizer a propagação de uma forma de ser, ocupada apenas com a sobrevivência, sem
qualquer ambição de dar forma ao mundo. Por estar atravessado por uma impotência paralisante, aprisionado por um passado
não-digerido, não-metabolizado, o tipo escravo vive perdido no tempo, incapaz de viver no presente e de criar qualquer coisa
que seja. Cultua uma memória prodigiosa que não lhe permite superar as amarguras, as humilhações, os ultrajes vividos,
vivendo amarrado a essas experiências. É, pois, incapaz de acolher e aceitar as imperfeições da vida. Está permanentemente
buscando culpados por seus infortúnios, é puro ressentimento e desejo de vingança. Assim, é incapaz de caminhar por seus
próprios pés. Vive à deriva, à espera de uma redenção vinda de fora, de um Outro, concebido como Poderoso, Absoluto e
Perfeito, seja ele Deus, uma Sociedade Irrepreensível ou uma Outra Vida, de preferência Eterna, pois o escravo não tolera a
fatalidade da morte.

Resumindo, trata-se de uma forma de vida alienada de sua potência criadora e culpada de existir. Essa alienação-tornada-
impotência que, ao se perpetuar como memória, envenena o mundo real para depois rejeitá-lo; esse veneno que cresce e que
se nutre com a ilusão de recompensas em mundos imaginários, Nietzsche os via como uma criação da sociedade de massas e
de seus valores morais corporificados especialmente nos valores cristãos (tais quais expressos pelas máximas de São Paulo).

Se o cristianismo não inventou os valores escravos, sem dúvida trouxe-lhes novo sangue, novas justificativas,
universalizando-os e refundando-os na idéia de Eternidade; com isso, eles cresceram, alastraram-se, tornando-se os valores
dominantes no mundo ocidental. E por essa razão que Nietzsche foi um dos mais contundentes críticos do cristianismo,
embora se preocupasse, em seus últimos escritos, em discriminar o cristianismo como doutrina instituída, da figura de Jesus,
por quem até sentia alguma simpatia pois o considerava um homem adiante de sua época, tendo sido capaz de ensinar aos
homens como morrer com serenidade.

A utilização de Nietzsche pelos nazistas imprimiu aos termos escravo e nobre, fraco e forte conotações de cunho racial e
político que eles jamais tiveram. Ao se identificar a força nobre com os valores arianos e com os poderes nazistas instituídos,
invertia-se totalmente o sentido que Nietzsche lhes dera, já que, em vez do amor incondicional à vida que definia o nobre
nietzschiano, o "nobre" nazista fazia a apologia do ódio, do ressentimento, da busca de bodes expiatórios para os infortúnios
da humanidade, massacrando judeus, comunistas, homossexuais, deficientes físicos e mentais.

Mas na época, e durante muito tempo, essa deturpação não se fez visível. Isso veio lançar uma maldição sobre o filósofo,
somente revista a partir dos anos 60, quando se voltou a ler sua obra. Ainda assim, essas questões estão longe de qualquer
consenso no mundo da filosofia. Nietzsche continua até hoje louvado por uns, execrado por outros. Uma coisa, entretanto,
ninguém pode negar: desde que seu nome voltou à baila, não cessam de proliferar admiração e espanto diante de um
pensamento cuja força demolidora só encontra equivalentes, desde a Segunda metade do século XIX, na obra de um Marx e
de um Freud. Uma filosofia a marteladas, como ele costuma dizer. Na mira: os valores ocidentais dominantes, que ele
descreveu como valores escravos.

- Um solitário incompreendido -

(Do livro: Nietzsche: a vida como valor maior, Alfredo Naffah Neto, FTD, São Paulo, 1996, pág. 21-35)

Neste dia perfeito, em que tudo amadurece e não é somente o cacho que se amorena, acaba de cair um raio de sol sobre a
minha vida; olhei para trás, olhei para a frente, nunca vi tantas e tão boas coisas de uma vez. Não foi em vão que enterrei
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hoje meu quadragésimo quarto ano, eu podia enterrá-lo - o que nele era vida está salvo, é imortal [...] Como não
haveria eu de estar grato à minha vida inteira? E por isso me conto minha vida. (Friedrich Nietzsche, Ecce homo,
epígrafe)

Nietzsche nasceu numa família protestante: seus dois avós eram pastores e ele também chegou a pensar em se tornar um.
Aos cinco anos perdeu o pai e o irmão, restando-lhe somente a mãe e a irmão. A família mudou-se de Rocken para
Naumburg, onde Nietzsche cresceu e se educou. Em 1858, obteve uma bolsa de estudos na então famosa Escola de Pforta,
onde começou a se distanciar do cristianismo. Freqüentou, entre 1864 e 1867, as Universidades de Bonn e de Leipzig, de
onde se originou seu interesse por filologia.

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Filologia - Reconstituição histórica da vida do passado por meio da linguagem e, portanto, do estudo crítico de documentos
literários.
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De filólogo a filósofo - Em 1869 foi nomeado professor de filologia clássica na Universidade de Basiléia, Suíça, onde
permaneceu por dez anos e escreveu boa parte de sua obra: O nascimento da tragédia (l871), A filosofia na época trágica dos
gregos (l873), Introdução teorética sobre a verdade e a mentira no sentido extramoral (l873), Considerações extemporâneas
(l873/74) e Humano, demasiado humano (l878/80). O desdobramento do filólogo em filósofo deveu-se à leitura do livro de
Schopenhauer, O mundo como vontade e representação, que exerceu grande influência sobre seus primeiros escritos.

É também desse período sua amizade com Richard Wagner, a quem, de início, dedicou uma calorosa admiração,
especialmente porque via em obras como Tristão e Isolda ou O anel dos Nibelungos, uma espécie de reencarnação da
tragédia grega, da cultura dionisíaca. Essa admiração foi arrefecida por volta de 1876, quando percebeu no amigo um
prestigiador da mediocridade cultural alemã, acalentado por um círculo de nacionalistas e anti-semitas.

Em 1878, ao receber o libreto de Parsifal, a última obra de Wagner, e notar que era eivada de preconceitos e superstições
cristãs, a amizade esfriou ainda mais, redundando num distanciamento cada vez maior, que culminou nos famosos textos em
que denunciava a impostura wagneriana: O caso Wagner e Nietzsche contra Wagner (l888).

Apesar de não ter lido os textos na época - até porque não estavam publicados -, Wagner percebeu que ganhara um crítico de
grosso calibre, tanto que proibiu, desde então, que o nome de Nietzsche fosse pronunciado nos limites de Bayreuth, sob
qualquer alegação.
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Richard Wagner - Compositor alemão do século XIX, criou, em oposição à ópera tradicional, o que ele denominou drama-
musical, em que música e libreto formam uma unidade intrínseca expressiva, articulando um trabalho orquestral
extremamente refinado ao canto e à ação cênica. Considerado o último compositor romântico, criou grandes inovações na
composição musical, um marco revolucionário nesse sentido. Uma das características dos seus dramas-musicais é a repetição
e harmonização de vários leitmotive - associados a personagens, acontecimentos ou temas -, o que lhes imprime uma
temporalidade em espiral, de múltiplos centros e anéis.
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Solidão, incompreensão e doença - Os primeiros dez anos em Basiléia já revelaram a Nietzsche aquelas que seriam as
tônicas de sua vila: a incompreensão de seus textos por seus contemporâneos; a solidão, somente quebrada por alguns poucos
amigos; a saúde precária, cujos distúrbios se manifestaram em 1873 com enxaquecas, dores na vista e problemas estomacais e
que evoluiriam para a perda da razão em 1889. Na época, a doença não foi diagnosticada; depois, suspeitou-se de um quadro
degenerativo de origem sifilítica.

Foi em função da saúde precária que Nietzsche se viu obrigado a pedir demissão da Universidade de Basiléia, em 1879, e
começou uma vida errante, percorrendo a Suíça, a Itália, a França e a Alemanha; nesse período, o tempo maior que conseguiu
parar em algum lugar foi seis meses. Nessa errância, que durou até a perda da razão, produziu o restante de sua obra: Aurora
(l880/1881), A gaia ciência (l881/82), Assim falou Zaratustra (l883/85), Além do bem e do mal (l885/86), Genealogia da
moral (l887), Crepúsculo dos ídolos (l888), O Anticristo (l888), Ecce homo (l888), além de uma série de fragmentos e notas
que somente foram publicados após a sua morte.

Pedidos de casamento recusados, interesses e afetos não-correspondidos teceram a vida amorosa de Nietzsche. Dentre essas
recusas, destaca-se a paixão não-correspondida por Lou Andréas-Salomé - uma jovem russa então em viagem com a mãe pela
Europa -, que posteriormente seria conhecida como psicanalista e colaboradora de Freud.
Nessa época, o que se formou foi um triângulo amoroso entre Nietzsche, seu amigo Paul Rée e a jovem viajante, entremeado
por intrigas e pela oposição preconceituosa da família de Nietzsche à relação amorosa. O episódio terminou com a união de
Lou e Paul Rée e o rompimento de Nietzsche com ambos e com a própria família. Já nessa época, ele usava os mais
diferentes tipos de drogas para aplacar seus sintomas: sais, soporíferos e haxixe. Após a desilusão com Lou Salomé,
perseguiram-no idéias de suicídio: por três vezes, ingeriu doses abusivas de narcóticos.
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Foi como um solitário incompreendido que Nietzsche viveu até o fim de seus dias. Numa carta ao amigo Overbeck (Cf.
MARTON, 1991: 75-6), ele assim se expressa:

"Se eu pudesse dar-lhe uma idéia do meu sentimento de solidão! Nem entre os vivos nem entre os mortos, não tenho
alguém de quem me sinta próximo. Não se pode descrever como é aterrorizador; e apenas o treino em suportar esse
sentimento e o caráter progressivo de sua evolução desde a tenra infância permitem-me compreender que não tenha
sido totalmente aniquilado por ele."

A incompreensão da obra de Nietzsche por seus contemporâneos chegou ao ponto de o desinteresse das editoras obrigar o
filósofo a custear, do próprio bolso a publicação de suas últimas obras. O reconhecimento só viria no final da vida e, mesmo
assim, só ganharia força total após a sua morte. Com tudo isso, ele reconhecia, a partir do valor se suas obras, a importância
de sua trajetória existencial: "Como não haveria eu de estar grato à minha vida inteira?", diz ele no início de Ecce homo.

Encarnando cada um dos personagens - Das grandes relações que Nietzsche manteve na vida, a maior e mais importante
foi com um fiel amigo-colaborador, que o acompanhou até o fim e que foi o responsável pela compilação de todas as suas
obras finais: Heinrich Koselitz, que Nietzsche carinhosamente rebatizara com o apelido de Peter Gast (Pedro, o hóspede), por
razões desconhecidas para os seus biógrafos, e que assim ficou conhecido desde então. Peter Gast era, além de tudo, músico,
o que o habilitou também a transcrever em partituras as poucas e desconhecidas composições musicais que Nietzsche
produziu na vida. A ele se referiu o compositor Caetano Veloso, numa de suas músicas:

Peter Gast,
o hóspede do Profeta sem morada,
O menino bonito Peter Gast,
Rosa do crepúsculo de Veneza.

Os primeiros sinais de degeneração mental de Nietzsche aparecera em janeiro de 1889; a doença alastrou-.se, levando-o a
uma total perda de identidade. A partir de então, ele se designava pelos vários personagens de sua obra: Dioniso, Cristo e
outros tantos com os quais se identificara e algum momento da vida.
De qualquer forma, independentemente da doença, talvez seja possível dizer que Nietzsche, de fato, encarnou na própria pele
cada um desses personagens, enquanto deles falava. Nada de estranho, pois, que se designasse por seus nomes no final da
vida. Nesse estado crepuscular, ainda viveu mais de dez anos sob custódia familiar, primeiro da mãe e depois da irmã. As
conseqüências funestas dessa custódia foram a usurpação e deturpação de sua obra, já mencionadas anteriormente.
Morreu em 25 de agosto de 1900, pouco tempo depois da virada do século.

ATIVIDADES

1. Procure, em um bom dicionário, o significado dos verbetes nobre e escravo e compare os seus sentidos correntes com
os que Nietzsche lhes deu.
2. Assista a um capítulo de uma novela de televisão e identifique, nas falas das personagens, valores escravos e valores
nobres.

VAMOS REFLETIR

1. Pelo que entendeu do texto, você acha que os valores escravos e os valores nobres têm a ver com o poder aquisitivo das
pessoas, com as classes sociais, ou independem disso? Explique.
2. Descreva as ressonâncias que estas afirmações de Nietzsche encontram em você, sem sua vida: "quem chegou, ainda que
apenas em certa medida, à liberdade da razão, só pode sentir-se sobre a terra como um andarilho. [...] Bem que ele quer
ver e ter os olhos abertos para tudo o que propriamente se passa no mundo; por isso não pode prender o seu coração com
demasiada firmeza em nada de singular; tem de haver nele próprio algo de errante, que encontra sua alegria na mudança
e na transitoriedade" (Humano, demasiado humano § 638)
3. No seu modo de ver, é difícil viver segundo os valores nobres apresentados por Nietzsche?
4. Depois de ler os textos complementares, faça duas colagens com recortes de fotos de jornais e revistas mostrando o que é
viver a vida intensamente para você e para Nietzsche.
5. Por que você acha que os gênios são sempre incompreendidos na época em que vivem?

- AVALIANDO A PARTIR DA VIDA -


(Do Livro: A vida como valor maior - Nietzsche", Alfredo Naffah Neto, F.T.D., 1996, São Paulo, pág. 52 - 74)

Necessitamos de uma crítica dos valores morais, o próprio valor desses valores deverá ser colocado em questão. Para isso
é necessário um conhecimento das condições e circunstâncias nas quais nasceram, sob as quais se desenvolveram e se
modificaram... (FRIEDRICH NIETZSCHE, Genealogia da moral, prólogo, § 6)
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Se os valores morais intoxicam a vida, disciplinando-a, ordenando-a, dividindo-a em Bem e Mal, consequentemente
repudiando toda uma dimensão vital básica, e se isso teve como desenvolvimento levar o homem a renunciar à vida terrena e
ao mundo real, em prol de uma vida eterna e de um mundo imaginário, inexistente, então é preciso uma investigação
minuciosa da constituição desses valores.

Reflexões desse tipo levaram Nietzsche à criação da genealogia, que, de forma geral, pode ser descrita como uma
investigação das condições de nascimento, desenvolvimento e transformação dos valores morais. E como os valores morais
impregnam, em maior ou menor grau, todas as práticas e produções humanas, a genealogia estende sua investigação crítica a
tudo de humano que já foi criado ou que ainda venha a sê-lo.
Mas a genealogia, diferentemente de outras práticas filosóficas, não pode fundar suas investigações num critério de verdade.
Vamos tentar entender por quê.

O critério do verdadeiro - De forma geral, podemos dizer que toda a filosofia e também as ciências do mundo ocidental
apoiam-se em alguma noção de verdade, seja ela qual for. O critério que define" sempre, se uma afirmação filosófica ou uma
afirmação filosófica ou uma lei científica são válidas é o fato de elas poderem ser consideradas como verdadeiras. E aí os
critérios de verdade são os mais variados possíveis. Há escolas filosóficas que defendem um critério de verdade
fundamentado em observações empíricas e na consistência lógica das proposições, como o positivismo lógico, por exemplo.

Positivismo lógico - Essa corrente filosófica afirma que só é compreensível e possui sentido aquilo que pode ser comprovado
pela experiência; que, consequentemente, todas as afirmações metafísicas carecem de sentido. Seu objetivo é constituir uma
linguagem científica unificada, por meio de uma lógica simbólica, verdadeira língua comum a todas as ciências.

A Fenomenologia, por sua vez, defende um critério de verdade apoiado na forma como as coisas aparecem e se revelam à
consciência e no quanto as afirmações filosóficas possam ser fiéis a essa descrição. De forma análoga, as ciências também
assumem critérios de verdade, embora não reflitam sobre eles, como faz a filosofia; essa reflexão acontece num campo
denominado filosofia das ciências.

A definição clássica de verdade fala de uma adequação entre a enunciação e o enunciado.

Complicado? Nem tanto: isso quer dizer que é considerada verdadeira a afirmação (reflexão filosófica ou lei científica, tanto
faz) que consegue adequar a sua expressão, proposição (seja ela uma construção verbal ou uma fórmula matemática), àquilo
que pretende apreender e expressar (seu objeto de estudo). Adequação quer dizer, aí, correspondência ponto por ponto entre
os dois campos: o da enunciação (que é a afirmação propriamente dita, tecida no âmbito da linguagem, seja ela verbal ou
algorítmica) e o do enunciado (aquilo que é afirmado: uma propriedade ou uma relação articulando fatos, acontecimentos,
regulares ou não, do mundo existente).

A crítica nietzschiana à noção de verdade apoia-se, justamente, neste ponto: a afirmação de que é impossível a
correspondência entre a linguagem (qualquer que seja ela) e o mundo real. Num belíssimo texto denominado Introdução
teorética sobre a verdade e a mentira no sentido extramoral, ele desenvolve as principais reflexões sobre essa questão.

O argumento central do texto nietzschiano é que qualquer palavra adquire a dimensão de conceito - que é a ferramenta de
qualquer forma de pensamento racional - quando abandona e desconsidera as diferenças singulares entre as coisas e os
acontecimentos do mundo. Por exemplo, quando pronuncio a palavra "folha", todos imaginam que o som dela se refere a
alguma realidade empírica. Entretanto, para poder traduzir todas as folhas reais, tão diferentes umas das outras, por esse som
unitário e invariável, é preciso jogar fora todas as características singulares que tornam cada folha uma realidade única,
incomparável, intraduzível.

O conceito constrói um esqueleto descarnado do mundo. Esse esqueleto é um signo de reconhecimento, quer dizer, sua
utilidade é possibilitar a comunicação entre os homens, diante das utilidades da vida prática, das necessidades de
sobrevivência. Todo o contra-senso é pretender que signo como esse e a realidade possa haver alguma correspondência que
não seja meramente convencional, portanto arbitrária.

A partir de raciocínios como esse, Nietzsche conclui que não há critérios intrínsecos para avaliar se uma enunciação é
verdadeira. Dependendo do critério particular e convencional adotado, qualquer uma poderá ser verdadeira ou falsa. Mais do
que isso: os critérios de verdade, quaisquer que sejam, estão sempre ligados a certas forças que detêm o poder e que impõem
uma interpretação particular, própria, como se fosse universal.

Portanto, qualquer verdade sempre traduz a relação dos homens com o mundo, a forma como se apropriam e se utilizam das
coisas; seu ângulo de visão, perspectiva, está sempre articulado por códigos, interpretações de mundo dominantes, que são as
forças que dão forma a tudo o que os homens comuns vêem, tudo em que acreditam.
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As verdades são, pois, segundo Nietzsche (s.d.: 94), "um conjunto de relações humanas poeticamente e retoricamente
erguidas, transpostas, enfeitadas, e que, depois de um longo uso, parecem a um povo firmes, canoniais e constrangedoras: as
verdades são ilusões que nós esquecemos que o são". Essa é a razão pela qual a genealogia não pode fundar-se sobre um
critério de verdade.

A vida: critério dos critérios e valor dos valores - Se é preciso uma crítica radical dos valores, se é necessário avaliar o
valor de todos os valores humanos, sem ter mais à mão um critério de verdade, então é fundamental um outro critério que seja
válido e inquestionável, que esteja acima de todos os outros.

Esse critério, segundo Nietzsche, é a vida. Só ele pode decidir se um valor é bom ou ruim. Como?

Partindo do critério vida, só se podem avaliar como bons os valores que estiverem servindo à sua expansão, intensificação e
enriquecimento. E como ruins aqueles que estiverem criando condições para sua despotencialização, enfraquecimento,
empobrecimento. Isso significa considerar vida como nunca se fez antes.

É preciso diferenciar vida da sobrevivência. Grosso modo, a sobrevivência descreve um empobrecimento da vida; quando
meramente sobrevivemos, isso quer dizer que estamos vivendo de forma bastante precária, incipiente. A vida é um fluir de
intensidades que se apropriam de mundo e se expandem em novas intensidades, num movimento crescente e inesgotável.
Sem dúvida, ela engloba a sobrevivência, mas como sua dimensão mais baixa, seu alicerce, esse funcionamento adaptativo
que pode ser o ponto de apoio para movimentos de maior expansão, criativos, transformadores. A sobrevivência depaupera a
vida quando a reduz a seus horizontes utilitários, toscos.

Por isso, diante do critério vida, um ato suicida pode até ter um valor importante, na impossibilidade de uma sobrevivência
mesquinha expandir-se numa vida mais potente: por exemplo, um prisioneiro político que se suicida, ao se saber fadado a
uma morte lenta e humilhante nas mãos dos inimigos.
Há, também, ocasiões em que a luta pela sobrevivência pode gerar valores de vida bastante preciosos: por exemplo, quando
uma pessoa com uma doença grave é levada, na luta pela sobrevivência, a se defrontar com a morte e, a partir daí, a reavaliar
a própria vida.

A morte como parte da vida - É importante ressaltar que o valor vida implica o valor morte como sua condição. Uma vida
só adquire plena potência se é capaz de se desdobrar numa morte e num renascimento constantes, ou seja, a perda, a privação,
o ocaso, são ocasiões de fortalecimento e de enriquecimento de tudo que, de vivo, floresce a partir daí. Mais do que isso, a
morte é, para o herói trágico, "o julgamento, livremente escolhido", que dá valor à existência. Isso é o que Nietzsche (1988:
431) diz num dos fragmentos póstumos em que faz o elogio de Wagner, como poeta trágico:

“Mas sob que luz ele [Wagner] vê todo o passado, tudo o que se cumpriu? É aqui que é preciso pôr em realce a
admirável significação da morte: a morte é o julgamento mas o julgamento livremente escolhido, desejado, pleno de
uma horrível sedução, como se ela fosse mais do que uma porta aberta sobre o nada. (Sobre cada um dos passos mais
firmes que a vida dá sobre o palco, ressoa surdamente a morte.) A morte é o selo batido sobre toda grande paixão e
sobre toda existência heróica; sem ela a existência não tem valor. Estar maduro para ela é a coisa mais alta que se
pode conseguir, mas também a mais difícil, que só se atinge através de combates e sofrimentos heróicos. Cada
morte desse gênero é um evangelho do amor; e toda a música é uma metafísica do amor; ela é uma aspiração e um
querer num domínio que aparece ao olhar comum como o domínio do não-querer, um banho no mar do
esquecimento, um jogo de sombras espantoso de uma paixão desaparecida.”

É evidente que, nesse texto, Nietzsche está falando da forma como Wagner-poeta-trágico constrói seus enredos e seus
personagens no palco e como esses personagens se relacionam com a vida e com a morte. Assim, nos conta em que medida o
valor vida implica o valor morte, o que reforça a idéia de que, no vocabulário nietzschiano, vida e sobrevivência jamais se
confundem, pois se, por um lado, vida implica morte, por outro, sobrevivência e morte são valores antagônicos.

Como conseqüência, jamais se confundem, também, quaisquer avaliações feitas a partir de valores vitais com aquelas feitas a
partir de valores de sobrevivência. No primeiro caso, o que é avaliado é se as forças em foco geram movimentos de
expansão, intensificação, potencialização ou de coartação, confinamento, despotencialização da vida considerada; no segundo
caso, avalia-se o quanto determinados processos são adaptativos, capazes de garantir, em maior ou menor grau, a
sobrevivência.

É importante ressaltar que a genealogia, ao fazer a crítica dos valores morais, não funda uma nova moral, como pode
eventualmente parecer a algum olhar menos arguto. Considerar ruins os valores que despotencializam, enfraquecem e
empobrecem a vida não significa submetê-la a um crivo, selecionando uma parte boa e uma parte má, como fazia a moral.
Trata-se, sem dúvida, de uma seleção, mas de outro tipo e com outra finalidade: proteger a vida contra todos os valores que,
por operarem um tipo de seleção moral, a enfraquecem e a empobrecem.
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O termo ruim da avaliação genealógica não é equivalente ao termo mau da avaliação moral. Ruim, nesse caso, significa
aquele valor que faz da fraqueza, da incompetência, da impotência, uma virtude, ou seja, ruim é aquele valor que exalta o
fraco. Mau, na avaliação moral, significa malvado, cruel, indigno, execrável. São coisas distintas.

Ao tomar a vida como critério maior, a genealogia sabe valorizar todas as suas formas, mesmo nos casos-limite, nos quais ela
se encontra tão intoxicada de valores morais que mal se conseguem visualizar os traços de sua potência. Mesmo esses casos
a genealogia os avalia como encarnando o único tipo de vida possível naquelas circunstâncias, discriminando aí os recursos
pelos quais a potência vital procura se preservar, a despeito de todas as condições desfavoráveis.

Ética x Moral - Ao tentar criar um abrigo para a vida, defendendo-a a qualquer preço, a genealogia nietzschiana acaba por
se, fundar como uma ética, fazendo jus à etimologia do termo grego éthos, que originalmente significava abrigo, morada.
Ocorre aí algo sui generis no universo filosófico: a diferenciação e oposição entre dois termos normalmente interligados e
postos numa mesma direção - moral e ética.

Segundo Gilles Deleuze no referencial nietzschiano tais termos podem ser considerados antônimos: a moral designando
aquela forma de avaliação degeneradora da vida; a ética, ao contrário, designando o sentido assumido pela genealogia
nietzschiana, ao tentar restaurar aquilo que a moral deteriorou. É verdade que essa discriminação entre os dois termos nunca
foi realizada dessa forma tão explícita pelo filósofo alemão, o que não significa que não sejam dignas de consideração as
ponderações feitas por Deleuze nessa direção.

A vontade de potência - O conceito central da ética nietzschiana, também fruto de múltiplos mal-entendidos, denomina-se
vontade de potência ou vontade de poder, conforme as duas traduções que normalmente são dadas ao alemão Wille zur
Macht. Podemos dizer que, dentro da perspectiva genealógica, vontade de potência e vida são sinônimos; entretanto, a
filosofia nietzschiana desdobra-se também numa cosmologia, e no interior dessa cosmologia o conceito tem uma abrangência
maior, uma vez que inclui o mundo inorgânico.

Apesar de todas as dificuldades que cercam essas questões, vamos tentar definir, aqui, o significado de vontade de potência.
O conceito é formado por dois termos: vontade e potência, ligados pela preposição de.

Em primeiro lugar, convém não tomar o termo vontade com o sentido que ele adquiriu na psicologia contemporânea, como
faculdade da mente humana. Ele descreve aí um conjunto de forças impessoais, anônimas, sempre em luta, envolvidas em
movimentos de expansão, exaltação, apropriação, transmutação, operando uma contínua destruição e criação de formas.

O segundo termo, potência ou poder, indica justamente aquilo que constitui a vontade e que, do seu âmago, pulsa, luta e se
desdobra, em busca de expansão, exaltação. Nesse sentido, a vontade não é carente de potência. Aliás, não é carente de
nada; no dizer de Heidegger, a vontade quer a si mesma, seu crescimento, sua superação, e a potência só é potência à medida
que continua a ordenar-se mais potência, permanentemente a caminho de si mesma, em contínuo devir.

Finalmente, convém esclarecer, seguindo as indicações de Gilles Deleuze, que o poder ou potência de que se fala aqui é um
poder criador: criador de vida, criador de mundo, criador de subjetividades, ou, num só termo, criador de valores. Nesse
sentido, o conceito adquire uma abrangência que transpassa todo o universo. Como diz Nietzsche (l978: 397): "Esse mundo é
a vontade de potência - e nada além disso!". E também vós sois essa vontade de potência - e nada além disso!".

Talvez a melhor expressão poética da vontade de potência (na sua sinonímia com a vida) nos seja dada por Chico Buarque,
em sua música Vida:

Vida, minha vida, Com palcos atrás.


Olha o que é que eu fiz. Arranca, vida,
Deixei a fatia Estufa, veia,
Mais doce da vida E pulsa, pulsa, pulsa,
Na mesa dos homens Pulsa, pulsa mais.
De vida vazia. Mais, quero mais,
Mas vida, Nem que todos os barcos
Ali quem sabe Recolham ao cais,
Eu fui feliz. [...I Que os faróis da costeira
Luz, quero luz, Me lancem sinais.
Sei que além das cortinas Arranca, vida,
São palcos azuis, Estufa, vela,
E infinitas cortinas Me leva, leva longe,
Longe, leva mais...
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Alguns tópicos da moral de Nietzsche - Prof. Laerte M. Santos


a) Vida
- luta contínua, “vontade de potência”, conjunto de forças em luta
- Vida como luta: a luta garante a permanência da mudança: nada é senão vir a ser.
- Vida como "Vontade de Potência" = vontade de poder. Necessita de obstáculos que a estimulem, precisa de
resistências para que se manifeste, requer oponentes para exercer-se. Para que ocorra luta é preciso antagonistas. E
como ela é inevitável e sem trégua ou termo, não pode implicar destruição dos beligerantes. Não pode caracterizar-
se pela adaptação ao meio em que se acha mas quer exercer-se sempre mais sobre o que está a sua volta.
- Viver = ser cruel e inexorável com tudo o que em nós é velho e enfraquecido.
- a vida é o critério para avaliação dos valores. Bom é aquilo que favorece a vida e mau o que a desfavorece.
- Vida como conjunto de forças em luta - querendo vir a ser mais forte a força esbarra em outras que a ela resistem. É
inevitável a luta por mais potência. A cada momento as forças relacionam-se de modo diferente, dispõem-se de outra
maneira. A todo instante, a "vontade de potência", vencendo resistências, se autosupera e, nessa superação de si faz
surgir novas formas. É pois força criadora.

b) Moral dos nobres


- surge da auto-afirmação.
- nela não existe o "bom" da moral dos escravos" mas o "forte" que é o criador de valores.
- "Forte" = nobre, poderoso, feliz, o que diz sim a si mesmo, não precisa se persuadir de sua felicidade pois ela é ação
(ser ativo é parte necessária da felicidade). Não age por reação, tem iniciativa e criatividade. Vive com confiança e
franqueza diante de si mesmo. Não consegue levar a sério por muito tempo seus inimigos, suas desventuras, seus
malfeitos (ele esquece). Ama os bons inimigos - aqueles em que nada existe a desprezar e muito a venerar. Despreza
o bem estar, a segurança. Não é "prudente". Não tem sentimento de culpa.

c) Moral dos escravos

- Há nela um evidente discurso do ressentimento, que atribui todas as desgraças do mundo e da sua vida aos outros.
Incapaz de assumir a sua responsabilidade pessoal (atributo apenas dos fortes), seja lá no que for, o medíocre, o
pequeno, o de " alma estreita", o escravo, transfere a causa dos seus inúmeros fracassos e decepções a tudo o que
está além e acima dele (em Deus ou no diabo, nos nobres, no senhor, no patrão, etc..).
- O ressentido, incapaz de admirar o forte imputa-lhe o erro de ser forte. Chama-o de mau. Não cria valores, inverte o
que foi posto pelos nobres. O que vem dos nobres é mau. O que vem dele é bom.
- quer transformar em força a própria fraqueza (renúncia, paciência, resignação)
- é a impossibilidade de agir neste mundo que o leva a forjar a existência de outro, onde terá posição de destaque,
ocupará lugar privilegiado, ser figura eminente.
- traveste sua impotência em bondade, a baixeza temerosa em humildade, a submissão aos que odeia em obediência, a
covardia em paciência, o não poder vingar-se em não querer vingar-se e até perdoar, a própria miséria em
aprendizagem para a beatitude, o desejo de represália em triunfo da justiça divina sobre os ímpios.
- o Reino de Deus aparece como produto do ódio e do desejo de vingança dos fracos. Ódio e ressentimento são as
palavras chaves para compreender o ressentido. É a diferença que causa o ódio, ou melhor, é a recusa da diferença
que o engendra .
- incapaz de aniquilar o forte, o homem do ressentimento quer vingar-se. Não podendo fazê-lo, imagina o momento
em que sua ira se exercerá impiedosa e implacável
- Aquele que age de acordo com a moral dos escravos = requer estímulos exteriores para poder agir. Sua ação é por
REAÇÃO. Precisa se persuadir da felicidade, é passivo (quer sossego, paz). Concebe o inimigo como mau. Valoriza
a segurança, o bem-estar. É prudente. É o manso, domesticado. De instinto gregário (=instinto de rebanho). Remete
a Deus a vingança. Foge de toda a maldade e exige pouco da vida. É o paciente. É o medroso. É o sofredor.
Enquanto o nobre sempre afirma ele sempre nega. É o piedoso.

Nietzsche e a Cultura (Do livro: Nietzsche Educador, Rosa Maria Dial, Editora Scipione,1990, pág. 81)

O Egoísmo das classes comerciantes – As classes comerciantes necessitam da cultura e a fomentam, embora prescrevendo
regras e limites para sua utilização. Eis o seu raciocínio: quanto mais cultura, maior consumo e, portanto, mais produção,
mais lucro e mais felicidade. Os adeptos dessa fórmula definem a cultura como um instrumento que permite aos homens
acompanhar e satisfazer as necessidades de sua época e um meio para torná-los aptos a ganhar muito dinheiro. Assim, os
83
estabelecimentos de ensino devem ser criados para reproduzir o modelo comum e formar tanto quanto possível homens
que circulem mais ou menos como “moeda corrente”.
Com a ajuda de uma formação geral não muito demorada, pois a rapidez é a alma do negócio, eles devem ser educados de
modo a saber exatamente o que exigir da vida e aprender a ter um preço como qualquer outra mercadoria. Assim, para que os
homens tenham uma parcela de felicidade na Terra, não se deve permitir que possuam mais cultura do que a necessária ao
interesse geral e ao comércio mundial.

Nietzsche como educador hoje (Do livro: Nietzsche Educador, Rosa Maria Dial, Editora Scipione,1990, pág. 114 e 115)

Será que o pensamento de Nietzsche pode ser usado, hoje, como um instrumento para pensar a educação: Será que seu
exemplo ainda pode servir para nos educar e, consequentemente, educar a quem educamos?
Não há dúvidas quanto a essas questões. Nietzsche apontou problemas que, apesar dos esforços de alguns educadores bem-
intencionados, ainda não foram resolvidos. Um deles – e talvez o mais grave – é o ensino da língua materna, até hoje um
grande desafio. Cada vez mais, abandona-se a formação humanista, em favor de uma educação voltada para as necessidades
do parque industrial.
Isto incentiva os indivíduos a um preparo rápido – uma profissionalização – que os torne aptos a trabalhar na “fábrica da
utilidade publica” e a servir como técnicos na maquinaria do Estado. Uma formação humanista seria um luxo que os afastaria
do mercado de trabalho.
Como filósofo-educador e “médico da cultura”, Nietzsche repensou as questões de educação a partir das necessidades vitais
(que não se resumem à sobrevivência), e não às do mercado de trabalho, criado para satisfazer as exigências do Estado e da
burguesia mercantil.
Adotou a vida como critério fundamental para todos os valores da educação e, com isso, destruiu as convicções que
sustentavam o sistema educacional de sua época.
... Tomar Nietzsche como exemplo significa educar-se incansavelmente; adquirir uma capacidade crítica pessoal e uma
capacidade de pensar por si; aprender a ver, habituando o olho no repouso e na paciência; dominar o “instinto do saber a
qualquer preço”, utilizando este princípio seletivo: só aprender aquilo que puder viver e abominar tudo aquilo que instrui sem
aumentar ou estimular a atividade; manter uma postura artística diante da existência, trabalhando como artista a obra
cotidiana; “dar à vida o valor de um instrumento e de um meio de conhecimento”, procedendo de modo que os falsos
caminhos, os erros, as ilusões, as paixões, as esperanças possam conduzir a um único objetivo – a educação de si próprio.
Em suma, tomar Nietzsche como exemplo não é pensar como ele, mas sim pensar com ele: “Nietzsche” não é um sistema,
nem mais um pensador com um programa de educação. Nietzsche, como afirma Gérard Lebrun, “é um instrumento de
trabalho insubstituível”.

O eterno retorno - Nelson Boeira (Do livro: "Nietzsche". Jorge Zahar Editor, ano 2002, pág. 41-43) - O mais importante
- e o mais controverso e obscuro - dos conceitos que Zaratustra vem anunciar é o do "eterno retorno" O conceito fora
anunciado no aforismo 341 de A gaia ciência: "E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária
solidão e te dissesse: essa vida, assim como tu a vives agora e como a viveste, terá de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras
vezes; e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indizivelmente
pequeno e de grande em tua vida haverão de retornar, e tudo na mesma ordem e seqüência..."
Em primeiro lugar, a idéia de um eterno retorno nos convida a um experimento mental: representar para nós mesmos o
"mundo" - a totalidade dos seres - sem recorrer a qualquer instância metafísica, a um "mundo por trás deste mundo" um
mundo "mais verdadeiro e mais real" do que o acessível à nossa experiência natural.
O "mundo" pensado como eterno retorno é realidade em constante mudança, sem causas nem finalidades, sem forças ou
deuses que lhe imponham uma direção definida, à exclusão de outras. Com o eterno retorno, o "mundo" é pensado como
entregue ao jogo infinito do tempo e à sucessão caótica de suas forças em luta por afirmação. Dado que o tempo é infinito e
as formas de existência que a realidade é capaz de assumir são finitas, pode-se conceber que estas se repetirão
indefinidamente e, portanto, retornarão perpetuamente, não importa quão grande seja sua diversidade e número.
Subjacente a esse experimento, está a idéia de que, dado o eterno retorno do mesmo, cada ocorrência particular de nossa
existência supõe todas as ocorrências anteriores, inclusive suas versões prévias. Em outras palavras, suposto o eterno retorno,
tanto nossas experiências positivas como negativas não poderiam deixar de ocorrer senão da maneira que ocorreram. Neste
caso, cada momento de nossa existência implica toda a série de antecedentes passados que o tornaram possível (e também as
séries futuras). Se assim é, não podemos seriamente desejar ou aprovar qualquer aspecto de nossa existência sem desejar
igualmente todos os seus antecedentes.
Portanto, a aceitação de nossas experiências felizes implica na aceitação de nossas infelicidades, pois a aceitação de qualquer
parcela de nossa existência supõe a aceitação de toda a nossa existência. Desejar que parcelas de nossa existência tivessem
sido diferentes e desejar que o curso da realidade tenha sido distinto do que é ou do que foi. Isto seria desejar o impossível:
negar a realidade.
Eis o experimento moral que Nietzsche nos convida a fazer: desejar viver como se cada momento de nossas vidas fosse
retornar. Amor fati, amar o que nos acontece, desejando o nosso destino - esta é a indicação mais aguda de que, de fato, nossa
vontade e nossas forças estão inteiramente investidas no que fazemos, coincidentes com o movimento da realidade.

"Minha fórmula para a grandeza no homem é o amor fati: nada querer diferente, seja para trás, seja para frente, seja em toda a
eternidade. Não apenas suportar o necessário, menos ainda ocultá-lo - todo o idealismo é mendacidade ante o necessário -
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mas amá-lo." O amor pela totalidade de minha experiência deve, pois, derivar do meu reconhecimento e minha aceitação
da realidade que a constitui. Devo mostrar apreço à realidade tal qual existe e existiu, pois ela é, nestes termos, a única fonte
possível da experiência humana e, portanto, da plenitude humana possível. Qualquer forma de negação da realidade, direta ou
indireta, expressa ou oculta, é uma negação do ser humano que efetivamente sou. Em outras palavras: é preciso estar à altura
do que nos acontece.

Crítica da moral como política em Nietzsche - Texto de Oswaldo Giacóia Júnior - IFCH/UNICAMP - Fonte:
http://www.rubedo.psc.br/artigosb/crimornt.htm

Já se consagrou como corrente de interpretação largamente difundida aquela que distingue na filosofia de Nietzsche uma
intenção e significado fundamentalmente políticos. Nesse sentido caminha, por exemplo, a recepção do início do século
(posteriormente conhecida como ‘culto a Nietzsche’ - em especial ao longo dos anos 20 e 30 -), que o considerava defensor
de um ultra-libertário amoralismo esteticista, socialmente irresponsável, desprezando vínculos de solidariedade para com os
direitos fundamentais da pessoa; também aquela que o interpreta como partidário de um maquiavelismo despótico,
retrógrado, saudosista das aristocracias grega e renascentista, ou como precursor dos sistemas ideológicos totalitários e
mesmo kriptofacista; mas não faltaram também exegeses em sentido inverso, que acentuavam a rebeldia emancipatória
presente na filosofia política nietzscheana, seu curioso parentesco teórico com a esquerda hegeliana de M. Stirner ou até
mesmo com o anarquismo. De toda maneira, é no espectro variado de interpretações dessa espécie que se cristalizou um
entendimento político da filosofia nietzscheana. Assim é que, durante a trajetória montante do nacional-socialismo e no
período de sua consolidação, A. Bäumler e A. Rosenberg, por exemplo, vêm em Nietzsche uma justificação filosófica de seu
regime totalitário; e G. Lukács, nos anos cinqüenta, em especial em seu famoso livro A Destruição da razão, julga poder
situar o essencial do pensamento de Nietzsche em sua visceral hostilidade para com o socialismo, apostrofando-o de fundador
do irracionalismo característico do período imperialista do capitalismo ocidental....

Para transmitir uma idéia aproximada do poder de provocação investido na filosofia nietzscheana, politicamente interpretada,
vale a pena prosseguir citando ainda um pequeno trecho da carta de Wolfgang Harich a Willi Stoph, membro do comitê
central do partido socialista:
"Motivo atual dessa minha carta ao senhor é que hoje, em visita a uma livraria da Friedrichstrasse, deparei-me com a primeira
publicação de uma obra de Nietzsche na República Democrática da Alemanha, desde 1945, - um acontecimento abalador, de
arrepiar os nervos, capaz de me roubar o sono. O senhor pode reproduzir o golpe que isso foi para mim, se o senhor se
representar como se vendo, em nosso meio, confrontado de repente, com a permissão, digamos, para uma liga tradicional da
SS."

Com efeito, Nietzsche foi um radical adversário da modernidade, da democracia liberal, do socialismo e do anarquismo -
ainda que sua posição quanto a este último seja nuançada e ambivalente. Tal oposição é dura, intransigente e incômoda; tão
incômoda que interpretações recentes de sua obra preferem, em nome de uma espécie de soft-Nietzsche, obliterar, quando
não simplesmente silenciar ou mesmo denegar a faceta ambiguamente maquiavelista de sua filosofia, inequivocamente anti-
liberal, anti-democrática, anti-moderna. Tal dimensão, não convém renegá-la - até mesmo porque soft só tem sentido em
relação a hard, de modo que, também por isso, há que se enfrentar o hard-Nietzsche -; é preciso, antes, tentar apreendê-la em
sua genuína significação.

É, em minha opinião, essa autêntica significação que se bagateliza, quando só tomamos literalmente algumas provocações
estridentes do filósofo, uma vez que, dessa maneira, ficam elas mal-entendidas, caindo-se assim precisamente nas armadilhas
e sutilezas que o filósofo tinha sempre prepararadas para ‘ouvidos grosseiros, alheios’ às suas verdades; ele que era mestre
em provocar o mal-entendido entre fanáticos partidários das "idéias modernas".

E o principal mal-entendido consiste justamente nesse erro de interpretação, que identifica o essencial da filosofia de
Nietzsche com sua crítica da modernidade política. É certo que essa crítica existe e que algumas de suas figuras são,
efetivamente, problemáticas, decididamente anti-humanitárias; mas não é menos certo que ela é apenas uma faceta ou
conseqüência da crítica da moral e da crítica da cultura empreendidas por Nietzsche, uma espécie de sub-produto de sua
tentativa de "refutação genealógica" do Cristianismo e de transvaloração de todos os valores superiores da cultura ocidental.

Com efeito, como se poderia dar sustentação a uma interpretação que transforma em filósofo-político, no sentido tradicional
do termo, um pensador que, desde a juventude, tem reservada, para a política, sua mais malévola ironia: "Toda filosofia que
acredita removido ou até mesmo solucionado, através de um acontecimento político, o problema da existência é uma filosofia
de brinquedo e uma pseudo-filosofia. Com muita freqüência, desde que há mundo, foram fundados Estados; isso é uma velha
peça. Como poderia uma invenção política bastar para fazer dos homens, de uma vez por todas, habitantes satisfeitos da
Terra? Mas se alguém acredita de todo coração que isso é possível, que se apresente: pois merece verdadeiramente tornar-se
professor de filosofia em uma universidade alemã, como Harms em Berlim, Jürgem Meyer em Bonn e Carrière em
Munique."
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Para Nietzsche, como para tantos outros, a filosofia, desde que não se contente em ser uma Afterphilosophie, tem que
enfrentar o "problema da existência"; e esse nem sequer é roçado se permanecemos apenas, ou principalmente, no domínio
das práticas sociais e das tecnologias políticas para sua regulação.

Esse problema se enuncia, em sua instância fundamental, no universo dos valores e, por conseguinte, no domínio da moral,
de onde se irradia e produz significativas reverberações em outras esferas da cultura superior, ou seja, nos planos da ciência,
da arte, da política, etc. Por conseguinte também, a filosofia política de Nietzsche não apenas fica mal-entendida, como
também se revela inconsistente e desvirtuada, se a tomarmos como auto-subsistente, desvinculada da relação essencial que
mantém com a crítica da moral e da religião. Dessa filosofia política, uma de suas mais importantes expressões se encontra no
derradeiro período da produção filosófica nietzscheana, que podemos situar a partir de 1884, e representa uma explicitação e
uma decorrência das noções mais importantes de Assim falou Zaratustra.

Para essa dimensão de sua filosofia, Nietzsche cunha a expressão grande política, a política dos bons europeus e dos espíritos
livres. Já a própria adjetivação indica o caráter especificamente contraditório dessa filosofia, sua natureza essencialmente
polêmica . Grande política, aquela de Nietzsche, se articula como crítica e recusa da pequena política, como denúncia da
mediocridade no entendimento moderno da política, em especial, na versão bismarckiana do nacionalismo e do imperialismo
alemão.

É nesse sentido, orientado por um ideal transnacional de Europa unificada, como pátria dos espíritos livres - cuja geografia
imaginária é inteiramente fantástica, a ponto de, partindo da França, incluir a Rússia e os países americanos e praticamente
excluir a Inglaterra - que Nietzsche concebe sua grande política, de que ele próprio, quando do mergulho derradeiro no delírio
megalômano, se auto-estiliza como personagem histórico mundial: "Derradeira consideração: Tanto melhor se pudéssemos
prescindir da guerra. Eu saberia fazer um uso mais proveitoso dos doze bilhões que custa anualmente a paz armada da
Europa; há ainda outros meios de honrar a fisiologia do que por meio de lazaretos ... Curto e bem [dito OGJ.], muito bem até:
depois que o velho Deus foi suprimido, estou preparado para governar o mundo."

Pequena política significa, para o último como para o jovem Nietzsche, a confusão entre nacionalismo, imperialismo
econômico ou militar, e identidade, grandeza cultural de um povo. Em face do nacionalismo e do militarismo do Reich
forjado por Bismarck, de seu efeito deletério sobre toda espécie de cultura superior, exclama Nietzsche: "... o fato de que na
Alemanha de hoje não deixe de obter êxito toda espécie de patranha espiritual é algo que se relaciona com a inegável, já
palpável desertificação do espírito alemão, cuja causa eu a procuro numa alimentação composta, com demasiada
exclusividade, de jornais, política, cerveja e música de Wagner, acrescida do que constitui o pressuposto dessa dieta: em
primeiro lugar, o enclausuramento e a vaidade nacionais, o forte, porém tacanho princípio Alemanha, Alemanha acima de
tudo, e depois a paralysis agitans das idéias modernas".

Pequena política significa também a funesta confusão ideológica, essencialmente democrática, segundo Nietzsche, entre
felicidade, por um lado, e segurança, comodidade, ausência de dor, por outro lado. Essa identificação implica, para ele, em
tomar à inglesa o ideal bem supremo, transformá-lo em wellfare, conforto e bem estar; significa apequenar a política,
amesquinhar a figura ou o tipo-homem que se pretende formar por intermédio da política e da cultura; grande política é a
política cultural que se inspira num outro ideal de homem, numa outra figura que não o homem das "idéias modernas", do
utilitarismo com sua felicidade de mercearia e dos direitos iguais.

Esse homem, Nietzsche o caricaturiza na figura do "último homem", o homem do rebanho e da pacífica felicidade das verdes
pastagens. Esse tipo-homem é, para Nietzsche, a verdadeira meta da pequena política; ele é o "último homem" porque se
auto-interpreta como o fim da história, como o telos até então oculto e ora manifestado do curso do mundo, como se toda
história universal não fosse senão o prelúdio e a gestação do advento de sua felicidade, enfim assegurada num pacífico
reinado universal da razão, de onde se pode, por fim, fazer desaparecer toda desigualdade, injustiça e sofrimento;
fisiologicamente decadente, esse "último homem" é, sobretudo, impotente para sofrer e suportar o sofrimento, daí porque a
banalidade dos prazeres e confortos moderados constitui seu supremo ideal de felicidade:

"Ai! Chega o tempo do homem mais desprezível, que não pode mais desprezar a si mesmo. Olhai! Eu vos mostro o último
homem. Que é amor? Que é criação? Que é anelo? Que é estrela - assim pergunta o último homem, e pestaneja. A terra se
tornou pequena então, e sobre ela saltita o último homem, que torna tudo pequeno. Sua estirpe é indestrutível, como a pulga;
o último homem é o que mais tempo vive. ‘Nós inventamos a felicidade’ - dizem os últimos homens, e pestanejam.
Abandonaram as regiões onde é duro viver: pois a gente precisa de calor. A gente ama inclusive o vizinho e se esfrega nele,
pois a gente precisa de calor. Adoecer e desconfiar, eles consideram perigoso: a gente caminha com cuidado. Louco é quem
continua tropeçando com pedras e com homens! Um pouco de veneno de vez em quando: isso produz sonhos agradáveis. E
muito veneno no final, para ter uma morte agradável. A gente continua trabalhando, pois o trabalho é um entretenimento.
Mas evitamos que o entretenimento canse. Já não nos tornamos nem pobres nem ricos: as duas coisas são demasiado
molestas. Quem ainda quer governar? Quem ainda obedecer? Ambas as coisas são demasiado molestas."

Essa felicidade amesquinhada, confundida com segurança e bem-estar, é expressão de uma vida reduzida ao mínimo possível
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de intensidade - "a terra se tornou pequena então" -, de onde toda tensão e contraste foram suprimidos, para não restar
senão o tépido aconchego e o monótono atritamento dos rebanhos, a igualdade transformada em igualitarismo da
uniformidade, onde não subsiste qualquer diferença ou distância - "quem ainda quer governar? quem ainda obedecer?" -.

Como intensidade, tensão e contraste - juntamente com o sofrimento e com a capacidade para suporta-lo tragicamente - são
condições incontornáveis de toda grandeza, de toda elevação do tipo-homem, a felicidade inventada pelo último homem
acoberta a hipocrisia de uma vontade de poder inconsciente de si mesma, ou seja, a inocente tirania da uniformidade, o
despotismo dos "mais estúpidos e medíocres", que sufoca e anatemiza a singularidade encarnada em toda verdadeira e grande
individualidade. "Nenhum pastor e um só rebanho! Todos querem o mesmo, todos são iguais: quem sente de outra maneira,
vai voluntariamente para o hospício. ‘Outrora todo mundo desvairava’, dizem os mais sutis e pestanejam. Hoje somos
inteligentes e sabemos o que ocorreu - assim não tem fim o gracejar. A gente ainda discute, mas logo se reconcilia - senão se
estraga o estômago. Temos nosso prazerzinho para o dia e nosso prazerzinho para a noite, mas honramos a saúde. ‘Nós
inventamos a felicidade’ - dizem os últimos homens e pestanejam."

A figura do "último homem" simboliza, pois, o alvo principal da crítica nietzscheana da modernidade política: a
bagatelização do tipo-homem embutida no igualitarismo uniformizante; um outro conceito polêmico para o mesmo
fenômeno, Nietzsche o fixou no termo: mediocrização (Mittelmässigkeit), com o qual fustiga a prudência mercantil dessa
miúda felicidade dos pequenos prazeres iguais para todos, característica da moderna sociedade civil-burguesa; para ele, é nela
que desemboca, finalmente, a ideologia da liberdade, igualdade e fraternidade universais. Além desse efeito nivelador,
Nietzsche identifica, na hegemonia das "idéias modernas" ainda um outro perigo iminente: com o apagamento de todas as
diferenças e a dissolução de toda autoridade legítima, prepara-se involuntariamente o caminho para o caminho para a barbárie
e a tirania.

A esse respeito, conviria destacar o quanto Nietzsche levou a extremos sua posição ambígua com relação a Platão. Com
efeito, sua crítica da democracia liberal enquanto dissolutora de toda hierarquia e, com ela, de todo princípio de autoridade
legitimada, assim como de sua tendência ao igualitarismo uniformizador, se aproxima extraordinariamente da crítica da
democracia feita por Platão na República: "o pai se acostuma a parecer-se com o filho e começa a temer-se dele, e o filho
toma o lugar do pai, sem o menor respeito ou receio de seus progenitores, para provar que é livre; o meteco se iguala ao
cidadão, e vice-versa, o mesmo acontecendo com os estrangeiros ... em semelhante situação, o professor tem medo dos alunos
e passa a adulá-los; os alunos desprezam o professor, o mesmo se dando com relação aos preceptores. De modo geral, os
moços procuram igualar os velhos e competir com eles por atos ou por palavras, como os velhos, por sua vez, se esforçam
por imitá-los nos gracejos e ditos espirituosos, a fim de não passarem por casmurros ou autoritários ... A mesma doença que
atacou a oligarquia e lhe causou a ruína, aqui se manifesta num âmbito maior e com mais força, pela falta de freio, até reduzir
a democracia à servidão, pois é um fato que o abuso seja do que for provoca reação correspondente, o que se verifica tanto
nas estações, nas plantas e nos corpos, como no governo das cidades" (563 a e seguintes).

Nietzsche, o anti-Platão, cujo esforço filosófico se concentra numa titânica empresa de reversão do platonismo, se perfila aqui
como um Platão moderno, ao efetuar sua crítica da democracia burguesa, especialmente em sua versão liberal, mas também
do socialismo e do anarquismo que, para ele, nela estão contidos como que in nuce.

Prefigurando a teoria heideggeriana do desgaste (Vernutzung) do homem e da natureza pela objetivante vontade de poder da
técnica moderna, Nietzsche apreende a consolidação da moderna sociedade civil-burguesa como uma "utilização cada vez
mais econômica de homem e humanidade, uma ‘maquinaria’ de interesses e rendimentos sempre mais firmemente
entrelaçados entre si." Essa forma de sociedade configura, para ele, a "inevitavelmente iminente administração econômica
total da terra", a que também pertence, de modo necessário, a ideologia utilitarista da acomodação, segurança e conforto, a
superficialização mercantilizante da virtude, aquilo que Nietzsche, como símbolo do igualitarismo uniformizador, denomina
"chinesismo superior" ou, em suma, o apequenamento da humanidade, tal como se encontra tipificado no "último homem".
Trata-se aqui, para Nietzsche, de um movimento irreversível: "a igualização do homem europeu é o grande processo que não
há que ser inibido: dever-se-ia ainda acelerá-lo."

Essa experiência histórica da inevitabilidade do "último homem", Nietzsche a professa também pela boca de Zaratustra:
"‘Nós inventamos a felicidade’ - dizem os últimos homens e pestanejam. E aqui terminou o primeiro discurso de Zaratustra,
que se chama também ‘o prefácio’: pois nesse ponto interrompeu-o a gritaria e o prazer da turba. ‘Dá-nos esse último homem,
oh Zaratustra’ - assim gritavam eles -, faze de nós esses últimos homens! O além-do-homem (Übermensch), nós o
presenteamos a ti."

Nietzsche interpreta a racionalização global da sociedade, emergente com a revolução industrial, como maquinalização do
homem, como solidarização reificadora das peças de um imenso mecanismo de ‘interesses e rendimentos’, que promove o
moderno sucateamento geral do tipo-homem, na armação dessa monstruosa engrenagem universal feita de "rodas sempre
menores, sempre mais finamente ‘adaptadas.’"
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Esse ajustamento global dos interesses e rendimentos implica também, por outro lado, na fragmentação do homem pela
divisão alienante do trabalho tornado abstrato, em sua transformação em indivíduo adestrado, laborioso, utilizável em
múltiplas ocupações, nivelado e indefinidamente intercambiável.

É a partir desse pano de fundo que o Nietzsche da grande política fala em escravidão e achinesamento da humanidade; é
também contrastivamente ao tipo-homem representado por essa figura que ele concebe seu ideal de singularidade genial, do
homem de exceção.

Para Nietzsche, o balanço possível da modernidade política não deixa margem a dúvidas: ao invés de um "otimismo
econômico" que acredita poder ainda retirar proveito geral do crescente prejuízo de cada um, Nietzsche aposta no contrário:
"os prejuízos de todos se somam num prejuízo global: o homem se torna menor"

Essa auto-mediocrização da humanidade, Nietzsche não a justifica ou prega; antes julga poder constatá-la no avanço
irreversível da moderna sociedade industrial. Ela já se encontra pré-figurada, como expressão política, na democracia liberal,
com suas prerrogativas de direitos iguais e suas tendências subterrâneas tanto para a anarquia como para a tirania; sua
verdadeira causa há que ser buscada na absolutização dos valores morais consagrados pelas "idéias modernas", sob o efeito
da qual esses se tornam valores em si: "Digamos logo, mais uma vez, o que já dissemos uma centena de vezes: pois hoje os
ouvidos para tais verdades - para nossas verdades -, não têm boa vontade. Sabemos, já o bastante, como soa ofensivo quando,
em geral, alguém inclui o homem, sem cosméticos e sem alegoria, entre os animais; mas é quase como culpa que nos é
imputado que, precisamente em referência aos homens das "idéias modernas", usamos constantemente as expressões
‘rebanho’, ‘instintos de rebanho’, e semelhantes. De que adianta! Não podemos fazer de outro modo: pois precisamente nisto
consiste nossa nova visão. Descobrimos que em todos os juízos-mestres da moral a Europa se tornou unânime, inclusive os
países onde domina a influência da Europa: sabe-se, pelo visto, na Europa, o que Sócrates pensava não saber, e o que aquela
velha e célebre serpente prometeu certa vez ensinar - "sabe-se" hoje o que é bom e mau...Moral é hoje, na Europa, moral de
animal-de-rebanho."

Aqui se encontra, talvez, um dos aspectos mais peculiares da platonizante crítica de Nietzsche à modernidade política: o
desdobramento virtual do liberalismo democrático no socialismo e também no anarquismo. Para ele, o liberalismo burguês,
com suas aspirações universais à liberdade e igualdade conduz fatalmente, no plano político, às instituições democráticas e
daqui tanto à absoluta igualização da humanidade na camisa de força social do "rebanho autônomo", quanto à anárquica
vontade de destruição de todo regime existente.

Ao auto-proclamar-se moral absoluta, ou como essência de toda moral, a figura moderna da consciência-moral cristã não
apenas institui a unanimidade gregária no bem e no mal; além disso, "com o auxílio de uma religião que fazia a vontade dos
mais sublimes apetites de animal-de-rebanho, e os adulava, chegou o ponto em que, mesmo nas instituições políticas e
sociais, encontramos uma expressão cada vez mais visível dessa moral: o movimento democrático é herdeiro do cristão. Que,
porém, sua cadência, para os mais impacientes, para os doentes e maníacos do citado instinto, ainda é muito lenta e sonolenta,
disto testemunha o clamor que se torna cada vez mais furioso, o cada vez menos oculto arreganhar de dentes dos cães
anarquistas que agora vagueiam pelos becos da civilização européia: aparentemente em oposição aos pacífico-laboriosos
democratas da revolução, e mais ainda aos broncos filosofastros e fanáticos da irmandade que se denominam socialistas e
querem a 'sociedade livre'; em verdade, porém, unânimes com eles na fundamental e instintiva hostilidade contra toda e
qualquer outra forma de sociedade que não a do 'rebanho autônomo'."

Nietzsche, por sua vez, acredita identificar nesse movimento o supremo perigo trazido à tona pelas "idéias modernas": o
perigo do niilismo entendido como indiferença, cansaço do homem consigo mesmo, como tédio por si e fastio de si, do
conseqüente anseio pelo repouso nirvânico numa espécie inusitada de budismo moderno, o budismo europeu. Compreendido
como experiência histórica de esvaziamento de sentido e perda de vigência por parte dos supremos valores de nossa cultura, a
vivência coletiva da indiferença niilista acarreta a precipitação do homem moderno - já despojado de sua singularidade
pessoal - seja no insuportável absurdo de uma existência sem sentido, seja na fúria selvagem do ‘budismo da ação’, isto no
paroxismo de destruição (nadificação) gratuita de toda subsistência, inclusive institucional, processo que ele apreende e
analisa menos a partir da consideração de movimentos sócio-políticos concretos do que a partir da freqüentação dos romances
de Turgueniev e Dostoiévski, especialmente em Pais e Filhos e Os Demônios, por exemplo.

Contrapondo-se à hegemonia e à absolutização dos valores do "homem moderno", Nietzsche procura abrir um espaço de
possiblidade para aqueles que "são de uma outra crença", para quem o liberalismo democrático não significa apenas uma
"degradação da organização política, mas uma forma de degradação, ou seja de apequenamento do homem, sua
mediocrização e rebaixamento de valor", Nietzsche diagnostica, também, nessa degradação do humano em rebanho uniforme
uma "animalização do homem", a degeneração geral da humanidade. Como contra-ideal e figura antitética do "último
homem", Nietzsche desenvolve seu conceito de "além-do-homem" (Übermensch), como contra-movimento visando fazer
face à mediocrização em curso, que dramaticamente se faz consciência de si na figura histórica do niilismo europeu.

É certo que, ao dar ênfase compensatória a seu contra-ideal, Nietzsche coqueteia também com a idealização artística da
individualidade genial, além de bem e mal, despoticamente dominadora e desapiedada, ciente e zelosa de suas prerrogativas e
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privilégios excepcionais. O contexto teórico em que isso se manifesta apresenta, por vezes, um aspecto assustador; em
algumas passagens de Para além de Bem e Mal, por exemplo, mas sobretudo em experimentos teóricos que permaneceram
como fragmentos inéditos, Nietzsche descreve o movimento de uma dialética imanente ao processo civilizatório, ao termo da
qual este, ao atingir seu ponto extremo de nivelamento e domestificação do homem, sua completa transformação em
ferramenta e inofensivo animal de rebanho, prepararia também, involuntariamente, as condições ideais para a gestação de seu
oposto, isto é do indivíduo soberano, não gregário.

Cumpre observar, desde logo, que não se trataria aqui de um resultado necessário e inevitável da dinâmica do processo, mas
de uma possibilidade que seria indispensável considerar: "O apequenamento do homem tem que valer por muito tempo como
única meta: porque primeiro é preciso criar um largo fundamento, sobre o qual se possa por de pé uma espécie mais forte de
homem: em que medida até aqui toda espécie-homem fortalecida esteve sobre a de um nível inferior."

Do ponto de vista de Nietzsche, intervir nessa direção seria uma tarefa própria do filósofo, que compreende a extensão em
que a forma atual da sociedade poderia ser mobilizada para um profundo processo de transformação, em que esta talvez
pudesse, alguma vez, não mais existir por si mesmo, mas encontrar a justificação de sua existência apenas como meio "nas
mãos de uma raça mais forte. O crescente apequenamento do homem é justamente a força motriz para se pensar na criação de
uma raça mais forte: que teria sua super-abundância precisamente lá onde a espécie apequenada se tornaria cada vez mais
fraca (vontade, responsabilidade, auto-certeza, poder-fixar-metas)." Essa seria a justificação compensatória do moderno
processo de apequenamento e mediocrização da humanidade, já ela própria reificada na anônima maquinaria dos interesses e
rendimentos.

Observemos, de maneira mais extensa e detalhada um desses experimentos teóricos:

"Esta é minha desconfiança, que retorna sempre, minha inquietação, que jamais se assossega, minha pergunta, que ninguém
ouve ou pode ouvir, minha esfinge, ao lado da qual existe não apenas um abismo: creio que hoje em dia nos enganamos a
respeito das coisas que nós europeus mais amamos, e que um cruel duende (ou nem cruel, apenas indiferente, maroto) brinca
com nosso coração e seu entusiasmo, como talvez já tenha brincado com tudo aquilo que outrora viveu e amou: - creio que
tudo o que estamos acostumados a glorificar, hoje na Europa, como ‘humanidade’, ‘moralidade’, ‘humanitarismo’,
‘consentimento’, ‘justiça’, pode, com efeito, ter um valor de fachada como enfraquecimento e abrandamento de algumas
poderosas e perigosas pulsões fundamentais, mas que, a longo prazo, nada mais é que apequenamento do tipo ‘homem’ em
seu todo - sua definitiva mediocrização, se me for permitida uma palavra desesperada num desesperado assunto; creio que
para um divino espectador epicurista a comédia humana deveria consistir em que os homens, graças à sua crescente
moralidade, em toda inocência e vaidade, presumem sobrelevar-se do animal ao nível dos ‘deuses’ e das determinações ultra-
mundanas, mas, em verdade, decaem; isto é, por meio do aperfeiçoamento de todas as virtudes graças às quais um rebanho
prospera, e inibição daquelas outras e opostas, que dão origem a uma espécie nova, superior, mais forte, mais senhorial,
desenvolvem justamente apenas o animal de rebanho no homem e talvez com isso fixem o animal ‘homem’ - pois até aqui o
homem foi o ‘animal não fixado’ -; creio que o grande, irresistível movimento democrático da Europa, que segue avante -
aquilo que se denomina ‘progresso’ -, do mesmo modo como já sua preparação e prefiguração, o Cristianismo -, significa
apenas a gigantesca conjuração total do rebanho contra tudo aquilo que é pastor, animal de rapina, ermitão e César, em
proveito da conservação e ascendência de todos os fracos, oprimidos, fracassados, medíocres, semi-malogrados, como uma
prolongada, de início secreta, em seguida cada vez mais auto-consciente rebelião de escravos contra toda espécie de senhor,
por último até contra o conceito ‘senhor’, como uma guerra de vida e morte contra toda moral brotada do seio e consciência
de uma espécie-homem superior, mais forte, senhorial, como já dito -, de uma espécie que necessita da escravidão, sob
alguma forma e nome, como de seu alicerce e condição; creio finalmente que até aqui toda elevação do tipo homem foi obra
de uma sociedade aristocrática, que acreditava num longo escalonamento de hierarquia e diferença de valor entre homem e
homem, e necessitava da escravidão: sim, que sem o pathos da distância, assim como este resulta da incorporada diferença
dos estamentos, do permanente olhar à distância e para baixo dirigido pela casta dominante a súditos e utensílios, de seu
exercício também permanente em comandar, sobrepujar e manter à distância, também aquele outro e mais misterioso pathos
não pode absolutamente surgir, aquela exigência de sempre novo alargamento de distância no interior da própria alma, a
configuração de estados sempre superiores, mais raros, mais remotos, mais tencionados, mais abrangentes, em suma, a ‘auto-
superação do homem’, para tomar uma fórmula moral num sentido transmoral. Uma pergunta me retorna sempre, uma má e
tentadora pergunta talvez: que ela seja dita ao pé do ouvido de quem tem um direito a tais perguntas problemáticas, as almas
mais fortes de hoje, que melhor se têm a si mesmas sob domínio: não estaria no tempo, quanto mais o tipo ‘animal de
rebanho’ é agora desenvolvido na Europa, de fazer a tentativa principal, artificial e consciente de criação do tipo oposto e de
suas virtudes? E, para o próprio movimento democrático, não seria então uma espécie de meta, redenção e justificação, se
viesse alguém que dele se servisse, pelo que se acrescentaria à sua nova e sublime configuração da escravidão - tal como um
dia se apresentará o aprimoramento da democracia européia - aquela espécie mais elevada de espíritos senhoriais e cesáreos,
que carece também, pois, dessa nova escravidão? Para novos, até aqui impossíveis, para seus horizontes, para suas tarefas?"

Não há como negar o efeito arcaizante dessa idealização estética da força, que não é capaz de se articular como um
diagnóstico concreto da modernidade política; não há como negar também que a grande política de Nietzsche não dispõe de
fórmulas para regulação e controle político-institucional dos conflitos de poder e interesse, de disciplinarização dos
mecanismos sociais de dominação.
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Mas isso não significa senão que Nietzsche não é um filósofo político stricto sensu, que ele sempre foi, antes de tudo, um
crítico da moral e filósofo da cultura. O além-do-homem, assim como a tragicamente famosa raça senhorial não tem um
sentido social ou biológicamente identificável

As diferenças hierárquicas de que fala Nietzsche não são, de nenhuma maneira, diferenças de estratificação econômica ou
social, nem há que se confundir as expressões ‘nobre’, ‘senhor’, com qualquer espécie de estamento social, a não ser que
permaneçamos hipnotizados pelas formulações de fachada, naquele domínio em que Nietzsche quis manter quem não
consegue penetrar nos estratos de significação mais profunda de seu pensamento.

É preciso insistir em que suas figuras e fórmulas têm, antes de tudo, um sentido opositivo e manifestamente provocador - elas
simbolizam o contra-ideal da modernidade e são, nesse aspecto, uma reedição das Consideração Extemporâneas e de seu
efeito compensatório do absoluto predomínio dos valores modernos. A aristocracia, pensada por Nietzsche, ainda que evoque
o tipo-homem da Grécia pré-socrática e coqueteie com a nobreza renascentista, é, essencialmente, uma aristocracia do
espírito - ela se refere, sobretudo, à hierarquia dos talentos e das responsabilidades e, nesse sentido, é também um curioso e
paradoxal tributo ao filósofo-governante da República de Platão -; não se deve, pois, confundi-la com a inescrupulosa
instrumentalização do rebanho dos medíocres e malogrados para fins de satisfação da insaciável ânsia de poder e dominação
política; até mesmo porque o aplastamento e maquinalização da humanidade que caracterizam a ‘moderna escravidão
remunerada’ já representavam, para Nietzsche, uma realidade histórica.

Ao invés de ser o cínico amoral que se compraz no ócio e na exploração da figura moderna do ‘trabalho escravo’, o além-do-
homem não pode ser identificado com anacrônico saudosismo do antigo regime, ou com o capitalista possuidor dos meios de
produção.

Ele é, antes, o filósofo-legislador para os futuros milênios, criador de novas tábuas de valor; uma personagem que - como os
mitos de origem e formação na filosofia platônica - é criada para fixar em imagem e atuar no sentido da formação, da
promoção de um tipo-homem que represente uma alternativa para sua assustadora bagatelização da humanidade em escala
planetária, sua definitiva transformação em massa uniforme, padronizada em seu pensar, sentir e agir, sob o efeito dos
mecanismos de normatização e controle dessa hybris moderna da racionalidade instrumental.

Muito se escreveu sobre o cesarismo e o bonapartismo, sim sobre o maquiavelismo de Nietzsche; e é certo que a ambigüidade
das imagens e conceitos em que formulou sua crítica do movimento democrático tem o poder de suscitar tais interpretações.
É necessário atentar, contudo, para que, Napoleão só figura, para Nietzsche, com o status de potência cultural trans-nacional
ao ser situado ao lado de Goethe, como sua necessária alma complementar. Se Napoleão pode ser considerado genial, só o
pode porque o essencial não residia em seu poderio político ou bélico, mas no grande estilo, na amplitude de horizontes de
sua atividade militar ou de estadista.

É em virtude dessa combinação entre o político e o artístico que Napoleão é grande, enquanto que a força das armas e o poder
político apenas não o teriam diferenciado da mediocridade moderna; ao vinculá-lo ao humanismo ‘pagão’ de Goethe,
Nietzsche, ainda uma vez, procura marcar sua distância em relação aos "ideais democráticos"; é por isso que, como
individualidades históricas que poderiam apontar na direção virtual de um outro tipo-homem, Napolão-Goethe se
entrepertencem como bons europeus.

O mesmo se poderia dizer da fascinação por Cesare Borgia; também ela recorre a essa noção-chave de grande estilo; trata-se
aqui da dramatização da grandeza, mesmo nas paixões e no vício, desta vez aplicada ao ‘maquiavelismo’ de Cesare Borgia e
que o tornava, aos olhos de Nietzsche, o contrário absoluto da confortável mediocridade utilitarista, que não é sacudida por
nenhuma paixão violenta, porque é impotente para qualquer arrebatamento.

Mas não nos esqueçamos que essa estilização de Cesare Borgia está intimamente vinculada a uma singular interpretação
histórica de sua figura - interpretação devida, aliás, em boa parte, a Jakob Burckhardt -; segundo ela, Borgia, no trono
pontifício, significaria a auto-supressão do Cristianismo, no centro de seu próprio império. Também quanto a Julio César, é
verdade que, por vezes, Nietzsche o aproxima de seu ideal do além-do-homem, nele vendo também uma espécie de indicação
nesse sentido; mas esse César não se confunde inteiramente com o imperador romano; trata-se, antes, do César com a alma do
Cristo, uma figura em si mesma antitética, somente pensável no registro irreal dos ideais extremos: "A educação para essas
virtudes de dominador, que se tornam senhoras também de sua benevolência e compaixão, as grandes virtudes do criador
(‘perdoar seus inimigos’ é, comparado com isso, uma brincadeira) - trazer à culminância o afeto do criador - não mais
esculpir em mármore!

A posição de exceção e poder desses seres, comparada com a dos nobres de até aqui: o Cesar romano com a alma do Cristo."

Essa última citação torna inequivocamente manifesto que o fundamental na filosofia política de Nietzsche é seu sentido
moral, sua visão e intenção pedagógicas de elevação da humanidade com auxílio de um ideal capaz de promover as
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virtualidades do espírito a partir da combinação artística de suas faculdades mais sublimes, assim como da sublimação de
suas energias ctônicas

É nesse sentido que se pode interpretar tanto o conceito de além-do-homem quanto a doutrina complementar do eterno
retorno do mesmo; elas fazem parte também dessa "filosofia política" de Nietzsche. Isso se enfatizarmos o sentido ético do
eterno retorno, tal como o fazem F. Kaulbach e H. Ottmann, por exemplo, ao considerá-la como tentativas de cultivo e
educação para uma forma nova de humanidade, suficientemente fortalecida para poder prescindir, por fim, dos consolos
metafísicos para o drama da finitude, renunciar à identificação entre a felicidade e a medíocre placidez do conforto bem
assegurado numa existência sem conflitos.

Nesse sentido, vontade de poder não é o conceito do ser do ente em sua totalidade, nem o eterno retorno é a correlata doutrina
de seu modo de aparecer no período da calculabilidade técnica sem resíduos; O pensamento do eterno retorno seria, no
contexto que ora nos interessa, um imperativo ético e pedagógico do tipo: "Age de tal maneira que tu possas viver assim
ainda uma vez (ou inúmeras vezes)!

Ou: não fujas no ‘verdadeiro mundo’ de Platão e do Cristianismo, age, porém, de tal maneira que todo o instante sobre ‘esta’
Terra receba o valor da eternidade." Essa seria, enfim, a existência sobre-humana, radicalmente singular; antes de tudo,
denúncia e antítese da ‘fraqueza’ e do nivelamento mediocrizante expressos pelo "último homem".

Em derradeira instância, também aqui, no domínio da filosofia política, a dominância é marcada pelo fundamental conceito
nietzscheano de justiça trágica. À luz desse conceito, não se pode pensar maniqueisticamente a postura de Nietzsche em
relação aos desdobramentos do processo de democratização na Europa. Também ele não poderia ser, para Nietzsche, pura e
simplesmente objeto de repúdio e condenação; antes de tudo, o que se faz urgente é esforço para compreendê-lo em sua
emergência histórica e determinar seu sentido; para apreende-lo conceitualmente em sua necessidade, como movimento de
aprofundamento do niilismo europeu e, dessa maneira, ao fazer a ele a justiça que merece - afinal amor fati é a fórmula
nietzscheana para a trágica aceitação do vir a ser -, intentar superá-lo pela transvaloração de todos os valores.

Esse conceito nietzscheano de justiça atravessa de ponta a ponta sua filosofia, das mais objetivas formulações de sua teoria do
conhecimento aos seus arrebatamentos éticos ou estéticos. Por meio dele, Nietzsche procura manter e intensificar a tensão
dos extremos entre os quais sempre se move sua filosofia, buscando desesperadamente manter entre eles um equilíbrio
delicado e precário. Segundo a diretriz desse conceito, a força e a riqueza super-abundante do além-do-homem não pode ser
pensável sem o esgotamento definitivo da forma-homem engendrada pelo processo civilizatório do Ocidente, de sorte que ela
surge e, de algum modo, se alimenta do seu oposto.

Mas tampouco ela seria desejável como tipo, se não recolhesse em si e, desse modo, redimisse as supremas conquistas e os
sublimes fragmentos de ideal que a humanidade criou para si nessa epopéia de sua auto-constituição, afinal, trata-se do
"homem sintético, somatório, justificador"

É, por conseguinte, esse conceito de justiça trágica que descortina também o mais remoto horizonte de compreensão de sua
filosofia política. O que se percebe, afinal, é que a mesma tensão dialética que se desenrola entre as figuras antagônicas do
‘nobre’ e do ‘escravo’, do além do homem e do último homem, se reproduz, em menor escala, no interior de cada uma dessas
figuras, desfazendo completamente toda tentativa apressada de encontrar em Nietzsche a unidade derradeira de uma síntese
pacificadora: "Quando se lê com rigor suficiente, nele (Nietzsche, OGJ.) se descobrirá sempre uma dupla diretiva: uma vez, a
indicação da pluralidade de perspectivas, com o perigo correspondente de nela se perder (‘Infinitude! É belo sucumbir nesse
mar’); em seguida, a exortação à vigorosa, hierárquica unificação do múltiplo, com o correspondente perigo da violenta
unilateralidade e injustiça. Nietzsche denomina justiça a difícil união de ambos. O êxito dela é e permanece inseguro,
sobretudo na época do niilismo, isto é, da dissolução das antigas representações de caminhos viáveis da justiça... Esse
Nietzsche da delicadíssima emoção, da colocação entre parênteses da própria perspectiva de um ângulo, da justiça, assim
tornada possível, para com a multiplicidade da realidade, não se deve negligenciá-lo em proveito do Nietzsche que em
primeiro lugar salta aos olhos, o das fortes palavras e programas, entre eles programas de violência política e aparentemente
apenas caótica des-repressão."

*Prof. Dr. Giacóia é especialista em Nietzsche, filósofo e professor da UNICAMP

Nietzsche e a mulher - Oswaldo Giacoia Junior (Do livro "Nietzsche e para além de bem e mal". Jorge Zahar Editor,
2002, pág. 57) - Nietzsche diagnostica, na exigência feminista de igualdade de direitos entre os gêneros, um aprofundamento
e uma extensão da vontade de nivelamento que caracteriza a moderna "moral de rebanho". É certo que Nietzsche tem uma
visão da mulher e do feminino cujo ideal é ainda marcado pelas grandes figuras femininas da Antigüidade. E muitas de suas
provocações têm uma ressonância acentuadamente machista e retrógrada.
A luta feminista pela emancipação da mulher, de acordo com o juízo de Nietzsche, se faz a partir da crença esclarecida na
mulher em si, das tentativas científicas de fixar objetivamente o que seria a natureza ou essência do feminino e de sua
verdadeira e justa posição em face do masculino.
Esse crença contém, entretanto, um pressuposto idealista, a saber, a convicção de que existe um em si da mulher, uma idéia
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do feminino. Essa abstração, que subtrai do feminino o seu elemento vital, insondável, não fixável - é isso o que Nietzsche
critica como grosseira ignorância de um necessário antagonismo, de uma eterna tensão entre os sexos - tensão de que não está
ausenta uma certa ponta de hostilidade, um típico sinal dos tempos de uniformização e rebaixamento do "tipo homem".
O que Nietzsche não pode perdoar no feminismo de seu tempo é o irrefreável desejo de ser como o outro, de renunciar à
própria especificidade. Para ele, atributos como o disfarce, a simulação, a astúcia, a sedução, o velamento, o jogo sutil entre
profundidade e máscara são as características mais fascinantes do feminino - justamente aquilo que se perde com a
masculinização da mulher em si.

Nietzsche e a Política Brasileira - Texto de Sandro Kobol Fornazari* - Fonte:


http://www.terravista.pt/enseada/3306/sandronietzsche3.htm

É muito comum que pessoas inteligentes e engajadas se refiram às elites brasileiras como as grandes responsáveis pelos
problemas do subdesenvolvimento e os níveis de miséria e desigualdade social. Normalmente esta conclusão faz-se inferir
das parcas qualidades morais dos ricaços: eles são mesquinhos, egoístas, sem responsabilidade social, insensíveis, etc. A
revista Caros Amigos, por exemplo, está cheia de argumentos como esse, que se repetem à exaustão.
Embora concordemos com o fato de que as elites são as principais responsáveis pela pobreza em que vivem dois terços dos
brasileiros, consideramos um absurdo fazer essa responsabilidade derivar de uma deficiência moral coletiva por parte da elite
brasileira. É uma ingenuidade pensar o poder a partir da moralidade, já dizia Maquiavel, e é realmente impossível não se
render à evidência de que a característica básica da vida é a disputa, e esta talvez seja a contribuição que Nietzsche pode
trazer para o pensamento político. Não se trata de uma disputa pela preservação, mas sim por algo mais, melhor, a luta de
cada ser vivo por expandir sua potência cada vez mais e melhor. Numa disputa, mesmo os que são dominados, ao resistirem à
dominação estão lutando, mesmo enquanto obedecem estão lutando até serem capazes de reunir forças suficientes para
inverter a situação e se tornarem então dominantes.
Nesse sentido, as elites brasileiras levam a exploração a um patamar tão alto porque são extremamente eficientes em suas
estratégias de dominação. São capazes, por exemplo, de inventar realidades de modo a que os dominados passem a acreditar
não no que vêem de fato, mas naquilo em que assistem nos telejornais. São muito eficazes também em manter o sistema
público de ensino a porcaria que é, emasculando quotidianamente alunos e professores através de sua estrutura burocrática e
dos baixos salários e péssimas condições de trabalho.
Assim, é forçoso reconhecer que aqueles que se opõem às estruturas de poder são, em comparação com as elites, muito pouco
eficientes. Quando um partido de oposição recorre às manchetes da Folha de São Paulo, por exemplo, o que está fazendo
senão o jogo das elites, legitimando um dos mais fortes elos da dominação que é a imprensa conservadora? No entanto, a luta
contra a exploração existe e vem ganhando força. As contradições estão cada vez mais presentes na vida das pessoas,
tornando cada vez mais difícil a tarefa dos ideólogos do neoliberalismo.
É preciso, portanto, reconhecer que a sociedade brasileira é caracterizada pela disputa pelo poder, pelo jogo de forças
ininterrupto entre os que participam das riquezas produzidas e os que estão excluídos dela. Não se trata de tentar educar os
ricos ou convencê-los a explorarem em menor proporção ou desqualificá-los como moralmente abjetos. Trata-se sim de
conquistar o direito de participar coletivamente e em igualdade dos frutos do trabalho humano.

*Sandro Kobol Fornazari é Mestre em Filosofia pela Universidade de São Paulo, membro da comissão editorial dos
Cadernos Nietzsche e professor de Filosofia na Universidade Estadual de Santa Catarina (skf@usp.br)

TEXTOS DE NIETZSCHE

Texto I - Moral nobre e moral escrava - Aqui, Nietzsche traça, com seu estilo direto e irreverente, as características que
demarcam os dois tipos de vida, representados pelas duas morais: a nobre (ou dos senhores) e a escrava.

"Numa perambulação pelas muitas morais, as mais finas e as mais grosseiras, que até agora dominaram e continuam
dominando na terra, encontrei certos traços que regularmente retornam juntos e ligados entre si: até que finalmente se
revelaram dois tipos básicos, e uma diferença fundamental sobressaiu. Há uma moral dos senhores e uma moral de
escravos; acrescento de imediato que em todas as culturas superiores e mais misturadas aparecem também tentativas de
mediação entre as duas morais, e, com ainda maior freqüência, confusão das mesmas e incompreensão mútua, por vezes
inclusive dura coexistência até mesmo num homem, no interior de uma só alma.
As diferenciações morais de valor se originaram ou dentro de uma espécie dominante, que se tornou agradavelmente cônscia
da sua diferença em relação à dominada, ou entre os dominados, os escravos e dependentes de qualquer grau. No primeiro
caso, quando os dominantes determinam o conceito de "bom", são os estados de alma elevados e orgulhosos que são
considerados distintivos e determinantes da hierarquia. O homem nobre afasta de si os seres nos quais se exprime o contrário
desses estados de elevação e orgulho: ele os despreza. Note-se que, nessa primeira espécie de moral, a oposição "bom" e
"ruim" significa tanto quanto "nobre" e "desprezível"; a oposição "bom" e "mau" tem outra origem.
Despreza-se o covarde, o medroso, o mesquinho, o que pensa na estreita utilidade; assim como o desconfiado, com seu olhar
obstruído, o que rebaixa a si mesmo, a espécie canina de homem, que se deixa maltratar, o adulador que mendiga, e,
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sobretudo, o mentiroso - é crença básica de todos os aristocratas que o povo comum é mentiroso. "Nós , verdadeiros" -
assim se denominavam os nobres da Grécia antiga.
É óbvio que as designações morais de valor, em toda parte, foram aplicadas primeiro a homens, e somente depois, de forma
derivada, a ações: por isso é um grande equívoco, quando historiadores da moral partem de questões como "por que foi
louvada a ação compassiva?". O homem de espécie nobre se sente como aquele que determina valores, ele não tem
necessidade de ser abonado, ele julga: "o que me é prejudicial é prejudicial em si", sabe-se como o único que empresta honra
às coisas, que cria valores. Tudo o que conhece de si, ele honra: uma semelhante moral é glorificação de si.
Em primeiro plano está a sensação de plenitude, de poder que quer elevada, a consciência de uma riqueza que gostaria de
ceder e presentear - também o homem nobre ajuda o infeliz, mas não ou quase não por compaixão, antes por um ímpeto
gerado pela abundância de poder.
O homem nobre honra em si o poderoso, e o que tem poder sobre si mesmo, que entende de falar e calar, que com prazer
exerce rigor e dureza consigo e venera tudo que seja rigoroso e duro.
"Um coração duro me colocou Wotan no peito", diz uma velha saga escandinava: uma justa expressão poética da alma de um
orgulhoso viking. Uma tal espécie de homem se orgulha justamente de não ser feito para a compaixão: daí o herói da saga
acrescentar, em tom de aviso, que "quem quando jovem não tem o coração duro, jamais o terá". Os nobres e bravos que
assim pensam estão longe da moral que vê o sinal distintivo do que é moral na compaixão, na ação altruísta ou no
desintéressement [desinteresse]; a fé em si mesmo, o orgulho de si mesmo, uma radical hostilidade e ironia face à
"abnegação" pertencem tão claramente à moral nobre quanto um leve desprezo e cuidado ante as simpatias e o "coração
quente".
São os poderosos que entendem de venerar, esta é sua arte, o reino de sua invenção. A profunda reverência pela idade e pela
origem - todo o direito se baseia nessa dupla reverência -, a fé e o preconceito em favor dos ancestrais e contra os vindouros
são algo típico da moral dos poderosos; e quando, inversamente, os homens das "idéias modernas" crêem quase
instintivamente no progresso" e no "porvir", e cada vez mais carecem do respeito pela idade, já se acusa em tudo isso a
origem não-nobre dessas "idéias"
O que faz uma moral dos dominantes parecer mais estranha e penosa para o gosto atual, no entanto, é o rigor do seu princípio
básico de que apenas frente aos iguais existem deveres; de que frente aos seres de categoria inferior, a tudo estranho-alheio,
pode-se agir ao bel-prazer ou como quiser o coração", e em todo caso "além do bem e do mal": aqui pode entrar a compaixão,
e coisas do gênero. A capacidade e o dever da longa gratidão e da longa vingança - as duas somente com os iguais -, a finura
na retribuição, o refinamento no conceito de amizade, de uma certa necessidade de ter inimigos (como canais de escoamento,
por assim dizer, para os afetos de inveja, agressividade, petulância - no fundo, para poder ser bem amigo): todas essas são
características da moral nobre, que, como foi indicado, não é a moral das "idéias modernas", sendo hoje difícil percebê-la,
portanto, e também desenterrá-la e descobri-la.
É diferente com o segundo tipo de moral, a moral dos escravos. Supondo que os violentados, oprimidos, prisioneiros,
sofredores, inseguros e cansados de si moralizem: o que terão em comum suas valorações morais? Provavelmente uma
suspeita pessimista face a toda a situação do homem achará expressão, talvez uma condenação do homem e da sua situação.
O olhar do escravo não é favorável às virtudes do poderoso: é cético e desconfiado, tem finura na desconfiança frente a tudo
"bom" que é honrado por ele gostaria de convencer-se de que nele a própria felicidade não é genuína.
Inversamente, as propriedades que servem para aliviar a existência dos que sofrem são postas em relevo e inundadas de luz: a
compaixão, a mão solícita e afável, o coração cálido, a paciência, a diligência, a humildade, a amabilidade recebem todas as
honras - pois são as propriedades mais úteis no caso, e praticamente todos os únicos meios de suportar a pressão da
existência.
A moral dos escravos é essencialmente uma moral de utilidade. Aqui está o foco de origem da famosa oposição "bom" e
"mau" - no que é mau se sente poder e periculosidade, uma certa terribilidade, sutileza e força que não permite o desprezo.
Logo segundo a moral dos escravos o "mau" inspira medo; segundo a moral dos senhores e precisamente o "bom" que
desperta e quer despertar medo, enquanto o homem "ruim" é sentido como desprezível. A opressão chega ao auge quando, de
modo conseqüente à moral dos escravos, um leve aro de menosprezo envolve também o "bom" dessa moral - ele pode ser
ligeiro e benévolo porque em todo caso o bom tem de ser, no modo de pensar escravo, um homem inofensivo: é de boa
índole, fácil de enganar, talvez um pouco estúpido, ou seja, un bonhomme [um bom homem]. Onde quer que a moral dos
escravos se torne preponderante, a linguagem tende a aproximar as palavras "bom" e "estúpido".
Uma última diferença básica: o anseio de liberdade, o instinto para a felicidade e as sutilezas do sentimento de liberdade
pertencem tão necessariamente à moral e moralidade escrava quanto a arte e entusiasmo da veneração, da dedicação, sintoma
regular do modo aristocrático de pensamento e valoração.
Com isso, pode-se compreender por que o amor-paixão - nossa especialidade européia - deve absolutamente ter uma
procedência nobre: é notório que ele foi invenção dos cavaleiros-poetas provençais, aqueles magníficos, inventivos homens
do gai saber [gaia ciência], aos quais a Europa tanto deve, se não deve ela mesma." (NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do
mal, § 260. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo, Companhia das Letras, 1992, p, 172-5)

A moral como contra-natureza - Todas as paixões têm uma época em que são meramente nefastas, durante a qual, com o
peso da estupidez, arrastam as suas vítimas para uma depressão - e uma época mais tardia muito posterior, na qual desposam
o espírito, na qual se "espiritualizam". Noutro tempo movia-se guerra à própria paixão, por causa da estupidez nela existente:
as pessoas conjuravam-se para aniquilá-la, - todos os velhos monstros da moral coincidem unanimemente em que il faut tuer
les passions.
A fórmula mais célebre desta idéia encontra-se no Novo Testamento, naquele Sermão da Montanha, no qual, diga-se de
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passagem, as coisas não são consideradas de modo algum desde as alturas. Nele se diz, por exemplo, aplicando-o na
prática à sexualidade, "se o teu olho te escandaliza, arranca-o": por sorte nenhum cristão atua de acordo com esse preceito.
Aniquilar as paixões e apetites meramente para prevenir a sua estupidez e as conseqüências desagradáveis desta é algo que
hoje nos aparece simplesmente como uma forma aguda de estupidez. Já não admiramos os dentistas que extraem os dentes
para que não continuem a doer... Com certa equidade concedamos, por outro lado, que o conceito "espiritualização da paixão"
não podia ser concebido de forma alguma no terreno de que brotou o cristianismo. A Igreja primitiva lutou, com efeito, como
é sabido, contra os "inteligentes" em favor dos "pobres de espírito": como esperar dela uma guerra inteligente contra a
paixão? - A Igreja combate a paixão com a extirpação, em todos os sentidos da palavra: a sua medicina, a sua "cura" é a
castração. Não pergunta nunca: "como espiritualizar, embelezar, divinizar um apetite?" - ela sempre carregou o acento da
disciplina no extermínio (da sensualidade, do orgulho, da vontade de poder, da ânsia de posse, do desejo de vingança). -
Porém atacar as paixões na sua raiz significa atacar a vida na sua raiz: a praxis da Igreja é hostil à vida...

Esse mesmo remédio, a castração, o extermínio, é escolhido instintivamente, na luta contra um desejo, pelos que são
demasiado débeis, pelos que estão demasiado degenerados para poderem impor-se moderação nesse desejo: por aquelas
naturezas que, para falar em metáfora (e sem metáfora -), têm necessidade de La Trappe , de alguma declaração definitiva de
inimizade, de um abismo entre elas e uma paixão. Os meios radicais afiguram-se indispensáveis tão-só aos. degenerados; a
debilidade da vontade, ou, dito com mais exatidão, a incapacidade de não reagir a um estímulo é simplesmente outra forma
de degenerescência. A inimizade radical, o ódio mortal contra a sensualidade. não deixa de ser um sintoma que induz a
refletir: ele autoriza a fazer conjecturas sobre a saúde mental de quem comete tais excessos. - Essa hostilidade, esse ódio
chega ao seu cúmulo, além disso, só quando tais naturezas não têm já firmeza bastante para a cura radical, para renunciar ao
seu "demônio". Deite-se um olhar para a história inteira dos sacerdotes e filósofos, não esquecendo a dos artistas: as coisas
mais venenosas contra os sentidos não foram ditas pelos impotentes, tão-pouco pelos ascetas, mas sim pelos ascetas im-
possíveis, por aqueles que teriam necessitado de ser ascetas...

A espiritualização da sensualidade chama-se amor: ela é um grande triunfo sobre o cristianismo. Outro triunfo é a nossa
espiritualização da inimizade. Consiste em compreender profundamente o valor que possui o ter inimigos: dito brevemente,
em proceder e extrair conclusões ao inverso de como se procedia e extraia conclusões noutro tempo. A Igreja quis sempre a
aniquilação dos seus inimigos: nós, nós os imoralistas e anticristãos, vemos a nossa vantagem em que a Igreja subsista.
Também no âmbito político a inimizade se tornou agora mais espiritual, - muito mais inteligente, muito mais reflexiva, muito
mais indulgente. Quase todos os partidos se dão conta de que para a sua própria autoconservação lhes interessa que o partido
oposto não perca forças; o mesmo se deve dizer para a grande política. Especialmente uma criação nova, por exemplo o novo
Reich, tem uma maior necessidade de inimigos que de amigos: só na antítese se sente necessário, só na antítese chega a
tornar-se necessário... Não nos comportamos de outro modo com o nosso "inimigo interior": também aqui temos
espiritualizado a inimizade, também aqui temos compreendido o seu valor. Só se é fecundo pelo preço de se ser rico em
contradições; só se permanece jovem na condição de que a alma não se relaxe, não deseje a paz... Nada se nos tornou mais
estranho que aquela aspiração de outrora, a aspiração à "paz de espírito", a aspiração cristã; nada nos causa menos inveja do
que a moral ruminante e a sebosa felicidade da consciência tranqüila. Renunciou-se à vida grande quando se renunciou à
guerra... Em muitos casos, desde logo, a "paz de espírito" não é mais do que um mal-entendido, - outra coisa, a que
unicamente não se sabe atribuir um nome mais honrado. Sem divagações nem preconceitos aqui temos uns quantos casos.
"Paz de espírito" pode ser, por exemplo, a plácida projeção de uma animalidade rica no terreno moral (ou religioso). Ou o
começo da fadiga, a primeira sombra que traz o crepúsculo, qualquer espécie de crepúsculo. Ou um sinal de que o ar está
úmido, de que se aproximam ventos do Sul. Ou o agradecimento, sem se o saber, por uma digestão feliz (chamado às vezes
"filantropia"). Ou a calma do convalescente, para o qual todas as coisas têm um sabor e que está à espera... ou o estado que se
segue a uma intensa satisfação da nossa paixão dominante, o sentimento de bem-estar próprio de uma saciedade rara. Ou a
debilidade senil da nossa vontade, dos nossos apetites, dos nossos vícios. Ou a preguiça, persuadida pela vaidade a ataviar-se
com adornos morais. Ou o advento de uma certeza, mesmo de uma certeza terrível, após uma tensão e tortura prolongadas
devidas à incerteza. Ou a expressão da maturidade e a maestria na atividade, no criar, agir, querer, a. respiração tranqüila, a
alcançada "liberdade da vontade"... Crepúsculo dos ídolos: quem sabe?, talvez também unicamente uma espécie de "paz de
espírito"...

Vou reduzir a fórmula um princípio. Todo o naturalismo em moral, quero dizer, toda a moral sã está regida por um instinto
da vida, - um mandamento qualquer da vida é cumprido com um certo cânone de "deves" e "não deves", um obstáculo e uma
inimizade qualquer no caminho da vida ficam com isso eliminados. A moral contranatural, ou seja, quase toda a, moral, até
agora ensinada, venerada e pregada, dirige-se, pelo contrário, precisamente contra os instintos da vida - é uma condenação,
por vezes encoberta, por vezes ruidosa e insolente, desses instintos. Ao dizer "Deus lê nos corações", a moral diz não aos
apetites mais baixos e mais altos da vida e considera Deus inimigo da vida... O santo para quem Deus tem a sua complacência
é o castrado ideal... A vida acaba onde começa o reino de Deus"...
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(Friedrich Nietzsche, "Crepúsculo dos ídolos, ou como se filosofa à marteladas", Lisboa, Guimarães Editores, Lda, 1985)

O ressentimento - "O homem do ressentimento traveste sua impotência em bondade, a baixeza temerosa em humildade, a
submissão aos que odeia em obediência, a covardia em paciência, o não poder vingar-se em não querer vingar-se e até
perdoar, sua própria miséria em aprendizagem para a beatitude, o desejo de represália em triunfo da justiça divina sobre os
ímpios. O reino de Deus aparece como produto do ódio e da vingança dos fracos. Incapaz de enfrentar o que o cerca, o
homem do ressentimento inventa, para seu consolo, o outro mundo. Assim também procede o "filisteu da cultura’, que só
pode afirmar-se através da negação do que considera seu oposto: a própria cultura. Ou então, o homem da ciência, que a si
mesmo opõe um outro: o pesquisador, que pretende comportar-se de maneira impessoal, desinteressada e neutra diante do
mundo, para chegar a abordá-lo com objetividade. E ainda o filósofo que, na elaboração de suas idéias, acredita poder
desvinculá-las da própria vida, não se reconhecendo como advogado de seus preconceitos." ("Para além de Bem e Mal",
parágrafo 2)

Os valores "Bom" e "Mau" - torna-se possível... traçar um dupla história dos valores "Bem" e "mal". O fraco concebe
primeiro a idéia de "mau", com que designa os nobres, os corajosos, os mais fortes do que ele - e então a partir da idéia de
"mau", chega, como antítese, à concepção de "bom", que se atribui a si mesmo. O forte, por outro lado, concebe
espontaneamente o princípio "bom" a partir de si mesmo e só depois cria a idéia de "ruim". Do ponto de vista do forte, "ruim"
é apenas uma criação secundária, enquanto para o fraco "mau" é a criação primeira, o ato fundador da sua moral, a moral dos
ressentidos. O forte só procede por afirmação e, mais, por auto-afirmação; o fraco só pode firmar-se negando o que considera
ser o seu oposto.
"O levante dos escravos na moral começa quando o ressentimento mesmo se torna criador e pare valores: o ressentimento de
seres tais, aos quais está vedada a reação propriamente dita, o ato, e que somente por uma vingança imaginária ficam quites.
Enquanto a moral nobre brota de um triunfante dizer-sim a si próprio, a moral de escravos diz não, logo de início, a um
"fora", a um "outro", a um "não-mesmo". E esse não é seu ato criador. Essa inversão do olhar que põe valores, essa direção
necessária para fora, em vez de voltar-se para si próprio - pertence, justamente, ao ressentimento: a moral de escravos precisa
sempre, para surgir, de um mundo oposto e exterior, precisa, dito fisiologicamente, de estímulos externos para em geral agir -
sua ação é, desde o fundamento, por reação."("Para a Genealogia da Moral", Primeira dissertação, parágrafo 10)

Liberdade de vontade - Onde um homem chega à convicção fundamental de que é preciso que mandem nele, ele se torna
"crente"; inversamente seria pensável um prazer e uma força de autodeterminação, uma liberdade de vontade, em que um
espírito se despede de toda crença, de todo desejo de certeza, exercitado, como ele está, em poder manter-se sobre leves
cordas e possibilidades, e mesmo diante de abismos dançar ainda. Um tal espírito seria o espírito livre "par excellence" ("A
Gaia Ciência", quinto livro, parágrafo 347)

Humildade - O verme pisado encolhe-se. Atitude inteligente. Com isso reduz a probabilidade de ser pisado de novo. Na
linguagem da moral: humildade." (Friedrich Nietzsche, "Crepúsculo dos ídolos, ou como se filosofa à marteladas", Lisboa,
Guimarães Editores, Lda, 1985, pág. 16)

Moralidade e sucesso - Não são apenas os espectadores de um ato que com freqüência medem o que nele é moral ou imoral
conforme o seu êxito: não, o seu próprio autor faz isso. Pois os motivos e intenções raramente são bastante claros e simples, e
às vezes a própria memória parece turvada pelo sucesso do ato, de modo que a pessoa atribui ao próprio ato motivos falsos ou
trata motivos secundários como essenciais. E freqüente o sucesso dar a um ato o brilho honesto da boa consciência, e o
fracasso lançar a sombra do remorso sobre uma ação digna de respeito. Daí resulta a conhecida prática do político que pensa:
"Dêem-me apenas o sucesso: com ele terei a meu lado todas as almas honestas - e me tornarei honesto diante de mim
mesmo". - De modo semelhante, o sucesso pode tomar o lugar do melhor argumento. Muitos homens cultos acham, ainda
hoje, que a vitória do cristianismo sobre a filosofia grega seria uma prova da maior verdade do primeiro - embora nesse caso
o mais grosseiro e violento tenha triunfado sobre o mais espiritual e delicado. Para ver onde se acha a verdade maior, basta
notar que as ciências que nasciam retomaram ponto a ponto a filosofia de Epicuro, mas rejeitaram ponto a ponto o
cristianismo. (Friedrich Nietzsche, "Humano, demasiado humano", Cia de Letras, p. 62, aforismo 68, ano 2001, São Paulo)

Execuções - O que faz com que toda execução nos ofenda mais que um assassinato? É a frieza dos juízes, a penosa
preparação, a percepção de que um homem é ali utilizado como um meio para amedrontar outros. Pois a culpa não é punida,
mesmo que houvesse uma; esta se acha nos educadores, nos pais, no ambiente, em nós, não no assassino - refiro-me às
circunstâncias determinantes. (Friedrich Nietzsche, "Humano, demasiado humano", Cia de Letras, p. 63, aforismo 71, ano
2001, São Paulo)

Saber esperar - Saber esperar é algo tão difícil, que os maiores escritores não desdenharam fazer disso um tema de suas
criações. Assim fizeram Shakespeare em Otelo e Sófocles em Ajax; se este tivesse deixado o sentimento esfriar por um dia
apenas, seu suicídio já não lhe teria parecido necessário, como indica a fala do oráculo; provavelmente teria zombado das
terríveis insinuações da vaidade ferida e teria dito a si mesmo: quem, no meu lugar, já não tomou unia ovelha por um herói?
será uma coisa tão monstruosa? Pelo contrário, é algo humano e comum; dessa forma Ajax poderia se consolar. A paixão não
quer esperar; o trágico na vida de grandes homens está, freqüentemente, não no seu conflito com a época e a baixeza de seus
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semelhantes, mas na sua incapacidade de adiar por um ou dois anos a sua obra; eles não sabem esperar. - Em todos os
duelos, os amigos que dão conselhos devem verificar apenas uma coisa: se as pessoas envolvidas podem esperar; se este não
for o caso, um duelo é razoável, pois cada um diz a si mesmo: "Ou eu continuo a viver, e então ele deve morrer
imediatamente, ou o contrário". Em tal caso, esperar significaria sofrer por muito tempo ainda o horrendo martírio da honra
ferida, diante de quem a feriu; o que pode constituir mais sofrimento do que o que vale a própria vida. (Friedrich Nietzsche,
"Humano, demasiado humano", Cia de Letras, p. 60, aforismo 61, ano 2001, São Paulo)

A esperança - Pandora trouxe o vaso que continha os males e o abriu. Era o presente dos deuses aos homens, exteriormente
um presente belo e sedutor, denominado "vaso da felicidade". E todos os males, seres vivos alados, escaparam voando: desde
então vagueiam e prejudicam os homens dia e noite. Um único mal ainda não saíra do recipiente: então, seguindo a vontade
de Zeus, Pandora repôs a tampa, e ele permaneceu dentro. O homem tem agora para sempre o vaso da felicidade, e pensa
maravilhas do tesouro que nele possui; este se acha à sua disposição: ele o abre quando quer; pois não sabe que Pandora lhe
trouxe o recipiente dos males, e para ele o mal que restou é o maior dos bens - é a esperança. - Zeus quis que os homens, por
mais torturados que fossem pelos outros males, não rejeitassem a vida, mas continuassem a se deixar torturar. Para isso lhes
deu a esperança: ela é na verdade o pior dos males, pois prolonga o suplício dos homens. (Friedrich Nietzsche, "Humano,
demasiado humano", Cia de Letras, p. 63, aforismo 71, ano 2001, São Paulo)

Valor da diminuição - Não poucos, talvez a maioria homens, têm necessidade de rebaixar e diminuir na sua imaginação
todos os homens que conhecem, para manter sua autoestima e uma certa competência no agir. E, como as naturezas
mesquinhas são em número superior, é muito importante elas terem essa competência. (Friedrich Nietzsche, "Humano,
demasiado humano", Cia de Letras, p. 61, aforismo 63, ano 2001, São Paulo)

Deus - É com seu próprio deus que as pessoas são mais desonestas: não lhe é permitido pecar. (Friedrich Nietzsche, "Além
do Bem e do Mal", Cia das Letras, ano 2001, Aforismo 65a, pág. 67)

Mão que mata - Fomos maus espectadores da vida, se não vimos também a mão que - delicadamente - mata. (Friedrich
Nietzsche, "Além do Bem e do Mal", Cia das Letras, ano 2001, Aforismo 69, pág. 68)

O enfurecido - Diante de um homem que se enfurece conosco devemos tomar cuidado, como diante de alguém que já tenha
atentado contra a nossa vida; pois o fato de ainda vivermos se deve à ausência do poder de matar; se os olhares bastas sem, há
muito estaríamos liquidados. É traço de uma cultura grosseira fazer calar alguém tornando visível a brutalidade, sus citando o
medo. - Do mesmo modo, o olhar frio que os nobres têm para seus criados é resíduo daquela separação dos homens em
castas, um traço de antigüidade grosseira; as mulheres, essas conservadoras do antigo, também conservaram mais fielmente
essa survival [sobrevivência]. (Friedrich Nietzsche, "Humano, demasiado humano", Cia de Letras, p. 61, aforismo 64, ano
2001, São Paulo)

Medida para todos os dias - Raramente se erra, quando se liga as ações extremas à vaidade, as medíocres ao costume e as
mesquinhas ao medo. (Friedrich Nietzsche, "Humano, demasiado humano", Cia de Letras, p. 65, aforismo 74, ano 2001, São
Paulo)

Ideal - Quem alcança seu ideal, vai além dele. (Friedrich Nietzsche, "Além do Bem e do Mal", Cia das Letras, ano 2001,
Aforismo 73, pág. 68)

Reputação - Quem já não se sacrificou alguma vez - pela própria reputação? (Friedrich Nietzsche, "Além do Bem e do Mal",
Cia das Letras, ano 2001, Aforismo 92, pág. 71)

?Costumes e moral - Ser moral, morigerado, ético" significa prestar obediência a uma lei ou tradição há muito estabelecida.
Se alguém se sujeita a ela com dificuldade ou com prazer é indiferente, bastando que o faça, "Bom" é chamado aquele que,
após longa hereditariedade e quase por natureza, pratica facilmente e de bom grado o que é moral, conforme seja (por
exemplo, exerce a vingança quando exercê-la faz parte do bom costume, como entre os antigos gregos). Ele é denominado
bom porque é bom "para algo"; mas como, na mudança dos costumes, a benevolência, a compaixão e similares sempre foram
sentidos como "bons para algo", como úteis, agora sobretudo o benevolente, o prestativo, é chamado de "bom". Mau é ser
"não moral" (imoral), praticar o mau costume, ofender a tradição, seja ela racional ou estúpida; especialmente prejudicar o
próximo foi visto nas leis morais das diferentes épocas como nocivo, de modo que hoje a palavra "mau" nos faz pensar
sobretudo no dano voluntário ao próximo. "Egoísta" e "altruísta" não é a oposição fundamental que levou os homens à
diferenciação entre moral e imoral, bom e mau, mas sim estar ligado a uma tradição, uma lei, ou desligar-se dela. Nisso não
importa saber como surgiu a tradição, de todo modo ela o fez sem consideração pelo bem e o mal, ou por algum imperativo
categórico imanente, mas antes de tudo a fim de conservar uma comunidade, um povo; cada hábito supersticioso, surgido a
partir de um acaso erroneamente interpretado, determina uma tradição que é moral seguir; afastar-se dela é perigoso, ainda
mais nocivo para a comunidade que para o indivíduo (pois a divindade pune a comunidade pelo sacrilégio e por toda violação
de suas prerrogativas, e apenas ao fazê-lo pune também o indivíduo). Ora, toda tradição se torna mais respeitável à medida
que fica mais distante a sua origem, quanto mais esquecida for esta; o respeito que lhe é tributado aumenta a cada geração, a
tradição se torna enfim sagrada, despertando temor e veneração; assim, de todo modo a moral da piedade é muito mais antiga
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do que a que exige ações altruístas. (Friedrich Nietzsche, "Humano, demasiado humano", Cia de Letras, p. 73, aforismo
96, ano 2001, São Paulo)

O prazer no costume - Um importante gênero de prazer, e com isso importante fonte de moralidade, tem origem no hábito.
Fazemos o habitual mais facilmente, melhor, e por isso de mais bom grado; sentimos prazer nisso, e sabemos por experiência
que o habitual foi comprovado, e portanto é útil; um costume com o qual podemos viver demonstrou ser salutar, proveitoso,
ao contrário de todas as novas tentativas não comprovadas. O costume é, assim, a união do útil ao agradável, e além disso não
pede reflexão. Sempre que pode exercer coação, o homem a exerce para impor e introduzir seus costumes, pois para ele são
comprovada sabedoria de vida. Do mesmo modo, uma comunidade de indivíduos força todos eles a adotar o mesmo costume.
Eis a conclusão errada: porque nos sentimos bem com um costume, ou ao menos levamos nossa vida com ele, esse costume é
necessário, pois vale como a única possibilidade na qual nos sentimos bem; o bem estar da vida aprece vir apenas dele. Essa
concepção do habitual como condição da existência é aplicada aos mínimos detalhes do costume: como a percepção da
causalidade real é muito escassa entre os povos e as culturas de nível pouco elevado, um medo supersticioso cuida para que
todos sigam o mesmo caminho; e até quando o costume é difícil, duro, pesado, ele é conservado por sua utilidade
aparentemente superior. Não sabem que o mesmo grau de bem-estar pode existir com outros costumes, e que mesmo graus
superiores podem ser alcançados. Mas certamente notam que todos os costumes, inclusive os mais duros, tornam-se mais
agradáveis e mais brandos com o tempo, e que também o mais severo modo de vida pode ser tornar hábito e com isso um
prazer. (Friedrich Nietzsche, "Humano, demasiado humano", Cia de Letras, p. 73-74, aforismo 97, ano 2001, São Paulo)

Dois tipos de igualdade - A ânsia de igualdade pode se expressar tanto pelo desejo de rebaixar os outros até seu próprio nível
(diminuindo, segregando, derrubando) como pelo desejo de subir juntamente com os outros (reconhecendo, ajudando,
alegrando-se com seu êxito) (Friedrich Nietzsche, "Humano, demasiado humano", Cia de Letras, p. 198, aforismo 300, ano
2001, São Paulo)

A preferência por certas virtudes - Não atribuímos valor especial à posse de uma determinada virtude, até que percebemos
a sua ausência total em nosso adversário. (Friedrich Nietzsche, "Humano, demasiado humano", Cia de Letras, p. 199,
aforismo 302, ano 2001, São Paulo)

Respeitosamente - Não querer magoar, não querer prejudicar ninguém pode ser sinal tanto de um caráter justo como de um
caráter medroso. (Friedrich Nietzsche, "Humano, demasiado humano", Cia de Letras, p. 201, aforismo 314, ano 2001, São
Paulo)

Criança - Maturidade do homem: significa reaver a seriedade que se tinha quando criança ao brincar. (Friedrich Nietzsche,
"Além do Bem e do Mal", Cia das Letras, ano 2001, Aforismo 94, pág. 71)

Mundo às avessas - Criticamos mais duramente um pensamento quando ele oferece uma proposição que nos é desagradável;
no entanto, seria mais razoável fazê-lo quando sua proposição nos é agradável. (Friedrich Nietzsche, "Humano, demasiado
humano", Cia de Letras, p. 265, aforismo 484, ano 2001, São Paulo)

Amor ao próximo - Não o seu amor ao próximo, mas a impotência do seu amor ao próximo é que impede os cristãos de hoje
de nos queimar. (Friedrich Nietzsche, "Além do Bem e do Mal", Cia das Letras, ano 2001, Aforismo 104, pág.73)

Amor - Com freqüência a sensualidade precipita o crescimento do amor, de modo que a raiz permanece fraca e é facilmente
arrancada. (Friedrich Nietzsche, "Além do Bem e do Mal", Cia das Letras, ano 2001, Aforismo 120, pág. 75)

O laço da gratidão - Existem almas servis, que levam a tal ponto o reconhecimento por benefícios, que estrangulam a si
mesmas com o laço da gratidão. (Friedrich Nietzsche, "Humano, demasiado humano", Cia de Letras, p. 277, aforismo 550,
ano 2001, São Paulo)

Confissão - Esquecemos nossa culpa quando a confessamos a outro alguém, mas geralmente o outro não a esquece.
(Friedrich Nietzsche, "Humano, demasiado humano", Cia de Letras, p. 280, aforismo 568, ano 2001, São Paulo)

Monstruosidades - Quem combate monstruosidades deve cuidar para que não se torne um monstro. E se você olhar
longamente para um abismo, o abismo também olha para dentro de você. (Friedrich Nietzsche, "Além do Bem e do Mal", Cia
das Letras, ano 2001, Aforismo 146, pág. 79)

Atavismo - O que uma época percebe como mau é geralmente uma ressonância anacrônica daquilo que um dia foi
considerado bom - o atavismo de um antigo ideal. (Friedrich Nietzsche, "Além do Bem e do Mal", Cia das Letras, ano 2001,
Aforismo 149, pág. 79)

Sinais de saúde - O reparo, a travessura, a sorridente suspeita, a zombaria são sinais de saúde: todo absoluto pertence à
patologia. (Friedrich Nietzsche, "Além do Bem e do Mal", Cia das Letras, ano 2001, Aforismo 154, pág. 80)
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Loucura - A loucura é algo raro em indivíduos - mas em grupos, partidos, povos e épocas é a norma. (Friedrich Nietzsche,
"Além do Bem e do Mal", Cia das Letras, ano 2001, Aforismo 156, pág. 80)

Falar de si - Falar muito de si pode ser um meio de se ocultar. (Friedrich Nietzsche, "Além do Bem e do Mal", Cia das
Letras, ano 2001, Aforismo 169, pág. 82)

Elogio - No elogio há mais indiscrição que na censura. (Friedrich Nietzsche, "Além do Bem e do Mal", Cia das Letras, ano
2001, Aforismo 170, pág. 82)

Desejo - Por fim amamos o próprio desejo, e não o desejado. (Friedrich Nietzsche, "Além do Bem e do Mal", Cia das Letras,
ano 2001, Aforismo 175, pág. 83)

Amor e reverência - O amor deseja, o medo evita. Por causa disso não podemos ser amados e reverenciados pela mesma
pessoa, não no mesmo período de tempo, pelo menos. Pois quem reverencia reconhece o poder, isto é, o teme: seu estado é de
medo-respeito. Mas o amor não reconhece nenhum poder, nada que separe, distinga, sobreponha ou submeta. E, como ele não
reverencia, pessoas ávidas de reverência resistem aberta ou secretamente a serem amadas. (Friedrich Nietzsche, "Humano,
demasiado humano", Cia de Letras, p. 289, aforismo 603, ano 2001, São Paulo)

Bondade - Há uma exuberância da bondade que pode parecer maldade. (Friedrich Nietzsche, "Além do Bem e do Mal", Cia
das Letras, ano 2001, Aforismo 184, pág. 84)

Estar à altura de algo - "Isso não me agrada" - Por quê? - "Não estou à altura disso." - Algum homem já respondeu assim?
(Friedrich Nietzsche, "Além do Bem e do Mal", Cia das Letras, ano 2001, Aforismo 185, pág. 84)

Mau humor com os outros e com o mundo - Quando, como é tão freqüente, desafogamos nosso mau humor nos outros, e
na realidade o sentimos em relação a nós mesmos, o que no fundo procuramos é anuviar e enganar o nosso julgamento:
queremos motivar esse mau humor a posterior, mediante os erros, as deficiências dos outros, e assim não ter olhos para nós
mesmos. - Os homens religiosamente severos, juízes implacáveis consigo mesmos, foram também os que mais denegriram a
humanidade: nunca houve um santo que reservasse para si os pecados e para os outros as virtudes; e tampouco alguém que,
conforme o preceito do Buda, ocultasse às pessoas o que tem de bom e lhes deixasse ver apenas o que tem de mau. (Friedrich
Nietzsche, "Humano, demasiado humano", Cia de Letras, p. 290, aforismo 607, ano 2001, São Paulo)

A melancolia de tudo terminado - Péssimo! Sempre a velha história! Ao terminar a construção da casa, notamos que sem
nos dar conta aprendemos, ao construí-la, algo que simplesmente tínhamos de saber, antes de começar a construir. O eterno
aborrecido "Tarde demais!" - a melancolia de tudo terminado!... '
.
Confusão entre causa e efeito - Inconscientemente buscamos os princípios e as teorias adequados ao nosso temperamento,
de modo que afinal aparece que esses princípios e teorias criaram o nosso caráter, deram-lhe firmeza e segurança: quando
aconteceu justamente o contrário. O nosso pensamento e julgamento, assim parece, é transformado posteriormente em causa
de nosso ser: mas na realidade é nosso ser a causa de pensarmos e julgarmos desse ou daquele modo. - E o que nos induz a
essa comédia quase inconsciente? A indolência e a comodidade, e também o desejo vaidoso de ser considerado inteiramente
consistente, uniforme no ser e no pensar: pois isso conquista respeito, empresta confiança e poder. (Friedrich Nietzsche,
"Humano, demasiado humano", Cia de Letras, p. 291, aforismo 608, ano 2001, São Paulo)

Perigo para o homem nobre - ... Quem tem os desejos de uma alma elevada e exclusiva e raramente encontra sua mesa
posta, seu alimento pronto, estará sempre em grande perigo; mas esse perigo é hoje extraordinário. Lançado numa época
ruidosa e plebéia, com a qual não quer partilhar o mesmo prato, ele pode facilmente perecer de fome e sede ou, caso
finalmente "se sirva" - de súbita náusea. - Todos nós, é provável, já nos sentamos junto a mesas a que não pertencíamos; e
precisamente os mais espirituais entre nós, os mais difíceis de serem alimentados, conhecem aquela perigosa dispepsia, que
vem de uma súbita percepção e desilusão da comida e dos vizinhos de mesa - a náusea da sobre-mesa. (Friedrich Nietzsche,
"Além do Bem e do Mal", Cia das Letras, Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza, ano 2001, Aforismo 282, pág.
190)

Elogio - Supondo que se deseje absolutamente elogiar, constitui um sutil e também nobre autodomínio elogiar somente
quando não se está de acordo: - de outro modo se estaria elogiando a si mesmo, o que vai de encontro ao bom gosto - sem
duvida, um autodomínio que traz boa instigação e ocasião para ser continuamente mal entendido. É preciso, para se dar a esse
verdadeiro luxo de gosto e moralidade, não viver enter grosseirões do espírito, mas entre homens nos quais os mal-entendidos
e equívocos divertem por sua sutileza - ou então se terá de pagar caro! - "Ele me elogia: portanto me dá razão" - essa dedução
perfeitamente asinina nos estraga boa parte da vida, a nós, eremitas, porque atrai os asnos à nossa vizinhança e amizade.
(Friedrich Nietzsche, "Além do Bem e do Mal", Cia das Letras, Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza, ano
2001, Aforismo 283, pág. 191)

Filosofia - Toda filosofia é uma filosofia-de-fachada - eis um juízo-de-eremita: "Existe algo de arbitrário no fato de ele se
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deter aqui, de olhar para trás e em volta, de não cavar mais fundo aqui e pôr de lado a pá - há também algo de suspeito
nisso". Toda filosofia também esconde uma filosofia, toda opinião é também um palavra também esconderijo, toda uma
máscara. (Friedrich Nietzsche, "Além do Bem e do Mal", Cia das Letras, Tradução, notas e posfácio de Paulo César de
Souza, ano 2001, Aforismo 289, pág. 193)

Amor - ... O amor é o estado em que os homens vêem as coisas como elas não são. A força da ilusão está no amor em toda
sua potência, assim como a força de adoçar, de transfigurar.... (Friedrich Nietzsche, "O Anticristo - Maldição do
Cristianismo", Edição Integral,1992, pág. 44)

Cristo (1) - ... (Cristo) não tinha mais necessidade de fórmulas, de ritos para comunicar-se com Deus, nem mesmo da prece.
Acabou com toda doutrina judaica de penitência e reconciliação, sabe que somente com a prática da vida o homem se sente
"divino", "abençoado", "evangélico", em qualquer momento um "filho de Deus." "Penitência', "oração" e "absolvição" não
são o caminho para Deus: somente a prática evangélica conduz a Deus, ela é propriamente "Deus"! O que foi destronado do
Evangelho foi o judaísmo dos conceitos de "pecado", "absolvição dos pecados", "fé", "redenção dos pecados", toda doutrina
da igreja judaica foi negada na "boa nova". (Friedrich Nietzsche, "O Anticristo - Maldição do Cristianismo", Edição
Integral,1992, pág. 56)

Reino de Deus - ... O "reino de Deus" não é o que se espera; não existe nem ontem nem depois do amanhã, não virá em "mil
anos", é uma experiência do coração; está em toda parte, em parte alguma... (Friedrich Nietzsche, "O Anticristo - Maldição
do Cristianismo", Edição Integral,1992, pág. 57)

Vida - Quando não se coloca o peso da vida na própria vida, mas sim no "além", no nada, então retira-se da vida toda sua
importância. A grande mentira da imortalidade pessoal destrói toda razão, todo instinto natural. Tudo que é benéfico, vital,
promissor nos instintos, suscita cada vez maior desconfiança. Viver assim, de modo a esvaziar o sentido do viver, isso
tornou-se atualmente o "sentido" da vida... (Friedrich Nietzsche, "O Anticristo - Maldição do Cristianismo", Edição
Integral,1992, pág. 65)

Fé (1)- ... a fé não move montanhas (na verdade coloca montanhas onde não há nenhuma) ... (Friedrich Nietzsche, "O
Anticristo - Maldição do Cristianismo", Edição Integral,1992, pág. 75)

Fé (2) - ... Fé significa não-querer-saber o que é verdadeiro. (Friedrich Nietzsche, "O Anticristo - Maldição do Cristianismo",
Edição Integral,1992, pág. 77)

Cristianismo - O cristianismo tem necessidade de doença, da mesma forma mais ou menos como os gregos tinham
necessidade de excesso de saúde; criar doentes é a meta obscura de todo sistema de procedimentos de cura da Igreja.
(Friedrich Nietzsche, "O Anticristo - Maldição do Cristianismo", Edição Integral,1992, pág. 75)

Mártires - ... as mortes dos mártires, diga-se da passagem, foram uma grande infelicidade histórica: elas fascinavam.... Os
mártires prejudicaram a verdade... Até hoje basta uma certa crueza na perseguição de uma seita insignificante para que esta
conquiste um nome respeitável. Como? O valor de uma coisa por acaso muda só porque alguém desiste da vida....
Exatamente isso foi a maior idiotice histórica de todos os perseguidores, ter dado à questão dos oponentes uma aparência de
honra, tê-la presenteado com a fascinação do martírio... A mulher continua ajoelhada ante um equívoco, porque disseram-lhe
que por sua causa alguém morreu na cruz. É pois a cruz um argumento? ... Escreveram letras sangrentas no caminho que
percorreram e sua loucura ensinava que a verdade se prova com sangue. Mas o sangue é a pior testemunha da verdade; o
sangue envenena transformando o ensinamento puro em loucura e ódio dos corações. E quando alguém atravessa o inferno
em nome da doutrina, o que isso prova? É mais verdadeiro quando a própria doutrina nasce da queimadura. (Friedrich
Nietzsche, "O Anticristo - Maldição do Cristianismo", Edição Integral,1992, pág. 79)

O homem de fé - O homem de fé, o crente de qualquer espécie é obrigatoriamente um homem dependente, um desses que
não pode colocar sua própria meta ou colocar metas para si mesmo. O crente não se pertence, só sabe ser um meio, tem de ser
consumido, precisa de alguém que o consuma. Seu instinto fornece a honra mais alta à moral de auto-esvaziamento: tudo
persuade para isso, sua inteligência, sua experiência, sua vaidade. Toda forma de crença é em si mesma uma expressão de
auto-esvaziamento, e auto-afastamento. (Friedrich Nietzsche, "O Anticristo - Maldição do Cristianismo", Edição
Integral,1992, pág. 80)

Homens atrasados e homens antecipadores - O caráter desagradável, que é pleno de desconfiança, que recebe com inveja
todos os êxitos de competidores e vizinhos, que é violento e raivoso com opiniões divergentes, mostra que pertence a um
estágio anterior da cultura, que é então um resíduo: pois o seu modo de lidar com as pessoas era certo e apropriado para as
condições de uma época em que vigorava o "direito dos punhos"; ele é um homem atrasado. Um outro caráter, que
prontamente partilha da alegria alheia, que conquista amizades em toda parte, que tem afeição pelo que cresce e vem a ser,
que tem prazer com as honras e sucessos de outros e não reivindica o privilégio de sozinho conhecer a verdade, mas é pleno
de uma modesta desconfiança - este um homem antecipador, que se move rumo a uma superior cultura humana. O caráter
desagradável procede de um tempo em que os toscos fundamentos das relações humanas estavam por ser construídos; o outro
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vive nos andares superiores destas relações, o mais afastado possível do animal selvagem que encerrado nos porões, sob os
fundamentos da cultura, uiva e esbraveja. (Friedrich Nietzsche, "Humano, demasiado humano", Cia de Letras, p. 293-294,
aforismo 614, ano 2001, São Paulo)

Alienado do presente - Há grandes vantagens em alguma vez alienar-se muito de seu tempo e ser como que arrastado de
suas margens, de volta para o oceano das antigas concepções do mundo. Olhando para a costa a partir de lá, abarcamos pela
primeira vez sua configuração total, e ao nos reaproximarmos dela teremos a vantagem de, no seu conjunto, entendê-la
melhor do que aqueles que nunca a deixaram. (Friedrich Nietzsche, "Humano, demasiado humano", Cia de Letras, p. 294,
aforismo 616, ano 2001, São Paulo)

Viver - Que significa viver? - Viver - é continuamente afastar de si algo que quer morrer; viver - é ser cruel e implacável com
tudo o que em nós, e não apenas em nós , se torna fraco e velho. (Friedrich Nietzsche, "A gaia Ciência", Cia das Letras, ano
2001, Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza, Aforismo 26, pág. 77)

Ser profundo e parecer profundo - Quem sabe que é profundo, busca a clareza; quem deseja parecer profundo para a
multidão, procura ser obscuro. Pois a multidão toma por profundo aquilo cujo fundo não vê: ela é medrosa, hesita em entrar
na água. (Friedrich Nietzsche, "A gaia Ciência", Cia das Letras, ano 2001, Tradução, notas e posfácio de Paulo César de
Souza, Aforismo 173, pág. 166)

Pobre - Hoje ele é pobre; mas não porque lhe tiraram tudo, e sim porque jogou tudo fora - que lhe importa isso? Ele está
habituado a encontrar. - Pobres são aqueles que não entendem a pobreza voluntária dele. (Friedrich Nietzsche, "A gaia
Ciência", Cia das Letras, ano 2001, Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza, Aforismo 185, pág. 169)

Contra os que elogiam - A: "Somos elogiados apenas por nossos iguais!". B: "Sim! E quem o elogia lhe diz: você é meu
igual!" (Friedrich Nietzsche, "A gaia Ciência", Cia das Letras, ano 2001, Tradução, notas e posfácio de Paulo César de
Souza, Aforismo 190, pág. 170)

Ter espírito filosófico - Habitualmente nos empenhamos em alcançar, ante todas as situações e acontecimentos da vida, uma
atitude mental, uma maneira de ver as coisas - sobretudo a isto se chama ter espírito filosófico. Para enriquecer o
conhecimento, no entanto, pode ser de mais valor não se uniformizar desse modo, mas escutar a voz suave das diferentes
situações da vida; elas trazem consigo suas próprias maneiras de ver. Assim participamos atentamente da vida e da natureza
de muitos, não tratando a nós mesmos como um indivíduo fixo, constante, único. (Friedrich Nietzsche, "Humano, demasiado
humano", Cia de Letras, p. 295, aforismo 618, ano 2001, São Paulo)

Sacrifício - Havendo a escolha, deve-se preferir um grande sacrifício a um pequeno: pois compensamos o grande sacrifício
com a auto-admiração, o que não é possível no caso do pequeno. (Friedrich Nietzsche, "Humano, demasiado humano", Cia
de Letras, p. 295, aforismo 620, ano 2001, São Paulo)

Convicção - Convicção é a crença de estar, em algum ponto do conhecimento, de posse da verdade absoluta. Esta crença
pressupõe, então, que existam verdades absolutas; e, igualmente, que tenham sido achados os métodos perfeitos para
alcançá-las; por fim, que todo aquele que tem convicções se utilize desses métodos perfeitos. Todas as três asserções
demonstram de imediato que o homem das convicções não é o do pensamento científico; ele se encontra na idade da
inocência teórica e é uma criança, por mais adulto que seja em outros aspectos. Milênios inteiros, no entanto, viveram com
essas pressuposições pueris, e delas brotaram as mais poderosas fontes de energia da humanidade. Os homens inumeráveis
que se sacrificaram por suas convicções acreditavam fazê-lo pela verdade absoluta. Nisso estavam todos errados:
provavelmente nenhum homem se sacrificou jamais pela verdade; ao menos a expressão dogmática de sua crença terá sido
não científica ou semicientífica. Mas realmente queriam ter razão, porque achavam que deviam ter razão. Permitir que lhes
fosse arrancada a sua crença talvez significasse pôr em dúvida a sua própria beatitude eterna. Num assunto de tal extrema
importância, a "vontade" era perceptivelmente a instigadora do intelecto. A pressuposição de todo crente de qualquer
tendência era não poder ser refutado; se os contra-argumentos se mostrassem muito fortes, sempre lhe restava ainda a
possibilidade de difamar a razão e até mesmo levantar o credo quia absurdum est [creio porque é absurdo] como bandeira do
extremado fanatismo. Não foi o conflito de opiniões que tornou a história tão violenta, mas o conflito da fé nas opiniões, ou
seja, das convicções. Se todos aqueles que tiveram em conta a sua convicção, que lhe fizeram sacrifícios de toda não
pouparam honra, corpo e vida para servi-la, tivessem dedicado apenas metade de sua energia a investigar com que direito se
apegavam a esta ou àquela convicção, por que caminho tinham a ela chegado: como se mostraria pacífica a história da
humanidade! Quanto mais conhecimento não haveria! Todas as cruéis cenas, na perseguição aos hereges de toda espécie, nos
teriam sido poupadas por duas razões: primeiro, porque os inquisidores teriam inquirido antes de tudo dentro de si mesmos
superando a pretensão de defender a verdade absoluta; porque os próprios hereges não teriam demonstrado maior interesse
por teses tão mal fundamentadas como as dos sectários e "ortodoxos" religiosos, após tê-las examinado. (Friedrich Nietzsche,
"Humano, demasiado humano", Cia de Letras, p. 301, aforismo 630, ano 2001, São Paulo)

Convicções - Quem não passou por diversas convicções, mas ficou preso à fé em cuja rede se emaranhou primeiro, é em
todas as circunstâncias, justamente por causa dessa imutabilidade, um representante de culturas atrasadas; em conformidade
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com esta ausência de educação (que sempre pressupõe educabilidade), ele é duro, irrazoável, incorrigível, sem brandura,
um eterno desconfiado, um inescrupuloso, que emprega todos os meios para impor sua opinião, por ser incapaz de
compreender que têm de existir outras opiniões; assim considerado, ele é talvez uma fonte de força, e em culturas que se
tornaram demasiado livres e frouxas é até mesmo salutar, mas apenas porque incita fortemente à oposição; pois a delicada
estrutura da nova cultura que é obrigada a lutar contra ele se tornará forte ela mesma. (Friedrich Nietzsche, "Humano,
demasiado humano", Cia de Letras, p. 302, aforismo 632, ano 2001, São Paulo)

Convicções - Ainda somos, no essencial, os mesmos homens da época da Reforma: como poderia ser diferente? Mas o fato
de já não no permitirmos certos meios de contribuir para a vitória de nossa opiniões nos diferencia daquele tempo, e prova
que pertencemos a uma cultura superior. Quem ainda hoje combate e derruba opiniões com suspeitas, com acessos de raiva,
como se fazia durante a Reforma, revela claramente que teria queimado o seus rivais, se tivesse vivido em outros tempos, e
que teria recorrido a todos os meios da Inquisição, se tivesse vivido como adversário da Reforma. Essa Inquisição era
razoável na época pois não significava outra coisa senão o estado de sítio que teve de ser proclamado em todo o domínio da
Igreja, que, como todo estado de sítio, autorizava os meios mais extremos, com base no pressuposto (que já não partilhamos
com aqueles homens) de que a Igreja tinha a verdade, e de que era preciso conservá-la para a salvação da humanidade, a todo
custo e com todo sacrifício. Hoje em dia, porém, já não admitimos tão facilmente que alguém possua a verdade: os rigorosos
métodos de investigação propagaram desconfiança e cautela bastantes, de modo que todo aquele que defende opiniões com
palavras e atos violentos é visto como um inimigo de nossa presente cultura ou, no mínimo, como um atrasado . Realmente: o
pathos de possuir a verdade vale hoje bem pouco em relação àquele outro, mais suave e nada altissonante, da busca da
verdade, que nunca se cansa de reaprender e reexaminar. (Friedrich Nietzsche, "Humano, demasiado humano", Cia de Letras,
p. 303, Aforismo 633, ano 2001, São Paulo)

Tempos felizes - Uma época feliz é completamente impossível, porque as pessoas querem desejá-la, mas não tê-la, e todo
indivíduo, em seus dias felizes, chega quase a implorar por inquietude e miséria. O destino dos homens se acha disposto para
momentos felizes - cada vida humana tem deles -, mas não para tempos felizes. No entanto, estes perduram na fantasia
humana como "o que está além dos montes", como uma herança dos antepassados; pois a noção de uma era feliz talvez
provenha, desde tempos imemoriais, daquele estado em que o homem, após violentos esforços na caça e na guerra, entrega-se
ao repouso, distende os membros e ouve o rumor das asas do sono. Há uma conclusão errada em imaginar, conforme aquele
antigo hábito, que após períodos inteiros de carência e fadiga se pode partilhar também aquele estado de felicidade, com
intensidade e duração correspondentes. (Friedrich Nietzsche, "Humano, demasiado humano", Cia de Letras, p. 251,
Aforismo 471, ano 2001, São Paulo)

Nietzsche, Estado e Política

O socialismo em vista de seus meios - O socialismo é o visionário irmão mais novo do quase extinto despotismo, do qual
quer ser herdeiro; seus esforços, portanto, são reacionários no sentido mais profundo. Pois ele deseja uma plenitude de poder
estatal como até hoje somente o despotismo teve, e até mesmo supera o que houve no passado, por aspirar ao aniquilamento
formal do indivíduo: o qual ele vê como um luxo injustificado da natureza, que deve aprimorar e transformar num pertinente
órgão da comunidade. Devido à afinidade, o socialismo sempre aparece na vizinhança de toda excessiva manifestação de
poder, como o velho, típico socialista Platão na corte do tirano da Sicília; ele deseja (e em algumas circunstâncias promove) o
cesáreo Estado despótico neste século, porque, como disse, gostaria de vir a ser seu herdeiro. Mas mesmo essa herança não
bastaria para os seus objetivos, ele precisa da mais servil submissão de todos os cidadãos ao Estado absoluto, como nunca
houve igual; e, já não podendo contar nem mesmo com a antiga piedade religiosa ante o Estado, tendo, queira ou não, que
trabalhar incessantemente para a eliminação deste - pois trabalha para a eliminação de todos os Estados existentes -, não pode
ter esperança de existir a não ser por curtos períodos, aqui e ali, mediante o terrorismo extremo. Por isso ele se prepara
secretamente para governos de terror, e empurra a palavra "justiça" como um prego na cabeça das massas semicultas, para
despojá-las totalmente de sua compreensão (depois que esta já sofreu muito com a semi-educação) e criar nelas uma boa
consciência para o jogo perverso que deverão jogar. - O socialismo pode servir para ensinar, de modo brutal e enérgico, o
perigo que há em todo acumulo de poder estatal, e assim instilar desconfiança do próprio Estado. Quando sua voz áspera se
junta ao grito de guerra que diz o máximo de Estado possível, este soa, inicialmente, mais ruidoso do que nunca: mas logo
também se ouve, com força tanto maior, o grito contrário que diz: O mínimo de Estado possível. (Friedrich Nietzsche,
"Humano, demasiado humano", Cia de Letras, p. 255-256, Aforismo 473, ano 2001, São Paulo)

O homem europeu e a destruição das nações (elogio aos judeus) - O comércio e a indústria, a circulação de livros e cartas,
a posse comum de toda a cultura superior, a rápida mudança de lar e de região, a atual vida nômade dos que não possuem
terra - essas circunstâncias trazem necessariamente um enfraquecimento e por fim uma destruição das nações, ao menos das
européias: de modo que a partir delas, em conseqüência de contínuos cruzamentos, deve surgir uma raça mista, a do homem
europeu. Hoje em dia o isolamento das nações trabalha contra esse objetivo, de modo consciente ou inconsciente, através da
geração de hostilidades nacionais, mas a mistura avança lentamente, apesar dessas momentâneas correntes contrárias: esse
nacionalismo artificial é, aliás, tão perigoso como era o catolicismo artificial, pois é na essência um estado de emergência e
de sítio que alguns poucos impõem a muitos, e que requer astúcia, mentira e força para manter-se respeitável. Não é o
interesse de muitos (dos povos), como se diz, mas sobretudo o interesse de algumas dinastias rei nantes, e depois de
determinadas classes do comércio e da sociedade, o que impele a esse nacionalismo; uma vez que se tenha reconhecido isto,
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não é preciso ter medo de proclamar-se um bom europeu e trabalhar ativamente pela fusão das nações: no que os alemães,
graças à sua antiga e comprovada qualidade de intérpretes e mediadores dos povos, serão capazes de colaborar. - Diga-se de
passagem que o problema dos judeus existe apenas no interior dos Estados nacionais, na medida em que neles a sua energia e
superior inteligência, o seu capital de espírito e de vontade, acumulado de geração em geração em pro longada escola de
sofrimento, devem preponderar numa escala que desperta inveja e ódio, de modo que em quase todas as nações de hoje - e
tanto mais quanto mais nacionalista é a pose que adotam - aumenta a grosseria literária de conduzir os judeus ao matadouro,
como bodes expiatórios de todos os males públicos e particulares. Quando a questão não for mais conservar as nações, mas
criar uma raça européia mista que seja a mais vigorosa possível, o judeu será um ingrediente tão útil e desejável quanto
qualquer outro vestígio nacional. Características desagradáveis, e mesmo perigosas, toda nação, todo indivíduo tem: é cruel
exigir que o judeu constitua exceção. Nele essas características podem até ser particularmente perigosas e assustadoras; e
talvez o jovem especulador da Bolsa judeu seja a invenção mais repugnante da espécie humana. Apesar disso gostaria de
saber o quanto, num balanço geral, devemos relevar num povo que, não sem a culpa de todos nós, teve a mais sofrida história
entre todos os povos, e ao qual devemos o mais nobre dos homens (Cristo), o mais puro dos sábios (Spinoza), o mais
poderoso dos livros e a lei moral mais eficaz do mundo. E além disso: nos tempos mais sombrios da Idade Média, quando as
nuvens asiáticas pesavam sobre a Europa, foram os livres pensadores, eruditos e médicos judeus que, nas mais duras con-
dições pessoais, mantiveram firme a bandeira das Luzes e da independência intelectual, defendendo a Europa contra a Ásia;
tampouco se deve menos aos seus esforços o fato de finalmente vir a triunfar uma explicação do mundo mais natural, mais
conforme à razão e certamente não mítica, e de o anel da cultura que hoje nos liga às luzes da Antigüidade greco-romana não
ter se rompido. Se o cristianismo tudo fez para orientalizar o Oci dente, o judaísmo contribuiu de modo essencial para
ocidentalizá-lo de novo: o que, num determinado sentido, significa fazer da missão e da história da Europa uma continuação
da grega. (Friedrich Nietzsche, "Humano, demasiado humano", Cia de Letras, p. 257-258, Aforismo 475, ano 2001, São
Paulo)

Propriedade e Justiça - Quando os socialistas demonstram que a divisão da propriedade, na humanidade de hoje, é
conseqüência de inúmeras injustiças e violências, e in summa rejeitam a obrigação para com algo de fundamento tão injusto,
eles vêem apenas um aspecto da questão. O passado inteiro da cultura antiga foi construído sobre a violência, a escravidão, o
embuste, o erro; mas nós, herdeiros de todas essas situações, e mesmo concreções de todo esse passado, não podemos abolir a
nós mesmos, nem nos é permitido querer extrair algum pedaço dele. A disposição injusta se acha também na alma dos que
não possuem, eles não são melhores do que os possuidores e não têm prerrogativa moral, pois em algum momentos seus
antepassados foram possuidores. O que é necessário não são novas distribuições pela força, mas graduais transformações do
pensamento; em cada indivíduo a justiça deve se tornar maior e o instinto de violência mais fraco. (Friedrich Nietzsche,
"Humano, demasiado humano", Cia de Letras, p. 244, Aforismo 452, ano 2001, São Paulo)

Os perigosos entre os subversivos - Podemos dividir os que pretendem uma subversão da sociedade entre aqueles que
desejam alcançar algo para si e aqueles que o desejam para seus filhos e netos. Esses últimos são os mais perigosos; porque
têm a fé e a boa consciência do desinteresse. Os demais podem ser contentados com um osso: a sociedade dominante é rica e
inteligente o bastante para isso. O perigo começa quando os objetivos se tornam impessoais; os revolucionários movidos por
interesse impessoal podem considerar todos os defensores da ordem vigente como pessoalmente interessados, sentindo-se
então superiores a eles. (Friedrich Nietzsche, "Humano, demasiado humano", Cia de Letras, p. 245, Aforismo 454, ano 2001,
São Paulo)

Uma ilusão na doutrina da subversão - Há visionários políticos e sociais que com eloquência e fogosidade pedem a
subversão de toda ordem, na crença de que logo em seguida o mais altivo templo da bela humanidade se erguerá por si só.
Nestes sonhos perigosos ainda ecoa a superstição de Rousseau, que acredita numa miraculosa, primordial, mas, digamos,
soterrada bondade da natureza humana, e que culpa por esse soterramento as instituições da cultura, na forma de sociedade,
Estado, educação. Infelizmente aprendemos, com a história, que toda subversão desse tipo traz a ressurreição das mais
selvagens energias, dos terrores e excessos das mais remotas épocas, há muito tempo sepultados: e que, portanto, uma
subversão pode ser fonte de energia numa humanidade cansada, mas nunca é organizadora, arquiteta, artista, aperfeiçoadora
da natureza humana. - Não foi a natureza moderada de Voltaire, com seu pendor a ordenar, purificar e modificar, mas sim as
apaixonadas tolices e meias verdades de Rousseau que despertaram o espírito otimista da Revolução, contra o qual eu grito:
"Ecrasez l'infâme [Esmaguem o infame]!. Graças a ele o espírito do Iluminismo e da progressiva evolução foi por muito
tempo afugentado: vejamos - cada qual dentro de si - se é possível chamá-lo de volta! (Friedrich Nietzsche, "Humano,
demasiado humano", Cia de Letras, p. 249, Aforismo 463, ano 2001, São Paulo)

Comedimento - A completa firmeza de pensamento e investigação, ou seja, a liberdade de espírito, quando se tornou
qualidade do caráter, traz comedimento na ação: pois enfraquece a avidez, atrai muito da energia existente, para promover
objetivos espirituais, e mostra a utilidade parcial ou a inutilidade e o perigo de todas as mudanças repentinas. (Friedrich
Nietzsche, "Humano, demasiado humano", Cia de Letras, p. 249, Aforismo 464, ano 2001, São Paulo)

Ressurreição do espírito - No leito de enfermo da política, geralmente um povo rejuvenesce e redescobre seu espírito, que
ele havia gradualmente perdido ao buscar e assegurar o poder. A cultura deve suas mais altas conquistas aos tempos
politicamente debilitados. (Friedrich Nietzsche, "Humano, demasiado humano", Cia de Letras, p. 250, Aforismo 465, ano
2001, São Paulo)
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Instrução pública - Nos grandes Estados a instrução pública será sempre, no melhor dos casos, medíocre, pelo mesmo
motivo por que nas grandes cozinhas cozinha-se mediocremente. (Friedrich Nietzsche, "Humano, demasiado humano", Cia
de Letras, p. 250, Aforismo 467, ano 2001, São Paulo)

Contra o feminismo - Em nenhuma época o sexo fraco foi tratado com tanto reaspeito pelos homens como na nossa - o que é
parte da tendência democrática e seu gosto básico, do mesmo modo que

Contra o feminismo - Em nenhuma época o sexo fraco foi tratado com tanto respeito pelos homens como na nossa - o que é
parte da tendência democrática e seu gosto básico, do mesmo modo que a falta de reverência pela velhice -: como admirar
que logo se abuse desse respeito? Querem mais, aprendem a exigir, por fim acham quase ofensivo esse tributo de respeito,
preferiam a competição por direitos, até mesmo a luta: em suma, a mulher perde o pudor. Acrescentemos logo que também
perde o gosto. Desaprende a temer o homem: mas a mulher que "desaprende o temor" abandona seus instintos mais
femininos. Que a mulher ouse avançar quando já não se quer nem se cultiva o que há de amedrontador no homem, mais
precisamente o homem no homem, é algo de se esperar e também de compreender; o que dificilmente se compreende é que
por isso mesmo a mulher - degenera. Isso acontece hoje: não nos enganemos! Em toda parte onde o espírito industrial venceu
o espírito militar e aristocrático, a mulher aspira à independência econômica e legal de um caixeiro: "a mulher como caixeira"
- está escrito no portal da sociedade moderna que se forma. Apoderando-se de tal maneira de novos direitos, buscando
tornar-se "senhor" e inscrevendo o "progresso- feminino em suas bandeiras e bandeirolas, ela vê realizar-se o contrário, com
terrível nitidez: a mulher está em regressão. Desde a Revolução Francesa a influência da mulher na Europa diminuiu, na
proporção em que aumentaram seus direitos e exigências; e a "emancipação da mulher", na medida em que é reivindicada e
promovida pelas próprias mulheres (e não só por homens de cabeça oca) resulta num sintoma curioso de progressivo
enfraquecimento e embotamento dos instintos mais femininos. Há estupidez nesse movimento, uma quase masculina
estupidez, da qual uma mulher bem lograda - que é sempre uma mulher sagaz - se envergonharia gravemente. Perder a
intuição do terreno onde a vitória é mais segura; descuidar o exercício de sua verdadeira arma; pôr-se a anteceder o homem,
chegando talvez "até o livro", quando antes praticava a reserva e uma sutil, astuta submissão; combater, com virtuosa
audácia, a crença do homem num ideal radicalmente outro escondido na mulher, num eterno - e necessário - feminino; tentar
dissuadir o homem, com insistência e parolice, de que a mulher deve ser cuidada, mantida, protegida, poupada como um
animal doméstico bem delicado, curiosamente selvagem e freqüentemente agradável; a procura canhestra e indignada de tudo
o que há de escravo e servil na posição da mulher na presente ordem social (como se a escravidão fosse um contra-
argumento, e não uma condição de toda cultura elevada, de toda elevação da cultura) - que significa tudo isso, senão uma
desagregação dos instintos femininos, uma desfeminização? Certamente não faltam idiotas amigos das senhoras e corruptores
da mulher entre os doutos jumentos masculinos, que aconselham a mulher a se desfeminizar dessa maneira e imitar as
estupidezes de que sofre o "homem" da Europa, a "masculinidade" européia - que gostariam de rebaixar a mulher á "educação
geral" e mesmo à leitura de jornais e à política. Pensa-se inclusive, aqui e ali, em fazer das mulheres livres-pensadores e
literatos: como se uma mulher sem religião não fosse, para um homem profundo e ateu, algo totalmente repugnante ou
ridículo -: em quase toda parte arruinam os nervos delas com a mais doentia e perigosa espécie de música (nossa mais recente
música alemã) e as tornam a cada dia mais histéricas e mais incapacitadas para sua primeira e última ocupação, que é gerar
filhos robustos. Querem "cultivá-las" ainda mais e, como dizem, através da cultura tornar forte o "sexo fraco": como se a
história não ensinasse, do modo mais premente, que o "cultivo" do ser humano e o enfraquecimento - isto é, enfraquecimento,
fragmentação adoecimento da força de vontade - sempre andam juntos, e que as mais poderosas e influentes mulheres do
mundo (por último a mãe de Napoleão) deveram seu poder e autoridade junto aos homens à sua força de vontade - e não aos
professores! O que na mulher inspira respeito e com freqüência temor é sua natureza, que é "mais natural" que a do homem,
sua autêntica astuciosa agilidade ferina, sua garra de tigre por baixo da luva, sua inocência no egoísmo, sua ineducabilidade e
selvageria interior, o caráter inapreensível, vasto, errante de seus desejos e virtudes... O que, com todo o temor, desperta
compaixão por esse belo e perigoso felino "mulher", é o fato de ela parecer mais sofredora, mais frágil, mais necessitada de
amor e condenada à desilusão que qualquer outro animal. Temor e compaixão: Com estes sentimentos o homem colocou-se
até agora diante da mulher, sempre com um pé na tragédia, que dilacera ao encantar. - Como? E isso estaria acabando? O de-
sencantamento da mulher está em marcha? Estará surgindo o entediamento da mulher? .... (Para além do Bem e do Mal, Cia
das Letras, 2001, nº 239, pág. 145)

III - Texto que pode ser discutido a partir da filosofia de Nietzsche


"A Etiqueta no Antigo Regime" desvenda
o homem moderno se exilou em sua interioridade

Jurandir Freire Costa (psicanalista)

(Jornal Folha de São Paulo, Caderno Mais!, 02 de maio de 1999, pp. 5-7)
103
Erich Auerbach, em um estudo literário, cita o teólogo medieval Hugo, do mosteiro de São Vítor: "Refinado é o homem
para quem a pátria é doce, corajoso é aquele para quem qualquer solo é uma pátria, mas perfeito é aquele para quem o mundo
inteiro é um exílio".
A frase soa familiar. A tradição cristã de renúncia ao mundo, o culto romântico da autenticidade sentimental e a dedicação
burguesa à intimidade nos levou a ver o mundo como um "lugar de exílio". Viver plenamente é viver fora da visibilidade
pública na qual tudo parece frio e artificial. Em público, fingimos ser o que não somos e apenas no exílio interior recobramos
a espontaneidade recalcada pelo "inferno" do olhar do outro.
A reedição de "A Etiqueta no Antigo Regime" (Ed. Moderna), de Renato Janine Ribeiro, desvela a relatividade cultural dessa
crença. O autor nos faz ver, com precisão e elegância, que um dia sentimos e agimos de modo diferente. Ao pensarmos no
Antigo Regime, quase sempre pensamos em reis obesos, perucas empoadas, mesuras alambicadas, em suma, desperdício,
opulência e lassidão moral pagos com a vida dos miseráveis.
É mais ou menos assim que a tradição democrático-republicana, ajudada por Hollywood, é certo, pintou a aristocracia.
Renato, como um roteirista de cinema, desmonta o lugar-comum. Por meio de imagens eloquentes ele mostra que, se o
Antigo Regime foi iníquo, em muitos aspectos, também foi uma experiência de sociabilidade em que política e afeto, poder e
prazer, honra e glória caminhavam juntos.
Ser nobre significava possuir qualidades morais que, hoje, dificilmente, reconheceríamos naqueles que aspiram à vida
pública. Fidelidade, lealdade, pudor, reputação, amizade e proximidade afetiva eram atributos valorizados e trazidos à cena
social, de modo permanente, no "ritual da etiqueta". A etiqueta não era, como na sociedade burguesa, instrumento de
ostentação do que se tem, mas um meio de tornar aparente o que se é. "O ser de um homem, diz Janine, se confundia com sua
aparência. Quem agia como nobre era nobre".
A sensibilidade barroca não distinguia aparência de essência, mas nada tinha de hipócrita, como se pode pensar. Ela era a
substância mesma do que significava viver! Ainda não havíamos sucumbido aos encantos do "mundo interior" e à
manipulação econômica da realidade social, responsáveis pelo "declínio do homem público", como disse Richard Sennett.
Foi preciso o romantismo de Rousseau, a educação sentimental burguesa e a invenção do "homem trabalhador" para que a
sociabilidade fosse reduzida a dois domínios separados: um domínio afetivo, reservado aos afetos interpessoais, no qual
podemos ser sinceros e honestos, e um domínio público impessoal, no qual dissimulamos o que sentimos para melhor exercer
a função de cidadão.
Essa cisão não existia no mundo da nobreza. Estar em meio a todos exigia , seguramente, controle do jogo da exibição. Mas o
jogo não era um simulacro. Ser reconhecido como nobre e não como "parvenu" era uma partida decisiva. A vida sem a
admiração dos pares era uma vida sem grandeza. Virtude não era sinônimo de bons sentimentos interiores; honra e glória
podiam mesmo dispensar bondade e compaixão. Assim, Redmond Barry, ao decidir se tornar nobre, conquistando Lady
Lindon, não hesita em destruir quem estava ao lado, desde que viesse a ser chamado de "Barry Lindon".
Por isso os hábitos aristocráticos de exclusão social eram cruéis em sua imobilidade. Basta lembrar o que ganhamos em
liberdade e justiça, com a abolição da hierarquia baseada no sangue e na linhagem, para vermos o progresso moral da
modernidade. A intenção de Janine, pois, não é idealizar, conservadoramente, o que passou. Sua pergunta é mais sutil e
urgente: como reacender o arendtiano "amor ao mundo", presente no estilo de vida nobre? Ou, em outros termos, como
conciliar apreço pela igualdade, liberdade e solidariedade com uma participação democrática afetivamente investida?
A importância do estudo é grande, sobretudo se confrontada ao pano de fundo da moralidade contemporânea. Pensar em
afeto, atualmente, é pensar, de imediato, em parcerias amorosas ou em amor familiar. Abandonamos a vida pública à gestão
empresarial e fizemos dos sentimentos íntimos o último refúgio contra a obsessão do dinheiro. A tática de evasão custou caro.
Pouco a pouco, aprendemos a pilhar, sem escrúpulos, os mais frágeis e seguimos adiante, usando uns aos outros como fontes
de excitações momentâneas.
Na cena aristocrática essa omissão ou desprezo pelo mundo seriam inconcebíveis. Como nas culturas greco-romanas, viver
no "teatro do mundo" era a única forma de vida lograda. Não se podia, portanto, rebaixar aquilo que dignificava. Em nossa
cultura, ao contrário, trocamos o respeito ao público pela subserviência à publicidade. Admirado não é o que dignifica, é o
que dá lucro. Estamos dispostos a exibir em público corpos e almas por dinheiro. O que exibimos, porém, logo se degrada em
mercadoria. A imagem do mundo como feira de interesses criou, desse modo, um dilema moral ao qual estamos presos: ou
ocultamos o que tem valor e o mundo se empobrece ou expomos nosso melhor, correndo o risco de vê-lo se degradar
comercialmente.
O "teatro do mundo" deu lugar ao "mundo do 'show business'", no qual tudo é farsa, moda ou furo jornalístico, destinado a
desaparecer depois de excitar, devidamente, a voracidade dos "consumidores". A distância do mundo da etiqueta é notável.
Hoje mostramos o que é volátil e desprezível, antes o que devia durar e já se apresentava como "feito histórico". No ritual da
etiqueta, o "feito", a apresentação pública do fato e de seu comentário, era, de saída, memória e história, pois exprimia a
crença aristocrática de que, embora todos devêssemos morrer, o mundo comum deveria permanecer.
No Antigo Regime, sacrificar-se pela glória da linhagem era honroso; na cultura do narcisismo, salvar a própria pele é
mesquinho e compulsório. Perdemos todo amor à transcendência, seja ela divina ou mundana, e ficamos com uma pífia
paixão pelo corpo e pelas sensações, incapazes de oferecer um sentido duradouro para a vida. E aqui estamos nós, como na
imagem de Eliot, no meio do caminho, desfigurados pela inveja e pela competição, sem a "consolação da filosofia" e sem o
alento dos nossos melhores ideais.
Essa é uma das lições do belo texto de Renato Janine Ribeiro. No momento em que até nossos frágeis lugares de preservação
da cultura, da história e da memória vêm se dobrando, pela força ou conivência, à lei do "quem dá mais", é sempre salutar
ouvir alguém dizer: "Era uma vez um lugar em que poder e prazer, honra e glória, política e afeto eram a matéria da vida em
comum". É o que narra Janine. Acredite quem puder e ainda não tiver alugado as orelhas às sereias do marketing.
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ITEM 4.0 - TEXTOS DE E SOBRE FREUD

A - Textos de autores sobre Freud

Texto I - Freud: A consciência pode conhecer tudo?


Marilena Chauí

(Fonte: Filosofia, Ed. Ática, São Paulo, ano 2000, pág. 83-87)

Freud escreveu que, no transcorrer da modernidade, os humanos foram feridos três vezes e que as feridas atingiram o nosso
narcisismo, isto é, a bela imagem que possuíamos de nós mesmos como seres conscientes racionais e com a qual, durante
séculos, estivemos encantados. Que feridas foram essas?
A primeira foi a que nos infligiu Copérnico, ao provar que a Terra não estava no centro do Universo e que os homens não
eram o centro do mundo. A segunda foi causada por Darwin, ao provar que os homens descendem de um primata, que são
apenas um elo na evolução das espécies e não seres especiais, criados por Deus para dominar a Natureza. A terceira foi
causada por Freud com a psicanálise, ao mostrar que a consciência é a menor parte e a mais fraca de nossa vida psíquica.
Na obra Cinco ensaios sobre a psicanálise, Freud escreve:

"A Psicanálise propõe mostrar que o Eu não somente não é senhor na sua própria casa, mas também está reduzido a
contentar-se com informações raras e fragmentadas daquilo que se passa fora da consciência, no restante da vida
psíquica... A divisão do psíquico num psíquico consciente e num psíquico inconsciente constitui a premissa
fundamental da psicanálise, sem a qual ela seria incapaz de compreender os processos patológicos, tão freqüentes
quanto graves, da vida psíquica e fazê-los entrar no quadro da ciência... A psicanálise se recusa a considerar a
consciência como constituindo a essência da vida psíquica, mas nela vê apenas uma qualidade desta, podendo
coexistir com outras qualidades e até mesmo faltar. "

A psicanálise - Freud era médico psiquiatra. Seguindo os médicos de sua época, usava a hipnose e a sugestão no tratamento
dos doentes mentais, mas sentia-se insatisfeito com os resultados obtidos.

Certa vez, recebeu uma paciente, Ana O., que apresentava sintomas de histeria, isto é, apresentava distúrbios físicos
(paralisias, enxaquecas, dores de estômago) sem que houvesse causas físicas para eles, pois eram manifestações corporais de
problemas psíquicos.
Em lugar de usar a hipnose e a sugestão, Freud usou um procedimento novo: fazia com que Anna relaxasse num divã e
falasse.
Dizia a ela palavras soltas e pedia-lhe que dissesse a primeira palavra que lhe viesse à cabeça ao ouvir a que ele dissera -
posteriormente, Freud denominaria esse procedimento de "técnica de associação livre".

Freud percebeu que, em certos momentos, Anna reagia a certas palavras e não pronunciava aquela que lhe viera à cabeça,
censurando-a por algum motivo ignorado por ela e por ele. Notou também que, em outras ocasiões, depois de fazer a
associação livre de palavras, Anna ficava muito agitada e falava muito. Observou que, certas vezes, algumas palavras a
faziam chorar sem motivo aparente e, outras vezes, a faziam lembrar-se de fatos da infância, narrar um sonho que tivera na
noite anterior.
Pela conversa, pelas reações da paciente, pelos sonhos narrados e pelas lembranças infantis, Freud descobriu que a vida
consciente de Anna era determinada por uma vida inconsciente, que tanto ela quanto ele desconheciam. Compreendeu
também que somente interpretando as palavras, os sonhos, as lembranças e os gestos de Anna chegaria a essa vida
inconsciente.

Freud descobriu, finalmente, que os sintomas histéricos tinham três finalidades:

1. contar indiretamente aos outros e a si mesma os sentimentos inconscientes;


2. punir-se por ter tais sentimentos;
3. realizar, pela doença e pelo sofrimento, um desejo inconsciente intolerável.
105
Tratando de outros pacientes, Freud descobriu que, embora conscientemente quisessem a cura, algo neles criava uma
barreira, uma resistência inconsciente à cura.
Por quê? Porque os pacientes sentiam-se interiormente ameaçados por alguma coisa dolorosa e temida, algo que haviam
penosamente esquecido e que não suportavam lembrar. Freud descobriu, assim, que o esquecimento consciente operava
simultaneamente de duas maneiras:

1. como resistência à terapia;


2. sob a forma da doença psíquica, pois o inconsciente não esquece e obriga o esquecido a reaparecer sob a forma dos
sintomas da neurose e da psicose.

Desenvolvendo com outros pacientes e consigo mesmo esses procedimentos e novas técnicas de interpretação de sintomas,
sonhos, lembranças, esquecimentos, Freud foi criando o que chamou de análise da vida psíquica ou psicanálise, cujo objeto
central era o estudo do inconsciente e cuja finalidade era a cura de neuroses e psicoses, tendo como método a interpretação e
como instrumento a linguagem (tanto a linguagem verbal das palavras quanto a linguagem corporal dos sintomas e dos
gestos).

A vida psíquica - Durante toda sua vida, Freud não cessou de reformular a teoria psicanalítica, abandonando alguns
conceitos, criando outros, abandonando algumas técnicas terapêuticas e criando outras. Não vamos, aqui, acompanhar a
história da formação da psicanálise, mas apresentar algumas de suas principais idéias e inovações.

A vida psíquica é constituída por três instâncias, duas delas inconscientes e apenas uma consciente: o id, o superego e o ego
(ou o isso, o super-eu e o eu). Os dois primeiros são inconscientes; o terceiro, consciente.

O id é formado por instintos, impulsos orgânicos e desejos inconscientes, ou seja, pelo que Freud designa como pulsões.
Estas são regidas pelo princípio do prazer, que exige satisfação imediata. O id é a energia dos instintos e dos desejos em
busca da realização desse princípio do prazer. É a libido.

Instintos, impulsos e desejos, em suma, as pulsões, são de natureza sexual e a sexualidade não se reduz ao ato sexual genital,
mas a todos os desejos que pedem e encontram satisfação na totalidade de nosso corpo.

Freud descobriu três fases da sexualidade humana que se diferenciam pelos órgãos que sentem prazer e pelos objetos ou seres
que dão prazer. Essas fases se desenvolvem entre os primeiros meses de vida e os 5 ou 6 anos, ligadas ao desenvolvimento do
id:

1. a fase oral, quando o desejo e o prazer localizam-se primordialmente na boca e na ingestão de alimentos e o seio materno,
a mamadeira, a chupeta, os dedos são objetos do prazer;
2. a fase anal, quando o desejo e o prazer localizam-se primordialmente nas excreções e as fezes, brincar com massas e com
tintas, amassar barro ou argila, comer coisas cremosas, sujar-se são os objetos do prazer;
3. e a fase genital ou fase fálica, quando o desejo e o prazer localizam-se primordialmente nos órgãos genitais e nas partes
do corpo que excitam tais órgãos. Nessa fase, para os meninos, a mãe é o objeto do desejo e do prazer; para as meninas,
o pai.

No centro do id, determinando toda a vida psíquica, encontra-se o que Freud denominou de complexo de Édipo, isto é, o
desejo incestuoso pelo pai ou pela mãe. É esse o desejo fundamental que organiza a totalidade da vida psíquica e determina o
sentido de nossas vidas.

O superego, também inconsciente, é a censura das pulsões que a sociedade e a cultura impõem ao id, impedindo-o de
satisfazer plenamente seus instintos e desejos. É a repressão, particularmente a sexual. Manifesta-se à consciência
indiretamente, sob a forma da moral, como um conjunto de interdições e de deveres, e por meio da educação, pela produção
da imagem do "eu ideal" isto é, da pessoa moral, boa o virtuosa. O superego ou censura desenvolve-se num período que
Freud designa como período de latência, situado entre os 6 ou 7 anos e o início da puberdade ou adolescência. Nesse
período, forma-se nossa personalidade moral e social, de maneira que, quando a sexualidade genital ressurgir, estará obrigada
a seguir o caminho traçado pelo superego.

O ego ou o eu é a consciência, pequena parte da vida psíquica, submetida aos desejos do id e à repressão do superego.
Obedece ao princípio da realidade, ou seja, à necessidade de encontrar objetos que possam satisfazer ao id sem transgredir
as exigências do superego. O ego, diz Freud, é "um pobre coitado", espremido entre três escravidões:

1. os desejos insaciáveis do id,


2. a severidade repressiva do superego
3. e os perigos do mundo exterior.
106
Por esse motivo, a forma fundamental da existência para o ego é a angústia. Se se submeter ao id, torna-se imoral e
destrutivo; se se submeter ao superego, enlouquece de desespero, pois viverá numa insatisfação insuportável; se não se
submeter à realidade do mundo, será destruído por ele. Cabe ao ego encontrar caminhos para a angústia existencial. Estamos
divididos entre o princípio do prazer (que não conhece limites) e o princípio da realidade (que nos impõe limites externos
e internos).

Ao ego-eu, ou seja, à consciência, é dada uma função dupla: ao mesmo tempo recalcar o id, satisfazendo o superego, e
satisfazer o id, limitando o poderio do superego. A vida consciente normal é o equilíbrio encontrado pela consciência para
realizar sua dupla função. A loucura (neuroses e psicoses) é a incapacidade do ego para realizar sua dupla função, seja porque
o id ou o superego são excessivamente fortes, seja porque o ego é excessivamente fraco.

O inconsciente, em suas duas formas, está impedido de manifestar-se diretamente à consciência, mas consegue fazê-lo
indiretamente. A maneira mais eficaz para a manifestação é a substituição, isto é, o inconsciente oferece à consciência um
substituto aceitável por ela e por meio do qual ela pode satisfazer o id ou o superego. Os substitutos são imagens (isto é,
representações analógicas dos objetos do desejo) e formam o imaginário psíquico, que, ao ocultar e dissimular o verdadeiro
desejo, o satisfaz indiretamente por meio de objetos substitutos (a chupeta e o dedo, para o seio materno; tintas e pintura ou
argila e escultura para as fezes, uma pessoa amada no lugar do pai ou da mãe).

Além dos substitutos reais (chupeta, argila, pessoa amada), o imaginário inconsciente também oferece outros substitutos, os
mais freqüentes sendo os sonhos, os lapsos e os atos falhos. Neles, realizamos desejos inconscientes, de natureza sexual. São
a satisfação imaginária do desejo.

Alguém sonha, por exemplo, que sobe uma escada, está num naufrágio ou num incêndio. Na realidade, sonhou com uma
relação sexual proibida. Alguém quer dizer uma palavra, esquece-a ou se engana, comete um lapso e diz uma outra que nos
surpreende, pois nada tem a ver com aquela que se queria dizer. Realizou um desejo proibido. Alguém vai andando por uma
rua e, sem querer, torce o pé e quebra o objeto que estava carregando. Realizou um desejo proibido.

A vida psíquica dá sentido e coloração afetivo sexual a todos os objetos e a todas as pessoas que nos rodeiam e entre os quais
vivemos. Por isso, sem que saibamos por que, desejamos e amamos certas coisas e pessoas, odiamos e tememos outras. As
coisas e os outros são investidos por nosso inconsciente com cargas afetivas de libido. É por esse motivo que certas coisas,
certos sons, certas cores, certos animais, certas situações nos enchem de pavor, enquanto outros nos enchem de bem-estar,
sem que o possamos explicar. A origem das simpatias e antipatias, amores e ódios, medos e prazeres está em nossa mais
tenra infância, em geral nos primeiros meses e anos de nossa vida, quando se formam as relações afetivas fundamentais e o
complexo de Édipo.

Essa dimensão imaginária de nossa vida psíquica - substituições, sonhos, lapsos, atos falhos, prazer e desprazer com objetos e
pessoas, medo ou bem-estar com objetos ou pessoas - indica que os recursos inconscientes para surgir indiretamente à
consciência possuem dois níveis:

- o nível do conteúdo manifesto (escada, mar e incêndio, no sonho; a palavra esquecida e a pronunciada, no lapso; pé
torcido ou objeto partido, no ato falho; afetos contrários por coisas e pessoas)
- e o nível do conteúdo latente, que é o conteúdo inconsciente real e oculto (os desejos sexuais).

Nossa vida normal se passa no plano dos conteúdos manifestos e, portanto, no imaginário. Somente uma análise psíquica e
psicológica desses conteúdos, por meio de técnicas especiais (trazidas pela psicanálise), nos permite decifrar o conteúdo
latente que se dissimula sob o conteúdo manifesto.

Além dos recursos individuais cotidianos; que nosso inconsciente usa para manifestar-se, e além dos recursos extremos e
dolorosos usados na loucura (nela, os recursos são os sintomas), existe um outro recurso, de enorme importância para a vida
cultural e social, isto é, para a existência coletiva. Trata-se do que Freud designa com o nome de sublimação.

Na sublimação, os desejos inconscientes são transformados em uma outra coisa, exprimem-se pela criação de uma outra
coisa: as obras de arte, as ciências, a religião, a filosofia, as técnicas, as instituições sociais e as ações políticas. Artistas,
místicos, pensadores, escritores, cientistas, líderes políticos satisfazem seus desejos pela sublimação e, portanto, pela
realização de obras e pela criação de instituições religiosas, sociais, políticas, etc.

Porém, assim como a loucura é a impossibilidade do ego para realizar sua dupla função, também a sublimação pode não ser
alcançada e, em seu lugar, surgir uma perversão social ou coletiva, uma loucura social ou coletiva. O nazismo é um exemplo
de perversão, em vez de sublimação. A propaganda, que induz em nós falsos desejos sexuais pela multiplicação das imagens
de prazer, é outro exemplo de perversão ou de incapacidade para a sublimação.

O inconsciente, diz Freud, não é o subconsciente. Este é aquele grau da consciência como consciência passiva e consciência
vivida não-reflexiva, podendo tornar-se plenamente consciente. O inconsciente, ao contrário, jamais será consciente
107
diretamente, podendo ser captado apenas indiretamente e por meio de técnicas especiais de interpretação desenvolvidas
pela psicanálise.

A psicanálise descobriu, assim, uma poderosa limitação às pretensões da consciência para dominar e controlar a realidade e o
conhecimento. Paradoxalmente, porém, nos revelou a capacidade fantástica da razão e do pensamento para ousar atravessar
proibições e repressões e buscar a verdade, mesmo que para isso seja preciso desmontar a bela imagem que os seres humanos
têm de si mesmos.

Longe de desvalorizar a teoria do conhecimento, a psicanálise exige do pensamento que não faça concessões às idéias
estabelecidas, à moral vigente, aos preconceitos e às opiniões de nossa sociedade, mas que os enfrente em nome da própria
razão e do pensamento.

A consciência é frágil, mas é ela que decide e aceita correr o risco da angústia e o risco de desvendar e decifrar o
inconsciente. Aceita e decide enfrentar a angústia para chegar ao conhecimento de que somos um caniço pensante, como
disse o filósofo Pascal.

PERGUNTAS

1. Por que a descoberta freudiana do inconsciente foi mais uma ferida no narcisismo (1) ocidental?
2. Como Freud chegou ao conceito de inconsciente? Como ele descreve a vida psíquica?
3. Por que o ego (consciência) é um "pobre coitado"?
4. Como opera o inconsciente (id e superego)?
5. Qual a função dos sonhos, dos sintomas e da sublimação?

(1) Narcisismo - Conta o mito que o jovem Narciso, belíssimo, nunca tinha visto sua própria imagem. Um dia, passeando
por um bosque, viu um lago. Aproximou-se e viu nas águas um jovem de extraordinária beleza e pelo qual apaixonou-se
perdidamente. Desejava que o outro saísse das águas e viesse ao seu encontro, mas como o outro parecei recusar-se a sair
do lago, Narciso mergulhou nas águas, foi às profundezas à procura do outro que fugia, morrendo afogado. Narciso morreu
de amor por si mesmo, ou melhor, de amor por sua própria imagem ou pela auto-imagem. O narcisismo é o encantamento e
a paixão que sentimos por nossa própria imagem ou por nós mesmos porque não conseguimos diferenciar o eu e o outro.

Texto 1I - Freud - .... um desejo terrível, egoísta, veio à tona dentro dela...
(Do livro: "O mundo de Sofia", Jostein Gaarder, Cia de Letras,1995, pág. 458-475)

Alberto - Hoje vou contar a você sobre Freud e sua teoria do inconsciente.

Sentaram-se à janela. Sofia olhou para o relógio e disse:

Sofia - Já são duas e meia e eu ainda preciso providenciar algumas coisas para a festa.
Alberto - Eu também. Vamos falar rapidamente sobre Sigmund Freud.
Sofia - Ele foi um filósofo?
Alberto - Podemos chamá-lo de um filósofo da cultura. Freud nasceu em 1856 e estudou medicina na Universidade de Viena.
Passou a maior parte de sua vida naquela cidade, justamente durante um período em que a vida cultural vienense
experimentou uma fase de apogeu. Desde cedo, Freud se especializou num ramo da medicina que chamamos de neurologia.
De fins do século passado até quase meados do nosso século, ele trabalhou na elaboração de sua psicologia profunda ou
psicanálise.
Sofia - Explique melhor.
Alberto - Por psicanálise entende-se tanto a descrição da mente, da psique humana em geral, quanto um método de
tratamento para distúrbios nervosos e psíquicos. Não pretendo fazer uma explanação detalhada sobre Freud e sua obra, mas é
preciso conhecer um pouco de sua teoria do inconsciente, se quisermos entender o que é o ser humano.
Sofia - Você já conseguiu despertar meu interesse. Vamos lá!
Alberto - Freud achava que sempre havia uma tensão entre o homem e o seu meio. Para ser mais exato, uma tensão, ou um
conflito, entre o próprio homem e aquilo que seu meio exigia dele. Não seria exagerado dizer que Freud descobriu o universo
dos impulsos que regem a vida do homem. E isto faz dele um legítimo representante das correntes naturalistas, tão
importantes em fins do século passado.
Sofia - O que se entende por "impulso" do homem?
Alberto - Nem sempre é a razão que governa nossas ações. Consequentemente, o homem não é apenas o ser racional tão
defendido pelos racionalistas do século XVIII. Com freqüência, impulsos irracionais determinam nossos pensamentos, nossos
sonhos e nossas ações. Tais impulsos irracionais são capazes de trazer à luz instintos e necessidades que estão profundamente
enraizados dentro de nós. Tão básico quanto a necessidade que um bebê tem de mamar seria, por exemplo, o impulso sexual
do homem.
Sofia - Entendo.
108
Alberto - Talvez tudo isto não tivesse nada de novo em si. Mas Freud mostrou que essas necessidades básicas podiam vir
à tona disfarçadas e tão modificadas que não seríamos capazes de reconhecer sua origem. Assim disfarçadas, elas
governariam nossas ações, sem que tivéssemos consciência disso. Além disso, Freud mostrou que as crianças também têm
uma espécie de sexualidade. A afirmação da existência de uma sexualidade infantil causou repulsa entre os refinados
cidadãos de Viena e fez de Freud um homem extremamente impopular.
Sofia - Não me surpreende.
Alberto - Estamos falando de uma época na qual tudo o que tinha a ver com a sexualidade era tabu. Freud chegara à
conclusão da existência de uma sexualidade infantil por meio de sua prática como psicoterapeuta. Ele tinha, portanto, uma
sólida base empírica para fundamentar suas afirmações. Freud também constatou que muitas formas de distúrbios psíquicos
eram devidas a conflitos ocorridos na infância. Aos poucos, então, Freud foi desenvolvendo um método de tratamento que
podemos chamar de uma espécie de "arqueologia da alma".
Sofia - O que você quer dizer com isso?
Alberto - O psicanalista pode "cavoucar" a mente do paciente, com a ajuda dele, é claro, a fim de trazer à luz as experiências
e vivências que, em algum momento da vida passada, provocaram seu distúrbio psíquico. Para Freud, portanto, guardamos
bem no fundo de nós todas as lembranças do passado.
Sofia - Agora estou entendendo.
Alberto - E pode ser que neste processo o terapeuta encontre uma experiência ruim que o paciente sempre tentou esquecer,
mas que está bem viva e presente dentro dele e lhe rouba as forças. No momento em que tal "experiência traumática" é
trazida ao consciente e o paciente tem a chance de encará-la de frente, por assim dizer, ele pode "se entender" com ela e se
curar.
Sofia - Isto parece lógico.
Alberto - Mas estou avançando rápido demais. Vamos ver primeiro como Freud descreve a psique humana. Você já viu um
recém-nascido?
Sofia - Tenho um primo de quatro anos.
Alberto - Quando vêm ao mundo, os bebês satisfazem suas necessidades físicas e psíquicas de forma bastante direta e
desinibida. Se estão com fome, choram. E também choram quando estão com a fralda molhada ou quando querem deixar
bem claro que querem um pouco de calor humano e contato físico. Freud chama de id este "princípio do prazer" que existe
em nós. Quando somos recém-nascidos, quase todo o nosso ser é apenas um id.
Sofia - Prossiga.
Alberto - O id continua conosco na idade adulta e nos acompanha a vida toda. Só que aos poucos vamos aprendendo a
controlar nossos desejos a fim de nos adaptarmos ao nosso meio. Em outras palavras, aprendemos a afinar nosso princípio de
prazer com o princípio da realidade. Freud diz que construímos um ego e que este ego assume esta função reguladora. A
partir de certa idade, embora tenhamos prazer em alguma coisa, não podemos simplesmente sentar e abrir o berreiro até que
nossos desejos ou necessidades sejam satisfeitos.
Sofia - É claro que não.
Alberto - Mas pode acontecer de nós desejarmos intensamente alguma coisa que nosso meio não aceita. O que acontece é
que muitas vezes reprimimos nossos desejos. Quer dizer, tentamos colocá-los de lado e esquecê-los.
Sofia - Entendo.
Alberto - Mas Freud aponta também uma terceira instância na psique humana: ainda crianças, somos confrontados com os
padrões morais de nossos pais e de nosso meio. Quando fazemos alguma coisa de errado, nossos pais dizem "Não faça isto!",
ou então "Que vergonha!". E mesmo depois de adultos podemos ouvir o eco de tais repreensões e julgamentos morais. As
expectativas de nosso meio no plano da moral parecem ter se alojado dentro de nós e passado a constituir uma parte de nós
mesmos. É isto que Freud chama de superego.
Sofia - Superego seria para ele sinônimo de consciência?
Alberto - Numa passagem, Freud chega a dizer textualmente que o superego se opõe ao ego como uma espécie de
consciência. Na verdade, porém, trata-se do seguinte: o superego nos informa, por sim dizer, quando nossos desejos são
"sujos" ou "impróprios", e vale especialmente para os desejos eróticos ou sexuais. Como eu já disse, Freud constatou que tais
desejos surgem bem cedo na infância.
Sofia - Me explique melhor, por favor.
Alberto - Hoje em dia sabemos e vemos que os bebês gostam de brincar com seus órgãos genitais. Podemos ver isto, por
exemplo, quando vamos à praia ou à piscina. Na época de Freud, a criança de dois ou três anos que fizesse isto na frente dos
outros ganhava um belo tapa na mão. Naquela época, era comum as crianças ouvirem frases tais como: "Que coisa mais
feia!", ou "Não faça isso!", ou ainda "Deixe as mãos para fora das cobertas!".
Sofia - Revoltante...
Alberto - Dessa forma, as pessoas desenvolvem um sentimento de culpa. E como este sentimento de culpa é armazenado no
superego, para muitas pessoas, e Freud acreditava que para a maioria delas, ele fica indissociavelmente atrelado a tudo o que
diz respeito ao sexo. Ao mesmo tempo, Freud chamava a atenção para o fato de os desejos e necessidades sexuais serem uma
parte natural e importante da natureza humana. E assim, minha cara Sofia, temos aqui todos os elementos de que
necessitamos para um conflito entre prazer e culpa que pode nos acompanhar por toda a vida.
Sofia - Você não acha que este conflito diminuiu um pouco desde a época de Freud?
Alberto - Certamente. Mas muitos dos pacientes de Freud viviam este conflito de forma tão intensa que chegaram a
desenvolver o que Freud chamou de neuroses. Uma de suas pacientes, por exemplo, apaixonou-se por seu cunhado. Quando
sua irmã morreu ainda jovem, vítima de uma enfermidade, ela pensou junto ao leito de morte da irmã: "Agora ele está livre e
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pode se casar comigo!". Este pensamento naturalmente entrou em conflito direto com o seu superego. Era um
pensamento tão hediondo que ela o reprimiu, como Freud diz. Quer dizer, ela o enterrou no inconsciente. Depois, aquela
jovem senhora ficou doente e passou a apresentar sérios sintomas de histeria. E quando Freud assumiu o tratamento dela,
ficou claro que ela tinha se esquecido completamente da cena junto ao leito de morte de sua irmã e do desejo terrível, egoísta,
que sentira vir à tona dentro de si. Durante o tratamento, a paciente voltou a se lembrar da cena, reviveu aquele momento que
era a causa de sua enfermidade e ficou curada.
Sofia - Agora eu estou começando a entender o que você queria dizer com "arqueologia da alma".
Alberto - Então vamos arriscar uma descrição bem genérica da psique humana. Após um longo período de experiência com
pacientes, Freud chegou à conclusão de que a consciência humana era apenas uma pequena parte da psique. A consciência
seria mais ou menos como a ponta de um iceberg que se eleva para além da superfície da água. Sob a superfície, ou sob o
limiar da consciência, está o subconsciente, ou o inconsciente.
Sofia - Quer dizer que o inconsciente é tudo de que nós nos esquecemos, mas que continua dentro de nós?
Alberto - Não podemos ter presente em nossa consciência, o tempo todo, todas as experiências que vivemos. Mas tudo o que
pensamos ou vivemos e tudo de que nos lembramos quando pomos a cabeça para funcionar Freud chama de "pré-consciente".
A expressão "inconsciente" significa, para Freud, tudo o que reprimimos. Quer dizer, tudo de que nós queremos nos esquecer
a qualquer preço porque consideramos desagradável, indecoroso ou repulsivo. Quando temos desejos e prazeres que para
nossa consciência, ou para nosso superego, são insuportáveis, nós simplesmente as enfiamos no porão do inconsciente e
assim nos livramos deles.
Sofia - Entendo.
Alberto - Este mecanismo funciona em todas as pessoas sadias. Para algumas pessoas, porém, o ato de banir tais
pensamentos desagradáveis ou proibidos é algo tão estressante que elas ficam doentes. É que aquilo que foi reprimido desta
forma continua tentando emergir para o nível da consciência, de sorte que cada vez mais energia é despendida para se manter
tais impulsos longe da crítica do consciente. Em 1909, quando Freud proferiu algumas palestras nos Estados Unidos sobre a
psicanálise, ele ilustrou com um exemplo muito simples o funcionamento desse mecanismo de repressão.
Sofia - Que exemplo foi este?
Alberto - Ele pediu aos ouvintes que imaginassem que no auditório havia um indivíduo que perturbava a ordem e
desconcentrava o orador rindo às gargalhadas, conversando com seus vizinhos e arrastando e batendo os pés no chão.
Chegaria, então, um momento em que o orador não poderia continuar a falar. Nesse momento, alguns homens fortes
provavelmente se levantariam e, depois de uma breve discussão, colocariam o elemento perturbador porta afora, no corredor.
O indivíduo seria "reprimido", portanto, e o orador poderia continuar com sua palestra. Mas para evitar que o elemento
perturbador tentasse forçar sua entrada de novo no auditório, os mesmos homens que o tinham colocado para fora levariam
suas cadeiras até à porta e funcionariam como uma espécie de resistência para garantir a repressão. Freud concluiu dizendo
que se os ouvintes imaginassem o auditório como o "consciente" e o corredor como o "inconsciente", teriam uma boa
imagem de como funciona o processo de repressão.
Sofia - Também acho que a imagem é boa.
Alberto - Uma coisa é certa: o elemento perturbador vai querer entrar novamente na sala de conferências, Sofia. Em todo
caso, é isto o que querem nossos pensamentos e impulsos reprimidos. Vivemos sob a constante pressão de pensamentos
reprimidos, que tentam se libertar do inconsciente. Por isso é que muitas vezes dizemos e fazemos coisas que na verdade "não
tínhamos a intenção de fazer". Dessa forma, o inconsciente também pode guiar nossos sentimentos e ações.
Sofia - Você poderia me dar um exemplo?
Alberto - Freud descreve vários desses mecanismos. Um deles é o chamado ato falho, ou seja, algo que dizemos ou fazemos
espontaneamente e que um dia tínhamos reprimido. Ele faia, por exemplo, de um empregado que foi escolhido para fazer um
brinde ao seu chefe, de quem ninguém gostava.
Sofia - Sim?
Alberto - O empregado se levantou, ergueu o copo e disse: "Convido todos a arrotarem em homenagem a nosso chefe!".
Sofia - Legal!
Alberto - Não foi o que o chefe achou. Ao dizer isto, o empregado simplesmente tinha expressado o que realmente achava
de seu chefe. Talvez nunca tivesse ousado dizê-lo abertamente a ele. Você quer mais um exemplo?
Sofia - Sim.
Alberto - Certo dia, o bispo foi visitar a família de um pastor, que era pai de umas meninas adoráveis e muito comportadas.
Este bispo tinha um nariz enorme, fora do comum. O pastor teve o cuidado, então, de pedir às suas filhas que não
mencionassem nada a respeito do nariz do bispo. É que as crianças geralmente começam a rir quando percebem essas coisas,
pois ainda não têm o mecanismo de repressão muito bem desenvolvido.
Sofia - E o que aconteceu?
Alberto - O bispo veio até à paróquia e as meninas, absolutamente deliciadas com a situação, faziam todo o esforço possível
para não dizer nada a respeito do nariz. E mais: elas não podiam sequer ficar olhando para o nariz. Tinham de esquecê-lo
completamente. Só que elas ficavam pensando no nariz do bispo o tempo todo. E quando chegou a hora de a menorzinha
oferecer ao honorável bispo açúcar para o café, ela disse: "O senhor aceita um pouco de açúcar no nariz?".
Sofia - Putz!
Alberto - Às vezes nós também racionalizamos, quer dizer, tentamos mostrar a nós mesmos, e aos outros, que temos outros
motivos para fazer o que fazemos em certas situações, e não revelamos os reais motivos que nos levaram a agir de certa
maneira, simplesmente porque eles são constrangedores demais.
Sofia - Um exemplo, por favor.
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Alberto - Posso hipnotizar você e induzi-la a abrir a janela. Para tanto, ordeno a você que se levante e abra a janela
quando eu tamborilar com os dedos sobre a mesa, por exemplo. Quando eu faço isto, você se levanta e abre a janela. Depois
pergunto a você por que você abriu a janela. Talvez você me responda que o fez porque estava muito quente aqui dentro.
Mas este não é o verdadeiro motivo. Você não quer admitir para si mesma que obedeceu à minha ordem enquanto estava
hipnotizada. E o que você faz? Você "racionaliza", Sofia.
Sofia - Entendo.
Alberto - Coisas como esta acontecem quase todos os dias quando nos relacionamos com os outros.
Sofia - Eu já disse a você que tenho um priminho de quatro anos. Acho que ele não têm muitos amigos para brincar, pois ele
sempre fica muito contente quando eu vou visitá-lo. Certa vez eu disse que precisava voltar logo para casa, pois minha mãe
estava me esperando. E sabe o que ele me disse?
Alberto - Não.
Sofia - "Sua mãe é uma chata", foi isso o que disse.
Alberto - Sim, este é um bom exemplo para o que entendemos por racionalizar. O menino realmente não quis dizer que sua
mãe é uma chata. Ele quis dizer que achava chato que você tivesse de ir embora. Só que para ele não era muito fácil
verbalizar isto. Outra coisa que pode acontecer é que nós projetamos.
Sofia - Traduza, por favor.
Alberto - Quando projetamos alguma coisa estamos transferindo a outros as características que tentamos reprimir em nós
mesmos. Uma pessoa avarenta, por exemplo, gosta de ficar dizendo que os outros são avarentos. Alguém que não quer
admitir que pensa muito em sexo geralmente é o primeiro a se irritar quando encontra outras pessoas fissuradas por sexo.
Sofia - Entendo.
Alberto - Freud dizia que nossa vida cotidiana está repleta de tais ações inconscientes. Muitas vezes nos esquecemos do
nome de certa pessoa, ficamos mexendo numa pontinha de nossa roupa enquanto estamos falando ou então ficamos mudando
de posição objetos aparentemente sem importância. Ou podemos tropeçar em nossas próprias palavras e acabar trocando
letras e nomes, que à primeira vista podem parecer totalmente inocentes, mas que na verdade não são. Freud pelo menos não
considera essas coisas tão inocentes e casuais como podemos achar. Ele acha que elas deveriam ser encaradas como sintomas.
Para ele, esses atos falhos podem nos revelar segredos os mais íntimos.
Sofia - Daqui para a frente, vou prestar bastante atenção em cada palavra que disser.
Alberto - Mesmo assim, você não poderá escapar de seus impulsos inconscientes. O segredo está em não se desgastar
demais ao se empurrar as coisas desagradáveis para o subconsciente. É como querer tapar o buraco de uma toupeira. Você
pode até conseguir, mas com certeza ela virá à superfície em algum outro ponto. O mais sadio é deixar só encostada a porta
entre o consciente e o subconsciente.
Sofia - Se trancarmos a porta à chave podemos provocar distúrbios psíquicos em nós mesmos?
Alberto - Sim. Um neurótico é justamente alguém que despende energia demais na tentativa de banir de seu consciente tudo
aquilo que o incomoda. Com freqüência trata-se de reprimir experiências bem específicas. São as chamadas "experiências
traumáticas", que eu já mencionei no início da nossa conversa, talvez um pouco cedo demais. Freud as chama de traumas. A
palavra "trauma" é grega e significa "ferida".
Sofia - Entendo.
Alberto - Em seus tratamentos, às vezes Freud tentava abrir cuidadosamente estas portas trançadas; outras vezes, procurava
abrir outra porta. Com a colaboração do paciente, ele tentava trazer à tona novamente as experiências reprimidas. Isto porque
o paciente não tem consciência de que as reprimiu. Não obstante, ele deseja que o médico, ou o analista, como se diz em
psicanálise, o ajude a encontrar um caminho que o leve a seus traumas escondidos.
Sofia - E como o médico procede neste caso?
Alberto - Freud chamava este procedimento de técnica da livre associação. Isto significa que ele deixava o paciente deitado,
bem relaxado, falando apenas sobre coisas que lhe viessem à cabeça, por mais irrelevantes, casuais, desagradáveis ou penosas
que elas lhe fossem. Para o analista, as associações do paciente no divã trazem indícios de seus traumas e das resistências que
impedem a conscientização. Pois são exatamente os traumas que ocupam os pacientes o tempo todo, só que não de forma
consciente.
Sofia - Quer dizer que quanto mais a gente se esforça para esquecer uma coisa, mais a gente pensa inconscientemente nela?
Alberto - Exatamente. Por isso é importante prestar atenção aos sinais do inconsciente. Para Freud, o "caminho real" que
leva para o inconsciente passa pelos sonhos. Por esta razão, uma de suas mais importantes obras é o livro A interpretação
dos sonhos, publicado em 1900. Nele, Freud mostra que nossos sonhos não são meros acasos. Por meio dos sonhos, nossos
pensamentos inconscientes tentam se comunicar com nosso consciente.
Sofia - Continue.
Alberto - Após longos anos de experiências acumuladas no trabalho corri seus pacientes, e também depois de ter analisado os
seus próprios sonhos, Freud afirmou que todos os sonhos são a realização de desejos. Ele dizia que podemos observar isto
claramente nas crianças: elas sonham com sorvetes e cerejas, por exemplo. Em adultos, porém, acontece com freqüência de
os desejos a serem satisfeitos no sonho aparecerem disfarçados. Isto acontece porque mesmo quando estamos dormindo uma
censura severa continua a determinar o que podemos nos permitir ou não. Quando estamos dormindo, esta censura, ou
mecanismo de repressão, é mais fraca do que quando acordados, mas ainda é forte o bastante para desfigurar no sonho os
desejos que não queremos confessar nem a nós mesmos.
Sofia - E é por isso que os sonhos têm de ser interpretados?
Alberto - Freud mostra que precisamos distinguir entre o sonho, tal como ele nos vem à lembrança na manhã seguinte, e o
seu verdadeiro significado. As próprias imagens oníricas, quer dizer, o filme ou o vídeo a que assistimos quando sonhamos,
111
ele as chamou de conteúdo manifesto do sonho. Mas o sonho também tem um significado mais profundo, que permanece
inacessível ao consciente. E este significado, Freud o chamou de pensamentos latentes do sonho. As imagens oníricas e seus
requisitos são geralmente tiradas do passado mais próximo, com freqüência dos acontecimentos que vivemos no dia anterior.
Os pensamentos ocultos, porém, vêm de um passado mais remoto; por exemplo, das primeiras fases de nossa infância.
Sofia - Quer dizer que precisamos analisar o sonho para entender do que ele trata realmente.
Alberto - Sim. E os enfermos precisam fazer isto junto com um terapeuta. Mas não é o médico quem interpreta os sonhos.
Ele só pode fazer isto com a ajuda do paciente. O médico entra nessa situação apenas corno urna parteira socrática que ajuda
na interpretação.
Sofia - Entendo.
Alberto - O ato de reformular, de converter os "pensamentos latentes do sonho" em "conteúdo manifesto do sonho" é
chamado por Freud de trabalhar o sonho. Podemos falar de um "mascaramento" ou de uma "codificação" da verdadeira ação
que se desenrola no do sonho. Na interpretação do sonho temos de passar por um processo inverso. Temos de desmascarar ou
decodificar o verdadeiro "motivo" do sonho, a fim de podermos descobrir o verdadeiro "tema" do sonho.
Sofia - Você poderia me dar um exemplo?
Alberto - Os livros de Freud estão cheios desses exemplos. Mas nós mesmos podemos inventar um exemplo bem simples e
bem freudiano. Quando um rapaz sonha que sua prima lhe deu dois balões de ar...
Sofia - Sim?
Alberto - Não espere que eu continue. Você mesma deve tentar interpretar este sonho agora.
Sofia - Hmrn.... Neste caso, o "conteúdo manifesto do sonho" é exatamente isto que você disse: a prima dele lhe dá dois
balões de ar.
Alberto - Continue.
Sofia - E você também disse que os requisitos de nossos sonhos geralmente são tirados das experiências vividas no dia
anterior. Portanto, ele deve ter ido a um parque de diversões no dia anterior, ou então viu no jornal a foto de dois balões de
ar.
Alberto - Sim, pode ser. Mas também pode ser que ele tenha apenas ouvido a palavra "balão" ou visto alguma coisa que o
tenha feito lembrar de um balão.
Sofia - Mas o que são os "pensamentos latentes do sonho"? Eles não são aquilo de que o sonho realmente trata?
Alberto - Quem está interpretando sonhos aqui é você.
Sofia - Será que ele simplesmente não estaria querendo dois balões?
Alberto - Não, isto é pouco provável. Num ponto, porém, você tem razão: ele quer satisfazer um desejo no sonho. Só que
dificilmente um rapaz adulto desejaria assim tão ardentemente dois balões de ar. E, se quisesse, não seria necessário sonhar
com isto.
Sofia - Então... acho que na verdade ele deseja a sua prima. E os dois balões são os seios dela.
Alberto - Sim, esta é uma explicação provável, sobretudo porque este desejo lhe causa certo embaraço, de modo que ele não
gosta de admiti-lo quando está acordado.
Sofia - Quer dizer que nossos sonhos dão umas voltas e passam por coisas como balões etc.?
Alberto - Sim. Freud considerava o sonho a realização disfarçada de desejos disfarçados. Pode ser que o que disfarçamos
tenha se modificado consideravelmente desde que Freud conversava com seus pacientes em seu consultório em Viena.
Apesar disso, é possível que o mecanismo de disfarce continue intato.
Sofia - Entendo.
Alberto - Nos anos 20, a psicanálise de Freud se tornou muito importante, sobretudo no tratamento das neuroses. Além
disso, sua teoria do Inconsciente foi muito importante para a arte e a literatura.
Sofia - Você está querendo dizer que os artistas passaram a se ocupar mais da vida mental inconsciente do homem?
Alberto - Exatamente, embora isto já estivesse presente na literatura da última década do século passado, quando a
psicanálise de Freud ainda não era conhecida. Só estou querendo dizer que não é por acaso que a psicanálise de Freud surgiu
exatamente nesta época.
Sofia - Você quer dizer que ela já estava embutida no espírito da época?
Alberto - Freud não acreditava ter descoberto, por assim dizer, fenômenos como a repressão, os atos falhos ou a
racionalização. Mas ele foi o primeiro a trazer para dentro da psiquiatria tais experiências humanas. Ele também soube
ilustrar muito bem sua teoria com exemplos extraídos da literatura. Mas, como eu disse, a psicanálise de Freud passou a
influenciar diretamente a arte e a literatura a partir dos anos 20.
Sofia - De que forma?
Alberto - Escritores e pintores passaram a tentar aplicar as forças inconscientes em seus trabalhos de criação. E isto vale
sobretudo para os chamados surrealistas.
Sofia - O que significa isto?
Alberto - A expressão "surrealismo" é francesa e significa algo como aquilo que está além do realismo". Em 1924, André
Breton publicou seu Manifesto surrealista. Nele, Breton declara que a arte deveria ser criada a partir do inconsciente, pois só
assim a inspiração do artista estaria livre para produzir suas imagens oníricas e o artista poderia buscar um "super-realismo",
no qual as barreiras entre sonho e realidade fossem abolidas. De fato, pode ser muito importante para um artista eliminar a
censura do consciente, a fim de que palavras e imagens possam fluir livremente.
Sofia - Entendo.
Alberto - De certa forma, Freud tinha dado a prova de que todas as pessoas são artistas. Afinal, um sonho é uma pequena
obra de arte e a cada noite criamos novos sonhos. Para interpretar os sonhos de seus pacientes, Freud freqüentemente tinha
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de abrir caminho através de um denso emaranhado de símbolos, mais ou menos como fazemos quando interpretamos um
quadro ou um texto literário.
Sofia - E nós sonhamos todas as noites?
Alberto - Pesquisas recentes demonstraram que vinte por cento do tempo que passamos dormindo é preenchido por sonhos.
Isto significa que sonhamos de duas a três horas por noite. Quando somos perturbados durante essas fases, reagimos com
nervosismo e irritação. Isto significa nada mais e nada menos que todas as pessoas têm uma necessidade inata de dar à sua
situação existencial uma expressão artística. O sonho trata de nós mesmos. Somos nós quem dirigimos este "filme", juntamos
tudo o que compõe os seus cenários e requisitos e desempenhamos todos os papéis. As pessoas que dizem que não entendem
nada de arte são pessoas que se conhecem mal.
Sofia - Entendo.
Alberto - Além disso, Freud deu uma prova impressionante de como é fantástica a mente humana. Seu trabalho com
pacientes convenceu-o de que guardamos no fundo de nossa mente tudo o que vimos e vivemos. E todas essas impressões
podem ser trazidas à tona novamente. Todas as vezes em que nos dá "um branco" e, pouco depois, ficamos com o que
queremos lembrar "na ponta da língua", e quando, um pouco mais tarde ainda, a coisa "subitamente nos ocorre", estamos
falando de algo que estava no inconsciente e, de repente, encontrou uma porta entreaberta e conseguiu escapar para o
consciente.
Sofia - Mas às vezes isto demora muito.
Alberto - Sim, todos os artistas sabem disso. Só que de repente todas as portas e gavetas do arquivo parecem se abrir. Tudo
flui espontaneamente e então podemos escolher exatamente as palavras e as imagens de que precisamos. Isto acontece
quando deixamos a porta do inconsciente entreaberta. Podemos chamar isto de inspiração, Sofia. E então temos a sensação
de que aquilo que desenhamos ou escrevemos não veio de nós.
Sofia - Deve ser um sentimento maravilhoso.
Alberto - Mas com certeza você mesma já o experimentou. Podemos observar facilmente este estado inspirado em crianças
que estão supercansadas. Neste estado, as crianças parecem mais acordadas do que nunca e começam a falar sem parar,
tirando da memória palavras que elas ainda nem aprenderam. Só que é claro que elas já aprenderam. Acontece que essas
palavras estavam "latentes" no seu consciente e só agora, quando o cansaço relaxa o policiamento e abole a censura, elas
podem vir à tona. Para o artista, a situação é diferente. Mas também para ele pode ser importante que a razão e a reflexão não
exerçam um controle tão rigoroso sobre aquilo que melhor pode se desenvolver espontânea, livre e inconscientemente. Posso
contar uma fábula que ilustra muito bem o que estou dizendo?
Sofia - Claro!
Alberto - É uma fábula muito séria e muito triste.
Sofia - Pode começar.
Alberto - Era uma vez uma centopéia que sabia dançar excepcionalmente bem com suas cem perninhas. Quando ela dançava,
os outros animais da floresta reuniam-se para vê-la e ficavam muito impressionados com sua arte. Só um bicho não gostava
de assistir à dança da centopéia: uma tartaruga.
Sofia - Na certa porque tinha inveja.
Alberto - "Como será que eu posso conseguir fazer a centopéia parar de dançar?", pensava ela. Ela não podia simplesmente
dizer que a dança da centopéia não lhe agradava. E também não podia dizer que sabia dançar melhor que a centopéia, pois
ninguém iria acreditar. Então ela começou a bolar um plano diabólico.
Sofia - Que plano era esse?
Alberto - A tartaruga pôs-se, então, a escrever uma carta endereçada à centopéia: "Oh, incomparável centopéia! Sou uma
devota admiradora de sua dança singular e gostaria muito de saber como você faz para dançar. Você levanta primeiro a perna
esquerda número 28 e depois a perna direita número 59, ou começa a dançar erguendo a perna direita número 26 e depois a
perna esquerda número 49? Espero ansiosa por sua resposta. Cordiais saudações, a tartaruga".
Sofia - Que coisa de doido!
Alberto - Quando a centopéia recebeu esta carta, refletiu pela primeira vez na sua vida sobre o que fazia de fato quando
dançava. Que perna ela movia primeiro? E qual perna vinha depois? E você sabe, Sofia, o que aconteceu?
Sofia - Acho que a centopéia nunca mais dançou.
Alberto - Foi isso mesmo. E é exatamente isto que pode acontecer quando o pensamento sufoca a imaginação.
Sofia - É triste mesmo esta história.
Alberto - Para um artista, portanto, pode ser muito importante "se deixar levar". Os surrealistas tentavam se aproveitar disso
e buscavam um estado em que tudo parecia brotar espontaneamente. Eles sentavam-se à frente de uma folha de papel em
branco e começavam a escrever, sem pensar no que estavam escrevendo. Era isto o que chamavam de escrita automática. Na
verdade, a expressão vem do espiritismo, em que um "médium" acredita que o espírito de alguém que já morreu está
dirigindo sua mão ao escrever... Mas acho melhor continuarmos falando amanhã sobre essas coisas.
Sofia - Tudo bem.
Alberto - O artista surrealista também é, de certa maneira, um médium. Ele é um médium de seu próprio subconsciente.
Contudo, é possível que haja uma pontinha de inconsciente em todo processo criativo. Pois o que seria isto que chamamos de
"criatividade"?
Sofia - Ser criativo não significa criar algo de novo e de único?
Alberto - Mais ou menos. E isto ocorre por meio de uma delicada interação entre imaginação e razão. Na maioria das vezes,
a razão sufoca a imaginação; e isto é ruim, pois sem imaginação não é possível produzir nada de novo. Eu vejo a imaginação
como um sistema darwinista.
113
Sofia - Desculpe, mas esta eu não entendi.
Alberto - O Darwinismo explica que a natureza produz um mutante atrás do outro. Mas a natureza só precisa de alguns
poucos desses mutantes. Só alguns poucos têm a chance de viver.
Sofia - E então?
Alberto - O mesmo acontece quando pensamos, quando estamos inspirados e temos muitas e novas idéias. Nesse caso, nossa
cabeça produz um "pensamento mutante" atrás do outro. Quer dizer, isto se nós não nos impusermos uma censura muito
severa. Acontece que só vamos usar realmente alguns desses pensamentos. E é aqui que entra a razão, pois ela também tem
uma função importante. Quando temos sobre a mesa o resultado da pesca, não podemos esquecer de escolher os peixes.
Sofia - Esta é uma ótima comparação.
Alberto - Imagine se tudo o que nos "ocorre", se cada lampejo de pensamento tivesse autorização para sair da nossa boca!
Ou então para saltar do bloco de apontamentos ou sair das gavetas da escrivaninha! O mundo se afogaria bem depressa num
mar de idéias e lembranças casuais. E não haveria uma "seleção", Sofia.
Sofia - E a razão escolhe as melhores entre todas as idéias e lembranças?
Alberto - Sim, ou você não acha? A imaginação pode criar coisas novas, mas não é ela que realmente escolhe. Não é a
imaginação que "compõe". Uma composição, e toda obra de arte é uma composição, surge de uma admirável interação entre
imaginação e razão, ou entre sentimentos e pensamentos. O processo artístico tem sempre um elemento de casualidade. Em
certa fase pode ser importante não represar essas idéias e lembranças casuais. As ovelhas precisam ser soltas primeiro para
só depois o pastor poder vigiá-las. (...)
Alberto - (...) a imaginação também é importante para nós, filósofos. Para chegarmos a pensar alguma coisa nova, também
precisamos ter coragem de nos deixar levar.

Texto III – Identidade e Identificação


(Do Livro: Psicanálise, judaísmo: ressonâncias. Renato Mezan. Ed. Escuta, 1986, Campinas, SP, pág. 44-49)

A idéia básica da qual vamos partir é a seguinte: a identidade não é um elemento que cada um de nós possui ao nascer; ela é
algo adquirida aos poucos, ao longo de nossa infância, de nossa educação, etc.
A identidade situa-se no ponto de cruzamento entre algo que vem de nós (o equipamento psíquico com o qual nascemos) e
algo que nos vem de fora, isto é, da realidade externa. E, como dizia Freud em Totem e Tabu, na realidade externa o que
existe é a sociedade humana, com as suas instituições e as suas normas.
Tentemos definir, brevemente, o que quer dizer a palavra identidade.

O primeiro sentido é o de ser idêntico a: duas folhas de papel são idênticas quando não existe diferença perceptível entre uma
e outra. Outro sentido é aquele em que empregamos a expressão “carteira de identidade”: neste caso, trata-se de um conjunto
de sinais que permitem a outros dizerem quem nós somos, isto é, nos identificar, nos distinguir em meio a um conjunto. No
caso da carteira de identidade, tais sinais são o número do R. G., a filiação, etc. Já percebemos, ao justapor estas duas
acepções da palavra, que a identidade remete aos temas da diferença e da alteridade, isto é, remete aos seus opostos.
Identificar significa “separar”, “designar”, mas também significa “tornar igual a”: é neste campo semântico que se insere o
sentido propriamente psicológico do termo.
Todos nós temos um sentimento de identidade, isto é, a sensação subjetiva de que algo subjaz aos diversos momentos de
nossa existência e os torna partes da mesma vida, a de cada um de nós. Este sentimento de identidade está associado a
fenômenos como o da continuidade (hoje e ontem, sou o mesmo, embora esteja em outro lugar e esteja vivendo coisas
diferentes), e como o da sensação de ter limites (por exemplo, limites do meus corpo: sei intuitivamente onde começo e onde
termino, e me sinto inteiro dentro dos limites da minha pele). Estes fenômenos podem parecer naturais, mas não são: existem
pessoas cuja perturbação psíquica concerne exatamente a estas sensações de permanência, de continuidade, de limites claros
entre si e outros; tais pessoas podem apresentar sintomas muito variados, que indicam estar pouco estruturado o nível de
identidade, neste sentido que estou assinalando.
São patologias deste gênero que colocaram Freud e seus sucessores na pista de um problema que envolve este que estamos
estudando, e que eu formularia assim: como se constitui a identidade de um ser humano? Que ela não é um dado natural é
evidente pelo fato de que podemos perdê-la, ou de que ela poder ficar seriamente comprometida em certos quadros clínicos.
Então, de onde vem?
A psicanálise responde: do processo a que chamamos identificação. E este processo de identificação resulta na constituição,
dentro de cada um de nós, de um eu, isto é, de uma parte nossa que vai nos parecer a única, porque é apenas dela que temos
consciência.
Quando uma criança nasce, ela ainda não tem um “eu”, por mais estranho que isto possa parecer. Um bebê é um animalzinho
que nasce cedo demais para a vida; é preciso cuidar dele durante vários anos a é que ganhe uma certa autonomia, coisa que os
filhotes da maioria dos animais obtêm em questão de horas, dias ou semanas. Este fato biológico tem conseqüências psíquicas
muito importantes. Através de filmes como Kaspar Hauser e de histórias reais de crianças que foram abandonadas logo ao
nascer entre animais selvagens, e que por algum milagre sobreviveram, nós sabemos o que acontece quando o ser humano se
desenvolve fora da sociedade humana: ela não realiza nenhuma das potencialidades que caracterizam nossa espécie, como a
postura ereta ou o uso da linguagem e das técnicas de trabalho.
Histórias como a de Tarzan ou a de Mowgli, o Menino-Lobo, são infelizmente mitos; elas humanizam a vida dos macacos e
dos lobos, transformando-as em réplicas melhoradas da sociedade humana. (...)
114
Mas as coisas não são bem assim: sem tirar a graça das histórias de Tarzan, é preciso reconhecer que o que humaniza o
homem, o que o torna homem, é o convívio com outros seres humanos. E isto não apenas no plano mais óbvio, o dos hábitos,
crenças e maneiras de ser que diferenciam as civilizações umas das outras – é claro que uma criança educada entre os
pigmeus tem boas chances de se converter em pigmeu, socialmente falando, e independentemente de sua estatura. O que a
psicanálise mostra é que a própria identidade pessoas nos chega através do convívio com outros seres humanos: nosso Eu,
que consideramos tão “nosso”, na verdade resulta de um longo e complicado trabalho psíquico. (....)

Uma parte importante destes enunciados concerne ao nome e ao sobrenome que nós temos, e que fazem parte de nossa
identidade, mas não foram escolhidos por nós. Eles nos localizam dentro da sociedade, como membros desta ou daquela
família, e assim designam para cada um de nós alguém como nossa mãe, alguém como nosso pai, outros seres humanos como
nossos irmãos ou primos. (...)
Costuma-se apresentar a relação entre a sociedade e o indivíduo como sendo basicamente uma relação de repressão. O
indivíduo, por viver em sociedade, não pode fazer tudo o que deseja, deve aprender a controlar seus impulsos etc. Mas a
sociedade não apenas nos impede de fazer o que desejamos. Através dos procedimentos identificatórios, ela também nos
permite, torna possível para nós, o exercício de nossas potencialidades. No cinema, há bons exemplos disso. Num filme de
Buñel, se não me engano O Discreto Charme da Burguesia, há uma cena que mostra isto bem: as pessoas comem em
segredo, mas defecam em público. Isto é perfeitamente admitido naquela sociedade, enquanto o ato de comer é considerado
sujo e indecente. Cenas assim servem para mostrar como são relativos os critérios do permitido e do proibido; os romanos
defecavam em latrinas coletivas, como se pode ver nas ruínas das termas; ia-se ali não só para tomar banho ou fazer as
necessidades, mas para ficar sabendo das últimas novidades, etc. Mesmo em nosso meio social, os critérios do permitido e do
proibido variam de época para época. Há cem anos, era absolutamente indecente para a mulher mostrar as pernas, mas o colo
era considerado como feito para ser exposto: de onde saias compridas e decotes extremamente ousados. Há um romance de
José de Alencar, A Pata da Gazela, no qual o herói se apaixona pelo sapato da moça, que sugere um lindo pé, não visto e por
isto mesmo misterioso, desejável; era considerado extremamente indecente mostrar os pés, mas os ombros e os cabelos
podiam ser exibidos sem o menor constrangimento.
Tudo isto nos ajuda a compreender que sempre existe uma regra que partilha entre o permitido e o proibido, embora o que faz
parte de cada uma destas categorias possa variar de época para época e de sociedade para sociedade.

A sociedade precisa criar não somente obstáculos à realização dos desejos, mas também canais através dos quais o sujeito
possa dispor de um espaço psíquico interno; e uma das partes deste espaço interno é a identidade.

O poder não é apenas uma instância que reprime e proíbe; ele faz surgir, incita, produz comportamentos, como mostram os
estudos do filósofo Michel Foucault. Entre estes comportamentos, está a relação do indivíduo consigo próprio, que é função
de certas maneiras de sentir, de agir e de pensar que lhe são inculcadas através dos mecanismos identificatórios. Cada
sociedade precisa se estruturar de forma tal, que seus membros possam se identificar a certos modelos, adotá-los como seus,
representá-los como ideais a serem atingidos, etc. É necessário que haja também uma margem de manobra interna para cada
sujeito, um espaço dentro do qual ele possa acomodar estes modelos gerais que a sociedade lhe oferece às suas próprias
fantasias e às suas próprias fontes de prazer; é neste espaço que cada um de nós é Pedro ou João, goza de um direito à
subjetividade que nos permite ser assim ou assado. Caso contrário, se houvesse apenas o processo de identificação no sentido
sociedade - psique, todos os membros de uma dada sociedade seriam psiquicamente iguais, o que obviamente, não é
verdade.......

Texto IV - O Ego e os mecanismos de defesa


(fonte: http://psicanalisefreudiana.vilabol.uol.com.br/mecanismosdedefesa.html)

O ego está submetido aos desejos do id e à repressão que o superego faz. Ele obedecerá ao princípio da realidade, ou seja,
deverá encontrar formas de satisfazer os desejos do id sem ferir a moral do superego.

Para realizar a difícil tarefa o ego acaba por criar mecanismos de defesa. Foi este o nome que Freud adotou para apresentar os
diferentes tipos de manifestações que as defesas do Ego podem apresentar, já que este não se defronta só com as pressões e
solicitações do Id e do Superego, pois aos dois se juntam o mundo exterior e as lembranças do passado.

Quando o Ego está consciente das condições reinantes, consegue se sair bem das situações sendo lógico, objetivo e racional,
mas quando se desencadeiam situações que possam vir a provocar sentimentos de culpa ou ansiedade, o Ego perde as três
qualidades citadas. É quando a ansiedade-sinal (ou sinal de angústia), e forma inconsciente, ativa uma série de mecanismos
de defesa, com o fim de proteger o Ego contra uma dor psíquica iminente.
Há vários mecanismos de defesa, sendo alguns mais eficientes do que outros. Há s que exigem menos dispêndio de energia
para funcionar a contento. Outros há que são menos satisfatórios, mas todos requerem gastos de energia psíquica.

A seguir, apresentam-se alguns destes mecanismos de defesas:


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Repressão – é o que mais comumente usamos para acomodar a oposição entre nossas tendências naturais e nossa
consciência moral, que as julga más e socialmente indesejáveis. Consiste em não admitir a existência das tendência do Id, não
pensar nelas, ignorá-las, torná-las inconscientes ou recalcá-las. Por exemplo, uma pessoa que tenha agressividade para com
seu pai poderá reprimir esse antagonismo, recalcá-lo; ela não admitirá a existência do mesmo, conseguirá torná-lo
inconsciente.
Essa tendência não desaparecerá totalmente, mas continuará a existir e procurará se manifestar em nosso pensamento,
procurará passar para o nível consciente. Os impulsos reprimidos conseguirão se manifestar, algumas vezes, enquanto
estamos adormecidos, através dos sonhos; outras vezes, quando estamos acordados, através dos atos falhos.; e também, em
estados de intoxicação.

Atos falhos ou falhados: são aqueles que praticamos aparentemente sem querer e de modo inexplicável. É comum
cometermos enganos, trocarmos palavras, esquecermos objetos, etc. Os atos falhos são causados pelos impulsos reprimidos
que procuram se descarregar de qualquer modo, mesmo interferindo em nossas ações não submetidas à repressão.

Um exemplo de ato falho seria o seguinte caso: Um presidente da câmara austríaca, ao abrir a sessão, numa noite em que
todos temiam um escândalo, disse: “Senhores deputados, está encerrada a sessão” em vez de “está aberta a sessão”.
É frequente perdermos objetos que nos foram dados por pessoas de quem não gostamos, enganar-nos com o itinerário ou
perdermos a condução quando vamos aborrecidos a algum lugar.

Sonhos: as tendências recalcadas procuram se manifestar enquanto estamos dormindo através dos nossos sonhos; entretanto,
são tão condenáveis que, para conseguirem se manifestar, precisam vir “camufladas”.
Um rapaz, por exemplo, que tem conseguido recalcar sua agressividade para com seu pai, poderá sonhar que agrediu uma
pessoa adulta ou que um colega agrediu seu pai. Através do conteúdo manifesto de um sonho está seu conteúdo latente que se
obtém pela interpretação psicanalítica.

Intoxicações: em estado de intoxicação alcoólica, a pessoa pode demonstrar tendências libidinosas ou agressivas que ela
própria desconhece quando sóbria. Isto é válido com relação a outros tóxicos.

Racionalização – é o mecanismo pelo qual a nossa inteligência apresenta razões socialmente aceitáveis para nossas ações
que, na realidade, foram motivadas pelos impulsos do Id.
Racionalizar é inventar pretextos, razões para desculpar, diante da sociedade e de nós mesmos, os nossos atos cujos motivos
reais não percebemos.

Por exemplo: um rapaz compra um carro, realizando uma despesa exagerada em relação a sua situação financeira e a suas
necessidades profissionais, porém tranqüiliza sua consciência e justifica-se diante dos outros afirmando que o carro vai ser
muito útil para seu trabalho e vai facilitar as atividades de suas irmãs e de seus pais já idosos. A finalidade da racionalização é
manter o auto-respeito e reduzir as tensões resultantes da frustração e dos sentimentos de culpa.

Projeção – No sentido propriamente psicanalítico, operação pela qual o sujeito expulsa de si e localiza no outro - pessoa ou
coisa - qualidades, sentimentos, desejos e mesmo “objetos” que ele desconhece ou recusa nele..

Exemplos: uma senhora que encontra defeitos em todas as pessoas, que julga más todas as ações alheias, está sendo
influenciada por seus impulsos reprimidos, cuja existência não pode admitir em si. ;
. Em uma visita ao jardim zoológico com seu avô, um menino aproximou-se das jaulas dos leões e, ouvindo o rugir de um
destes, puxou o velho pela manga, dizendo-lhe: “Vamos, vovô, que o senhor está com medo”;
. é o caso do menino que gostaria de roubar frutas do vizinho sem entretanto ter coragem para tanto, e diz que soube que um
menino, na mesma rua, esteve tentando pular o muro do vizinho.

Conversão – é a transformação de conflitos emocionais em sintomas físicos. Por exemplo, os “tiques” em crianças, que
acontecem sem se perceber, podem ser sintomas de problemas emocionais

Sublimação – é a satisfação modificada dos impulsos naturais em atos socialmente mais aceitáveis. Tem importante papel no
desenvolvimento do homem civilizado e nas relações culturais. Há três tipos de sublimação:
- mudança de objeto: neste caso a ação desejada realiza-se totalmente dirigindo-se a um objeto diferente.
Exemplos: um empregado satisfaz seu impulso de agredir o patrão dando um soco na mesa ou um pontapé num caixote; o
povo muito oprimido por um ditador reúne-se em praça pública, faz discursos, e depois queima ou apedreja o retrato de seu
governante; um cavalheiro aproxima-se de uma jovem senhora e sente o desejo natural de acariciá-la mas satisfaz este
impulso (condenável) acariciando uma criança que a acompanha.

- mudança de reação (ou mudança da foram motora da resposta): neste caso, a ação desejada é substituída por outra que se
dirige ao mesmo objeto. Exemplos: um empregado satisfaz seu desejo de dar um soco em seu patrão agredindo-o por
meio de palavras; um cavalheiro satisfaz seu desejo de acariciar uma jovem dama oferecendo-lhe um ramo de flores, etc.
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- mudança de objeto e de reação: os psicanalistas afirmam que uma pessoa pode satisfazer seus desejos naturais
entregando-se à arte, à religião, a obras sociais.

Deslocamento – é um processo psíquico através do qual o todo é representado por uma parte ou vice-versa. Também pode
ser uma idéia representada por uma outra, que, emocionalmente, esteja associada a ela. Esse mecanismo não tem qualquer
compromisso com a lógica. É o caso de alguém que tendo tido uma experiência desagradável com um policial, reaja
desdenhosamente, em relação a todos os policiais.
É muito corrente nos sonhos, onde uma coisa representa outra. Também se manifesta na transferência, fazendo com que o
indivíduo apresente sentimentos em relação a uma pessoa que, na verdade, lhe representa uma outra do seu passado. Esse
fenômeno, particularmente visível na análise do sonho, encontra-se na formação dos sintomas psiconeuróticos e, de um modo
geral, em todas as formações do inconsciente.

Identificação – é o processo psíquico por meio do qual um indivíduo assimila um aspecto, uma característica de outro, e se
transforma, total ou parcialmente, apresentando-se conforme o modelo desse outro. A personalidade constitui-se e diferencia-
se por uma série de identificações.
Freud descreve como característico do trabalho do sonho o processo que traduz a relação de semelhança, o “tudo como se”,
por uma substituição de uma imagem por outra ou “identificação”.
A identificação não tem aqui valor cognitivo: é um processo ativo que substitui uma identidade parcial ou uma semelhança
latente por uma identidade total.

Regressão – é o processo psíquico em que o Ego recua, fugindo de situações conflitivas atuais, para um estágio anterior. É o
caso de alguém que depois de repetidas frustrações na área sexual, regrida, para obter satisfações, à fase oral, passando a
comer em excesso.

Isolamento – é um processo psíquico típico da neurose obsessiva, que consiste em isolar um comportamento ou um
pensamento de tal maneira que as suas ligações com os outros pensamentos, ou com o autoconhecimento, ficam
absolutamente interrompidas, já que foram (os pensamentos, os comportamentos), completamente excluídos do consciente.
Certos doentes defendem-se contra uma idéia, uma impressão, uma ação, isolando-as do contexto. Ele se manifesta inclusive
no tratamento psicanalítico. Um meio de evidenciá-lo é através da associação livre.

Formação reativa – é um processo psíquico que se caracteriza pela adoção de uma atitude de sentido oposto a um desejo que
tenha sido recalcado, constituindo-se, então , numa reação contra ele, o impulso indesejável é mantido inconsciente, por conta
de uma forte adesão ao seu contrário.

Substituição - Processo pelo qual um objeto valorizado emocionalmente, mas que não pode ser possuído, é
inconscientemente substituído por outro, que geralmente se assemelha ao proibido. É uma forma de deslocamento.

Fantasia - É um processo psíquico em que o indivíduo concebe uma situação em sua mente, que satisfaz uma necessidade ou
desejo, que não pode ser, na vida real, satisfeito.
É um roteiro imaginário em que o sujeito está presente e que representa, de modo mais ou menos deformado pelos processos
defensivos, a realização de um desejo e, em última análise, de um desejo inconsciente.

Compensação - É o processo psíquico em que o indivíduo se compensa por alguma deficiência, plena imagem que tem de si
próprio, por meio de um outro aspecto que o caracterize.

Expiação - É o processo psíquico em que o indivíduo quer pagar pelo seu erro imediatamente.

Negação - A tendência a negar sensações dolorosas é tão antiga quanto o próprio sentimento de dor. Nas crianças pequenas, é
muito comum a negação de realidades desagradáveis, negação que realiza desejos e que simplesmente exprime a efetividade
do princípio do prazer.
A capacidade de negar pares desagradáveis da realidade é a contrapartida da “realização alucinatória dos desejos”. Anna
Freud chamou este tipo de recusa do reconhecimento do desprazer em geral “pré-estádios da defesa”.

Introjeção - Originalmente, a idéia de engolir um objeto exprime afirmação; e como tal é o protótipo de satisfação instintiva,
e não de defesa contra os instintos. No estádio do ego prazeroso purificado, tudo quanto agrada é introjetado. Em última
análise, todos os objetos sexuais derivam de objetivos de incorporação. Do mesmo passo, a projeção é o protótipo da
recuperação daquela onipotência que foi projetada para os adultos. Contudo, a incorporação, embora exprima “amor”, destrói
objetivamente os objetos como tais, como coisas independentes do mundo exterior. Percebendo este fato, o ego aprende a
usar a introjeção para fins hostis como executora de impulsos destrutivos e também como modelo de um mecanismo definido
de defesa.
A incorporação é o objetivo mais arcaico dentre os que se dirigem para um objeto. A identificação, realizada através da
introjeção, é o tipo mais primitivo de relação com os objetos.
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Texto V - O caso de Romualdo e a violência


SÉRGIO PAULO ROUANET *
(Fonte: http://www2.uol.com.br/JC/_2001/0302/br0302_6.htm)

Machado de Assis conta que, com seis anos, o menino Brás Cubas tinha o hábito de montar a cavalo no moleque Prudêncio.
Punha-lhe um freio, chicoteava-o com uma varinha e dava mil voltas para um e outro lado. O escravozinho obedecia sem
dizer nada ou, quando muito, gemia: "Ai, nhonhô", ao que Brás retorquia: "Cala a boca, besta!".
Muitos anos depois, Brás Cubas encontra Prudêncio, já alforriado, chicoteando outro negro, seu escravo. A pedido de Brás,
Prudêncio perdoa o escravo e o manda para casa. Brás acha o episódio engraçadíssimo, pois percebe que, ao bater no escravo,
Prudêncio estava apenas se vingando das pancadas recebidas do seu antigo sinhozinho. É como um louco que ele conhecera,
Romualdo, que se dizia Tamerlão, rei dos tártaros. Tinha se transformado em Tamerlão, explicava o louco, porque tinha
tomado tanto tártaro, tanto tártaro, que virara tártaro, e até rei dos tártaros. O tártaro tinha a virtude de fazer tártaros.
Essa sequência de três episódios – os dois em que aparece Prudêncio e o terceiro em que aparece Romualdo – pode ser lida a
partir de duas grades interpretativas opostas, que eu chamaria o naturalismo e o angelismo.
O naturalismo privilegia apenas os dois primeiros episódios, em que surgem Prudêncio e Brás Cubas. Prudêncio figura nelas
uma vez como protagonista passivo e outra como protagonista ativo. Na primeira cena, Brás Cubas é agente. Na segunda, é
espectador – e observa Prudêncio exercendo a função de algoz que Brás exercera na infância e em que o escravo ocupa a
posição de vítima antigamente ocupada por Prudêncio.
No rodízio dos personagens, não há mudança no enredo, mas apenas alternância de papéis: Prudêncio pode perfeitamente
substituir Brás, porque na interpretação naturalista são dois indivíduos genéricos, intercambiáveis, contracenando num
espetáculo alegórico cuja função é ilustrar um dos traços universais da natureza humana.
Nessas duas narrativas, Machado estaria tematizando a violência congênita que existe em todos os homens,
independentemente de sistema social ou de período histórico, e que pode se manifestar indiferentemente num representante
da classe senhorial, como Brás Cubas cavalgando Prudêncio, e num representante da classe subalterna, como Prudêncio
fustigando o escravo. Igualmente universal, exprimindo um dos aspectos menos nobres da maldade humana, é o mecanismo
compensatório pelo qual a vítima da violência por sua vez se torna violenta, se vingando em outros das agressões recebidas.
Salvo engano, as duas perspectivas extremas se movem no terreno da teologia. Os naturalistas aderem a uma teologia
pessimista, agostiniana, que parte da hipótese de uma depravação hereditária do homem, capaz de resistir a todas as
transformações sociais. A violência, consequentemente, é algo de inerente a essa natureza degradada. Os angelistas, ao
contrário, partem de uma teologia otimista, que nega o pecado original e acredita que a violência não está no homem, sim na
sociedade. Em consequência, basta mudar a sociedade para erradicar a violência.
Uma reflexão leiga nos obrigaria a combinar as duas concepções. Precisamos de uma teoria que avance além do naturalismo,
admitindo a influência dos fatores sociais na gênese da violência, e permaneça aquém do angelismo, aceitando como parte de
nossa herança antropológica a existência de um impulso agressivo que partilhamos com o restante do mundo animal.
Ora, temos à nossa disposição uma teoria que vai exatamente nessa direção: a freudiana.
Freud é um "naturalista" exemplar quando afirma que a violência é parte da herança da espécie, tanto histórica quanto
biologicamente. Partindo do mito da horda primitiva, postula uma violência original, que o homem sofria de um pai tirânico e
da qual só conseguiu se livrar por meio de outro ato de violência, o assassinato e o devoramento do pai. Independentemente
desse mito filogenético, Freud insere a violência no mais fundo do aparelho psíquico. Em "Além do Princípio do Prazer"
(1920), cria a noção da pulsão de morte, voltada para a destruição do próprio sujeito e, quando extrovertida, para a destruição
do objeto.
Em 1929, escreve "Mal-Estar na Civilização", em que apresenta a pulsão destrutiva como uma disposição primária e
instintiva de todo ser humano e como o maior obstáculo enfrentado pela civilização. Em 1932, publica uma carta a Einstein –
"Por Quê a Guerra?"– em que apresenta uma versão hobbesiana do estado de natureza, caracterizado pela violência
generalizada, e da formação do Estado. Esse Estado cumpre suas funções recorrendo, por sua vez, à violência, da qual passa a
deter o monopólio.
Mas Freud é um "angelista", também, na medida em que reconhece a fortíssima influência do mundo social . Existe para ele
uma violência externa, ilegítima, que não se destina a manter a vida civilizada como tal e sim a perpetuar uma ordem social
injusta. Essa violência social gera um grande ressentimento entre os explorados e estimula atos de violência individual ou
coletiva pelos quais a própria sociedade é responsável. O ideal, para Freud, seria um equilíbrio entre a realidade psíquica do
homem e as exigências da vida em sociedade.
Nunca se poderá eliminar a agressividade original do ser humano, mas seus efeitos negativos poderão ser atenuados pela
abolição da escassez, por meio da ciência e da técnica, e pelo fim da "sobre-repressão", modificando as relações de
propriedade que beneficiam a minoria em detrimento da maioria.
Com isso, poderão se criar condições para a formação de personalidades autônomas, das quais depende, em última análise, a
capacidade de arbitrar os conflitos entre a pulsão agressiva e a sociedade.
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Cada vez mais a autonomia econômica é sabotada por um padrão de distribuição de renda que gera a miséria de massa; a
autonomia política, fraudada no passado por regimes ditatoriais, se torna impermeável a uma verdadeira participação popular,
o que provoca a anomia e a alienação; e a autonomia intelectual é esvaziada por graves déficits educacionais ou pervertida
por processos abrangentes de ideologização. Diante disso, o que fazer? Freud fala na mobilização de Eros como contrapeso
para a pulsão destrutiva, Tânatos, reforçando os vínculos de identificação entre os membros de uma comunidade. Mas o
preço dessa solução seria alto.
Consequentemente, é preciso reforçar antes de mais nada a autonomia econômica, eliminando a pobreza intolerável em que
vive a maioria da população; a autonomia política, por uma reforma que permita a participação efetiva no processo político,
transformando assim um sistema jurídico-institucional abstrato em coisa de todos, em lugar para o exercício da cidadania, em
produto da ação autodeterminada de cada indivíduo; e a autonomia intelectual, a capacidade de pensar por si mesmo, o que
implica um sistema pedagógico capaz de educar para a liberdade e um sistema de comunicação de massas livre da violência
eletrônica.
Resta, evidentemente, a violência suprema, a guerra, pois não existe até hoje nenhuma instância que exerça o monopólio da
violência internacional, como os Estados nacionais exercem o monopólio da violência interna. Além disso, como na era da
globalização as principais pressões que lesam a autonomia humana vêm do exterior, é lícito perguntar se podemos eliminar a
violência ilegítima enquanto não acedermos a uma democracia mundial.
Se é verdade que a violência social nos impede de administrar racionalmente nosso potencial de violência psíquica, temos
que imaginar, no final, uma quarta cena, depois da cena infantil de Prudêncio sendo cavalgado, da cena adulta de Prudêncio
açoitando o escravo e da cena alegórica de Romualdo ingerindo tártaro. Nessa quarta cena, Prudêncio dá-se conta do caráter
substitutivo da violência que exerce contra o escravo e ergue o chicote contra o verdadeiro objeto de sua agressividade, Brás
Cubas.
Sem dúvida, essa não pode ser a última palavra. Agredir Brás Cubas não bastaria para transformar Prudêncio em Espártaco.
A solução correta requer que Prudêncio alcance uma verdadeira autonomia, que não se esgote em atos de vingança pessoal e
o leve a se revoltar contra a própria ordem escravocrata.
Mas a história demonstrou que nem sempre é possível distinguir entre as estruturas da violência e seus suportes subjetivos,
aqueles indivíduos que, segundo Marx, seriam meros "Charaktermasken", personagens inconscientes de um drama que eles
não escreveram. Em certos países, em que todas as vias consensuais foram barradas, a contraviolência em si, sem grandes
distinções teóricas, aparece como uma "ultima ratio", a única via para uma ordem não-violenta.
Esperemos que os jagunços que assassinam sem-terra, os latifundiários que massacram índios e os fascistas que metralham
crianças não acabem incluindo o Brasil entre esses países.

* Sergio Paulo Rouanet é ensaísta e professor visitante na pós-graduação em sociologia na Universidade de Brasília. É
autor de "As Razões do Iluminismo" e "Mal-Estar na Modernidade" (Companhia das Letras).

TEXTO VI - Psicanálise da criminalidade brasileira: ricos e pobres

*Hélio Peregrino
(Jornal "Folha de São Paulo", Folhetim, 07 de outubro de 1984)

(Observação: este texto é de 1984. Por isto está defasado em relação a alguns fatos. Tendo em vista que se pretende usá-lo para as aulas
de filosofia optou-se por enxugá-lo.)

O velho presidente Washington Luiz, derrubado pela Revolução de 30, costumava dizer, do alto de sua prosápia
conservadora, que a questão social é um caso de polícia.
Da década de 20 até hoje, passaram-se cerca de 60 anos. Neste longo prazo, um número crescente de brasileiros adquiriu
ferramentas intelectuais e críticas para desmoralizar tão insólito, retrógrado - e tosco - aforismo.
Ocorre, não obstante, que há brasileiros que, ainda hoje, acreditam nele..........
A definição do falecido presidente me vem à memória na medida que começo a pensar o problema da criminalidade e sua
articulação com o aparelho repressivo do Estado. A criminalidade, fora de qualquer dúvida, é uma questão social, ou melhor:
faz parte íntima e constitutiva da questão social. Dizer-se que ela é apenas um caso de polícia é tão obtuso, estúpido e
retrógrado quanto afirmar que a questão social é um caso de polícia.
A bem da clareza, é necessário distinguir entre os conceitos de crime e criminalidade. O crime está para a criminalidade
assim como a doença isolada está para a endemia - ou a epidemia. Por melhores - e mais avançados - que sejam os recursos
da medicina, haverá sempre doenças e doentes, embora isto não signifique a sobrevivência, para sempre, das endemias e
epidemias.

Expulsos do paraíso
O crime é uma possibilidade constitutiva e inarredável do ser da existência humana. Sempre haverá crime no mundo, porque
o homem é, em seu centro, indeterminação e liberdade. Por termos dado o salto da natureza para a cultura, fomos expulsos do
Paraíso, perdemos o mapa da mina, rompemos com a Lei Cósmica e com a formidável relojoaria que ela preside - e põe em
marcha.
O animal, que nasce feito e perfeito, e ainda está no Paraíso, tem a seu serviço a memória imemorial dos instintos, que o
costuram ao Cosmo e o transformam num servidor infalível da Lei. Nós, humanos, por termos nascido livres e
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indeterminados, conquistamos o amargo privilégio da errância, do erro, e de sua crispação exacerbada e desesperada: o
crime. O animal, por nascer feito, não procura - acha -, ao passo que o ser humano tem que buscar-se, para achar-se e
inventar-se. E porque temos que inventar-nos, na medida que somos livres, é que corremos o risco do extravio, da
transgressão - e do crime.
Não creio que a organização social, por mais perfeita e fraterna que venha a tornar-se, por mais que chegue a encarnar as
utopias mais altas, traga consigo a possibilidade de erradicar totalmente o crime do coração do homem. Já a criminalidade
constitui outro problema. Ela é expressão e conseqüência de uma patologia social, isto é, constitui sintoma desta patologia. E,
através de sua intensidade, nos será permitido, com sensível e infalível certeza, aferirmos do grau de perturbação, dilaceração
e desordem da vida social.
Um sintoma é sempre conseqüência - e não causa - de doença, embora possa vir a tornar-se causa de novos efeitos, ou de
novos sintomas. Nesta medida, o combate ao sintoma não garante, de forma alguma, a remoção ou erradicação das causas da
doença. Muito ao contrário: o encobrimento ou o abafamento de um sintoma pode gerar a perigosa ilusão de que a moléstia
tenha sido erradicada. Ou ainda; a luta exclusiva contra o sintoma pode criar a enganosa - e também perigosa - convicção de
que se está a combater a doença, quando, em verdade, estamos a favorecê-la e a permitir o seu agravamento e expansão.
A propósito, lembro-me de uma história exemplar, ocorrida na cidade mineira de Nova Lima, por volta dos anos 30. Em
Nova Lima, existe uma importante mina de ouro - a mina de Morro Velho - que, àquela época, vivia o seu fastígio, e era
propriedade de uma companhia inglesa. Os operários, nas entranhas da terra, perfuravam a rocha com suas brocas e picaretas
e, desta forma, respiravam nas galerias fundas a poeira de pedra que o trabalho levantava.
Sem nenhuma proteção, ao fim de algum tempo, os mineiros, na sua quase totalidade, contraíam a silicose, causada pelo
depósito do pó de pedra em seus pulmões. A silicose, além de encurtar a vida e a capacidade de trabalho, provoca também
uma tosse crônica, oca e ressoante, capaz de denunciar - à distância - a moléstia que lhe dá origem.
Nas noites de Nova Lima, a cidade, quando buscava repouso, era sacudida e inquietada por uma trovoada surda e cava que,
nascendo dos casebres operários, rolava em ondas recorrentes até às fraldas das montanhas em torno. Era a grande tosse dos
pobres, sintoma e denúncia eloqüente da silicose que os roía. Os ingleses, perturbados em seu sono e em sua boa consciência,
ao invés de adotarem medidas hábeis para que a silicose cessasse, resolveram enfrentar o problema pelo exclusivo ataque ao
sintoma. Montaram em Nova Lima uma fábrica de xarope contra a tosse que, ao mesmo tempo, produzia para consumo dos
colonizadores matéria-prima para refrigerantes não encontrados em nosso país.
A fábrica andou de vento em popa, produzindo tonéis e tonéis de xarope, vendido a preço módico, mas não tão modesto que
impedisse uma pequena margem de lucro, por unidade vendida. Os ingleses, dessa forma, uniram o útil ao agradável. O
abrandamento da grande trovoada brônquica foi transformada em fonte de renda, ao mesmo tempo que devolvia, aos súditos
de sua Majestade Britânica, a boa consciência e a possibilidade de um sono reparador. A silicose, intocada, trabalhava em
silêncio.
Esse modelo tragicômico pode ser aplicado, com estrita literalidade, a qualquer pretensão de combater a criminalidade
desatendida de sua condição de sintoma e, portanto, desenraizada das causas sociais que a produzem e alimentam.
Criminalidade é efeito, é forma perversa de protesto, gerada por uma patologia social que a antecede e que é, também ela,
perversa. A criminalidade está para a patologia social assim como a tosse convulsiva está para a silicose.

Cegueira perigosa
É claro que a criminalidade, enquanto sintoma, tem que ser adequadamente atendida por medidas policiais cabíveis, tanto
quanto há que minorar, através de remédio próprio, a tosse do silicótico. Mas que não se fique nisto, já que o combate ao
efeito não remove - nem resolve - a causa que o produz. Ao contrário, a luta pura e simples contra o efeito pode tornar-se
danosa e perversa, uma vez que, destruindo a sua função alertadora e denunciadora, provoca uma cegueira perigosa, a serviço
do mal. A erradicação da criminalidade, através de medidas puramente sintomáticas, é um procedimento ideológico destinado
a encobrir a responsabilidade social na produção dessa mesma criminalidade.
É óbvia, do ponto-de-vista intuitivo, a correlação entre criminalidade e crise social. Em nosso País, a onda de crimes, nas
grandes cidades, é solarmente proporcional ao aprofundamento da crise. Este paralelo pode ser matematicamente desenhado,
através de curvas estatísticas que lhe definam o perfil.
Entretanto, cumpre considerar que nem toda crise social gera criminalidade. Veja-se, a propósito, o exemplo da guerra do
Vietnã, ainda viva na memória de todos. O Vietnã do Norte e o Vietcong suportaram, da parte dos invasores americanos, uma
pressão militar arrasadora, cujos efeitos na vida social do país foram, igualmente, arrazadores. Não obstante, o Vietnã do
Norte manteve altíssimo os eu moral guerreiro e patriótico, a ponto de levar à derrota o invasor imperialista. Não houve lá
nem criminalidade, nem desordem, nem desespero. O povo, unido pela causa da libertação nacional, soube preservar, contra
todos os sofrimentos, a solidariedade, a fraternidade, o espírito de luta - e a certeza na vitória.
Já no Vietnã do Sul, dirigido por um Governo títere e mercenário, as coisas se passaram ao revés. O povo, maciçamente,
aderiu à guerra de guerrilha, contra os exércitos invasores. Restaram, a favor destes, os corruptos, os traidores, os
especuladores, os proxenetas, os rufiões e vendilhões de todo tipo. A criminalidade atingiu níveis espantosos: o tráfico de
drogas, o mercado negro, a prostituição, o assalto, o estupro, o homicídio passaram a cancerizar a vida social até à derrota
militar - e ao desastre final.
A criminalidade, portanto, cresce a partir de um certo tipo de crise social, ou melhor: ela é expressão e conseqüência de uma
patologia social suficientemente grave para gerá-la. Uma crise social se torna apta a fomentar a criminalidade quando chega a
lesar, por apodrecimento grave, os valores sociais capazes de promover uma identificação agregadora entre os membros de
uma comunidade.
120
A vida social, para ser respeitável e suportável, precisa estar irrigada e vivificada por princípios mínimos de justiça, de
equidade, de legitimidade do poder político, de respeito pelo trabalho e pela pessoa humana. Esse elenco de valores, acolhido
por todos e cada um, irá constituir o Ideal de Eu de um cultura determinada. O Ideal de eu, referência identificatória comum
aos membros de um processo civilizatório, constituirá o cimento capaz de promover a integração - e a coesão - do tecido
social.
Quando falta esse cimento; quando apodrece o elenco de valores que constitui o Ideal do Eu de uma sociedade; quando a
injustiça impera e a iniquidade governa; quando a corrupção pulula e a impunidade se instala; quando a miséria de milhões se
defronta com a aviltante ostentação de pouquíssimos; quando ocorre tudo isto que - no presente momento - define e
estigmatiza a sociedade brasileira, então a criminalidade desfralda a sua bandeira perversa, e se torna a denúncia de uma
estrutura social também perversa.
A articulação entre criminalidade e o tipo de crise social que acabamos de descrever, é passível de elucidação científica
rigorosa, a partir do pensamento psicanalítico. Para tanto, é necessário fixar alguns dos conceitos essenciais à ciência
inventada por Freud.
Comecemos com o Complexo de Édipo, talvez a mais importante - e fecunda - das descobertas freudianas.

O Complexo de Édipo

O Complexo de Édipo é, para o criador da psicanálise, a principal articulação estruturante do psiquismo humano.
Ao mesmo tempo, é fonte e origem das relações elementares de parentesco e das instituições sociais, de caráter leigo ou
religioso. É na constelação dos conflitos edípicos que a criança se defronta, de maneira crucial e inaugural, com as figuras da
Lei, da interdição, da transgressão, da culpa e do temor ao castigo, advindo do poder de polícia e do papel de juiz atribuídos
ao Pai.
Vamos relatar, de um ponto de vista descritivo, o Complexo de Édipo, segundo o pensamento de Freud. A exposição que
faremos se refere exclusivamente ao Édipo masculino, na sua forma direta, ou positiva. Este caminho implica, sem dúvida,
uma simplificação. Através dela, entretanto, ganharemos uma simplicidade e uma clareza elucidativa capazes de favorecer a
eficácia da tese que iremos expor.
Par Freud, entre os três e os cinco anos, o menino se encontra na fase genital infantil - ou fálica - de seu desenvolvimento
psicossexual. Nessa idade, tendo já o pênis como seu principal órgão de prazer, apaixona-se pela mãe, desejando-a
sexualmente, ao mesmo tempo que odeia o pai e imagina a sua destruição, já que este é, segundos sua fantasia, o rival que lhe
barra o caminho do incesto.
A vicissitude edípica, cheia de som e fúria, é extraordinariamente penosa, pelas culpas que suscita e pelos temores que
desperta. A relação do menino com o pai, nessa época, é marcada por forte ambivalência. O menino odeia o pai e quer matá-
lo, mas, ao mesmo tempo, o ama, admira e respeita. Concomitantemente, teme, com todo o seu corpo, a retaliação paterna,
por ele imaginada.
O Édipo, representando a gramática pela qual o desejo se estrutura, de modo a integrar-se no circuito de intercâmbio social,
significa também uma etapa decisiva no processo de separação entre a criança e a mãe. Esta separação é absolutamente
indispensável, caso contrário a criança jamais chegará a superar sua dependência infantil. A construção desse afastamento se
inicia com o corte do cordão umbilical. Depois, chega a época traumática do desmame. A seguir, são impostas as regras de
controle esfincteriano e de higiene, ligadas à excreção. Por fim, vem o Édipo e a interdição do incesto. A partir daí, o menino
perde profundamente a mãe, enquanto objeto sexual, e se credencia, ao grave preço desta perda, a ganhar os caminhos do
mundo e o amor futuro das outras mulheres.
O medo da castração

De que maneira, segundo Freud, se encaminha, resolutivamente, a paixão edípico-incestuosa do menino pela mãe? Ele tem
que, sem apelo, abrir mão de seu amor interditado e, por todos os motivos, votado ao fracasso. E o faz, originalmente, movido
pelo temor. Em sua fantasia inconsciente, o menino passa a imaginar que o pai possa vir a castrá-lo, como punição pelos seus
desejos incestuosos e parricidas. Ao complexo de Édipo se articula, agora, o complexo de castração, decisivo para o
encaminhamento resolutivo do conflito edípico.
O menino, na fase genital infantil - ou fálica - de sua evolução libidinosa, confere ao pênis um extraordinário valor narcísico,
uma vez que este já se constitui como órgão capaz de proporcionar-lhe o maior prazer. A ameaça de perdê-lo, joga-o no
temor - e no tremor. É pelo medo da castração que o menino começa a desistir de sua paixão incestuosa, iniciando o processo
pelo qual acabará por identificar-se com a Lei do Pai, ou Lei da Cultura. Esta identificação constitui um passo crucial na
evolução psíquica e social da criança. Em torno dela se constelarão as regras, ditames, comportamentos e valores que
integram os ideários e os ideais de uma cultura determinada.
A resolução do Édipo é condição indispensável para a boa inserção da criança no circuito de intercâmbio social.
Por que caminhos, segundo Freud, constrói o menino, em sua mente, o temor de que o pai possa vir a castrá-lo? À época do
conflito edípico, o menino, em plena fase fálica, descobre a diferença entre os sexos. Verifica, com assombro, que a menina -
e a mulher - não possuem o precioso e valorizado órgão. Elabora, então, a teoria de que a menina é um menino castrado, e o é
por punição do pai. Passa a temer - com grande angústia - que a mesma sorte lhe esteja reservada. E, para fugir dela, começa
a abrir mão de sua paixão incestuosa.
O temor é, pois, a mola mestra originária que induz o menino a aceitar a Lei do Pai. Aqui, como na teologia cristã, o temor é
o fundamento de toda virtude. Mas, se o temor da castração é necessário para a resolução do Édipo, não o é, contudo, em grau
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suficiente. A Lei do Pai, inscrita na espessura do desejo por obra exclusiva do temor, deixa de ser a Lei do Pai e passa a
ser a lei do cão.
Nenhuma lei funda sua legitimidade a partir do temor puro e simples. Ao temor de Deus, na teologia, segue-se o amor a
Deus, que define a essência da relação entre o homem e a divindade.
No caso da Lei da Cultura, ocorre a mesma coisa. O temor arranca o menino de sua paixão incestuosa, mas é o amor do pai
que irá curar essa ferida, de modo a torná-la metabolizável - e ultrapassável. O menino, no Édipo, esbarra com a potência de
interdição da lei e, nesta medida, tem que renunciar á onipotência do seu desejo, o que corresponde a uma terrível injúria
narcísica. Ele tem que abandonar o princípio do prazer e aceitar o princípio da realidade, pelo qual vai inserir-se no
circuito de intercâmbio social.
Essa grave renúncia, entretanto, não se faz em pura perda. A Lei do Pai, fora de dúvida, exige do menino um sacrifício
portentoso. Mas, uma vez integrada, abre para o seu desenvolvimento perspectivas cruciais e fundadoras. A Lei do Pai
implica uma ação de troca e de intercâmbio amoroso. Ela pede - mas doa. Constringe, mas liberta. Impõe ao desejo uma
gramática mas cria a possibilidade do livre discurso amoroso.

Deveres e direitos

A lei da Cultura é, em sua essência, um pacto, um toma-lá, dá-cá, um acordo pelo qual a criança é introduzida como aspirante
a sócia da sociedade humana. Ela adquire, pelo Édipo, um lugar na estrutura de parentesco, ganha nome e sobrenome, tem
acesso à ordem do simbólico e, portanto, à linguagem, liberta-se da excessiva dependência à mãe e se torna capaz de iniciar
sua aventura humana, como inventora dos caminhos do seu desejo. O Édipo é um crivo crucial. Através de sua estrutura se
constitui o modelo básico de intercâmbio entre o ser humano e a sociedade, pela definição de deveres e direitos.
A resolução do Édipo hominiza - e humaniza. A renúncia ao incesto implica, também, a renúncia aos impulsos criminais e
anti-sociais. Aceito as regras do jogo da sociedade em que vivo. E passo a jogá-lo.
Transposto o complexo de Édipo, a criança entra na fase de latência sexual, e novas tarefas - e exigências - a esperam. Por
ditame da sociedade, através da família, começa a adquirir, por meio do aprendizado, uma competência que lhe permitirá, no
futuro, por mediação do trabalho, tornar-se sócia plena da sociedade humana. A aquisição dessa competência é tarefa longa e
árdua. Ela exige da criança sacrifícios e renúncias importantes. Aprender a trabalhar não significa apenas a aquisição de uma
técnica. Este aprendizado define toda uma postura existencial, um ato de esperança e de confiança no futuro.
A capacidade de trabalhar, em qualquer nível, é uma exigência feita pela sociedade a todos os seus membros. Para atendê-la,
a criança, mais uma vez, tem que renunciar ao princípio do prazer, acatando - e praticando - o princípio da realidade.
Repete-se aqui, ao nível das tarefas, obrigações e deveres sociais, a mesma exigência feita à criança com relação aos seus
impulsos edípicos. Para renunciar ao incesto e ao parricídio, a criança teve que abrir mão da onipotência de seu desejo. Este
foi o batismo de fogo que a fez ingressar como aspirante a sócia da sociedade humana.
Através do aprendizado escolar, profissional e humano, a criança também tem que abrir mão dessa onipotência. Os dois
processos - o Édipo e as subsequentes tarefas de socialização - representam situações estruturalmente análogas. Se o Édipo é
o batismo, o trabalho é a crisma pela qual o ser humano se torna sócio da sociedade humana.
Em ambas as situações, as renúncias exigidas são muito graves. Trabalhar é desistir da onipotência do desejo. É adequar-se
ao princípio da realidade. É aceitar os princípios de autoridade, hierarquia e disciplina. É poder conviver, cooperativamente,
com os outros. É, afinal, cumprir uma exigência imperativa da sociedade, cujo atendimento deve gerar, por justiça, direitos
inalienáveis.
A partir do trabalho, exigido pela sociedade, estabelece-se um pacto social que, à semelhança do pacto edípico, tem que ter
mão dupla. A competência para o trabalho exige um longo e doloroso aprendizado. Em troca deste sacrifício, quem trabalha
adquire os agrado direito de receber, como paga, o mínimo necessário à preservação de sua subsistência e dignidade - e à de
sua família. O pacto social se legitima - e se cumpre - através desse intercâmbio. Sem ele, o pacto se torna viciado e se
corrompe, com graves conseqüências.
Suponhamos que pacto social não seja cumprido, por parte da sociedade. O trabalhador, de qualquer categoria, não é
recompensado pelo longo esforço que fez. Apesar de sua competência, tem as mãos vazias. Não tem emprego ou, se o tem,
ganha um salário que não lhe permite viver com dignidade. O aviltamento do seu trabalho é a mais grave ofensa social que
possa ser feita a um homem. Ela o atinge na essência mesma de sua condição de pessoa. Ela ofende o seu senso de equidade e
de justiça. Ela o frauda na sua esperança - e na sua fé no mundo. Ela semeia em seu coração a descrença e a revolta.
O desrespeito da sociedade pelo trabalho - e pelos direitos elementares do trabalhador - pode levá-lo a uma ruptura com o
pacto social. Desprezado, aviltado, degradado, o trabalhador se nega ao pacto. Rompe com ele, questiona-lhe a estrutura,
repudia a validade e a justiça dos sacrifícios que, em seu nome, lhe foram exigidos. O rompimento do pacto social pelo
trabalhador, em resposta a uma prévia ruptura da sociedade, pode vir a ter conseqüências catastróficas. Não nos esqueçamos
que o pacto social - e o pacto edípico - se articulam íntima e indissoluvelmente.
O processo civilizatório, em seu conjunto, obedece a uma mesma linha estratégica. Ela exige progressivas e dolorosas
renúncias, mas, em troca, fica obrigado, para legitimar-se a criar direitos e vantagens correspondentes.
Suponhamos que haja um rompimento grave da relação de mutualidade que sustenta - e legitima - o pacto social. Essa
ruptura, fraudadora e conspurcadora da dignidade humana, pode levar ao desespero, à cólera, à revolta. O trabalhador tenderá
a repelir o pacto social e os sacrifícios que exige. Tal repulsa, por outro lado, em virtude da solidariedade que existe entre o
pacto social e o pacto edípico, pode vir, por retração, a provocar uma ruptura do pacto edípico, ao nível da realidade
intrapsíquica. Esse efeito se tornará tanto mais provável quanto mais existir, numa sociedade determinada, além do
desrespeito ao trabalho, um clima de apodrecimento dos valores que poderiam cimentar a coesão social.
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O rompimento com a Lei do Pai - ou Lei da Cultura -, através da rejeição do pacto edípico, produz efeitos catastróficos na
mente e na conduta do indivíduo, e corresponde a um ato de parricídio. O Édipo é uma gramática pela qual o desejo e a
agressão se tornam metabolizáveis e entram no circuito de intercâmbio social. O Édipo implica, necessariamente, renúncia e
recalque de pulsões anti-sociais e criminais, não utilizáveis pelo processo civilizatório.
Com a ruptura do pacto edípico, ocorre o retorno do recalcado, para usarmos a expressão freudiana. A barreira do recalque,
rompida, liberta o enxurro dos impulsos antes contidos: predação, homicídio, incesto, estupro, roubo e violência de todo tipo
passam a ter livre curso na conduta. Estão implantadas as condições extra e intrapsíquicas para uma epidemia de
criminalidade, como sintoma de patologia social.

Capitalismo selvagem

Esse é o modelo teórico. Falemos dele na prática social brasileira. Para tanto, falemos de política, sem a qual essa prática não
se torna inteligível. Pelo golpe de 64, os militares brasileiros ocuparam o poder político e, a pretexto de modernizar o
capitalismo nacional, fizeram sem consulta à nação uma opção multinacionalista e imperialista, contra os interesses
populares.
O modelo econômico imposto ao país tornou-se conhecido pelo nome de capitalismo selvagem. Tal modelo, excludente e
concentrador da renda, criou uma estrutura social em que o desnível entre os que tudo têm e os que nada possuem é dos mais
altos do mundo. Para chegar a esse resultado, o poder militar decretou, no país, um arrocho salarial inédito na história
brasileira. Este arrocho, para tornar-se exeqüível, exigiu um grau de repressão também inédito em nossa história.
As torturas e os crimes contra a humanidade, praticados pelos organismos repressivos militares, não exprimem - obviamente -
uma amor gratuito ao sadismo e à violência. Tais recursos constituíram um desapiedado instrumento da luta de classes para
impor aos trabalhadores condições desumanas de vida e de trabalho. Os sindicatos e as Ligas Camponesas tiveram quebrados
os seus ossos, em nome da luta anticomunista e da Lei de Segurança Nacional.
Ao mesmo tempo que espocavam as vistosas cifras oficiais com que se adornava o milagre brasileiro, cresciam os índices de
mortalidade infantil e de fome do povo. O capitalismo selvagem brasileiro foi - e é - um regime genocida e infanticida, e o
pacto social que impõe ao país clama aos céus por justiça. A paranóia do Brasil grande, vicejando em clima de absoluto
arbítrio e impunidade, foi o artefato ideológico que levou aos empréstimos faraônicos, aplicados em obras de prioridade
duvidosa e também faraônicas, acompanhadas, por sua vez, de um grau de corrupção também faraônico.
O capitalismo selvagem contraiu uma dívida externa insolúvel e arruinou o povo, espoliando-o até à pobreza absoluta.
Entregou nossa soberania ao FMI. Criou no país a recessão e o desemprego, gerando desespero e revolta nas grandes massas
deserdadas. O arrocho salarial, por sua vez, continua. O Brasil é hoje, no mundo, um espaço privilegiado de miséria, de fome,
de injustiça social e de iniquidade. O Nordeste é das regiões mais pobres e desamparadas do Planeta.
................ Dinheiro gera dinheiro, para os que o possuem, ao passo que o trabalho cria a pobreza para os que trabalham -
quando conseguem trabalhar. E, para coroar tudo, o poder arbitrário, .......... a impunidade triunfante, a cupidez sem limite, o
consumismo sem freio, tudo isto, de um só lado - o dos donos da vida. Do outro lado, o rosto anônimo da miséria: .... milhões
de brasileiros condenados à penúria absoluta.

Guerra Civil

A crise brasileira, tal como agora a descrevemos, corresponde minuciosa e cuidadosamente ao tipo de crise capaz de produzir
o sintoma da criminalidade. Assistimos, em nossa terra, provocada pelo capitalismo selvagem, a uma guerra civil crônica,
cuja assustadora violência nos enche de pasmo - e pânico.
A criminalidade dos miseráveis, dos famintos, dos desesperados, dos revoltados, exprime uma forma perversa de protesto
social, que não conduz a nada e, sem dúvida, piora tudo. O delinqüente, ao cometer o seu crime, não pretende nenhuma
transformação da sociedade. Ao contrário, busca identificar-se imaginariamente com o seu inimigo de classe, copiando-lhe
caricatamente os defeitos e deformidades. Quando um ladrão assalta um apartamento na Vieira souto, não comete ato de
desapropriação socialista. Na verdade, ele quer ocupar o lugar do milionário, usurpando-lhe o status e os privilégios.
Por outro lado, se a delinqüência e a criminalidade são formas perversas de protesto social, as estruturas de dominação do
capitalismo selvagem também são formas criminosas de relacionamento social. "Mais grave do que assaltar um banco é
fundar um banco" - costumava dizer Lenin, com o seu evidente exagero bolchevique. A piada do velho revolucionário pode,
contudo, induzir-nos a pensar. O assalto a um banco é, obviamente, um ato delinqüente, e quem o pratica se coloca fora da
lei, exposto aos seus rigores. Já o dono do banco, quando pratica a usura, cobrando juros escorchantes, capazes de paralisar a
produção, também comete ato criminoso, sem contudo pagar o mesmo preço do assaltante.
A delinqüência do pobre o coloca fora da lei e o expõe à punição, tantas vezes vingativa e desumana. Com o rico, ocorre
quase sempre o contrário. Ele começa por corromper a lei, pondo-a do seu lado. Com isto, comprar a impunidade e conquista,
com a pecúnia, o poder e a glória. Ao mesmo tempo, usa a lei pervertida para combate o protesto criminoso do pobre. É nesse
nível, duplamente perverso, que decorre a repressão policial pura e simples à criminalidade, considerada apenas como
sintoma e não como efeito de uma grave patologia social. A serem assim avaliadas as coisas, a violência da criminalidade
passará a exigir, para seu combate, a violência policial pura e simples. Chegaremos à aprovação da pena capital e à
condecoração, por merecimento, do Esquadrão da Morte.
Não há dúvida de que a criminalidade, embora corretamente avaliada como sintoma, nem por isto pode dispensar o
tratamento policial conveniente. Há que reprimir, com severidade, os atos anti-sociais de delinqüência, de pobres e ricos. Há
que aumentar a eficiência material e moral do aparelho de polícia. Há que amar e praticar a verdadeira justiça.
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Até agora, temos estudado o protesto social dos oprimidos sob a forma da criminalidade e da delinqüência. Isto ocorre,
como vimos, quando a ruptura com o pacto social provoca, por retroação, a ruptura com o pacto edípico, havendo o retorno
do recalcado. Esta, entretanto, não é - felizmente! - a única forma possível de protesto dos oprimidos, na medida que o pacto
social venha a tornar-se intolerável. É viável romper-se com o pacto social sem que isto implique a ruptura com a Lei do Pai -
o ou Lei da Cultura. Mais ainda: esse rompimento pode fazer-se exatamente em nome do elenco de valores que constituem o
Ideal de Eu, cimento identificatório integrador, intimamente ligado à função paterna.
Em tal caso, a ruptura com o pacto social perverso, ao invés de provocar a ruptura do pacto edípico, vai reforçá-lo e
confirmá-lo. A luta contra a sociedade se fará, não através da criminalidade, mas em nome de altos valores reverenciados pela
cultura: a liberdade, a igualdade, a fraternidade, a dignidade do trabalho, o pleno respeito à pessoa humana e aos seus direitos
fundamentais.
......... É por aí, é por esse leito, é no rumo da luta que se propõe a construir o futuro do povo, é por aí que se poderá enfrentar,
radicalmente, o problema da criminalidade, na medida que suas origens sejam expostas, questionadas e atacadas - de maneira
construtiva. A criminalidade é uma forma enlouquecida de protesto. É preciso que a indignação e a inconformidade do povo
possam formular-se em termos políticos, de modo a torná-la desnecessária e, portanto, verdadeiramente ultrapassável.
Ninguém duvida que a criminalidade, no momento, pelo caráter que adquiriu, de guerra civil não declarada, está a exigir um
tratamento sintomático, criterioso e enérgico. É preciso mobilizar a máquina da polícia, equipando-a, moralizando-a e
humanizando-a.
............. É preciso derrotar o arbítrio, a corrupção, a indignidade, a incompetência. É preciso acabar com a recessão, o
desemprego e ao arrocho salarial que matam o povo de fome. É preciso matar a fome do povo.
E, por fim, embora não em último lugar, é preciso ter vergonha e amor à Pátria. Quando isto ocorrer, a patologia social e seu
efeito - a criminalidade - estarão debelados.

* Hélio Pellegrino é psiquiatra, psicanalista e escritor.


(Este trabalho foi apresentado no simpósio "o Rio conta o Crime", promovido pelas Organizações Globo)

Texto VII - Freud e a questão do instinto de agressividade no ser humano


João Rêgo
(Fonte: http://www.fundaj.gov.br/docs/inpso/cpoli/JRego/TextosCPolitica/Hobfreud/hbintr.htm)

O ser humano, diferentemente do que a moral cristã prega - e não percebe-se em Freud nenhuma crítica à moral, apenas uma
incapacidade desta em reconhecer certas verdades -, Freud joga as suas luzes sobre o lado negativo desta natureza humana :

"Os homens não são criaturas gentis que desejam ser amadas e que, no máximo, podem defender-se quando atacadas; pelo
contrário, são criaturas entre cujos dotes pulsionais deve-se levar em conta uma poderosa quota de agressividade. Em resultado
disso, o seu próximo é, para eles, não apenas um ajudante potencial ou um objeto sexual, mas também alguém que os tenta a
satisfazer sobre ele a sua agressividade, a explorar sua capacidade de trabalho sem compensação, utilizá-lo sexualmente sem o
seu consentimento, apoderar-se de suas posses, humilhá-lo, causar-lhe sofrimento, torturá-lo e matá-lo." (Mal Estar na
Civilização, p.133).

É o controle e a regulação desta agressividade que tem sido o maior desafio da civilização. A religião, a ética, são resultados
destes esforços coibitivos sobre a agressividade humana. Observando Freud que, apesar de séculos de repressão à
agressividade "estes empenhos da civilização até hoje não conseguiram muito", e reconhecendo a agressividade como uma
característica constitutiva e importante da natureza humana ele faz, então, de forma quase profética, uma crítica às
experiências do socialismo implantado na União Soviética, principalmente pelo fato do marxismo identificar na propriedade
privada a causa de todos os males sociais e, uma vez esta sendo abolida a humanidade estabeleceria um novo e
qualitativamente superior patamar de felicidade.

"Não estou interessado em nenhuma crítica econômica do sistema comunista; não posso investigar se a abolição da propriedade
privada é conveniente ou vantajosa. Mas sou capaz de reconhecer que as premissas psicológicas em que o sistema se baseia são
uma ilusão insustentável.....A agressividade não foi criada pela propriedade. Reinou quase sem limites nos tempos primitivos,
quando a propriedade era ainda muito escassa, e já se apresenta no quarto das crianças, quase antes que a propriedade tenha
abandonado sua forma anal e primária; constitui a base de toda relação de afeto e amor entre pessoas. "(Mal Estar na
Civilização, p.135)

Avança com sua lógica destruidora confirmando que o amor reinante em algumas comunidades só é possível se o grupo
identificar algum grupo externo sobre o qual possa descarregar esta agressividade. Assim, para Freud, a civilização se funda a
medida que constrói a capacidade de regular, impondo severas restrições, a dois impulsos estruturais da vida humana: a
sexualidade e a agressividade. São estes dois impulsos que movem o ser humano na sua busca incessante em realizar o
programa do princípio do prazer, e que jamais será possível realizar, pois a vida em sociedade, resultado do desenvolvimento
da civilização, só é possível graças às restrições reguladoras sobre estes impulsos.
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Reconhece, nestas restrições, a sexualidade e a agressividade, como um enorme sacrifício imposto ao ser humano, uma
vez que tudo isto vai de encontro ao princípio que move e impulsiona este para a vida, o princípio do prazer, daí se
explicando porque é difícil ser feliz nessa civilização.

"O homem civilizado trocou a parcela de suas possibilidades de felicidade por uma parcela de segurança": com esta frase
Freud resume bem o dilema do homem diante da civilização.

Fazendo uso da teoria psicanalítica, Freud aprofunda a compreensão da natureza humana e do seu dilema diante da
civilização, através do conceito de pulsão, teoria já desenvolvida por ele em trabalhos anteriores. Classificando-os em duas
categorias: "pulsão do ego" e "pulsões objetais" Freud tenta refletir sobre estas instâncias constitutivas do ser humano em
suas relações com a civilização.

Na verdade aqui reside uma original marca do pensamento freudiano: passar do microcosmo ao macrocosmo do ser humano
sem nenhuma descontinuidade, demonstrando um domínio intelectual sobre várias áreas do conhecimento humano,
utilizando-o com sensibilidade e ousadia admirável.

Já tendo apresentado a pulsão sexual, classificada como responsável pela permanente tarefa de unir a vida orgânica, o qual
ele chamou de Eros, Freud apresenta o que considera o antípoda à pulsão da sexualidade, que é a existência de uma pulsão de
morte a qual opera igualmente na vida orgânica, só que no sentido contrário ao de Eros, relacionando-se com este em um
permanente e incansável conflito.

Foi em sua obra Mais Além do Princípio do Prazer (FREUD: 1920) que, pela primeira vez apresentou a existência dessa
pulsão de morte na estruturas das coisas vivas. Neste texto do Mal-Estar..., Freud cita as suas descobertas registradas em
Muito Além do Princípio do Prazer:

"Partindo de especulações sobre o começo da vida e de paralelos biológicos concluí que, ao lado da pulsão para preservar a substância
viva e para reuni-la em unidades cada vez maiores, deveria haver outra pulsão, contrário àquele, buscando dissolver essas unidades e
conduzi-las de volta ao seu estado primevo e inorgânico. Isso eqüivalia a dizer que, assim como Eros, existia também uma pulsão de
morte. Os fenômenos da vida podiam ser explicados pela ação autodestruição concorrente, ou mutuamente oposta, dessas duas
pulsões. "(Mal Estar na Civilização, p.141)

Assim, a pulsão de morte poderia em algum momento se colocar a serviço de Eros projetando a sua agressividade para o
mundo exterior. Podendo também, uma vez que o mundo externo reprime a possibilidade de descarregar esta agressividade,
esta voltar-se para dentro do indivíduo em forma de "auto-destruição". Reconhece Freud que as duas pulsões se encontram
mescladas mutuamente e em proporções variadas, sendo de difícil reconhecimento.

São estas forças constitutivas do ser humano que têm movido, e movem, a humanidade ao longo do desenvolvimento de toda
a civilização. Para Freud, a luta e o conflito incessante destas duas forças poderosas da natureza humana tem sido o
verdadeiro motor da história.

Apresentando a sua cosmovisão sobre os mecanismos da natureza humana que movem e forjam o desenvolvimento da
civilização, tendo como motor principal deste processo de desenvolvimento, duas forças igualmente poderosas e antagônicas
- Eros e pulsão de morte -, cabendo a cada indivíduo, em seu relacionamento com o mundo externo, na medida do possível
domesticá-las. Freud situa que o progresso da civilização, impulsionado por estas relação dialética entre Eros e Tanatos, é
fundado em um delicado equilíbrio, no qual a síntese é o homem e sua civilização em um certo momento no tempo.

Na luta cultural entre o homem com suas pulsões e a civilização, Freud questiona qual o mecanismo utilizado pela última
para inibir a agressividade humana. É estudando a história do desenvolvimento do indivíduo que ele identifica um mecanismo
extremamente eficiente e inusitado: a agressividade é introjetada para o interior do sujeito, dirigida para o interior do próprio
Eu "é enviada de volta para o lugar de onde proveio".

Se institui dentro do Eu uma instância que Freud deu o nome de supereu, o qual atua sob a forma de consciência, como um
vigilante censor disposto a orientar a agressividade na forma de punição sobre o Eu. Se estabelece entre estas duas instâncias
uma tensão que foi denominada de "sentimento de culpa" e que demanda para o sujeito uma necessidade de punição.

"A civilização, portanto, consegue, dominar o perigoso desejo de agressão do indivíduo, enfraquecendo-o, desarmando-o e
estabelecendo no seu interior um agente para cuidar dele, como uma guarnição numa cidade conquistada." ( O Mal Estar na
Civilização, p.147)

Como esta instância faz parte da consciência, nada pode escapar ao seu conhecimento, atuando este como um atormentador
fiscal dos desejos e pulsões do Eu. Quando a vida em sua relação com o mundo externo está normal, sem distúrbios maiores,
o supereu não exerce o seu controle de forma tão intensa, entretanto quando por alguma adversidade externa o homem passa
a sofrer, este imediatamente busca em seu interior causas na sua pecaminosidade para explicar o sofrimento que vem de fora,
elevando as exigências da consciência e promovendo sua auto- punição.
125

Este tipo de comportamento é encontrado em vários povos, ao longo da história, onde atua de forma rigorosa a religião como
papel de mantenedor de um supereu social. Freud identifica este comportamento ao de um estágio infantil original da
consciência humana, que sobrevive lado a lado ao supereu já instituído no indivíduo. Graças a este sentimento primitivo
infantil, o destino é identificado com a figura paterna. Se as condições externas são hostis e causam sofrimento, a percepção é
que este ser supremo não o ama mais, merecendo sacrifícios para redimir os pecados que causaram tal infortúnio, e com isto
ser perdoado e ter de volta o amor deste pai simbólico.

Desta forma, o "sentimento de culpa" é composto por duas componentes; a primeira, que é originária do medo de uma
autoridade, que foi instituída com o processo civilizatório, representando a lei; e a segunda é originária do medo do supereu.
Enquanto que a autoridade exige a renúncia das satisfações das pulsões, uma vez que estes inviabilizariam o organização
social, o supereu é mais agudo em suas exigências. Além da renúncia às pulsões ele demanda do Eu punição, uma vez que os
desejos proibidos continuam existentes dentro do sujeito, impulsionados permanentemente pelo motor da vida humana : o
princípio do prazer.

Freud demonstra qual a relação entre a renúncia a pulsão e o "sentimento de culpa": inicialmente a renúncia a pulsão é
proveniente do medo de uma autoridade externa; já a severidade do supereu é uma representação desta autoridade externa, só
que com um agravante, enquanto que a renúncia a pulsão satisfaz a autoridade externa, ou pelo menos atenua o medo de
perder o amor desta autoridade, a renúncia instintiva não basta para o supereu uma vez que o desejo persiste, e este está sobre
a mira severa do supereu, pois ele é parte da consciência. Este mecanismo, identificado por Freud nas suas investigações
clínicas é causa de severas enfermidade psíquicas do indivíduo, inviabilizando qualitativamente a vida do mesmo.

"Isto representa uma grande desvantagem econômica na construção de uma supereu ou, como podemos dizer, na formação de
uma consciência. Aqui, a renúncia instintiva não possui mais um efeito completamente liberador; a continência virtuosa não é
mais recompensada com a certeza do amor. Uma ameaça de infelicidade externa - perda de amor e castigo por parte da autoridade
externa - foi permutada por uma permanente infelicidade interna pela tensão do 'sentimento de culpa'." (O Mal Estar na
Civilização, p.151)

A hipótese central do Mal-Estar..., a qual repousa no surgimento da civilização como uma função mediadora e restritiva sobre
as forças instintivas da natureza humana se desdobra em Freud, para a compreensão da formação da consciência humana.

Descrevendo as inter-relações entre Eu e Supereu, Freud identifica dois estágios fundadores da consciência humana: o
primeiro é a renúncia a pulsão devido ao medo da agressão externa, a autoridade, a lei; e o segundo momento é a organização
de uma autoridade interna, o supereu, e a renúncia da pulsão devido ao medo desta censura interna. Com relação ao supereu,
o Eu se submete a um estado de dominação que o projeta em uma situação onde a intenção de um desejo (originado para
atender a uma demanda instintiva) tem a mesma força, como geradora de "sentimento de culpa", da realização de uma ação
para atingir este mesmo desejo. Ação e intenção tem o mesmo valor na estrutura interna do Eu.

É com base no conceito de renúncia a pulsão que Freud apreende o momento do surgimento da consciência:

"Toda renúncia a pulsão torna-se agora fonte dinâmica de consciência, e cada nova renúncia aumenta a severidade e a intolerância
desta última. Se pudéssemos colocar isso mais em harmonia com o que já sabemos sobre a história da origem da consciência,
ficaríamos tentados a defender a afirmativa paradoxal de que a consciência é o resultado da renúncia pulsional, ou que a renúncia
pulsional (imposta a nós de fora) cria a consciência, a qual, então, exige mais renúncias pulsionais". (O Mal Estar na
Civilização, p.152)

Segue Freud, descrevendo através do conceito de identificação, como se organiza o supereu. Identifica que este se institui
através de um jogo dialético entre renúncia instintiva e formação de consciência, onde a autoridade externa tem a função de
dar origem ao processo. Na criança, observa Freud, se desenvolve uma quantidade considerável de agressividade contra a
autoridade, no momento em que ela é privada de satisfazer as suas primeiras satisfações instintivas (satisfações incestuosas,
uma vez que ela ainda experimenta uma relação fusional com a mãe).

Com a atuação dos "mecanismos familiares" ela se vê obrigada a renunciar à satisfação desta agressividade, encontrando uma
saída para esta situação economicamente difícil, do ponto de vista das forças instintivas. Ela se utiliza do recurso da
identificação com a autoridade, incorporando-a. É esta representação, construída através do mecanismo da identificação, que
vem se constituir em seu supereu.

"O relacionamento entre o supereu e o Eu constitui um retorno, deformado por um desejo, dos relacionamentos reais existentes
entre o Eu, ainda individido, e um objeto externo." (O Mal Estar na Civilização, p.153)

Para Freud, a consciência surge em decorrência da repressão de um impulso agressivo, o qual é um reflexo do impulso
agressivo originado pela força da autoridade externa, sendo através da identificação, que o indivíduo retorna esta mimese de
agressividade como reação a restrição das suas pulsões, por parte desta mesma autoridade.
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Identifica, entretanto, que na formação do supereu bem como no surgimento da consciência, existem fatores inatos
atuando de forma combinada com influências do ambiente real no qual o indivíduo está imerso. Estas variáveis são
consideradas por Freud como resultantes de um modelo filogenético que acompanha a evolução da espécie humana.

Assim, a constituição do supereu está diretamente relacionada com a possibilidade de se atingir a ultrapassagem do estado de
natureza para o estado de sociedade, pois é ele que através da identificação com a autoridade, - processo descrito
detalhadamente nos parágrafos anteriores -, se impõe como instância essencialmente depositária da lei e da autoridade,
viabilizando a organização social.

Aqui Freud retoma o mito do pai primevo (Cf. FREUD 1912/13) para explicar a instauração do supereu e suas conseqüências
no processo civilizatório.

"Criou o supereu pela identificação com o pai; deu a esse agente o poder paterno, como uma punição pelo ato de agressão que
haviam cometido contra aquele, e criou as restrições destinadas a impedir uma repetição do ato." ( O Mal Estar na Civilização,
p. 156)

Desta forma, ao longo da história, as várias gerações reproduzem esta agressividade contra o pai, sendo ela sempre
acompanhada de um "sentimento de culpa" equivalente em intensidade a primeira. A humanidade foi constituindo um
supereu social, cada vez mais fortalecido por cada parcela de agressividade que era reprimida.

O valor de pensamento social de Freud, e que difere de outros pensadores, está na capacidade de refletir a vida humana como
parte de um contínuo que tem o seu limite inferior na vida orgânica, o microcosmo biológico, e o seu limite superior a vida
em sociedade (civilização).

Freud, perpassa, com as suas descobertas, o ser humano e o coloca nesta escala da vida como apenas um elemento desta
cadeia, não tendo o homem privilégios ou isenções diante de certos mecanismos e pulsões que organizam a vida
microrgânica, ou a vida em sociedade. Para Freud, Eros e Tanatos, são também as mesmas pulsões que organizam o
desenvolvimento humano e da civilização.

Texto VII - O inconsciente


(Do livro "O que é Psicanálise" - de Fábio Herrmann. Ed. Brasiliense - 1983, pág. 33-42)

Que significa haver consciente? Em primeiro lugar, ... uma certa forma de descobrir sentidos, típica da interpretação
psicanalítica. Ou seja, tendo descoberto uma espécie de ordem nas emoções das pessoas, os psicanalistas afirmam que há um
lugar hipotético donde elas provêm. É como se supuséssemos que existe um lugar na mente das pessoas que funciona à
semelhança da interpretação que fazemos; só que ao contrário: lá se cifra, o que aqui deciframos.
Veja os sonhos, por exemplo. Dormindo, produzimos estranhas histórias, que parecem fazer sentido, sem que saibamos qual.
Chegamos a pensar que nos anunciam o futuro, simplesmente porque parecem anunciar algo, querer comunicar algum
sentido. Freud, tratando dos sonhos, partia do princípio de que eles diziam algo e com bastante sentido. Não, porém, o futuro.

Decidiu interpretá-los. Sua técnica interpretativa era mais ou menos assim.:

Tomava as várias partes de um sonho, seu ou alheio, e fazia com que o sonhador associasse idéias e lembranças a cada uma
delas. Foi possível descobrir assim que os sonhos diziam respeito, em parte, aos acontecimentos do dia anterior, embora se
relacionassem também com modos de ser infantis do sujeito.
Igualmente, ele descobriu algumas regras da lógica das emoções que produz os sonhos. Vejamos as mais conhecidas. Com
freqüência, uma figura que aparece nos sonhos, uma pessoa, uma situação, representa várias figuras fundidas, significa isso e
aquilo ao mesmo tempo. Chama-se este processo condensação, e ele explica o porquê de qualquer interpretação ser sempre
muito mais extensa do que o sonho interpretado.
Outro processo, chamado deslocamento, é o dar o sonho uma importância emocional maior a certos elementos que, quando
da interpretação, se revelarão secundários, negando-se àqueles que se mostrarão realmente importantes.
Um detalhezinho do sonho, aparece, na interpretação, como o elo fundamental.
Digamos que o sonho, como um estudante desatento, coloca erradamente o acento tônico (emocional, é claro), criando um
drama diverso do que deveria narrar; como se dissesse Ésquilo por esquilo... Um terceiro processo de formação do sonho
consiste em que tudo é representado, por meio de símbolos e, um quarto, reside na forma final do sonho que, ao contrário da
interpretação, não é uma história contada com palavras, porém uma cena visual.
Essas e outras propriedades da linguagem onírica (onírico - do sonho) constituem os mecanismos de formação dos sonhos.
Mas - preste atenção! - como conhecemos tais mecanismos: Do conjunto de associações que partem do sonho, o intérprete
retira um sentido que lhe parece razoável.
Para Freud, e para nós, todo sonho é uma tentativa de realização do desejo. A interpretação, por conseguinte, mostrará uma
história que contém um anseio satisfeito; tal como: "eu queria ter isto ou fazer aquilo", "A culpa do que fiz não é minha",
"Isto realmente não aconteceu", "Vejo-me assim", etc. A história reconstruída pela interpretação chama-se "conteúdo latente
do sonho", em oposição àquilo que o sonho efetivamente mostra, que é seu "conteúdo manifesto".
127
Os mecanismos oníricos, portanto, são a medida da transformação de um texto em outro, são o que traduz o conteúdo
latente em conteúdo manifesto.
Uma charada, onde certas regras lógicas permitem transformar uma frase noutra, cujo sentido é obscuro, até que o charadista
a mate. Pois bem, como na charada, os mecanismos para criá-la não são outra coisa senão o inverso daqueles que usamos
para resolvê-la.
Se nós fizemos associações ramificadas a partir de cada elemento do sonho, é natural que cada figura possa condensar várias
figuras, tantas pelo menos quantas tivermos associado.
Se descobrimos assim um outro valor afetivo para o sonho, segue-se que o conteúdo manifesto acentuou diferentemente - em
relação ao conteúdo latente - tais valores, realizou "deslocamentos". Se cremos ter encontrado o sentido verdadeiro do sonho,
este o exibia falso, ou simbólico.
Se, por fim, ao interpretá-lo, transformamos a linguagem visual do sonho em palavras, só nos resta dizer que o sonho havia
transformado as palavras do conteúdo latente nas imagens do conteúdo manifesto.
Simples, não è? O inverso do processo interpretativo, o caminho de ida, se a interpretação fosse o de volta, atribui-se ao
inconsciente - são os processos psicoprimários, por oposição aos da consciência, os processos psicossecundários.
Será tudo apenas um brinquedo, uma charada que se inventa para resolver? Não, por certo; e já veremos por quê. Apenas
você deve compreender que o inconsciente psicanalítico não é uma coisa embutida no fundo da cabeça dos homens, uma
fonte de motivos que explicam o que de outra forma ficaria pouco razoável - como o medo de baratas ou a necessidade de
autopunição.
Inconsciente é o nome que se dá a um sistema lógico que, por necessidade teórica, supomos que opere na mente das pessoas,
sem no entanto afirmar que, em si mesmo, seja assim ou assado. Dele só sabemos pela interpretação.
Todavia, se não é por puro amor à charada, para que servem os disfarces do sonho? Os psicanalistas pensam que têm bastante
utilidade.
Teoricamente, supomos que haja uma série de forças impulsionando a vida mental. Em que forma existem, não se sabe ao
certo.
Porém, imaginamos que sejam forças que operam de permeio entre o físico e o psíquico. (Não é dizer muito, sei, mas é o
máximo a que podemos chegar...)
Essas forças ou pulsões representam as necessidades do organismo humano e de seu psiquismo, tais como fome, sexo,
curiosidade (diga "epistemofilia", se quiser surpreender os seus amigos com uma palavra difícil, que significa "adição ao
conhecimento" ou "curiosidade de saber") etc.
Dessas pulsões, quase nada sabemos, são hipóteses teóricas. Entretanto, elas se fazem representar na vida mental por uma
espécie de corpo diplomático - os representantes psíquicos da pulsão - que induz a psique a satisfazê-las. Eu posso não saber
exatamente o que é a fome fisiológica, mas sei bem o que significa sentir fome.
Ora, pois, se eu sinto fome durante o sono, é possível que acorde, o que viria prejudicar outra necessidade, a de repouso;
então sonho que como e me engano por algum tempo.
Pode suceder, não obstante, que me ocorra um desejo menos aceitável, como o de redecorar a sala de visita de casa com uma
pintura de fezes. Não se espante, as criancinhas têm vontades desse tipo, e infelizmente as realizam, se não houver quem lhas
impeça.
Desejos de tal monta, contrários frontalmente às aquisições duma boa educação, feririam os pudores da consciência - além de
ferirem outro sentidos que não o estético -; têm de ser disfarçados, há uma censura interna que lhes proíbe o acesso á
consciência.
De forma análoga são censurados certos desejos sexuais, agressivos e outros. Muito daquilo que nossa vida infantil permitia,
na fase adulta já não pode mais nem ser pensado, ou porque viole as normas de socialização, ou porque contraria outros
impulsos mais importantes. Seria ótimo viver de brisa, a preguiça o diga, mas as necessidades de manutenção pessoal
ficariam muito contrariadas com tal regime.
Par conjugar tendências tão opostas, a psique lança mão de um truque. De um lado, ela não permite que cheguem a ser
representadas concientemente as pulsões muito contrárias ao conjunto da vida mental duma fase qualquer da vida.
Não se representam, porém nem por isso desaparecem - em alguma parte do coração temos sempre 20 anos, em outras partes,
5 ou 6 meses de idade.
À proibição de se representar conscientemente uma pulsão denomina-se repressão; se ela é muito completa, recalcamento.
A repressão, portanto, impede que a idéia (ou representação) dum impulso aceda à consciência; contudo, o prazer ou o
desprazer ligado à representação não dá para sufocar.
Os afetos passam. Só que passam - e aí está o truque - disfarçados, ligados a outra representação ou idéia, simbolizados.
Daí a utilidade dos processos de formação do sonho, segundo Freud, pois despertaríamos desgostosos caso tivéssemos
contanto com as idéias originais.
Os sonhos, os atos falhos (a que já me referi), os sintomas neuróticos funcionam pois como válvulas de escape para o
reprimido. Mais do que isso. São verdadeiras obras de arte, fundindo, numa mesma idéia, pulsões obstadas e a censura que as
proíbe. Como se os sonhos dissessem: "Quero isto, mas isto não é isto, nem sou eu que o quero.... ". Cuidado, pois, ao negar
de muitas maneiras diferentes a mesma coisa!
Vamos rever esse esquema teórico. Há pulsões (ou impulsos). Alguns deles não se podem realizar, nem se representam
conscientemente, pois contrariam o equilíbrio da vida mental, gerando desprazer.
Já que a mente tende ao prazer, a idéia que os representa é recalcada. Como o afeto não o pode ser, este aparece, mas
disfarçado, como se se manifestasse em outra idéia.
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Esparramar as fezes pela sala é incompatível com uma pessoa bem educada; pintar um quadro - por mais feito que seja,
cheira menos mal - é compatível, é até meritório.
Modificou-se o fim do impulso, transformado em algo mais elevado culturalmente, mais sublime: denomina-se isto
"sublimação".
Ou então, o impulso aparece menos disfarçado - todavia disfarçado ainda - num sonho, num ato falho, num sintoma.
Entendeu?
Decerto só ficamos sabendo de tudo isso através de interpretações. Logo, o processo de encobrimento é apenas o reverso do
processo de interpretação. O inconsciente, por assim dizer, é uma interpretação ao contrário.
Ora, se alguma coisa parece irracional, depois de interpretado, ela fica bem explicável. Se alguém teme um bichinho
inofensivo, sempre se pode dizer que este, o bichinho, representa impulsos autodestrutivos inconscientes. E os impulsos
autodestrutivos, é justo temê-los. Será certo pensar assim? Bom, não muito. Senão, como se costuma dizer, Freud sempre
explica.
Contudo, há muitas pessoas que pensam que a Psicanálise é bem isso; e há outras pessoas que a xingam por ser desse jeito,
exatamente como não é.
Pois, para a Psicanálise, tanto o que é incompreensível quanto o que é bem compreensível à luz da vida cotidiana merecem
igualmente que se interprete.
As pessoas comuns costuma explicar o que fazem da seguinte maneira. Eu fiz isso assim porque tinha motivos. Se os motivos
não me ocorrem, entretanto, é possível que sejam motivos desconhecidos, inconscientes que justifiquem minhas idéias e
ações.
O importante, você vê, é manter a proporcionalidade entre motivo e ação. Nem que, para tanto, tenhamos de inventar motivos
inconscientes ou atribuir qualidades e defeitos aos outros, como faz o homem preconceituoso . (Se você não o fez, fê-lo seu
pai ou tio, ou pelo menos você poderia tê-lo feito etc.)
Nada mais diferente dessa psicologia motivacional primária do que a Psicanálise. O método psicanalítico não se vale da
lógica cotidiana, da proporção entre motivo e ação. Por que só o irracional haveria de ter motivos inconscientes; e o resto? O
inconsciente não é um sistema de explicações para o inexplicável, mas uma lógica diferente.
Tais explicações justificam o porquê duma idéia ou ação, quando ela já se deu: são racionalizações. A interpretação
psicanalítica visa demonstrar o processo que torna possível uma idéia ou ação, a maneira pela qual nós as concebemos, a
lógica da concepção.
Não a lógica superficial do que já foi concebido. Lógica da concepção, lógica das emoções ou lógica inconsciente são nomes
da mesma coisa: mostram o como, não se detém no porquê.
Além disso, a interpretação... parte da noção de que há sempre inúmeros sentidos, e não um só sentido verdadeiro.
Por essa última razão, dá-se algo curioso com a teoria psicanalítica. Ela poderia explicar quase tudo, é claro. Por isso,
preferimos usá-la para não explicar nada, a não ser o próprio processo de concepção.
Assim, quando se usa uma teoria psicanalítica para interpretar, mesmo que seja uma teoria tão respeitável como a do
complexo de Édipo, estamos sempre procurando refutá-la.
No mínimo, estamos abertos a que a prática a refute. Chamo a isso "princípio de risco" do processo interpretativo.
Aliás, se uma teoria qualquer entra no começo duma interpretação concreta - feita a um paciente, por exemplo -, é de se
esperar que ela saia modificada na outra ponta da interpretação.
Caso contrário, se sai igual, direi que apenas encontramos o que já tínhamos colocado, que a interpretação foi teoricamente
indiferente - conquanto talvez até possa ter sido clinicamente útil. Se a teoria se modifica, se se especifica ou é corrigida, aí
sim penso que se tratou duma interpretação teoricamente significativa.
A teoria, por conseguinte, arrisca-se, de cada vez que a empregamos de forma legítima na prática analítica.
Sempre estamos á procura de outra coisa, de que algo novo surja. Essa possibilidade sempre presente de dissolução da teoria
faz com que devamos considerar a prática psicanalítica não como conseqüência simples das nossas teorias, porém como uma
atividade teórica muito perigosa e radical. Come feito, a prática analítica é o ponto de fusão de sua própria teoria.

Texto VIII - Paixões, amor, repressão, Eros e Thanatos


Maria Rita Kehl

(Fonte: "Os Sentidos da Paixão", Cia das Letras, 1987, São Paulo, 472-482)

A matéria-prima de que se originam as paixões são as pulsões em duas grande vertentes: Eros (pulsões de vida) e Thanatos
(pulsões de morte). Nos parece evidente a relação entre pulsão e vida mas não a outra associação, pulsão/morte. Mesmo
sabendo que a morte é a única certeza que temos sobre o destino de tudo o que é vivo. Mesmo constatando (Freud) que toda
matéria viva tende a voltar ao estado inorgânico. Mesmo constatando que é a vida, e não a morte, que representa uma espécie
de milagre, de improbabilidade da matéria......
Ainda que a vida, e não a morte, seja o fruto de ima improbabilidade extrema, nos parece mais fácil compreender as pulsões
de vida do que as de morte. Por quê? porque estamos vivos, e a vida, "em seu caminho inevitável para a morte" (Gil) quer se
perpetuar tanto quanto possível. Freud outra vez: "o organismo quer morrer - mas 'à sua maneira' "...
As manifestações mais primitivas das pulsões de vida são as da defesa da sobrevivência do indivíduo - que buscam manter o
organismo nesse estado de preservação (e movimento) da forma. Que buscam o sono, o alimento, a excreção de toda a
matéria tóxica do organismo; que buscam a água, o ar, o calor. A estas se mesclam as pulsões eróticas que buscam de certa
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forma estas mesmas coisas, em seu estado de fusão inicial com o corpo materno. O calor, o repouso, o alimento que Eros
procura, ele procura sob a forma de contato com outro ser vivo - e seu poder de irradiação é tão violento que ele contamina
(erotiza) o grupo das pulsões de vida. De tal forma que todas as funções vitais vão sendo carregadas de erotismo pela vida
afora; e a tal ponto que a psicanálise batizou de Eros o conjunto das pulsões de vida.

Também parece estranho que entre as pulsões eróticas se encontre a agressividade. A tendência agressiva não é apenas, como
poderia parecer, um componente das pulsões da morte; ao mesmo tempo, o que impele uma pessoa ao contato com outra(s),
ou com o mundo em geral, não são somente impulsos amorosos, de fusão e aceitação. O contato agressivo pode ser, por
exemplo, uma tentativa de modificar o outro, ou o mundo, para torná-los mais compatíveis com o princípio do prazer. que é,
no limite, urna tendência destrutiva, mas também representa a vocação humana para a rebeldia. Corno disse Helio Pellegrino
em sua palestra aqui: o homem é aquele ser para o qual "o mundo, tal como está, não serve"...
Outra função - a mais evidente - dos impulsos agressivos é a defesa perante a ameaça que o outro pode representar. Neste
sentido um dos pactos fundamentais de toda forma de convivência social dita civilizada é aquele que propõe (pela força ou
pelo consenso; mas, em geral, o que é consenso algum dia se impôs pela força) a repressão de grande parte da agressividade
em troca das vantagens da convivência. Mas os instintos não moram em departamentos estanques: ao contrário, formam uma
espécie de trama sobre a qual se estrutura a psique. Assim, o preço que pagamos pelo pacto-de-não-agressão que funda a
nossa (entre outras) civilização é o de um rebaixamento geral dos instintos de vida. Em "O por que da guerra?", Freud
compara o processo de civilização da humanidade com o da domesticação de certos animais: "A este processo devemos o
melhor do que alcançamos e também boa parte do que ocasiona nossos sofrimentos. Suas causas e origens são incertas; sua
solução, duvidosa. [ ... ] Talvez leve à desaparição da espécie humana (grifo meu) pois inibe a função sexual em mais de um
sentido"...
Enquanto o vetor erótico impulsiona a vida humana ao contato, ao embate com o outro e com a realidade - impulsos, como se
pode constatar, geradores de constantes tensões -, o outro vetor da trama pulsional impele o ser humano ao repouso, à
entropia. É Thanatos, o grupo das pulsões de morte, que quer a abolição das tensões, o grau zero de energia. Quando Freud se
pergunta sobre o que está "mais além do princípio do prazer", o que nos move para atividades repetitivas onde aparentemente
não há satisfação de nenhum desejo, surge uma das hipóteses mais discutidas e freqüentemente mal-entendidas da
psicanálise: mais além do princípio do prazer está a tentativa do organismo de retornar ao inorgânico. Já que a vida é tensão,
excitação, irritação da matéria. já que o desejo não encontra satisfação definitiva e não pára de renascer de suas satisfações
efêmeras, Thanatos deseja a abolição do desejo; o retorno à matéria inanimada da qual um dia, por um acaso extremo, a vida
se gerou da coesão improvável, e até hoje misteriosa, entre algumas moléculas.
A vida é uma espécie de vitória sobre alguma coisa - sobre a força conservadora do inorgânico. Somos todos sobreviventes
de nossa "vontade" de morrer. Sobreviventes porque o organismo, uma vez jogado à vida, quer se conservar assim e fazer seu
próprio percurso até a morte. Morremos antes de saber como seria este percurso. As atividades da vida nos tiram a vida antes
que possamos saber qual seria o caminho ideal da matéria viva para a morte, a acomodação suave para este repouso que não
conhecemos, mas que está representado no inconsciente por todas as fantasias nirvânicas de relaxamento, de abolição das
tensões, de paz.

E aqui está por que Thanatos não impera soberano sobre Eros. Porque a representação mais próxima do repouso absoluto que
temos marcada pela experiência no nosso inconsciente não é a morte - já que ainda não morremos - e sim a vida intra-uterina:
a fusão perfeita com a corpo materno, quando não há desejo porque todas as necessidades estão sendo supridas
continuamente. É desses nove meses de perfeição que o ser vivo tira a "memória" do repouso; e é por isso que, enquanto
busca o repouso que pode ser a morte, está buscando também o repouso do contato, da fusão com o outro.
É porque Eros e Thanatos no limite buscam a mesma coisa - o retorno a um estado anterior, prazeroso -, que não é um, nem
outro, que move a vida, mas a tensão constante, dialética (Freud não usou esta palavra) entre os dois. O que mantém ligada a
trama das pulsões é que eles todos são conservadores: e enquanto Thanatos busca o repouso Eros busca o estado de fusão
narcísica com o outro (representante da mãe, no inconsciente) que nos promete a abolição da confrontação cansativa e
ameaçadora com o mundo, inaugurada com o nascimento e só abolida na morte. Na fusão narcísica inicial com o corpo da
mãe (assim corno em momentos privilegiados da paixão ... ) o mundo desaparece: eu sou o mundo, o mundo é uma extensão
de mim.
O estado narcísico da vida intra-uterina, que a criança conserva na fantasia nos primeiros meses de vida até que alguma
experiência de separação venha desiludi-la, é um estado em que o amor ainda não tem lugar. Diz Melanie Klein que, para o
pequeno ser narcisista, tudo aquilo que é recebido como bom e prazeroso ele sente como sendo parte de si mesmo. Só quando
alguma coisa frustra a criança é que ela a sente como sendo parte do mundo externo. "O bom sou eu; o mau é o não -eu" - é
este o mundo do narcisismo. O primeiro sentimento de diferenciação criança-mundo é o ódio, Ela só vem a sentir amor por
um objeto fora de si mesma depois de ter sido frustrada algumas vezes pela mãe. Só depois de algumas frustrações é que a
criança consegue perceber que o objeto gratificante que ela pensava ser parte dela mesma não é. O objeto que satisfaz é o
mesmo que frustra. O amado e o odiado são um só - ambivalência que nos acompanha pela vida toda. Ambivalência que é da
essência de toda relação amorosa, pois todo objeto que satisfaz também frustra, e o absoluto não se recupera mais...

Se a frustração na vida adulta mobiliza às vezes todo o ódio de que somos capazes, nos é difícil imaginar (ou "lembrar?") a
magnitude desse ódio no recém-nascido. A criança pequena é absolutamente dependente dos cuidados da mãe ou de seus
substitutos, e a falta ou a demora desses cuidados é sentida por ela como uma ameaça à sua vida. A fome, por exemplo, uma
sensação que o recém-nascido não conheceu na vida intra-uterina, aparece para ele com uma violência aterradora; e o ódio
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que ele sente por não ser imediatamente alimentado/aplacado é diretamente proporcional a este terror. São demônios
atacando o bebê a partir de dentro dele mesmo.
As fantasias e necessidades de uma criança recém-nascida estão sob o pleno domínio das paixões em seu "estado bruto", e, ao
contrário da valorização romântica que costumamos fazer a respeito das paixões desenfreadas, a irrupção dessas excitações
sem nenhum mecanismo psíquico mediador, controlador de sua intensidade, é sentida como extremamente desprazerosa. Daí
que uma certa dose de repressão, de contenção das paixões é uma necessidade interna da psique, e o papel ideal dos adultos
seria simplesmente o de ajudar a criança a lidar, a dar continente e ter um certo controle sobre suas emoções.

Como a repressão que a sociedade nos obriga a fazer em geral é bem maior do que aquela necessária para lidarmos com
nossas paixões, mantemos uma espécie de mistificação nostálgica do "estado natural" em que desejos, terrores e ódios são
intensos. Em função de nossa pequena capacidade de sentir prazer, vivemos saudosos de um estado primitivo em que a
satisfação dos desejos também era intensa, e ignoramos que fomos nós os primeiros agentes da contenção de nossas paixões:
uma necessidade própria do ser humano, necessidade de sobrevivência psíquica do pequeno ser que teme naufragar no mar
furioso de suas demandas furiosas.

Estou tentando descrever os sofrimentos que são conseqüência dos primeiros embates do pequeno narcisista com o mundo,
num momento da vida em que o desejo do absoluto ainda não foi abandonado e nem sequer abalado em sua onipotência. O
desejo quer o repouso, o desejo quer o absoluto. Esse absoluto que foi a vida intra-uterina, e depois, definitivamente perdido,
sobrevive e renasce sempre nas fantasias inconscientes. Se pudesse, o desejo nos conduziria de volta à fusão total com o ser
amado: se pudesse. Mas não pode. Porque a realidade, nossa inimiga desde sempre, é também a contraposição à onipotência
do desejo e nos obriga a barganhar o absoluto em troca de muitas, de infinitas outras satisfações não absolutas que podemos
obter pela vida. A realidade é inimiga da satisfação absoluta do desejo, mas o princípio de realidade dentro de nós, aliado do
princípio do prazer, nos ensina os caminhos para a vida e para o amor em troca do abandono do narcisismo primário.

É dessa brecha entre o tudo que se quer e aquilo que se pode que nascem as possibilidades de movimento do desejo,
movimento que não cessa enquanto a vida não cessa. Não existe objeto que satisfaça plenamente o desejo e é justamen te por
isso que ele não pára de renascer de cada pequena satisfação, de cada pequeno repouso: é justamente por isso que a vida é
tensão permanente, é movimento permanente: o que não encontro aqui, vou buscar noutro lugar; se não encontro o absoluto,
sigo perseguindo tudo o que se aproxima das minhas representações da perfeição.
A esta impossibilidade de manutenção do estado narcísico do qual fomos expulsos com o nascimento a psicanálise chama
castração. Freud começou a utilizar este conceito a partir da observação de fantasias angustiantes de seus pacientes, que
expressavam literalmente o medo da perda do pênis, e este foi o primeiro sentido do complexo de castração.
As associações pênis-falo/ falo-significante da falta nos levam a entender a castração como um outro corte: o corte que nos
separou da nave-mãe e nos expôs nossa incompletude diante do universo. É o pensamento de Lacan que nos ajuda a trazer
este conceito para o terreno simbólico.

Castração é perda, é falta, é limite imposto à onipotência do desejo. A diferença anatômica entre os sexos apenas simboliza,
na infância, essa perda e favorece para o menino a ilusão de completude ao mesmo tempo em que o atira à angústia diante da
possibilidade da perda (perda que ele já sofreu, mas nega) - enquanto favorece para a menina a desilusão em relação à sua
completude no mesmo tempo em que a atira à inveja e às tentativa fálicas de restauração do narcisismo ferido. Mas na
verdade não há solução para esta perda: castrados somos todos.

A ilusão do pequeno narcisista de que ele é um com a mãe, de que ele é tudo o que a mãe deseja e a mãe é tudo o que ele
deseja, essa ilusão se rompe quando o desejo da mãe se move para outro lugar - um lugar a que chamamos pai, mas que pode
ser qualquer outra instância da cultura que interdite o idílio entre a criança e a mãe. O pai é o agente da castração - mas , a
rigor, quem castra é a mãe. Se a mãe recusa formar um todo narcísico com o filho; se a mãe aceita sua incompletude e
permite que seu desejo não se detenha todo na criança; se a mãe suporta essa perda que é o parto quando a criança deixa de
ser posse sua para se tornar posse da vida - então, ela castra. A mãe psicótica, a mãe que recusa sua incompletude e faz do fi-
lho seu falo, não castra. E mantém no inconsciente de seu filho, intacto, o narcisismo primário, diminuindo muito as chances
de que o pai possa interditar sua onipotência. Pois, se mãe quer se fazer de completa com o filho, ela não deseja o pai; e o pai
não-desejado irrompe na cena idílica mãe-criança, ou corno rival desprezível ou corno inimigo aterrador - não como o
portador amigável de um convite para que a criança renuncie ao mundo da natureza (do incesto) em troca do imenso
repertório de possibilidades que é o mundo da cultura e do amor por outros seres humanos.
A castração é, portanto, essa ferida "moral", essa perda de uma ilusão paradisíaca em troca da qual se ganha a possibilidade
de continuar vivendo - já que a manutenção da ligação umbilical com a mãe só pode levar à psicose ou à morte.
(A castração é a perda de um privilégio que já se desfrutou, perda que abre em troca um leque de possibilidades de se viver o
novo. A conservação do narcisismo é que é a verdadeira perda porque é a manutenção (ilusória, ainda por cima, um mau
negócio!) de um estado antigo que não permite que o desejo se mova. Nesses termos, a castração é um evento absolutamente
progressista na nossa vida.
Mas é preciso relativizar a castração, que pode ocorrer de maneiras diferentes na história de vida de cada um. A situação
extrema de castração - o abandono, o desamor, a mãe que não encontra absolutamente nenhuma gratificação narcísica
contemplando a criança (a mãe para quem os filhos só representam evidências de sua própria castração); e do outro lado o pai
que é portador de interdições absolutas e não aponta nenhuma saída para o desejo da criança, o pai opressivo, o pai
131
indiferente, que abandona e não dá amor - essas situações de extrema castração não trazem nenhum beneficio progressista
para a vida da criança. Ao contrário, apresentam-lhe o mundo como um panorama tão ameaçador e/ou tão interditado que a
libido infantil só encontra saída encerrando-se em si própria e abandonando ou rebaixando ao máximo todas as suas
pretensões eróticas. São situações em que a castração não representa urna saída para o narcisismo da criança.
Todas essas situações vividas pela criança em seus primeiros contatos com suas demandas pulsionais e com as formas
apaixonadas que essas pulsões vão adquirindo são revividas na paixão amorosa. A primeira fantasia que surge nas relações
apaixonadas da vida adulta é a da restauração de nosso narcisismo primário; a primeira esperança do (a) apaixonado (a) é a
de reencontrar no ser amado sua total completude. Na paixão amorosa espero encontrar este ser que me completa, cujos
desejos são meus desejos - este ser que é igual a mim e que chegou para me salvar da condição solitária que é a própria
condição humana: cada um de nós é um ser único diante do mundo. Só quando a paixão nesse primeiro momento,
mergulhada em suas fantasias, sofre as primeiras desilusões, é que o amor pode se instaurar.
Não quero com isso endossar a oposição ideológica que se faz entre amor e paixão, em que a paixão é representada como um
momento fulgurante - mas impossível - do encontro entre duas pessoas, enquanto o amor é visto como a água morna do
dia-a-dia cinzento, com o qual somos obrigados a nos conformar. A verdade é que as fantasias do início de uma relação
apaixonada não concedem existência própria ao outro, que se torna um depósito das fantasias mais arcaicas, um representante
da possibilidade de restauração do narcisismo ferido, um outro eu-mesmo que deseja as mesmas coisas que eu e me resgata
para sempre da condição da falta em que me encontro (que é a própria condição humana) para me elevar à condição dos
deuses: a recuperação da onipotência.
Mas passado este momento de felicidade plena (que também pode ser de intensa angústia, já que eu já "sei", por experiência,
que o outro me escapará), a paixão amorosa tem que reviver a decepção infantil do recém-nascido que perde a condição de
único no desejo da mãe: o outro volta a se mover. Ganha corpo, existência concreta para além das minhas fantasias
apaixonadas. O outro não pode estar sempre; o outro não pode dar tudo; e, o que é pior: eu não posso lhe dar tudo. A
realidade se instala mais uma vez entre os dois-que-tentavam-ser-um e revela o que estava sendo negado: a falta; mais uma
vez e sempre, a falta.
Dessa decepção revivida na paixão amorosa - uma reedição das primeiras frustrações infantis - o outro pode ganhar vida
própria, independência, existência para além do meu desejo onipotente. Ou seja, dessa decepção revivida pode nascer o amor.
Ou não: da segunda vez em que o apaixonado se desencanta (revivendo sua primeira experiência de castração) ele pode
escolher a morte. O "amor que mata", na verdade "paixão que mata", símbolo do amor romântico e re cusa do morno e
conformado amor burguês, é o amor que quis se manter apaixonado mas não aceitou a evidência de sua incompletu de.
Lamartine (um romântico!): "Um único ser vos falta e tudo rica despovoado".
O mundo da desolação pela perda ou afastamento do ser amado que vive sua independência em relação a mim - o ser amado
"absoluto" de quem o apaixonado passa a depender de maneira tão completa que sua falta faz do mundo um verdadeiro
deserto -, este mundo pode ganhar vida, e o apaixonado pode descobrir que também tem condições de se mover dentro dele,
se ele conseguir suportar a desilusão fundamental de não formar um todo indissociável com o objeto de seu amor . Do
contrário, ele pode preferir a morte a viver num deserto. A sua morte, ou a morte do outro. A morte pode ser a outra face do
princípio do prazer, quando ele não consegue se associar ao princípio de realidade. O domínio absoluto do princípio do prazer
não propicia satisfações ao desejo a não ser na fantasia; fora da fantasia o mundo é um deserto onde o desejo não consegue
encontrar seus objetos.

Entre as aspirações de satisfação total das pulsões e a satisfação parcial que a vida nos permite, há um excedente de energia
que não obtém descarga - um excedente de excitação que não se aquieta porque não encontra o que o satisfaça plenamente.
Quais os destinos desse excesso da energia que constitui a matéria-prima das paixões? Um recurso da psique para lidar com o
excedente de energia que não pode ser descarregado - que não obtém repouso - já se incorporou ao repertório do senso
comum: a repressão. Dela só se tem notícia quando é malsucedida. A repressão bem-sucedida não deixa traços. A malsu-
cedida deixa os sintomas, tentativas canhestras da psique de dar ex, pressão ao que não pode ser dito, de trazer à luz oque está
mantido; à força, na obscuridade.
A histeria fundou a psicanálise, "doença" do desejo reprimido que se manifesta no corpo, onde o médico não encontra doença
alguma. O "ataque histérico", misterioso para a medicina, foi para Freud a ponta do fio de Ariadne que ele seguiu para
investigar o labirinto da alma humana. Falar da histeria como uma "doença da alma" para a medicina do século XIX era o
mesmo que propor que a ciência recuasse às práticas de feitiçaria - mas foi a partir de conceitos desse tipo que a psicanálise
nasceu como ciência nova de um objeto recémdescoberto: o inconsciente. E então as falas do corpo da histérica, as falas dos
rituais "ridículos" do neurótico obsessivo começaram a fazer sentido como tentativas de retorno do reprimido.

O reprimido não e o afeto, a energia do desejo. Reprimida é a idéia a que o desejo se associa. O afeto não se reprime; fica
livre e dissociado de seu conteúdo, ligando-se a outros conteúdos e desse modo formando os sintomas. A repressão dissocia o
desejo de seu conteúdo, o que eqüivale a dizer que o neurótico anseia, mas não sabe pelo quê. Ainda que pense saber (os
mecanismos de defesa do ego conseguem criar uma certa coerência entre a personalidade e seus "sintomas") - mas então, não
entende por que não encontra prazer.

Ou seja: a repressão é um mecanismo insuficiente para dar conta do excesso de energia que não encontra meios de descarga.
A repressão dissocia, aliena, faz da pessoa uma cega para seus desejos, ignorante sobre o que é bom para ela. Uma presa fácil
de líderes totalitários, dos grandes pais autoritários que prometem alívio para as angústias de prazer que acompanham todas
as tentativas de retorno do reprimido, em troca da obediência, da adesão total à sua liderança. A repressão é a condição da
132
obediência: quem não sabe o que quer, quer aquilo que lhe dizem que ele deve querer.

É tão simples assim, e é partindo desse raciocínio simples que Reich veio a entender a adesão do pobre povo alemão ao
nazismo. A energia do reprimido desvinculada da idéia que lhe dá significado constitui a matéria burra das paixões: paixão
alienada de seus conteúdos eróticos, facilmente capturável por propostas tanáticas: o "viva la muerte" do fascismo, a morte
aos judeus (ao outro, ao diferente de mim) do nazismo, o suicídio romântico (ainda a melhor saída dentre essas três) do amor
proibido.

Outro mecanismo de canalização do desejo que às vezes se combina com a repressão, mas não se confunde com ela, é o
desvio de objeto, em que a idéia que representa o afeto não é abolido mas dirige-se a um objeto socialmente permitido - ou
possível - em troca do objeto interditado. O terceiro destino das paixões é a transformação em seu contrário, que consistiria
uma espécie de base psíquica para a hipocrisia. Transforma-se ódio em amor, amor proibido em repulsa, desejo sexual
perverso em nojo. O ódio que ameaça o próprio sujeito do ódio (que pode ser punido, ser odiado em igual medida ou, o que é
pior, pode destruir o objeto de seu amor que freqüentemente é o mesmo objeto de sua agressividade) não pode ter sua energia
eliminada mas pode ter seu conteúdo invertido, e então se transforma nesse tipo de amor excessivo, obsessivo, extremamente
ativo que precisa de toda esta atividade para impedir que irrompa sua verdadeira face. É claro que as pessoas que "amam"
segundo esta modalidade são capazes das formas de crueldade mais refinadas e mais sutis, assim como os ascetas reativos em
relação a seus desejos considerados perversos são capazes das formas mais elaboradas e sutis de perversão. Porque nenhuma
dessa formas de repressão, desvio ou negação das paixões são tão eficientes quanto deveriam ser para que elas
desaparecessem sem deixar sinais de vida.

ITEM 5.0 - TEXTOS DE E SOBRE MARX


OU QUE PODEM SER DISCUTIDOS A PARTIR DA FILOSOFIA DE MARX

A - Textos de Marx
Prefácio à contribuição à crítica da economia política: A conclusão geral a que cheguei e que, uma vez adquirida, serviu
de fio condutor aos meus estudos, pode formular-se resumidamente assim: na produção social da sua
existência, os homens estabelecem relações determinadas, necessárias, independentes da sua vontade,
relações de produção, que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento das suas forças
produtivas materiais.

O conjunto destas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base concreta sobre a qual se eleva
uma superestrutura jurídica e política e a qual correspondem determinadas formas de consciência social.

O modo de produção da vida material condiciona o desenvolvimento da vida social, política e intelectual em geral. Não é a
consciência dos homens que determina o seu ser; é o seu ser social que, inversamente, determina a sua consciência.

Em certo estádio de desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de
produção existentes ou, o que é a sua expressão jurídica, com as relações de propriedade no seio das quais se tinham movido
até então. Estas relações transformam-se de formas de desenvolvimento das forças produtivas em seus entraves. Abre-se
então uma época de revolução social. Com a transformação da base econômica, toda a imensa superestrutura se transforma
com maior ou menor rapidez.

Ao considerarmos estas transformações, é sempre preciso distinguir entre a transformação material das condições econômicas
de produção suscetível de ser constatada de modo cientificamente rigoroso, e as formas jurídicas, políticas, religiosas ou
filosóficas, numa palavra, ideológicas em que os homens tomam consciência deste conflito e o dirigem até ao fim.

Assim como não se julga um indivíduo pelo que ele pensa de si próprio, também não se pode julgar uma tal época de
revolução pela consciência que ela tem de si própria, é preciso, pelo contrário, explicar esta consciência pelas contradições da
vida material, pelo conflito entre as forças produtivas sociais e as relações de produção.

Uma formação social nunca declina antes que se tenha desenvolvido todas as forças produtivas que ela é suficientemente
ampla para conter e nunca surgem novas relações de produção superiores antes de as suas condições materiais de existência
se terem gerado no próprio seio da velha sociedade. É por isso que a humanidade nunca se propõe senão tarefas que pode
levar a cabo, já que, se virmos bem as coisas, chegaremos sempre à conclusão de que a própria tarefa só surge se as condições
materiais da sua resolução já existem ou estão, pelo menos, em vias de se formarem.

Em traços largos, os modos de produção asiático, clássico, feudal e burguês moderno podem ser qualificados como épocas
progressivas da formação econômica da sociedade. As relações de produção burguesas são a última forma antagônica do
processo social da produção, antagônica, não no sentido de antagonismo individual, mas no de um antagonismo nascido das
condições de existência social dos indivíduos; mas as forças produtivas que se desenvolvem no seio da sociedade burguesa
133
criam, ao mesmo tempo, as condições materiais que resolverão este antagonismo. Com esta formação social, termina,
portanto, a pré-história da sociedade humana".

Luta de Classes - “A história de todas as sociedades existentes até hoje é a história das luas de classes. Homem livre e
escravo, patrício e plebeu, barão e servo, mestre de corporação e companheiro, numa palavra, opressores e oprimidos, têm
permanecido em constante oposição uns aos outros, envolvidos numa guerra ininterrupta, ora disfarçada, ora aberta, que
terminou sempre, ou por uma transformação revolucionária de toda a sociedade, ou pela destruição das duas classes em luta.”
(Karl Marx e Friedrich Engels. Manifesto do Partido Comunista. In: Cartas filosóficas e outros escritos, p. 84)

“No que me concerne, não me cabe o mérito de haver descoberto nem a existência das classe, nem a luta entre elas. Muito
antes de mim, historiadores burgueses já haviam descoberto o desenvolvimento histórico dessa luta entre as classes e
economistas burgueses haviam indicado sua anatomia econômica. O que eu trouxe de novo foi: 1) demonstrar que a
existência das classes está ligada somente a determinadas fases de desenvolvimento da produção; 2) que a luta de classes
conduz, necessariamente, à ditadura do proletariado; 3) que essa própria ditadura nada mais é que a transição à abolição de
todas as classes e a uma sociedade sem classes (...) (Marx, Carta a Weydemeyer, 5/3/1852)

“Os indivíduos só formam uma classe na medida em que se vêem obrigados a sustentar uma luta comum contra outra classe,
já que no mais eles se enfrentam uns aos outros, hostilmente, no plano da competência (Marx e Engels, Ideologia alemã, I
parte, “Feuerbach”)

“Os proprietários da simples força de trabalho, os proprietários do capital e os donos da propriedade fundiárias, cujas
respectivas fontes de renda são o salário, o lucro e a renda fundiária, ou seja, os trabalhadores assalariados, os capitalistas e os
proprietários fundiários, constituem as três grandes classes da sociedade moderna, fundada sobre o modo de produção
capitalista.” (Marx, O Capital, III, 3, Cap. 52)

Estado, ideologia, alienação - “No Estado corporifica-se diante de nós o primeiro poder ideológico sobre os homens, A
sociedade cria um órgão para a defesa de seus interesses comuns, em face dos ataques de dentro e de fora. Esse órgão é o
poder do Estado. Mas, apenas criado, esse órgão se torna independente da sociedade, tanto mais quanto mais se vai
convertendo em órgão de uma determinada classe e mais diretamente impõe o domínio dessa classe. A luta de classe
oprimida contra a classe dominante assume forçosamente o caráter de uma luta política, de uma luta dirigida, em primeiro
lugar, contra o domínio político dessa classe; a consciência da relação que essa luta política tem para com sua base
econômica obscurece e pode chegar a desaparecer inteiramente.” (Engels, Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica
alemã, cap. IV)

“A classe que dispõe dos meios de produção material dispõe ao mesmo tempo dos meios de produção intelectual... As idéias
dominantes não são outra coisa senão a expressão ideal das relações materiais dominantes, são as relações materiais
dominantes na forma de idéias; são, portanto, expressão das relações que justamente fazem de uma classe a classe
dominante.... (Marx e Engels, Ideologia alemã, I parte, “Feuerbach”)

“A alienação do trabalhador em seu produto significa não apenas que seu trabalho se converte em um objeto, em uma
existência exterior, mas que existe fora dele, independente, estranho, que se converte em um poder independente diante dele;
que a vida que dedicou ao objeto enfrenta com ele como coisa estranha e hostil” (Karl Marx. Manuscritos Econômico-
filosóficos)

“Como os produtores somente entram em contato social mediante a troca de seus produtos de trabalho, as características
especificamente sociais de seus trabalhos privados só aparecem dentro dessa troca. Em outras palavras, os trabalhos privados
só atuam, de fato, como membros do trabalho social total por meio das relações que a troca estabelece entre os produtos do
trabalho e, por meio dos mesmos, entre os produtores. Por isso, aos últimos aparecem as relações sociais entre seus trabalhos
privados como o que são, isto é, não como relações diretamente sociais entre pessoas em seus próprios trabalhos, senão como
relações reificadas entre as pessoas e relações sociais entre as coisas.” (Karl Marx, O Capital)

B - Textos de outros autores sobre Marx e Marxismo


Texto I - Marx ... Um fantasma ronda a Europa
(de Jostein Gaarder, O Mundo de Sofia, Cia das Letras, 1995, pág. 417-429)

Alberto - Em 1841, quando Kierkegaard foi a Berlim, é provável que ele tenha se sentado ao lado de Karl Marx nas palestras
de Schelling. Kierkegaard tinha escrito uma tese sobre Sócrates, e Karl Marx, na mesma época, tinha defendido o seu
doutorado sobre Demócrito e Epicuro. Sobre o materialismo na Antigüidade, portanto. Nos trabalhos dos dois já estava
embutido o rumo que suas reflexões filosóficas iriam tomar.
Sofia - Quer dizer, Kierkegaard se tornou um filósofo existencialista e Marx um materialista.
134
Alberto - Chamamos Marx de um materialista histórico. Voltaremos a isto mais adiante.
Sofia - Continue!
Alberto - Tanto Kierkegaard quanto Marx tomaram como ponto de partida a filosofia de Hegel. Ambos foram influenciados
pela forma de pensar hegeliana, mas ambos também se distanciaram da noção hegeliana de espírito universal, ou daquilo que
chamamos do idealismo de Hegel.
Sofia - Na certa Hegel era um tanto vago para eles.
Alberto - Exatamente. De modo muito geral, podemos dizer que a era dos grandes sistemas filosóficos terminou com Hegel.
Depois dele, a filosofia toma um novo rumo. Os grandes sistemas especulativos dão lugar às "filosofias da existência" ou
"filosofias da ação", como também podemos chamá-las. É a isto que Marx se refere quando diz que até então os filósofos
sempre tinham tentado interpretar o mundo, em vez de tentar modificá-lo. E são exatamente essas palavras que determinam
uma virada importante na história da filosofia.
Sofia - Depois de ter me encontrado com Scrooge e com a menina da caixa de fósforos, posso entender tranqüilamente o que
Marx quis dizer.
Alberto - O pensamento de Marx tem, portanto, um objetivo prático e político. É preciso salientar que ele não era apenas
filósofo. Marx foi também historiador, sociólogo e economista.
Sofia - E ele foi pioneiro em todas essas áreas?
Alberto - De qualquer forma, nenhum outro filósofo foi mais importante para a prática política. Por outro lado, precisamos
ter cuidado para não identificarmos com seu pensamento tudo o que depois dele se chamou de "marxista". Dizem que o
próprio Marx se tornou "marxista" por volta de 1845, mas que durante toda a sua vida ele manifestou seu desconforto quanto
a essa designação.
Sofia - Jesus também não foi cristão?
Alberto - Também isto é discutível.
Sofia - Continue.
Alberto - Desde o início, seu amigo e colega Friedrich Engels contribuiu para o que mais tarde foi chamado de marxismo.
Em nosso século (século XX), Lenin, Stalin, Mao e muitos outros reivindicaram o reconhecimento púbico por terem levado o
marxismo mais adiante. Nos países do Leste, depois de Lenin, apareceu o conceito de "marxismo-leninismo".
Sofia - Acho melhor a gente se concentrar no próprio Marx. Você o chamou de "materialista histórico", não foi?
Alberto - Ele não foi um filósofo materialista como os atomistas da Antigüidade ou como os materialistas mecanicistas dos
século XVII e XVIII. Mas ele achava que eram as condições materiais de vida numa sociedade que determinavam nosso
pensamento e nossa consciência. Para ele, tais condições materiais eram decisivas também para a evolução da história.
Sofia - Isto soa verdadeiramente diferente de Hegel e de seu espírito universal.
Alberto - Hegel havia explicado que a evolução histórica surgia da tensão entre opostos, que eram resolvidos numa mudança
repentina. Desaparecidos os opostos, desaparecia também a tensão, é claro. Marx concordava com este pensamento. Ele
achava apenas que o pobre Hegel tinha colocado tudo de cabeça para baixo.
Sofia - Mas não o tempo todo, espero.
Alberto - Hegel chamava de "espírito universal" ou "razão universal" a força que impelia a história para a frente. Marx
achava que este ponto de vista colocava a realidade de cabeça para baixo. Ele queria mostrar que as condições materiais de
vida eram decisivas para a história. Nesse sentido, Marx dizia que não eram o pressupostos espirituais numa sociedade que
levavam a modificações materiais, mas exatamente o oposto: as condições materiais determinavam, em última instância,
também as espirituais. Além disso, Marx achava que as forças econômicas numa sociedade eram as principais responsáveis
pelas modificações em todos os outros setores e, consequentemente, pelos rumos do curso da história.
Sofia - Você poderia me dar um exemplo?
Alberto - A filosofia e a ciência na Antigüidade tinham sido cultivadas quase como algo completamente desvinculado da
realidade prática. Os antigos filósofos não estavam muito interessados em saber se os seus conhecimentos teóricos poderiam
modificar para melhor as coisas na prática.
Sofia - Não?
Alberto - Isto se explica pelo modo como eram organizadas as sociedades em que eles viviam. A vida e a produção de
alimentos nas sociedades da Antigüidade tinham por base sobretudo o trabalho escravo. Por esta razão, os cidadãos não
tinham a menor necessidade de melhorar a produção com novidades práticas. Temos aí um exemplo de como o pensamento
pode ser influenciado pelas relações materiais numa sociedade.
Sofia - Entendo.
Alberto - As relações materiais, econômicas e sociais numa sociedade são chamadas por Marx de bases desta sociedade. O
modo de pensar de uma sociedade, suas instituições políticas, suas leis e também sua religião, moral, arte, filosofia e ciência
são por ele chamados de superestrutura.
Sofia - Base e superestrutura, portanto.
Alberto - E talvez agora você possa me passar o templo grego.
Sofia - Com todo o prazer.
Alberto - Isto é uma cópia em miniatura do antigo Partenon, na Acrópole. Você chegou a vê-lo como ele realmente é.
Sofia - Na fita de vídeo, você quer dizer.
Alberto - Observe que o templo possui um telhado realmente elegante e ricamente ornamentado. Talvez sejam o telhado e o
frontão os dois elementos que mais nos chamam a atenção á primeira vista. E é exatamente isto que podemos chamar de
superestrutura. Só que o telhado não pode pairar sozinho no ar.
Sofia - Ele é sustentado por colunas.
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Alberto - A construção inteira precisa de um alicerce sólido, uma base que a sustenta como um todo. Para Marx, as
condições materiais "sustentam", por assim dizer, todos os pensamentos e idéias de uma sociedade. Isto significa que a
superestrutura de uma sociedade é o reflexo de sua base material.
Sofia - Você está querendo dizer que a teoria das idéias de Platão era apenas um reflexo das olarias e da viticultura de
Atenas?
Alberto - Não, não é tão simples assim. O próprio Marx chamou expressamente a atenção para isto. É claro que a base e a
superestrutura de uma sociedade se condicionam reciprocamente. Se Marx tivesse negado isto, ele teria sido um "materialista
mecanicista". Mas por ele ter reconhecido que entre a base e a superestrutura de uma sociedade também existe uma interação,
uma tensão, nós o chamamos de materialista dialético. Você deve estar lembrada do que Hegel entendia por uma evolução
dialética. E, a propósito, é bom dizer que Platão não trabalhou nem como oleiro, nem como viticultor.
Sofia - Entendo. Você ainda vai falar mais um pouco sobre o templo?
Alberto - Sim. Observe cuidadosamente a base dele. Será que você poderia descrevê-la para mim?
Sofia - As colunas estão apoiadas numa fundação composta por três camadas, ou degraus.
Alberto - Da mesma forma, podemos distinguir numa sociedade três camadas. Embaixo de tudo está o que Marx chama de as
condições naturais de produção de uma sociedade. Nela estão compreendidas as condições naturais, ou recursos naturais que
preexistem, por assim dizer, à própria sociedade: o tipo de vegetação, as matérias-primas, as riquezas do solo, entre outros.
Tais condições constituem os verdadeiros muros de arrimo na fundação de uma sociedade; e estes muros de arrimo
estabelecem claras restrições quanto ao tipo de produção possível e, por extensão, quanto ao próprio tipo de sociedade e de
cultura que podem florescer em determinado lugar.
Sofia - Não se pode pescar arenque no Saara, nem plantar tâmaras na Lapônia.
Alberto - Isto mesmo. Numa cultura nômade, porém, as pessoas pensam de forma completamente diferente do que, por
exemplo, num povoado de pescadores na Noruega. A próxima camada é formada, então, pelas forças de produção de uma
sociedade. Aqui, Marx está pensando na força de trabalho do próprio homem, mas também nos tipos de equipamentos,
ferramentas e máquinas, os chamados meios de produção.
Sofia - Antigamente, as pessoas saíam remando para apanhar os peixes. Hoje em dia eles são apanhados em traineiras
gigantescas.
Alberto - E com isto você já está passando para a terceira camada da base de uma sociedade. A coisa aqui se complica um
pouco, pois se trata de quem detém os meios de produção numa sociedade e de como o trabalho é organizado no interior da
sociedade. Trata-se , portanto, das relações de posse e da divisão de trabalho. Marx chama isto de relações de produção de
uma sociedade. Elas são, portanto, a terceira camada da base social.
Sofia - Entendo.

Alberto - Até aqui podemos concluir, portanto, que para Marx o modo de produção numa sociedade determina que relações
políticas e ideológicas podemos encontrar nela. Não é por acaso que hoje em dia pensamos diferente, e possuímos uma moral
diferente, das pessoas que viviam numa sociedade feudal antiga.
Sofia - Quer dizer que Marx não acreditava num direito natural válido para qualquer época.
Alberto - Não. Para Marx, a resposta à pergunta sobre o que é moralmente correto era um produto da base social. De fato,
não é por acaso que nas antigas comunidades de camponeses os pais determinavam com quem seus filhos deviam se casar.
Afinal, tratava-se também de saber quem herdaria as terras. Numa grande cidade moderna, as relações sociais são outras;
consequentemente, também são outras as formas pelas quais as pessoas buscam seus parceiros. Podemos conhecer nossos
companheiros ou companheiras numa festa, ou então numa discoteca, e, se nos sentimos suficientemente apaixonados um
pelo outro, podemos passar a dividir uma casa ou um apartamento.
Sofia - Eu não ia gostar nada se meus pais escolhessem meu futuro marido.
Alberto - Não, pois você é fruto de sua época. Marx também afirmava que em geral era a classe dominante numa sociedade
que determinava o que é certo e o que é errado. Pois, para ele, toda a história era a história das lutas de classes, ou seja, das
discussões sobre a quem deveriam pertencer os meios de produção.
Sofia - Mas os pensamentos e as idéias das pessoas também não contribuem para as mudanças da história?
Alberto - Sim e não. Marx tinha consciência de que as relações na superestrutura de uma sociedade tinham algum efeito
sobre a sua base. Só que ele negava que a superestrutura tivesse uma história só sua, independente do resto. Para ele, o que
tinha feito a história avançar da sociedade escravocrata da Antigüidade até a sociedade industrial eram sobretudo as
modificações na base da sociedade.
Sofia - Sim, você já disse isso.
Alberto - Em todas as fases da história existe, segundo Marx, um conflito entre duas classes dominantes da sociedade. Na
sociedade escravocrata da Antigüidade havia um conflito entre os cidadãos livres e os escravos; na sociedade feudal da Idade
Média, um conflito entre os senhores feudais e os vassalos e, mais tarde entre nobres e plebeus. Mas no tempo de Marx, numa
sociedade burguesa ou, como dissemos, capitalista, ele via este conflito sobretudo entre capitalistas e trabalhadores ou entre
capitalistas e o proletariado, quer dizer, entre os que possuíam e os que não possuíam os meios de produção. E como a classe
"que estava por cima" jamais abriria mão voluntariamente de sua posição de dominância, só uma revolução seria capaz de
provocar uma modificação nesse estado de coisas.
Sofia - E a sociedade comunista?
Alberto - Marx dedicou-se especialmente à questão da transição de uma sociedade capitalista para uma sociedade comunista.
Para tanto, ele fez uma análise detalhada do modo de produção capitalista. Só que antes de abordarmos esta questão, vamos
falar um pouco sobre o que Marx pensava a respeito do trabalho humano.
136
Sofia - Vamos lá.
Alberto - Antes de se tornar comunista, o jovem Marx interessava-se pelo que realmente acontece com o homem quando ele
trabalha. Hegel também analisou este aspecto e constatou uma relação de troca mútua, uma relação "dialética" entre o homem
e a natureza. O jovem Marx chegou à mesma conclusão: quando o homem altera a natureza, ele mesmo também se altera. Ou,
em outras palavras: quando o homem trabalha, ele interfere na natureza e deixa nela suas marcas; mas neste processo de
trabalho também a natureza interfere no homem e deixa marcas em sua consciência.
Sofia - Diga-me com que trabalhas e te direi quem és.
Alberto - Exatamente. Marx dizia que o modo como trabalhamos marca a nossa consciência, mas a nossa consciência
também marca o modo como trabalhamos. Podemos dizer que existe uma interação entre "mão" e "cabeça". Desta forma, o
conhecimento do homem está intimamente relacionado ao seu trabalho.
Sofia - Então deve ser horrível ficar desempregado.
Alberto - Sim. De certa forma, quem não tem um trabalho está solto no ar. Hegel já havia dito isso. Para Hegel e Marx o
trabalho é uma coisa positiva; uma coisa que pertence à condição humana.
Sofia - Então também deve ser positivo ser um trabalhador.
Alberto - Fundamentalmente, sim. Mas é exatamente sobre este ponto que Marx constrói sua crítica avassaladora do modo de
produção capitalista.
Sofia - Estou curiosa!
Alberto - No sistema capitalista, o trabalhador trabalha para outra pessoa. Dessa forma, seu trabalho é algo externo a ele
mesmo; em outras palavras, seu trabalho não lhe pertence. O trabalhador se aliena em relação ao seu trabalho e, ao mesmo
tempo, em relação a si mesmo. Ele perde sua dignidade humana. Usando uma expressão hegeliana, Marx fala de alienação.
Sofia - Entendo o que você está dizendo. Eu tenho uma tia que embrulha bombons há mais de vinte anos numa fábrica. Ela
diz que odeia ir para o trabalho todos os dias.
Alberto - E se ela odeia seu trabalho, Sofia, de alguma forma ela também se odeia.
Sofia - De qualquer forma ela odeia bombons.
Alberto - Na sociedade capitalista, o trabalho é organizado de modo a que um trabalhador realize um trabalho escravo para
outra classe social. Desta forma, o trabalhador "cede" não apenas sua própria força de trabalho, como também toda a sua
existência humana.
Sofia - Mas é tão ruim assim mesmo?
Alberto - Estamos falando de como Marx via as coisas. Por isso precisamos tomar como ponto de partida as condições
sociais vigentes na Europa por volta de 1850. E nesse caso, a resposta à sua pergunta é "SIM", em alto e bom som. Na grande
maioria dos casos, os trabalhadores cumpriam uma jornada de trabalho de catorze horas dentro de fábricas geladas. E o que
ganhavam era tão pouco, que até crianças e mulheres grávidas tinham de trabalhar. Tudo isto levou a condições sociais
indescritíveis. Muitas vezes, parte do salário era paga em forma de aguardente barata e muitas mulheres tinham de se
prostituir. Seus clientes eram os respeitáveis cidadãos da cidade. Em poucas palavras: o trabalho, que deveria ser um símbolo
da dignidade humana, transformara o trabalhador num verdadeiro animal.
Sofia - Fico furiosa com essas coisas.
Alberto - Marx também ficava. Ao mesmo tempo, os filhos dos burgueses podiam tocar violinos em salões amplos,
aquecidos, depois de terem tomado um banho reconfortante. Ou então podiam sentar-se ao piano, antes de saborear um
delicioso almoço com quatro pratos principais. Muitas vezes eles também tocavam violino ou piano à tardinha, depois de um
longo passeio a cavalo.
Sofia - Que injustiça!
Alberto - Marx também achava. Em 1848, ele publicou junto com Friedrich Engels o famoso Manifesto Comunista. A
primeira frase desse manifesto é a seguinte: "Um fantasma ronda a Europa: o fantasma do comunismo".
Sofia - Puxa... me dá até medo.
Alberto - Pois os burgueses sentiram a mesma coisa. E foi então que o proletariado começou a se rebelar. Você quer ouvir
como termina o manifesto?
Sofia - Quero.
Alberto - Então vamos lá: "Os comunistas não se importam de revelar suas idéias e intenções. Eles declaram abertamente que
seus objetivos só podem ser alcançados por meio de uma violenta revolução de toda a ordem social existente. Que as classes
dominantes tremam diante da revolução comunista. Os proletários não têm nada a perder além de seus grilhões. Eles têm um
mundo a ganhar! Proletários de todo o mundo, uni-vos!"
Sofia - Se as condições de vida eram tão ruins quanto você falou, eu também teria assinado este manifesto. Mas hoje em dia
as coisas mudaram, não é mesmo?
Alberto - Na Noruega sim, mas não em todos os lugares. Ainda há milhões de pessoas vivendo em condições subumanas. Ao
mesmo tempo, essas mesmas pessoas fabricam coisas que deixam cada vez mais ricos os capitalistas. É isto que Marx chama
de exploração.
Sofia - Você poderia explicar um pouco melhor esta palavra?
Alberto - Quando o trabalhador fabrica uma mercadoria, ela tem certo valor de venda.
Sofia - Sim.
Alberto - Se você descontar do preço de venda da mercadoria o salário do trabalhador e outros custos de produção, sempre
acaba sobrando certa quantia. Esta quantia Marx a chama de mais-valia, ou lucro. Isto significa que o capitalista toma para si
um valor que na verdade foi gerado pelo trabalhador. E é isto que Marx chama de exploração.
Sofia - Entendo.
137
Alberto - Pode acontecer, então, de o capitalista aplicar uma parte do lucro em novo capital, por exemplo, na
modernização das instalações de produção. Ele o faz porque quer produzir as mercadorias a preços mais baixos e espera que,
com isto, seus lucros aumentem.
Sofia - Sim, isso é lógico.
Alberto - Sim, isso parece lógico. Mas Marx dizia que nesse caso, como em muitos outros, as coisas não aconteciam no
longo prazo exatamente como o capitalista tinha imaginado.
Sofia - O que ele queria dizer com isso?
Alberto - Marx achava o modo de produção capitalista contraditório em si. Para ele, o capitalismo era um sistema econômico
autodestrutivo, sobretudo porque lhe faltava um controle racional.
Sofia - Quer dizer que no fundo isto era bom para os oprimidos, não era?
Alberto - Podemos dizer que sim. Para Marx, em todo caso, era certo que o sistema capitalista acabaria perecendo vítima de
suas próprias contradições. Ele considerava o capitalismo "progressivo", isto é, algo que aponta para o futuro, mas só porque
via nele um estágio necessário a caminho do comunismo.
Sofia - Você pode me dar um exemplo de como o capitalismo seria autodestrutivo?
Alberto - Sim. Dissemos que o capitalista fica com um excedente de dinheiro e aplica uma parte deste lucro na modernização
de sua empresa. É claro que paralelamente a isto ele tem de pagar as aulas de violino e também arcar com os custos de certos
hábitos caros de sua esposa.
Sofia - Sem dúvida.
Alberto - Mas isto não é tão importante nesse contexto. O capitalista se moderniza, portanto; quer dizer, compra novas
máquinas e por isso não precisa mas de tantos empregados. E o faz para aumentar sua competitividade em relação ás outras
empresas.
Sofia - Entendo.
Alberto - Mas ele não é o único que pensa assim. Isto significa que toda a produção de um setor vai sendo aos poucos
racionalizada e se tornando mais efetiva. As fábricas ficam cada vez maiores e vão caindo nas mãos de uns poucos. E o que
acontece depois, Sofia?
Sofia - Humm...
Alberto - Cada vez se precisa de menos mão de outra e cada vez mais trabalhadores ficam desempregados. Em decorrência
disso agravam-se os problemas sociais. Tais crises, nos diz Marx, seriam o sinal de que o capitalismo estaria se aproximando
de seu fim. Mas Marx vê ainda outros traços autodestrutivos no capitalismo. Para aumentar a margem de lucro ligada aos
meios de produção, sem diminuir a mais-valia que garante a produção a preços competitivos... o que faz o capitalista, hein?
Será que você sabe me dizer?
Sofia - Não, não sei.
Alberto - Imagine que você possui uma fábrica, as finanças não vão muito bem e você corre perigo de abrir falência. O que
você pode fazer para economizar dinheiro?
Sofia - Posso baixar os salários, por exemplo.
Alberto - Muito inteligente! Isto seria realmente a coisa mais inteligente que você poderia fazer. Mas se todos os capitalistas
forem tão espertos quanto você, e eles são, os trabalhadores vão ficar tão empobrecidos que não terão dinheiro para comprar
mais nada. Falamos, neste caso, de uma queda do poder aquisitivo de uma sociedade. E então entramos num círculo vicioso.
Marx achava que a propriedade privada capitalista estava com os dias contados e que a situação descrita acima estava bem
próxima de uma situação revolucionária.
Sofia - Entendo.
Alberto - Para resumir: Marx acreditava que, no fim, os proletários iam acabar se rebelando para tomar o poder sobre os
meios de produção.
Sofia - E depois?
Alberto - Segundo Marx, o resultado disso seria o surgimento de uma nova sociedade de classes, na qual o proletariado
subjugaria à força a burguesia. Esta fase de transição Marx a chama de ditadura do proletariado. Depois disso, acreditava ele,
a ditadura do proletariado daria lugar a uma sociedade sem classes, o comunismo. E esta seria uma sociedade na qual os
meios de produção pertenceriam "a todos", isto é, ao povo. Em tal sociedade, "cada um trabalharia de acordo com sua
capacidade e ganharia de acordo com suas necessidades". O trabalho pertenceria ao próprio povo e terminaria, assim, a
alienação.
Sofia - Isto soa muito bonito. Mas foi mesmo o que aconteceu? Não houve uma revolução?
Alberto - Sim e não. Os cientistas econômicos de hoje provam que Marx estava enganado em vários pontos importantes,
inclusive em suas análises das crises do capitalismo. Marx também não prestou a devida atenção à exploração da natureza,
que para nós é cada vez mais ameaçadora. Apesar disso...
Sofia - Sim?
Alberto - Apesar disso, o marxismo provocou grandes transformações. Não há dúvida de que o socialismo, que se baseia em
Marx em sua luta pela igualdade social, apesar de não concordar com tudo o que ele disse e apesar de rejeitar a ditadura do
proletariado, por exemplo, conseguiu a muito custo chegar a uma sociedade mais humana. Na Europa, pelo menos, vivemos
hoje numa sociedade mais justa e mais solidária do que vivam as pessoas na época de Marx. E não podemos negar que
devemos isso ao movimento socialista como um todo.
Sofia - Dá para explicar um pouco melhor este movimento socialista?
Alberto - Depois de Marx, o movimento socialista dividiu-se em duas correntes principais: de um lado, a democracia social;
de outro, o leninismo. A democracia social, cujo objetivo era encontrar um caminho paulatino e pacífico para uma ordem
138
social mais justa, prevaleceu na Europa ocidental. Podemos chamar o caminho por ela percorrido de uma lenta revolução.
O leninismo, por sua vez, que continuou a acreditar que só uma revolução seria capaz de combater a antiga sociedade de
classes, ganhou importância na Europa oriental, na Ásia e na África. Cada uma dessa ramificações procurou lutar a seu modo
contra a penúria e a opressão.
Sofia - Mas o resultado disso não acabou sendo uma nova forma de opressão? Por exemplo, na União soviética e no Leste
europeu?
Alberto - Sem dúvida. E aqui temos mais uma vez a prova de que tudo o que o homem toca se transforma numa mistura de
bem e de mal. Seria totalmente errôneo responsabilizar Marx pelos descaminhos e pelo lado negro dos chamados países
socialistas cinqüenta ou cem anos depois de sua morte. O que podemos dizer é que ele poderia ter pensado que até mesmo o
comunismo, se é que um dia existiria, não poderia ser administrado senão por pessoas. E as pessoas cometem erros. Não é
possível querer ter o céu na terra. As pessoas sempre criarão novos problemas.
Sofia - Com toda a certeza.
Alberto - Bem, acho que podemos ir colocando um ponto final por aqui, Sofia.
Sofia - Espere um pouco! Você não disse alguma coisa parecida com "só existe justiça entre iguais"?
Alberto - Não. Foi Scrooge quem disse isto.
Sofia - Como é que você sabe que foi ele quem disse isto?
Alberto - Bem, nós dois somos frutos da imaginação do mesmo autor. Deste modo estamos muito mais ligados um ao outro
do que pode parecer à primeira vista.
Sofia - Você e sua ironia incorrigível!
Alberto - Ironia em dose dupla, Sofia.
Sofia - Mas vamos voltar um pouquinho a esta questão da injustiça. Você disse que Marx considerava o capitalismo uma
sociedade injusta. Como você definiria uma sociedade justa?
Alberto - John Rawls, um filósofo da moral de inspiração marxista, sugeriu uma interessante situação hipotética para ilustra
este problema: imagine que você fosse membro de um Alto Conselho, cuja tarefa fosse elaborar todas as leis e uma sociedade
do futuro.
Sofia - Eu bem que gostaria de fazer parte deste Conselho.
Alberto - Os membros do Conselho teriam de pensar em absolutamente tudo, pois assim que estivessem de acordo sobre
todas as questões e assinassem as leis, cairiam mortos.
Sofia - Deus meu!
Alberto - E alguns segundos depois voltariam à vida exatamente na sociedade cujas leis tinham elaborado. E agora vem o
mais importante: nenhum deles saberia onde acordaria nesta sociedade, quer dizer, ninguém saberia qual seria a posição que
iria ocupar dentro dela.
Sofia - Entendo.
Alberto - Tal sociedade seria uma sociedade justa, pois cada um estaria entre seus iguais.
Sofia - E cada uma entre suas iguais!
Alberto - Claro. Isto porque no jogo proposto por Rawls ninguém saberia se acordaria homem ou mulher nesta nova
sociedade. E como as chances eram de cinqüenta por cento para cada probabilidade, a sociedade seria igualmente atrativa
tanto para homens quanto para mulheres.
Sofia - Isto me soa muito atraente.
Alberto - Agora, diga-me: a Europa era uma sociedade assim nos tempos de Marx?
Sofia - Não!
Sofia - Talvez você possa me dar um exemplo de uma sociedade assim em nossos dias...
Alberto - Bem... boa pergunta.
Sofia - Pense sobre o assunto. Por ora chega de Marx.....

Texto II - Composição orgânica do capital e taxa de lucro

De que depende a taxa de lucro que o capitalista pode obter de sua empresa?

Depende da relação entre o capital constante (máquinas, matérias-primas, equipamentos e conhecimento) e o capital variável
(salários). Esta relação é chamada por Marx de COMPOSIÇÃO ORGÂNICA DO CAPITAL.

Quanto mais o capitalista gastar na construção de edifícios, aquisição de máquinas e de matéria-prima em relação ao gasto da
força de trabalho mais alta será composição orgânica do capital e menor será portanto a taxa de lucro.

A composição orgânica do capital cresce com o desenvolvimento da técnica e a taxa de lucro tem que baixar ao mesmo
tempo.

(do livro: Manual de Economia Política, Lapidus e Ostrovitianov, Global Editora, 1978, pag. 173-174)
-------------------------
Composição orgânica do Capital no mundo de hoje - "A partir da década de 80, a substituição do trabalho vivo por
trabalho morto tem atingido proporções inéditas na história do modo de produção capitalista. A generalização da automação
na quase totalidade da produção e dos serviços e a introdução de novos métodos organizativos têm gerado uma considerável
139
redução da força de trabalho empregada. O medo do desemprego - resultante desse processo, que se convencionou
chamar reestruturação produtiva - permite aos capitalistas precarizar as relações formais de trabalho, retirar direitos dos
trabalhadores e reduzir a massa salarial.

O modo capitalista de produção se desenvolve pela acumulação de capital. Esta acumulação implica na mobilização de uma
quantidade cada vez maior de meios de produção, que absorvem funções que anteriormente faziam parte da atividade humana
por meio de ferramentas. Esta substituição do homem por máquinas - trabalho vivo humano por trabalho morto objetivado -
aumenta a proporção das máquinas no total do capital empregado, fenômeno que Marx chamou de aumento da composição
orgânica do capital.

Para permanecer na concorrência, um número cada vez menor de capitalistas é capaz de fazer frente à necessidade de grandes
investimentos. Na configuração atual do capitalismo, a acumulação se torna atributo de um pequeno número de empresas,
mais produtivas, com um número menor de trabalhadores.

O desemprego e a precarização das relações de trabalho atingem em cheio a composição da classe operária. Aumenta a
distância entre a aristocracia operária e o conjunto da classe. A terceirização opõe trabalhadores com contrato de trabalho
regular aos terceirizados. Diferenças regionais, raciais, de idade e de gênero muitas vezes acentuam esta diferenciação.

No discurso dominante, os trabalhadores estariam a salvo do desemprego pela qualificação, que deve ser obtida por eles
próprios e através de seus sindicatos. Porém, a exigência da qualificação é apenas formal. A norma é a perpetuação de tarefas
repetitivas e monótonas, mesmo com a introdução de equipamentos mais sofisticados tecnologicamente. A exigência de
qualificação (escolaridade, treinamento e polivalência, ou seja, domínio de múltiplas especialidades) tem um caráter de
cooptação de parcelas da classe operária.

O chamado toyotismo, que substituiu as formas fordistas de produção, foi implantado - primeiro no Japão e depois no resto
do mundo capitalista - justamente para radicalizar o processo de cooptação dos trabalhadores. Medidas como controles
coletivos de qualidade no processo industrial e a abolição de chefias são destinadas a introjetar nos próprios trabalhadores o
seu compromisso com os destinos da empresa, a maximização dos lucros capitalistas e a própria exploração, fato acentuado
recentemente pela implantação da Participação nos Lucros ou Resultados.

A conseqüência mais visível do processo de reestruturação produtiva é uma diferenciação interna da classe operária, opondo
trabalhadores regularmente contratados a desempregados, informais, terceirizados, precários e àqueles contratados
temporariamente ou a tempo parcial. Esta diferenciação é superficial, já que os fundamentos da exploração da mais valia
permanecem incólumes. Os que ainda trabalham de forma regular - dentro do arcabouço da legislação trabalhista - têm
"privilégios" voláteis, pois não têm garantias de emprego e seus direitos sociais estão sendo extintos.
Estas são algumas características atuais da classe operária:

• perda de direitos e conquistas sociais e trabalhistas;


• diferenciação pela precarização, terceirização, informalidade e desemprego;
• técnicas de cooptação, entremeadas por coerção aberta, mais sofisticadas e introjetadas pelos próprios
trabalhadores;
• exigências de qualificação formal cada vez mais excludentes" (fonte: do Texto PCB e o Sindicalismo)

Entrevista: A escravidão contemporânea - Com o desenvolvimento capitalista, muda a composição orgânica do


capital, isto é, a proporção de capital constante se torna maior em relação ao capital variável - os dispêndios em máquinas,
matérias-primas, equipamentos e conhecimento (capital constante) superam os dispêndios com o pagamento de salários
(capital variável), porque o trabalho é a única mercadoria que pode produzir mais valor do que aquele nela contido, do que
aquilo que foi necessário para que o trabalhador se reproduzisse como ser de trabalho).

Um capital de composição orgânica alta é um capital moderno, avançado: o trabalho propriamente dito tem nele participação
menor que a dos meios de produção.

Nas sociedades ou nos setores econômicos em que não é possível esse desenvolvimento da composição orgânica do capital, o
que faz o próprio capital? Ele reduz os dispêndios com salários, não mediante o desenvolvimento tecnológico, mas pagando
menos pela atividade do trabalhador, sem levar em conta o que é necessário à sua reprodução como pessoa, como trabalhador
para o capital. Com isso, a composição orgânica parece alta e funciona como se fosse alta, moderna e avançada. No entanto,
esse artifício resulta de uma efetiva redução nos direitos do trabalhador, até mesmo no direito à sobrevivência (Fonte:
http://www.uol.com.br/cienciahoje/chmais/pass/ch168/entrevis.pdf - Entrevista com José de Souza Martins)

Texto III - A mais-valia


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(Do Livro: Filosofando, Introdução à Filosofia, de Maria Lúcia de Arruda Aranha e M. Helena Pires Martins, Ed. Moderna, pág. 89,
1993, São Paulo)

O sistema capitalista consiste na produção de mercadorias. Mercadoria é tudo o que é produzido não tendo em vista o valor
de uso (por exemplo, uma malha que fazemos para nosso próprio uso), mas tem por objetivo o valor de troca, isto é, a venda
do produto. Sendo a mercadoria um produto do trabalho, o seu valor é determinado pelo total de trabalho socialmente
necessário para produzi-la. Como a mercadoria é produzida?

Para sobreviver, o trabalhador vende ao capitalista a única mercadoria que possui, que é a capacidade de trabalhar. Qual deve
ser o valor da força de trabalho? Sendo um ser vivo, o trabalhador precisa receber o necessário para a subsistência e
reprodução de sua capacidade de trabalho, ou seja, alimento, roupa, moradia, possibilidade de criar os filhos, etc. O salário
deve portanto corresponder ao custo de sua manutenção e de sua família.
O operário se distingue dos escravos e dos servos por receber um salário a partir do contrato livremente aceito entre as partes.
No entanto, na obra O capital, Marx explica que a relação de contrato é livre só na aparência e que, na verdade, o
desenvolvimento do capitalismo supõe a exploração do trabalho do operário. Isso porque o capitalista contrata o operário para
trabalhar durante um certo período de horas a fim de alcançar determinada produção. Mas o trabalhador, estando disponível
todo o tempo, na verdade produz mais do que foi calculado, ou seja, a força de trabalho pode criar um valor superior ao
estipulado inicialmente. No entanto, a parte do trabalho excedente não e paga ao operário, e serve para aumentar cada vez
mais o capital.

Marx diz que, ao comprar a força de trabalho, o capitalista "adquire o direito de servir-se dela ou de fazê-la funcionar durante
todo o dia ou toda a semana (...) Como vendeu sua força de trabalho ao capitalista, todo o valor, ou todo o produto por ele
[pelo operário] criado pertence ao capitalista, que é dono de sua força de trabalho, pro tempore. Por conseguinte,
desembolsando 3 xelins, o capitalista realizará o valor de 6, pois com o desembolso de um valor no qual se cristalizam seis
horas de trabalho receberá em troca um valor no qual estão cristalizadas doze horas. Se repete, diariamente, essa operação, o
capitalista desembolsará 3 xelins por dia e embolsará 6, cuja metade tornará a inverter no pagamento de novos salários,
enquanto a outra metade formará a mais-valia, pela qual o capitalista não paga equivalente algum. Esse tipo de intercâmbio
entre o capital e o trabalho é o que serve de base à produção capitalista, ou ao sistema do salariado, e tem de conduzir, sem
cessar, à constante reprodução do operário como operário e do capitalista como capitalista"

Chama-se mais-valia, portanto, ao valor que o operário cria além do valor de sua força de trabalho, e que é apropriado pelo
capitalista.

Texto IV - O Espírito Capitalista


*Frei Betto - (artigo publicado no jornal "Estado de São Paulo", 14/06/2000)
O sistema capitalista, que deita raízes na quebra da sociedade feudal e no advento da manufatura, alavancou-se com a
revolução industrial, no século 19. Expandiu-se, acelerou a pesquisa científica e o progresso técnico. Aumentou a
produção e agravou a desigualdade na distribuição de bens. De seu ventre contraditório surgiu o socialismo, que
aprimorou a distribuição sem conseguir desenvolver a produção. A onda neoliberal derrubou o socialismo europeu qual
castelo de areia.

Hoje, o capitalismo é vitorioso para as nações da União Européia e da América do Norte (excluindo o México). No resto
do mundo, deixa um lastro de miséria e pobreza, conflitos e mortes, salvando-se as elites que, em seus respectivos países,
gerenciam os negócios segundo o velho receituário colonial, agora prescrito pelo FMI: tudo para o benefício da
metrópole.

Em plena globocolonização, o capitalismo é também vitorioso em corações e mentes. Mas não em todos. Há ricos,
remediados e pobres que não têm espírito capitalista. São pessoas generosas, altruístas, capazes de se debruçar perante o
sofrimento alheio e de estender a mão em solidariedade a causas coletivas.

A tendência do espírito capitalista é aguçar o egoísmo; dilatar ambições de consumo; ativar energias narcísicas; tornar-
nos competitivos e sedentos de lucro. Criar pessoas menos solidárias, mais insensíveis às questões sociais, indiferentes à
miséria, alheias ao drama de índios e negros, distantes de iniciativas que visam a defender os direitos dos pobres. Aos
poucos, o espírito capitalista molda em nós esse estranho ser que aceita, sem dor, a desigualdade social; assume a cultura
da glamourização do fútil; diverte-se com entretenimentos que exaltam a violência, banalizam a pornografia e
ridicularizam pobres e mulheres, como são exemplos certos programas de humor na TV.

O capitalismo promove tamanha inversão de valores em nossa consciência que defeitos qualificados pelo cristianismo de
"pecados capitais" são tidos como virtudes: a avareza, o orgulho, a luxúria, a inveja e a cobiça.
141
O capitalismo é irmão gêmeo do individualismo. Ao exaltar como valores a competição, a riqueza pessoal, o
acúmulo de posses, interioriza em nós ambições que nos afastam do esforço coletivo de conquista de direitos para nos
mergulhar na ilusão pessoal de que, um dia, também galgaremos, como alpinistas sociais, o pico da fortuna e do sucesso.

A magia capitalista dissolve, pelo calor de sua sedução, todo conceito gregário, como nação ou povo. O que há são
indivíduos atomizados, premiados pela loteria biológica por não terem nascido entre os pobres ou pela roda da fortuna,
que os fez ascender miraculosamente para o universo em que os sofrimentos morais são camuflados sob o brilho da
opulência.

O espírito capitalista não faz distinção de classe: inocula-se no favelado e na empregada doméstica, no camponês e no
motorista de táxi. E induz ricos, remediados e pobres à apropriação privada, não apenas de bens materiais, mas também
de bens simbólicos: oro para alívio dos meus problemas e a cura de minhas doenças; voto no candidato que melhor
corresponde às minhas ambições; adoto um comportamento que realça a minha figura e o meu prestígio.

Esse espectro de ser humano não conhece a cooperação e a gratuidade; considera a generosidade uma humilhação;
encara a pobreza insubmissa como caso de polícia; faz da função de mando uma segunda pele; trata os subalternos com
desdém. O mundo centra-se em seu umbigo. Ainda que não tape as orelhas ao ouvir falar em "amor ao próximo", do
outro ele se faz próximo quando estão em jogo seus interesses. Mas prefere distância se o outro sofre, decai socialmente
ou mergulha em fracasso. Seu espelho é o da bruxa que indaga: "Há alguém tão bem-sucedido quanto eu?" Se a resposta
for positiva, então quer conhecê-lo, adulá-lo, idolatrá-lo, como a um ícone religioso do qual se esperam graças e
proveitos.

Capitalista não é apenas o banqueiro, o Tio Patinhas. É também o Donald, que se submete a seus caprichos. O mundo é,
para ele, um jogo de espelhos, no qual se vê projetado nas mais variadas dimensões. Ele inveja os que estão acima dele e
nutre ódio por quem o ameaça como concorrente. Quando se faz religioso, é para ganhar o Céu, já que a Terra lhe
pertence. Dá esmolas, mas não direitos; acende velas, nunca esperanças; prega a mudança de coração, não da sociedade;
é capaz de reconhecer Cristo na eucaristia, jamais no rosto de quem padece fome, é sem-terra ou sem-teto.

Horroriza-nos pensar que, outrora, a sociedade praticou o canibalismo. Quiçá alimentar-se com a carne do semelhante,
em vez de entregá-la ao repasto dos vermes, seja mais saudável e ético do que, hoje, excluí-lo do direito de ser,
simplesmente, humano.

Texto V - A perspectiva Marxista - Marilena Chauí


(Do livro: Filosofia. Ed. Ática, São Paulo, ano 2000, pág. 214-219)

Marx parte da crítica da economia política. A expressão economia política é curiosa. Com efeito, a palavra economia vem do
grego, oikonomia, composta de dois vocábulos, oikos e nomos.

Oikos é a casa ou família, entendida como unidade de produção (agricultura, pastoreio, edificações, artesanato, trocas de bens
entre famílias ou trocas de bens por moeda, etc.). Nomos significa regra, acordo convencionado entre seres humanos e por
eles respeitado nas relações sociais. Oikonomia é, portanto, o conjunto de normas de administração da propriedade
patrimonial ou privada, dirigida pelo chefe da família, o despótes.

Os gregos inventaram a política porque separaram o espaço privado – a oikonomia – e o espaço público das leis e do direito –
a polis. Como, então, falar em “economia política”? Os dois termos não se excluem reciprocamente?

A crítica da economia política consiste, justamente, em mostrar que, apesar das afirmações greco-romanas e liberais de
separação entre a esfera privada da propriedade e a esfera pública do poder, a política jamais conseguiu realizar a diferença
entre ambas. Nem poderia. o poder político sempre foi a maneira legal e jurídica pela qual a classe economicamente
dominante de uma sociedade manteve seu domínio. O aparato legal e jurídico apenas dissimula o essencial: que o poder
político existe como poderio dos economicamente poderosos para servir seus interesses e privilégios e garantir-lhes a
dominação social. Divididas entre proprietários e não-proprietários (trabalhadores livres, escravos, servos), as sociedades
jamais foram comunidades de iguais e jamais permitiram que o poder político fosse compartilhado com os não-proprietários.

Por que a expressão economia política tornou-se possível na modernidade e, doravante, visível?

Porque a idéia moderna liberal de sociedade civil tornou explícita a significação da economia política, ainda que a ideologia
liberal exista para esconder tal fato.

De fato, a economia política surge como ciência no final do século XVIII e início do XIX, na França e na Inglaterra, para
combater as limitações que o Antigo Regime impunha ao capitalismo. As restrições econômicas próprias da sociedade feudal
e o controle da atividade mercantil pelo estado monárquico eram vistos como prejudiciais ao desenvolvimento da “riqueza
142
das nações”. Baseando-se nos mesmos princípios que criaram o liberalismo político, a economia política é elaborada
como liberalismo econômico.

Diferentemente dos gregos, que definiram o homem como animal político, e diferentemente dos medievais, que definiram o
homem como ser sociável, a economia política define o homem como indivíduo que busca a satisfação de suas necessidades,
consumindo o que a Natureza lhe oferece ou trabalhando para obter riquezas e bem-estar. Por ser mais vantajosa aos
indivíduos a vida em comum, pactuam para criar a sociedade e o Estado.

As idéias de Estado, de Natureza e de direito natural conduziram a duas noções essenciais à economia política: a primeira é a
noção de ordem natural racional, que garante a todos os indivíduos a satisfação de suas necessidades e seu bem estar; a
segunda é a noção de que, seja por bondade natural, seja por egoísmo, os homens agem em seu próprio benefício e interesse
e, assim fazendo, contribuem para o bem coletivo ou social. A propriedade privada é natural e útil socialmente, além de
legítima moralmente, porque estimula o trabalho e cm bate o vício da preguiça.

A economia política buscará as leis dos fenômenos econômicos na natureza humana e os efeitos das causas econômicas sobre
a vida social. Visto que a ordem natural é racional e que os seres humanos possuem liberdade natural, a economia política
deverá garantir que a racionalidade natural e a liberdade humana se realizem por si mesmas, sem entraves e sem limites.

Para alguns economistas políticos, como Adam Smith, a concorrência (ou lei econômica da oferta e da procura) é responsável
pela riqueza social e pela harmonia entre interesse privado e interesse coletivo. Para outros, como David Ricardo, as leis
econômicas revelam antagonismos entre os vários interesses dos grupos sociais. Assim, por exemplo, a diferença entre o
preço das mercadorias e os salários indica uma oposição de interesses na sociedade, de modo que a concorrência exprime
esses conflitos sociais. Em ambos os casos, porém, a economia se realiza como sociedade civil capaz de se auto-regular, sem
que o Estado deve interferir na sua liberdade. Donde o liberalismo econômico fundando o liberalismo político.

Marx indaga: O que é a Sociedade Civil? E responde: Não é a manifestação de uma ordem natural racional nem o
aglomerado conflitante de indivíduos, famílias, grupos e corporações, cujos interesses antagônicos serão conciliados pelo
contrato social, que instituiria a ação reguladora e ordenadora do Estado, expressão do interesse e da vontade gerais.

A sociedade civil é o sistema de relações sociais que organiza a produção econômica (agricultura, indústria e o comércio),
realizando-se através de instituições sociais encarregadas de reproduzi-lo (família, igrejas, escolas, polícia, partidos políticos,
meios de comunicação, etc.) É o espaço onde as relações sociais e suas formas econômicas e institucionais são pensadas,
interpretadas e representadas por um conjunto de idéias morais, religiosas, jurídicas, pedagógicas, artísticas, científico-
filosóficas e políticas.

A Sociedade Civil é o processo de constituição e reposição das condições materiais da produção econômica pelas quais são
engendradas as classes sociais: os proprietários privados dos meios de produção e os trabalhadores ou não-proprietários, que
vendem sua força de trabalho como mercadoria submetida à lei da oferta e da procura no mercado de mão-de-obra. Essas
classes sociais são antagônicas e seus conflitos revelam uma contradição profunda entre os interesses irreconciliáveis de cada
uma delas, isto é, a sociedade civil se realiza como luta de classes.

Sem dúvida, os liberais estão certos quando afirmam que a sociedade civil, por ser esfera econômica, é a esfera dos interesses
privados, pois é exatamente isso o que ela é.

O que é, porém, o Estado? - Longe de diferenciar-se da sociedade civil e de separar-se dela, longe de ser a expressão da
vontade geral e do interesse geral, o Estado é a expressão legal – jurídica e policial – dos interesses de uma classe social
particular, a classe dos proprietários privados dos meios de produção ou classe dominante. E o Estado não é uma imposição
divina aos homens, nem é o resultado de um pacto ou contrato social, mas é a maneira pela qual a classe dominante de uma
época e de uma sociedade determinadas garante seus interesses e sua dominação sobre o todo social.

O Estado é a expressão política da luta econômico-social das classes, amortecida pelo aparato da ordem (jurídica) e da força
pública (policial e militar). Não é, mas aparece como um poder público distante e separado da sociedade civil. Não por acaso,
o liberalismo define o Estado como garantidor do direito de propriedade privada e, não por acaso, reduz a cidadania aos
direitos dos proprietários privados (a ampliação da cidadania foi fruto de lutas populares contra as idéias e práticas liberais).

A economia, portanto, jamais deixou de ser política. Simplesmente, no capitalismo, o vínculo interno e necessário entre
economia e política tornou-se evidente.

No entanto, se perguntarmos às pessoas que vivem no Estado liberal capitalista se, para elas, é evidente tal vínculo,
certamente dirão que não. Por que o vínculo interno entre o poder econômico e o poder político permanece invisível aos
olhos da maioria?

Marx faz duas indagações:


143

1. Como surgiu o Estado? Isto é, como os homens passaram da submissão ao poder pessoal visível de um senhor à
obediência ao poder impessoal invisível de um Estado?
2. Por que o vínculo entre o poder econômico e o poder político não é percebido pela sociedade e, sobretudo, por que não é
percebido pelos que não têm poder econômico nem político?

Gênese da sociedade e do Estado – Dissemos que Marx indaga como os homens passaram da submissão ao poder pessoal
de um senhor à obediência do poder impessoal do Estado. Para responder a essa questão, é preciso desvendar a gênese do
Estado.

Os seres humanos, escrevem Marx e Engels, distinguem-se dos animais não porque sejam dotados de consciência –animais
racionais – nem porque sejam naturalmente sociáveis e políticos – animais políticos -, mas porque são capazes de produzir as
condições de sua existência material e intelectual. Os seres humanos são produtores: são o que produzem e são como
produzem.

A produção das condições materiais e intelectuais da existência não são escolhidas livremente pelos seres humanos, mas
estão dadas objetivamente, independentemente de nossa vontade. Eis por que Marx diz que os homens fazem sua própria
história, mas não a fazem em condições escolhidas por eles. São historicamente determinados pelas condições em que
produzem suas vidas.

A produção material intelectual da existência humana depende de condições naturais (as do meio ambiente e as biológicas da
espécie humana) e da procriação. Esta não é apenas um dado biológico (a diferença sexual necessária para a reprodução), mas
já é social, pois decorre da maneira como se dá o intercâmbio e a cooperação entre os humanos e do modo como é
simbolizada psicológica e culturalmente a diferença dos sexos. Por seu turno, a maneira como os humanos interpretam e
realizam a diferença sexual determina o modo como farão a divisão social do trabalho, distinguindo trabalhos masculinos,
femininos, infantis e de velhice.

A produção e a reprodução das condições de existência se realizam, portanto, através do trabalho (relação com a Natureza),
da divisão social do trabalho (intercâmbio e cooperação), da procriação (sexualidade e instituição da família) e do modo de
apropriação da Natureza (a propriedade).

Esse conjunto de condições forma, em cada época, a sociedade e os sistema das formas produtivas que a regulam, segundo a
divisão social do trabalho. Essa divisão, que começa na família, com a diferença sexual das tarefas, prossegue na distinção
entre agricultura e pastoreio, entre ambas e o comércio, conduzindo à separação entre o campo e a cidade. Em cada uma das
distinções operam novas divisões sociais do trabalho.

A divisão social do trabalho não é uma simples divisão de tarefas, mas a manifestação da existência da propriedade, ou seja, a
separação entre as condições e os instrumentos do trabalho e o próprio trabalho, incidindo, a seguir, sobre a forma de
distribuição dos produtos do trabalho. A propriedade introduz a existência dos meios de produção (condições e instrumentos
de trabalho) como algo diferente das forças produtivas (trabalho).

Analisando as diferentes formas de propriedade, as diferentes formas de relação entre meios de produção e forças
produtivas, as diferentes formas de divisão social do trabalho decorrentes das formas de propriedade e das relações entre os
meios de produção e as forças produtivas, é possível perceber a seqüência do processo histórico e as diferentes modalidades
de sociedade.

A propriedade começa como propriedade tribal e a sociedade tem a forma de uma comunidade baseada na família (a
comunidade é vista como a família ampliada à qual pertencem todos os membros do grupo) Nela prevalece a hierarquia
definida por tarefas, funções, poderes e o consumo.

Essa forma de propriedade se transforma numa outra, a propriedade estatal, ou seja, a propriedade do Estado, cujo dirigente
determina o modo de relações dos sujeitos com ela: em certos casos (como na Índia, na China, na Pérsia), o Estado é o
proprietário único e permite as atividades econômicas mediante pagamento de tributos, impostos e taxas; em outros casos
(Grécia, Roma), o Estado cede, mediante certas regras, a propriedade às grandes famílias, que se tornam proprietárias
privadas.

A sociedade se divide, agora, entre senhores e escravos. Nos grandes impérios orientais, os senhores se ocupam da guerra e
da religião; na Grécia e em Roma, tornam-se cidadãos e ocupam-se da política, além de possuírem privilégios militares e
religiosos, vivem nas cidades e em luta permanente com os que permaneceram no campo, bem como com os homens livres
que trabalham nas atividades urbanas (artesanato e comércio) e com os escravos (do campo e da cidade).

A terceira forma de propriedade é a feudal, apresentando-se como propriedade privada da terra pelos senhores e propriedade
dos instrumentos de trabalho pelos artesãos livres, membros das corporações dos burgos. A terra é trabalhada por servos da
144
gleba e a sociedade se estrutura pela divisão entre nobreza fundiária e servos (no campo) e artesãos livres e aprendizes (na
cidade). As lutas entre comerciantes e nobres, o desenvolvimento dos burgos, do artesanato e da atividade comercial
conduzem à mudança que conhecemos: a propriedade privada capitalista.

Essa nova forma de propriedade possui características inéditas e é uma verdadeira revolução econômica, porque realiza a
separação integral entre proprietários dos meios de produção e forças produtivas, isto é, entre as condições e os instrumentos
de trabalho, possuem o controle da distribuição e do consumo dos produtos. No outro pólo social, encontram-se os
trabalhadores como massa de assalariados inteiramente expropriada dos meios de produção, possuindo apenas a força do
trabalho, colocada à disposição dos proprietários dos meios de produção, no mercado de compra e venda da mão-de-obra.

Essas diferentes formas da propriedade dos meios de produção e das relações com as forças produtivas ou de determinações
sociais decorrentes da divisão social do trabalho constituem os modos de produção.

Marx e Engels observaram que, a cada modo de produção, a consciência dos seres humanos se transforma. Descobriram que
essas transformações constituem a maneira como, em cada época, a consciência interpreta, compreende e representa para si
mesma o que se passa nas condições materiais de produção e reprodução da existência. Por esse motivo, afirmaram que, ao
contrário do que se pensa, não são as idéias humanas que movem a História, mas são as condições históricas que produzem as
idéias.

Na obra Contribuição à crítica da economia política, Marx escreve:

O conjunto das relações de produção que corresponde ao grau de desenvolvimento das forças produtivas materiais
constitui a estrutura econômica da sociedade, a base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e
política e à qual correspondem determinadas formas de consciência social. O modo de reprodução de vida material
determina o desenvolvimento da vida social, política e intelectual em geral. Não é a consciência dos homens que
determina o seu ser; é o seu ser social que, inversamente, determina sua consciência.

É por afirmar que a sociedade se constitui a partir de condições materiais de produção e da divisão social do trabalho, que as
mudanças históricas são determinadas pelas modificações naquelas condições materiais e naquela divisão do trabalho, e que a
consciência humana é determinada a pensar as idéias que pensa por causa das condições materiais instituídas pela sociedade,
que o pensamento de Marx e Engels é chamado de materialismo histórico.

Materialismo porque somos o que as condições materiais (as relações sociais de produção) nos determinam a ser e a pensar.

Histórico porque a sociedade e a política não surgem de decretos divinos nem nascem da ordem natural, mas dependem da
ação concreta dos seres humanos no tempo.

A história não é um progresso linear e contínuo, uma seqüência de causas e efeitos, mas um processo de transformações
sociais determinadas pelas contradições entre os meios de produção (a forma da propriedade) e as forças produtivas (o
trabalho, seus instrumentos, as técnicas). A lua de classe exprime tais contradições e é o motor da História. Por afirmar que o
processo histórico é movido por contradições sociais, o materialismo histórico é dialético.

As relações sociais de produção não são responsáveis apenas pela gênese da sociedade, mas também pela do Estado, que
Marx designa como superestrutura jurídica e política, correspondente à estrutura econômica da sociedade.

Qual a gênese do Estado? Conflitos entre proprietários privados dos meios de produção e contradições entre eles e os não-
proprietários (escravos, servos, trabalhadores livres). Os conflitos entre proprietários e as contradições entre proprietários e
não-proprietários aparecem para a consciência social sob a forma de conflitos e contradições entre interesse particulares e o
interesse geral. Aparecem dessa maneira, mas não são realmente como aparecem. Em outras palavras, onde há propriedade
privada, há interesse privado e não pode haver interesse coletivo ou geral.

Os proprietários dos meios de produção podem ter interesses comuns, pois necessitam do intercâmbio e da cooperação para
manter e fazer crescer a propriedade de cada um. Assim, embora estejam em concorrência e competição, precisam estabelecer
certas regras pelas quais não se destruam reciprocamente nem às suas propriedades.

Sabem também que não poderão resolver as contradições com os não-proprietários e que estes podem por revoltas e
revoluções populares, destruir a propriedade privada. É preciso, portanto, que os interesses comuns entre os proprietários dos
meios de produção e a força para dominar os não-proprietários sejam estabelecidos de maneira tal que pareçam corretos,
legítimos e válidos para todos. Para isso, criam o Estado como poder separado da sociedade, portador do direito e das leis,
dotado de força para usar a violência na repressão de tudo quanto pareça perigoso à estrutura econômica existente.
145
No caso do poder despótico, a legitimação é feita pela divinização do senhor: o detentor do poder (um indivíduo, uma
família ou um grupo de famílias) apresenta-se como filho de um humano e de uma divindade, isto é, o nascimento justifica o
poderio. No caso do poder teocrático, a legitimação é feita pela sacralização do governante: o detentor do poder o recebe
diretamente de Deus. No caso das repúblicas (democracia grega, o senado e o povo romano), a legitimação é feita pela
instituição do direito e das leis que definem quem pode ser cidadão e participar do governo.

Nos três casos, a divisão social parece como hierarquia divina e/ou natural, que justifica a exclusão dos não-proprietários do
poder e sobretudo estabelece princípios (divinos ou naturais) para a submissão e a obediência, transformadas em obrigações.

No caso do Estado moderno, as idéias de estado de natureza, direito natural, contrato social e direito civil fundam o poder
político na vontade dos proprietários dos meios de produção, que se apresentam como indivíduos livres e iguais que
transferem seus direitos naturais ao poder político, instituindo a autoridade do Estado e das leis.

Eis por que o Estado precisa aparecer como expressão do interesse geral e não como senhorio particular de alguns poderosos.
Os não-proprietários podem recusar, como fizeram inúmeras vezes na História, o poder pessoal visível de um senhor, mas
não o fazem quando se trata de um poder distante, separado, invisível e impessoal como o do Estado. Julgando que este se
encontra a serviço do bem comum, da justiça, da ordem, da lei, da paz e da segurança, aceitam a dominação, pois não a
percebem como tal.

Resta a segunda indagação de Marx, qual seja, por que os sujeitos sociais não percebem o vínculo entre o poder econômico e
o poder político?

Ideologia - ... Marx afirma que a consciência humana é sempre social e histórica, isto é, determinada pelas condições
concretas de nossa existência.

Isso não significa, porém, que nossas idéias representem a realidade tal como esta é em si mesmo. Se assim fosse, seria
incompreensível que os seres humanos, conhecendo as causas da exploração, da dominação, da miséria e da injustiça nada
fizessem conta elas. Nossas idéias, historicamente determinadas, têm a peculiaridade de nascer a partir de nossa experiência
social direta. A marca da experiência social é oferecer-se como uma explicação da aparência das coisas como se esta fosse a
essência das próprias coisas.

Não só isso. As aparências – ou o aparecer social à consciência – são aparências justamente porque nos oferecem o mundo de
cabeça para baixo: o que é causa parece ser efeito, o que é efeito parece ser causa. Isso não se dá apenas no plano da
consciência individual, mas sobretudo no da consciência social, isto é, no conjunto de idéias e explicações que uma sociedade
oferece sobre si mesma.

Feuerbach estudara esse fenômeno na religião, designando-o com o conceito de alienação. Marx interessa-se por esse
fenômeno porque o percebeu em outras esferas da vida social, por exemplo, na política, que leva os sujeitos sociais a
aceitarem a dominação estatal porque não reconhecem quem são os verdadeiros criadores do Estado.

Ele o observou também na esfera da economia: no capitalismo, os trabalhadores produzem todos os objetos existentes no
mercado, todas as mercadorias; após havê-las produzido, as entregam aos proprietários dos meios de produção, mediante um
salário; quando vão ao mercado não conseguem comprar essas mercadorias. Olham os preços, contam o dinheiro e voltam par
casa de mãos vazias, como se o preço das mercadorias existisse por si mesmo e como se elas estivessem à venda porque
surgiram do nada e alguém as decidiu vender. Em outras palavras, os trabalhadores não só não se reconhecem como autores
ou produtores das mercadorias, mas ainda acreditam que elas valem o preço que custam e que não podem tê-las porque valem
mais do que eles. Alienaram dos objetos seu próprio trabalho e não se reconhecem como produtores da riqueza e das coisas.

A inversão entre causa e efeito, princípio e conseqüência, condição e condicionado leva à produção de imagens e idéias que
pretendem representar a realidade. As imagens formam um imaginário social invertido – um conjunto de representações
sobre os seres humanos e suas relações, sobre as coisas, sobre o bem e o mal, o justo e o injusto, os bons e os maus costumes,
etc. Tomadas como idéias, essas imagens ou esse imaginário social constituem a ideologia.

A ideologia é um fenômeno histórico-social decorrente do modo de produção econômico.

À medida que, numa formação social, uma forma determinada da divisão social se estabiliza, se fixa e se repete, cada
indivíduo passa a ter uma atividade determinada e exclusiva, que lhe é atribuída pelo conjunto das relações sociais, pelo
estágio das forças produtivas e pela forma da propriedade.

Cada um, por causa da fixidez e da repetição de seu lugar e de sua atividade, tende a considerá-los naturais (por exemplo,
quando alguém julga que faz o que faz porque tem talento ou vocação natural para isso; quando alguém julga que, por
natureza, os negros foram feitos para serem escravos; quando alguém julga que, por natureza, as mulheres foram feitas para a
maternidade e o trabalho doméstico).
146

A naturalização surge sob a forma de idéias que afirmam que as coisas são como são porque é natural que assim sejam. As
relações sociais passam, portanto, a ser vistas como naturais, existentes em si e por si, e não como resultados da ação humana.
A naturalização é a maneira pela qual as idéias produzem alienação social, isto é, a sociedade surge como uma força natural
estranha e poderosa, que faz com que tudo seja necessariamente como é. Senhores por natureza, escravos por natureza,
cidadãos por natureza, proprietários por natureza, assalariados por natureza, etc..

A divisão social do trabalho, iniciada na família, prossegue na sociedade e, à medida que esta se torna mais complexa, leva a
uma divisão ente dois tipos fundamentais de trabalho: o trabalho material de produção de coisas e o trabalho intelectual de
produção de idéias. No início, essa segunda forma e trabalho social é privilégio dos sacerdotes; depois, torna-se função de
professores e escritores, artistas e cientistas, pensadores e filósofos.

Os que produzem idéias separam-se dos que produzem coisas, formando um grupo à parte. Pouco a pouco, à medida que vão
ficando cada vez mais distantes e separados dos trabalhadores materiais, os que pensam começam a acreditar que a
consciência e o pensamento estão, em si e por si mesmos, separados das coisas materiais, existindo em si e por si mesmos.
Passam a acreditar na independência entre a consciência e o mundo material, entre o pensamento e as coisas produzidas
socialmente. Conferem autonomia à consciência e às idéias e, finalmente, julgam que as idéias não só explicam a realidade,
mas produzem o real. Surge a ideologia como crença na autonomia das idéias e na capacidade de as idéias criarem a
realidade.

Ora, o grupo dos que pensam – sacerdotes, professores, artistas, filósofos, cientistas – não nasceu do nada. Nasceu não só da
divisão social do trabalho, mas também de uma divisão no interior da classe dos proprietários ou classe dominante de uma
sociedade. Como conseqüência, o grupo pensante (os intelectuais) pensa com as idéias dos dominantes; julga, porém, que tais
idéias são verdadeiras em si mesmas e transformam idéias de uma classe social determinada em idéias universais e
necessárias, válidas para a sociedade inteira.

Como o grupo pensante domina a consciência social, tem o poder de transmitir as idéias dominantes para toda a sociedade,
através da religião, das artes, da escola, da ciência, da filosofia, dos costumes, das leis e do direito, moldando a consciência
de todas as classes sociais e uniformizando o pensamento de todas as classes.

Os ideólogos são membros da classe dominante e das classes aliadas a ela, que, como intelectuais, sistematizam as imagens e
as idéias sociais da classe dominante em representações coletivas, gerais e universais. Essas imagens e idéias não exprimem a
realidade social, mas representam a aparência social do ponto de vista dos dominantes. São consideradas realidades
autônomas que produzem a realidade material ou social. São imagens e idéias postas como universais abstratos, uma vez que,
concretamente, não corresponde à realidade social, dividida em classes sociais antagônicas. Assim, por exemplo, existem na
sociedade, concretamente, capitalistas e trabalhadores, mas na ideologia aparece abstratamente o Homem.

A ideologia torna-se propriamente ideologia quando não aparece sob a forma do mito, da religião e da teologia. Com efeito,
nestes, a explicação sobre a origem dos seres humanos, da sociedade e do poder político encontra a causa fora e antes dos
próprios humanos e de sua ação, localizando a causa originária nas divindades. A ideologia propriamente dita surge quando,
no lugar das divindades, encontramos as idéias: o Homem, a Pátria, a Família, a Escola, o Progresso, a Ciência, o Estado, o
Bem, o Justo, etc.

Com isso, podemos dizer que a ideologia é um fenômeno moderno, substituindo o papel que, antes dela, tinham os mitos e as
teologias. Com a ideologia, a explicação sobre a origem dos homens, da sociedade e da política encontra-se nas ações
humanas, entendidas como manifestação da consciência ou das idéias. Assim, por exemplo, julgar que o Estado se origina das
idéias de estado de natureza, direito natural, contrato social e direito civil é supor que a consciência humana,
independentemente das condições históricas materiais, pensou nessas idéias, julgou-as corretas e passou a agir por elas,
criando a realidade designada e representada por elas.

Que faz a ideologia? Oferece a uma sociedade dividida em classes sociais antagônicas, e que vivem na forma da luta de
classes, uma imagem que permite a unificação e a identificação social – uma língua, uma religião, uma raça, uma nação, uma
pátria, um Estado, uma humanidade, mesmos costumes.

Assim, a função primordial da ideologia é ocultar a origem da sociedade (relação de produção como relações entre meios de
produção e forças produtivas sob a divisão social do trabalho), dissimular a presença da luta de classes (domínio e exploração
dos não-proprietários pelos proprietários privados dos meios de produção), negar as desigualdades sociais (são imaginadas
como se fossem conseqüência de talentos diferentes, da preguiça ou da disciplina laboriosa) e oferecer a imagem ilusória da
comunidade (o Estado) originada do contrato social entre homens livres e iguais. A ideologia é a lógica da dominação social
e política.
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Porque nascemos e somos criados com essas idéias e nesse imaginário social, não percebemos a verdadeira natureza de
classe do Estado. A resposta á Segunda pergunta de Marx, qual seja, por que a sociedade não percebe o vínculo interno entre
poder econômico e poder político, pode ser respondida agora: por causa da ideologia.

Texto VI - Dialética Marxista


(Do Livro: Filosofando, Introdução à Filosofia, de Maria Lúcia de Arruda Aranha e M. Helena Pires Martins, Ed. Moderna, pág. 88-90,
1993, São Paulo)

Para Engels, "a dialética é a ciência das leis gerais do movimento, tanto do mundo externo quanto do pensamento humano."

A dialética é a estrutura contraditória do real, que no seu movimento constitutivo passa por três fases: a tese, a antítese e a
síntese. Ou seja, o movimento da realidade se explica pelo antagonismo entre o momento da tese e o da antítese, cuja
contradição deve ser superada pela síntese.

Eis os três momentos:

Identidade: tese
Contradição ou negação: antítese;
Positividade ou negação da negação: síntese

Para melhor entender o processo, vejamos o que Hegel diz a respeito do verto alemão Aufheben. Essa palavra quer dizer, em
primeiro lugar, "suprimir", "negar", mas também a entendemos no sentido de "conservar". Aos dois sentidos, acrescenta-se
um terceiro, o de "elevar a um nível superior".

Esclarecendo com exemplos: quando começo a esculpir uma estátua, estou diante de uma matéria-prima, a madeira, que
depois é negada, isto é, destruída na sua forma natural, mas ao mesmo tempo conservada, pois a madeira continua existindo
como matéria, só que modificada, elevada a um objeto qualitativamente diferente, uma foram criada. Portanto, o trabalho
nega a natureza, mas não a destrói, antes a recria.

Da mesma forma, se enterramos o grão de trigo, ele morre (dá-se a negação do trigo); desaparece como grão para que a planta
surja como espiga; produzido o grão, a planta morre. Esse processo não é sempre idêntico, pois podem ocorrer alterações nas
plantas, resultantes do aparecimento de qualidades novas (evolução das espécies)

Segundo a concepção dialética, a passagem do ser ao não-ser não é aniquilamento, destruição ou morte pura e simples, mas
movimento para outra realidade. A contradição faz com que o ser suprimido se transforme.

Além da contraditoriedade dinâmica do real, outra categoria fundamental para entender a dialética é a de TOTALIDADE,
pela qual o todo predomina sobre as partes que o constituem. Isto significa que as coisas estão em constante relação
recíproca, e nenhum fenômeno da natureza ou do pensamento pode ser compreendido isoladamente fora dos fenômenos que o
rodeiam. Os fatos não são átomos, mas pertencem a um todo dialético e como tal fazem parte de uma estrutura. Os fatos não
são átomos, mas pertencem a um todo dialético e como tal faz parte de uma estrutura.

A dialética marxista - Hegel foi o primeiro a contrapor a lógica dialética à lógica tradicional. Para ele, compreender a
natureza é representá-la como processo. Mas, sendo idealista, explica a realidade como constituída pela racha do pensamento.
O Ser é a Idéia que se exterioriza, manifestando-se nas obras que produz, e que se interioriza, voltando paa si e reconhecendo
sua produção. O movimento de exteriorização e interiorização da idéia se faz por contradições sempre superadas nas sínteses
que, por sua vez, se desdobram em contradições (novas teses e antíteses). A dialética encaminha Hegel para uma nova
concepção de história.

Karl Marx e Friedrich Engels partem do significado da dialética hegeliana, mas promovem uma inversão, pois são
materialistas, ao contrário de Hegel, que é idealista.

Segundo Mar, no caso de Hegel, "a dialética apóia-se sobre a cabeça; basta repô-la sobre os seus pés para lhe dar uma
fisionomia racional".

Isso significa que, para Hegel, é o pensamento que cria a realidade, sendo esta a manifestação exterior da Idéia. Para Marx, o
dado primeiro é o mundo material, e a contradição surge entre homens reais, em condições históricas e sociais reais.

Assim, o mundo material é dialético, isto é, está em constante movimento, e historicamente as mudanças ocorrem em função
das contradições surgidas a partir dos antagonismos das classes no processo da produção social.

Exemplo de contradições com os termos relações de produção e forças produtivas:


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As relações fundamentais de toda sociedade humana são as relações de produção, que revelam a maneira pela qual os
homens, a partir das condições naturais, usam as técnicas e se organizam por meio da divisão do trabalho social. As relações
de produção correspondem a um certo estádio das forças produtivas, que consistem no conjunto formado pelo clima, água,
solo, matérias-primas, máquinas, mão-de-obra e instrumentos de trabalho.

Por exemplo, quando os instrumentos de pedra são substituídos pelos de metal, ou quando o desenvolvimento da agricultura
se torna possível pela descoberta de técnicas de irrigação, de adubagem do solo ou pelo uso do arado e de veículos de roda,
estamos diante de alterações das forças produtivas que por sua vez provocarão mudanças nas formas pelas quais os homens
se relacionam.

Chamamos modo de produção a maneira pela qual as forças produtivas se organizam em determinadas relações de
produção num dado momento histórico. Por exemplo, no modo de produção capitalista, as forças produtivas, representadas
sobretudo pelas máquinas do sistema fabril, determinam as relações de produção caracterizadas pelo dono do capital e pelo
operário assalariado.

No entanto, as forças produtivas só podem se desenvolver até certo ponto, pois, ao atingirem um estádio por demais
avançado, entram em contradição com as antigas relações de produção, que se tornam inadequadas. Surgem então as
divergências e a necessidade de uma nova divisão de trabalho. A contradição aparece como luta de classes. Vejamos como
isso ocorre na história da humanidade.

Nas sociedades primitivas, os homens se unem para enfrentar os desafios da natureza hostil e dos animais ferozes. Os meios
de produção, as áreas de caça, assim como os produtos, são propriedades comuns, isto é, pertencem a toda a sociedade
(comuna primitiva). A base econômica determina certa maneira de pensar peculiar, em que não há sentimento de posse, uma
vez que não existe propriedade privada.

O modo de produção patriarcal surge quando o homem inicia a domesticação de animais, desenvolve a agricultura graças ao
uso dos instrumentos de metal e fabrica vasilhas de barro, o que possibilita fazer reservas.

Quais as conseqüências das modificações das forças produtivas?

Alteram-se as relações de produção e o modo de produção: aparece uma forma específica de propriedade (propriedade da
família, num sentido muito amplo); diferenciam-se funções de classe (autoridade do patriarca, do pai de família); há alteração
do direito hereditário, estabelecendo-se a filiação paterna (e não mais materna).

O modo de produção escravista é decorrência do aumento da produção além do necessário à subsistência e exige o recurso a
novas forças de trabalho, conseguidas geralmente entre prisioneiros de guerra, transformados em escravos. Com isso surge
propriamente a propriedade privada dos meios de produção, e a primeira foram de exploração do homem pelo homem com a
conseqüente contradição entre senhores e escravos. Dá-se então a separação entre trabalho intelectual e trabalho manual. A
ociosidade passa a ser considerada a perfeição do homem livre, enquanto o trabalho manual, considerado servil, é
desprezado.

O modo de produção escravista é típico da Antigüidade grega e romana. A luta dos povos bárbaros contra o Império romano,
no final da Antigüidade, não é senão a luta contra a escravidão e eles imposta pelos romanos. A contradição do regime
escravista leva-o à ruína e, para restaurar a economia, são necessárias novas relações de produção.

No modo de produção feudal, a base econômica é a propriedade dos meios de produção pelo senhor feudal. O servo trabalha
um tempo para si e outro para o senhor, o qual, além de se apropriar de uma parte da produção daquele, ainda lhe cobra
impostos pelo uso comum do moinho, do lagar, etc. A contradição dos interesses das duas classes leva a conflitos que farão
aparecer, paulatinamente, uma nova figura: o burguês. Surgida dentre os servos que se dedicam ao artesanato e ao comércio,
a nova figura social forma os burgos e consegue aos poucos a liberdade pessoal e das cidades. A jovem burguesia está
destinada a desenvolver as formas produtivas que em determinado momento exigirão novas relações de produção.

O modo de produção capitalista é a nova síntese que surge das ruínas do sistema feudal, ou seja, da contradição entre a tese
(senhor feudal) e a antítese(servo).

O que vimos até agora é que o movimento dialético pelo qual a história se faz tem um motor: a luta de classes.

Chama-se luta de classes ao confronto entre duas classes antagônicas quando lutam por seus interesses de classe. No modo de
produção capitalista, a relação antitética se faz entre o burguês, que é o detentor do capital, e o proletário, que nada possui e
só vive porque vende sua força de trabalho.

Texto VII - Lógica e Dialética


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Nélson Jahr Garcia - (Fonte: http://www.jahr.org/nel/artigos/criatividade/36mkcopp.htm)

Lógica é o conjunto de princípios e leis que regem o pensamento e daí, o processo de formação do conhecimento.

A lógica formal ou aristotélica implica três leis:

Identidade: A é A ( vida é vida).


Não contradição: A não pode ser B (vida não é morte).
Terceiro excluído: entre A e B não pode existir C (há vida ou morte, sem outra alternativa).

A lógica formal é estática, abstraindo o movimento e a transformação no tempo e no espaço. Ela parte da análise
(decomposição de um todo em suas partes, sem voltar a integra-las). É o fotograma de um filme, que contém inúmeros
fotogramas, mas não é o filme. Alguém vê uma flecha voando no ar e não sabe o que é, percebeu apenas uma ligeira sombra
que passou pelo ar. A lógica formal explica: uma haste de madeira, com penas de um lado e pontiaguda do outro. Abstraiu o
movimento (no espaço e no tempo) e tomou a parte de um todo..

A lógica dialética procura compreender o movimento e a transformação dos fenômenos (físicos e humanos). Baseia-se nas
seguintes leis ou princípios:

1. Unidade e luta dos contrários (CONTRADIÇÃO): vida e morte constituem uma única realidade, uma não tem sentido
sem a outra. Um animal, ao mesmo tempo em que está vivo, tem milhões de células que estão sendo destruídas e
substituídas por outras novas. Os elementos opostos de uma mesma realidade estão em permanente luta, conflito; a vida
luta contra a morte e esta contra a vida, até que haja uma transformação.
2. Transformação da quantidade em qualidade e vice-versa: Aumenta-se a quantidade, em um fenômeno, até certo limite a
partir do qual o fenômeno modifica-se. Aumentam-se os graus centígrados de uma quantidade de água e se tem apenas
água mais quente, até 100 graus apenas, quando ela se transforma em vapor. Reduzindo-se os graus, ela irá se
transformar em sólido (gelo). O vice-versa (qualidade em quantidade) é o seguinte: a água congelada ocupa mais espaço.
Coloque uma garrafa cheia de água no congelador. Ao congelar a garrafa explode, porque a água passou a ter quantidade
maior.
3. Transformação universal (MUDANÇA): Nada é sempre assim, tudo está em mudança, ora mais rápida, ora mais lenta,
mas sempre em mudança. Um pinto logo se transformará em galinha. Uma montanha, em milhares ou milhões de anos,
será pedriscos (sob ação dos ventos, das chuvas ou por outra razão qualquer).
4. Conexão universal: (TOTALIDADE): Todos os fatos e fenômenos da realidade estão interligados e não têm sentido
isoladamente. Exemplo clássico: a floresta não é apenas uma soma de árvores. Aparentemente sim, mas quando
verificamos com cuidado podemos perceber que uma se alimenta das folhas, flores e frutos de outra, que se tornam
adubo. Uma cresce menos, porque outra lhe rouba a luz do sol. Em suma, a floresta, além da soma de árvores, é a soma
da relação entre elas. Um povo, ou uma classe social, não é a mera soma de indivíduos. Eles falam uma língua que não
foi criada por cada um, trocam o produto de seu trabalho, brigam, amam e odeiam. Só há sentido na relação entre eles.
5. Negação da negação (ou tese, antítese e síntese): Fiquemos no exemplo da vida e morte. O organismo vivo está sendo
negado pela presença da morte constante das células, que lutam e se regeneram. Há um momento em que a degeneração
vence. Surge nova condição que nega a morte (que era a negação da vida), é outra realidade. Um morto (como
chamamos) não tem nem a antiga vida nem a nova morte, é outra coisa: adubo, cinzas etc. Ou seja, não tem mais as
características da condição anterior, mas novas. Havia uma tese (vida) convivendo com uma antítese (morte), gerando
uma síntese (outra coisa). Essa concepção está em um frase famosa do marxismo, que é mais ou menos assim: "na
natureza tudo traz, em si, o germe da sua destruição".

Texto VIII - O Materialismo Histórico


(Do Livro: Filosofando, Introdução à Filosofia, de Maria Lúcia de Arruda Aranha e M. Helena Pires Martins, Ed. Moderna, pág. 241, 1993,
São Paulo)

O materialismo histórico não é mais do que a aplicação dos princípios do materialismo dialético ao campo da história. e,
como o próprio nome indica, é a explicação da história por fatores materiais, ou seja, econômicos e técnicos.

Marx inverte o processo do senso comum que pretende explicar a história pela ação dos "grandes homens", ou, às vezes, até
pela intervenção divina. Para o marxismo, no lugar das idéias, estão os fatos materiais; no lugar dos heróis, a luta de classes.

Em outras palavras, o que Marx explicitou foi que, embora possamos tentar compreender e definir o homem pela consciência,
pela linguagem, pela religião, o que fundamentalmente o caracteriza é a forma pela qual reproduz suas condições de
existência.
150
Portanto, para Marx, a sociedade se estrutura em níveis.

O primeiro nível, chamado de infra-estrutura, constitui a base econômica (que é determinante, segundo a concepção
materialista). Engloba as relações do homem com a natureza, no esforço de produzir a própria existência, e as relações dos
homens entre si. Ou seja, as relações entre os proprietários e não-proprietários, e entre os não-proprietários e os meios e
objetos do trabalho.

O segundo nível, político-ideológico, é chamado de superestrutura. É constituído:

a) pela estrutura jurídico-política representada pelo Estado e pelo direito: segundo Marx, a relação de exploração de classe
no nível econômico repercute na relação de dominação política, estando o Estado a serviço da classe dominante.

b) pela estrutura ideológica referente às formas da consciência social, tais como a religião, as leis, a educação, a literatura, a
filosofia, a ciência, a arte etc. Também nesse caso ocorre a sujeição ideológica da classe dominada, cuja cultura e modo
de vida reflete as idéias e os valores da classe dominante.

Vamos exemplificar como a infra-estrutura determina a superestrutura, comparando valores de dois diferentes períodos da
história.

A moral medieval valoriza a coragem e a ociosidade da nobreza ocupada com a guerra, bem como a fidelidade, que é a base
do sistema de suserania e vassalagem; do ponto de vista do direito, num mundo cuja riqueza é a posse de terras, considera-se
ilegal (e imoral) o empréstimo a juros. Já na Idade Moderna, com o advento da burguesia, o trabalho é valorizado e,
consequentemente, critica-se a ociosidade; também ocorre a legalização do sistema bancário, o que exige a revisão das
restrições morais aos empréstimos. A religião protestante confirma os novos valores por meio a doutrina da predestinação,
considerando o enriquecimento um sinal da escolha divina.

Conforme os exemplos, as manifestações das superestrutura (no caso, moral e direito) são determinadas pelas alterações da
infra-estrutura decorrentes da passagem econômica do sistema feudal para o capitalista.

Portanto, para estudar a sociedade não se deve, segundo Marx, partir do que os homens dizem, imaginam ou pensam, e sim
da forma como produzem os bens materiais necessários á sua vida. Analisando o contato que os homens estabelecem com a
natureza para transformá-la por meio do trabalho e as relações entre si é que se descobre como eles produzem sua vida e suas
idéias.

No entanto, essas determinações não podem nos fazer esquecer do caráter dialético de toda determinação: ao tomar
conhecimento das contradições, o homem pode agir ativamente sobre aquilo que o determina.

A práxis - Ao analisar o ser social do homem, Marx desenvolve uma nova antropologia, segundo a qual não existe uma
"natureza humana" idêntica em todo tempo e lugar. Para ele, o existir humano decorre do agir, pois o homem se autoproduz à
medida que transforma a natureza pelo trabalho. Sendo o trabalho uma ação coletiva, a condição humana depende da sua
existência social. Por outro lado, o trabalho é um projeto humano e como tal depende da consciência que antecipa a ação pelo
pensamento. Com isto se estabelece a dialética homem-natureza e pensar-agir.

Marx chama de práxis à ação humana de transformar a realidade. Nesse sentido, o conceito de práxis não se identifica
propriamente com a prática, mas significa a união dialética da teoria e da prática. Isto é, ao mesmo tempo que a consciência é
determinada pelo modo como os homens produzem a sua existência, também a ação humana é projetada, refletida,
consciente.

Por isso a filosofia marxista é também conhecida como filosofia da práxis.

Texto IX - Os obstáculos à democracia - Texto de Marilena Chauí (Do livro: Filosofia. Ed. Ática, São
Paulo, ano 2000, pág. 227-230)
Liberdade, igualdade e participação conduziram à célebre formulação da política democrática como “governo do povo, pelo
povo e para o povo”. Entretanto, o povo da sociedade democrática está dividido em classes sociais – sejam os ricos e os
pobres (Aristóteles), os grandes e o povo (Maquiavel), as classes sociais antagônicas (Marx).

É verdade que a sociedade democrática é aquela que não esconde suas divisões, mas procura trabalhá-las pelas instituições e
pelas leis. Todavia, no capitalismo, são imensos os obstáculos à democracia, pois o conflito dos interesses é posto pela
exploração de uma classe social por outra, mesmo que a ideologia afirme que todos são livres e iguais.
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É verdade que as lutas populares nos países de capitalismo avançado ampliaram os direitos e que a exploração dos
trabalhadores diminuiu muito, sobretudo com o Estado do Bem-Estar Social. No entanto, houve um preço a pagar: a
exploração mais violenta do trabalho pelo capital recaiu sobre as costas dos trabalhadores nos países do Terceiro Mundo.

Houve uma divisão internacional do trabalho e da exploração que, ao melhorar a igualdade e a liberdade dos trabalhadores
duma parte do mundo, agravou as condições de vida e de trabalho da outra parte. E não foi por acaso que, enquanto nos
países capitalistas avançados cresciam o Estado de Bem-Estar e a democracia social, no Terceiro Mundo eram implantadas
ditaduras e regimes autoritários, com os quais os capitalistas desses países se aliavam aos das grandes potências econômicas.

A situação do direito de igualdade e de liberdade é também muito frágil nos dias atuais, porque o modo de produção
capitalista passa por uma mudança profunda para resolver a recessão mundial. Essa mudança, conhecida com o nome de
neoliberalismo, implicou o abandono da política do Estado do Bem-Estar Social (políticas de garantia dos direitos sociais) e o
retorno à idéia liberal de autocontrole da economia pelo mercado capitalista, afastando, portanto, a interferência do Estado no
planejamento econômico.

O abandono das políticas sociais chama-se privatização, e o do planejamento econômico, desregulação. Ambas significam: o
capital é racional e pode, por si mesmo, resolver os problemas econômicos e sociais. Além disso, o desenvolvimento
espantoso das novas tecnologias eletrônicas trouxe a velocidade da comunicação e da informação e a automação da produção
e distribuição dos produtos.

Essa mudança nas forças produtivas (pois a tecnologia alterou o processo social do trabalho) vem causando o desemprego em
massa nos países de capitalismo avançado, movimentos racistas contra imigrantes e migrantes, exclusão social, política e
cultural de grandes massas da população. Esse fenômeno começa também a atingir alguns países do Terceiro Mundo, como o
Brasil.

Em outras palavras, os direitos econômicos e sociais conquistados pelas lutas populares estão em perigo porque o capitalismo
está passando por uma mudança profunda. De fato, tradicionalmente, o capital se acumulava, se ampliava e se reproduzia
pela absorção crescente de pessoas no mercado de mão-de-obra (ou mercado de trabalho) e no mercado de consumo dos
produtos. Hoje, porém, com a presença da tecnologia de ponta como força produtiva, o capital pode acumular-se e
reproduzir-se excluindo cada vez mais as pessoas do mercado de trabalho e de consumo. Não precisa mais de grandes massas
trabalhadoras e consumidoras, pode ampliar-se graças ao desemprego em massa e não precisa preocupar-se em garantir
direitos econômicos e sociais aos trabalhadores porque não necessita de seus trabalhos e serviços.

Por isso o Estado do Bem-Estar Social tende a ser suprimido pelo Estado neoliberal, defensor da privatização das políticas
sociais (educação, saúde, transporte, moradia, alimentação).

O direito á participação política também encontra obstáculos. De fato, no capitalismo da segunda metade do século XX, a
organização industrial do trabalho foi feita a partir de uma divisão social nova: a separação entre dirigentes e executantes. Os
primeiros são os que recebem a educação científica e tecnológica, são considerados portadores de saberes que os tornam
competentes e por isso com poder de mando. Os executantes são aqueles que não possuem conhecimentos tecnológicos e
científicos, mas sabem apenas executar tarefas, sem conhecer as razões e as finalidades e sua ação. São por isso considerados
incompetentes e destinados a obedecer.

Essa forma de organização da divisão social do trabalho propagou-se para a sociedade inteira. No comércio, na agricultura,
nas escolas, nos hospitais, nas universidades, nos serviços públicos, nas artes, todos estão separados entre “competentes” que
sabem e “incompetentes” que executam. Em outras palavras, a posse de certos conhecimentos específicos tornou-se um poder
para mandar e decidir.

Essa divisão social converteu-se numa ideologia: a ideologia da competência técnico-científica, isto é, na idéia de que quem
possui conhecimentos está naturalmente dotado de poder de mando e direção. Essa ideologia, fortalecida pelos meios de
comunicação de massa que a estimulam diariamente, invadiu a política: esta passou a se considerada uma atividade reservada
para administradores políticos competentes e não uma ação coletiva de todos os cidadãos.

Não só o direito à representação política (ser representante) diminui porque se restringe aos competentes, como ainda a
ideologia da competência oculta e dissimula o fato de que, para ser “competente”, precisa ter recursos econômicos para
estudar e adquirir conhecimentos. Em outras palavras, os “competentes” pertencem à classe economicamente dominante, que,
assim, dirige a política segundo seus interesses e não de acordo com a universalidade dos direitos.

Um outro obstáculo ao direito à participação política é posto pelos meios de comunicação de massa. Só podemos participar
de discussões e decisões políticas se possuirmos informações corretas sobre aquilo que vamos discutir e decidir. Ora, os
meios de comunicação de massa não informam, desinformam. Ou melhor, transmitem as informações de acordo com os
interesses de seus proprietários e das alianças econômicas e políticas destes com grupos detentores de poder econômico e
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político. Assim, por não haver respeito ao direito de informação, não há como respeitar o direito à verdadeira participação
política.

Os obstáculos à democracia não inviabilizam a sociedade democrática. Pelo contrário. Somente nela somos capazes de
perceber tais obstáculos e lutar contra eles.

Dificuldades para a democracia no Brasil – Periodicamente os brasileiros afirmam que vivemos numa democracia, depois
de concluída uma fase de autoritarismo. Por democracia entendem a existência de eleições, de partidos políticos e da divisão
republicana dos três poderes, além da liberdade de pensamento e de expressão. Por autoritarismo entendem um regime de
governo em que o Estado é ocupado através de um golpe (em geral militar ou com apoio militar), não há eleições nem
partidos políticos, o poder executivo domina o legislativo e o judiciário, há censura do pensamento e da expressão e prisão
(por vezes com tortura e morte) dos inimigos políticos. Em suma, democracia e autoritarismo são vistos como algo que se
realiza na esfera do Estado e este é identificado com o modo de governo.

Essa visão é cega para algo profundo na sociedade brasileira: o autoritarismo social. Nossa sociedade é autoritária porque é
hierárquica, pois divide as pessoas, em qualquer circunstância, em inferiores, que devem obedecer, e superiores, que devem
mandar. Não há percepção nem prática da igualdade como um direito. Nossa sociedade também é autoritária porque é
violenta: nela vigoram racismo, machismo, discriminação religiosa e de classe social, desigualdades econômicas das maiores
do mundo, exclusões culturais e políticas. Não há percepção nem prática do direito à liberdade.

O autoritarismo social e as desigualdades econômicas fazem com que a sociedade brasileira esteja polarizada entre as
carências das camadas populares e os interesses das classes abastadas e dominantes, sem conseguir ultrapassar carências e
interesses e alcançar a esfera dos direitos. Os interesses, porque não se transformam em direitos, tornam-se privilégios de
alguns, de sorte que a polarização social se efetua entre os despossuídos (os carentes) e os privilegiados. Estes, porque são
portadores dos conhecimentos técnicos e científicos, são os “competentes”, cabendo-lhes a direção da sociedade.

Uma carência é sempre específica, sem conseguir generalizar-se num interesse comum nem universalizar-se num direito. Um
privilégio, por definição, é sempre particular, não podendo generalizar-se num interesse comum nem universalizar-se num
direito, pois, se tal ocorresse, deixaria de ser privilégio. Ora, a democracia é criação e garantia de direitos. Nossa sociedade,
polarizada entre a carência e o privilégio, não consegue ser democrática, pois não encontra meios para isto.

Este conjunto de determinações sociais manifesta-se na esfera política. Em lugar de democracia, temos instituições vindas
dela, mas operando de modo autoritário.

Assim, por exemplo, os partidos políticos costumam ser de três tipos: os clientelistas, que mantém relações da favor com seus
eleitores, os vanguardistas, que substituem seus eleitores pela vontade dos dirigentes partidários, e os populistas, que tratam
seus eleitores como um pai de família (o despótes) trata seus filhos menores. Favor, substituição e paternalismo evidenciam
que a prática da participação política, através de representantes, não consegue se realizar no Brasil. Os representantes, em
lugar de cumprir o mandato que lhes foi dado pelos representados, surgem como chefes, mandantes, detentores de favores e
poderes, submetendo os representados, transformando-os em clientes que recebem favores dos mandantes.

A “indústria política” – isto é, a criação da imagem dos políticos pelos meios de comunicação de massa para a venda do
político aos eleitores-consumidores -, aliada à estrutura social do país, alimenta um imaginário político autoritário. As
lideranças políticas são sempre imaginadas como chefes salvadores da nação, verdadeiros messias escolhidos por Deus e
referendados pelo voto dos eleitores. Na verdade, não somos realmente eleitores (os que escolhem), mas meros votantes (os
que dão o voto para alguém).

A imagem populista e messiânica dos governantes indica que a concepção teocrática do poder não desapareceu: ainda se
acredita no governante como enviado das divindades (o número de políticos ligados a astrólogos e videntes fala por si
mesmo) e que sua vontade tem força de lei.

As leis, porque exprimem ou os privilégios dos poderosos ou a vontade pessoal dos governantes, não são vistas como
expressão de direitos nem de vontades e decisões públicas coletivas. O poder judiciário aparece como misterioso, envolto
num saber incompreensível e numa autoridade quase mística.

Por isso mesmo, aceita-se que a legalidade seja, por um lado, incompreensível, e, por outro, ineficiente (a impunidade não
reina livre e solta?) e que a única relação possível com ela seja a da transgressão (o famoso “jeitinho”).

Como se observa, a democracia, no brasil, ainda está por ser inventada.


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