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TRABALHO “ NIETZSCHE E O CÂNONE” – 2021/2º período.

Por: Alessandra Peixoto dos Santos.

1. INTRODUÇÃO
O que é o cânone? O que o compõe? A palavra cânone vem do grego ‘kanon’, que significa
medida, régua, instrumento de medir. A palavra é usada para descrever vários objetos e
situações, porém, o cânone literário tem um significado mais objetivo, que é o de listar as
obras literárias tidas como mais valiosas e universais de acordo com alguns parâmetros.

Pode-se observar que os livros que compõem o cânone literário são chamados livros clássicos.
Mas quem estabelece o cânone? Deus? Uma razão superior? Vários indicativos estabelecem o
cânone: social, econômico, cultural, etnográfico, etc. A instauração do cânone como problema
é recente, coisa de uns dois séculos. As categorizações raciais em Kant, por exemplo, não
podem ser tomadas como meros deslizes ou problemas conjecturais, mas revelam uma
concepção antropológica que marca a estrutura da filosofia.

Como seria possível falarmos, diante da constatação do racismo kantiano, de um “direito


cosmopolita” e uma “paz perpétua” se a humanidade só pode existir como negação dos outros
que não são homens e sim selvagens? O racismo de Kant está para além de um “desvio de
época”, “anomalia teórica” ou coisa do tipo. Apesar de Kant pretender o gênero humano
como único e universal, essa universalidade se torna exclusiva através do racismo. Nas
infelizes palavras de Kant, somente o fato do sujeito ser negro da cabeça aos pés já lhe tira
toda a razão, estaria dito na Pedagogia. Mbembe 1, em contraposição, na contemporaneidade,
irá dizer que, o negro liberta dinâmicas passionais onde quer que apareça, cujo potencial
irracional tem abalado o próprio sistema racional. É o contra cânone manifestando-se

Enfim, é preciso investigar as heranças que formam isso que se dá o nome de “filosofia”,
desconfiar de uma história da filosofia que se pretenda imaculada e abandonar a compreensão
ingênua que desconsidera as dimensões raciais, sexistas e eurocêntricas incrustradas no
cânone.

O idealismo de autores como Kant e Hegel e seus discípulos promoveram uma verdadeira
mudança na maneira de escrever a história da filosofia, excluindo povos não-brancos e
elevando as construções teóricas de europeus como as únicas dignas de serem tomadas como
1
MBEMBE, A. Crítica da razão negra, Antígona, Lisboa, 2014.
filosóficas, sendo o critério para tal exclusão baseado em concepções antropológicas racistas.
O cânone não subsiste sem o racismo e sem a misoginia, os esquemas de exclusão são
estruturais.

É nessa encruzilhada que interessa interrogar o conceito de raça e o procedimento racista que
a alegação anacrônica escamoteia. Os conceitos gregos de ‘genos’ e ‘ethnos’ não atendem por
completo ao que revela a etimologia do termo raça, que emerge no século XV derivado do
árabe ‘raz’ (cabeça, líder, origem) e do latim ‘radix’ (raiz)

Além de Kant e Hegel, temos na história da filosofia importantes razões para incluir na lista
de notório racista, num sentido muito peculiar, o filósofo Nietzsche, seja num sentido
antissemita, ou ao menos antijudaico, seja num outro misógino. A história de acusação ao
filósofo é extensa, mas preferimos problematizar seu sentido de ser um antijudaico antes de
encarnar um antissemita. Sua biografia o justifica mais do que sua ideologia filosófica, e é
nesse sentido que propomos a análise do presente trabalho.

O que há em Nietzsche é uma animosidade contra os judeus em geral que vai muito além da
mera crítica. Assim o provaremos na crítica às obras como A Genealogia da Moral e O
Anticristo, onde faremos uma análise de suas posições racistas.

Preferimos descartar uma acusação direta de antissemitismo em Nietzsche, amparados em sua


biografia, e indo mais além, sob a inspiração de sua ideologia, afirmar a presença de um certo
antijudaísmo não linear em sua obra, beirando a contradição:

“O que a Europa deve aos judeus? Muitas coisas, boas e más, e antes de mais nada uma
coisa que tem de melhor e pior para dar: o estilo grandioso da moral, o terrível e a
majestade de postulados imensos, de infinitos significados, todo o romantismo e o
sublime dos problemas morais – e consequentemente a parte mais interessante,
embaraçosa e procurada pelo caleidoscópio de seduções da vida, que ilumina com seus
últimos clarões o céu, o pôr-do-sol, talvez, de nossa civilização europeia. Nós artistas
entre os espectadores e os filósofos nos sentimos reconhecidos por isso – aos judeus”.
(NIETZSCHE, 1998, §250, P.212)
Para compreender o antissemitismo, é fundamental diferenciá-lo do antijudaísmo. O
antijudaísmo é o ódio à religião judaica como ideologia ou visão de mundo, enquanto o
antissemitismo é o ódio aos judeus como nação. Entretanto, aqueles que professam o
antijudaísmo acabam sendo antissemitas. Partem do pressuposto de que a religião judaica
contaminou a nação que segue seus preceitos. Por sua vez, o antissemitismo desemboca no
antijudaísmo, ou seja, de que só uma nação racialmente inferior pôde ter criado uma religião
tida como religião do Mal.
O termo antissemitismo foi criado no século XIX, quando as teorias religiosas que acusavam
os judeus de deicídio ficaram caducas. Com Hitler, obcecado com o ideal de pureza racial,
compreendeu a História como uma permanente luta entre as diferentes raças, na qual a raça
superior devia utilizar todos os meios necessários para manter sua pureza. Os judeus foram
transformados em bodes expiatórios e culpados de todos os males pelos quais atravessava a
Alemanha, inclusive a falácia do poder econômico do povo judeu e do seu monopólio dos
meios de comunicação, fazendo com que sua eliminação se tornasse um imperativo de Estado.

Em 1883-4 a Europa foi tomada novamente pela onda antissemita. Nesse período, Nietzsche
rompe com a irmã, quando esta anuncia seu casamento com o nazista Bernahrd Forster; e, no
mesmo ano, afasta-se de seu editor, Schemeitzner, acusando-o também de antissemita. Ao
iniciar 1886, Elisabeth e Bernhard partem para o Paraguai para fundar sua colônia Teutônica
que faliu em 1889 ( ano em que nasce Hitler na Áustria).

Após a morte de Nietzsche, a irmã (já viúva), funda o Nietzsche-Archiv em Naumburg, e, a


partir daí assume o controle dos escritos nietzschianos. Desde então, Elizabeth, de posse dos
arquivos Nietzsche, viveu sob o regime hitlerista efetuando grotescas modificações nos
escritos do irmão para agradar aos nazistas e tornar Nietzsche popular. Foi assim, por
exemplo, que a ideia de Übermench (mal traduzida como super-homem) foi tida como
sinônimo de ‘super-homem-alemão-soldado-nazista’. Mas, como consta dos escritos de
Nietzsche, os alemães eram a pior espécie da Europa.

2. NIETZSCHE E OS JUDEUS

2.1. A GENEALOGIA DA MORAL

Contextualizaremos a problemática “Nietzsche e os judeus” a partir do questionamento que há


na interpretação e avaliação dos valores, no caso representados nos pares de conceitos
“bom”/”mau”; “bom”/”ruim”. Nietzsche irá propor a criação humana demasiado humana dos
valores, contra a origem transcendente dos ideais. O filósofo traça a marca imanente das
valorações humanas em sua crítica, em contraponto com as ideias do além. Essa é a sua tese
tratada em Genealogia da Moral.

Nietzsche irá nos contar em tom de fábula que, aos 13 anos, naquela idade em que as crianças
se ocupam com os brinquedos e com Deus, ele, o menino, se ocupava com os problemas da
origem do Bem e do Mal, estando certo de que a paternidade deste último estaria em Deus. Já
aqui vemos Nietzsche transmudando a hierarquia dos valores usuais para comportar uma
verdadeira “transvaloração dos valores” do conceito de “bom”.

Amparados na biografia de Nietzsche, repleta de fatos ambíguos no que se refere ao


antissemitismo, a hipótese de nosso trabalho será provar sua atitude ideológica antijudaica
contra uma atitude antissemítica propriamente. Por outro lado, não se pode dizer que em
filosofia, dados biográficos do filósofo em questão chegam a justificar sua postura de
pensamento. Compreendemos, então, que Nietzsche passa a expor teses antijudaicas em suas
obras pelo menos desde Além de Bem e Mal, e, que, no presente trabalho, passaremos à
análise da Genealogia da Moral e de O Anticristo, privilegiadamente.

Nessa sequência, A Genealogia da Moral parte da crítica da psicologia inglesa dos céus
“azuis”, para em seguida introduzir a cor “cinza” preferida pelos etimólogos e seus
documentos e perspectiva históricas, descartando sua perspectiva utilitária. Ne verdade, a
crença desses psicólogos num hábito, antes de tudo, para Nietzsche, é completamente falsa.
Da repetição das ideias utilitárias não surge o hábito de conceitos como o “bom”. Ao
contrário, mesmo do esquecimento da função da utilidade, com o hábito, não é o “bom”, o
valor que permanece. Assim, na concepção de Nietzsche, seja na qualidade de julgador, ou de
nomeador do seu opositor, é o nobre que cria as oposições entre “bom” e “mau”; do mesmo
modo em que o estudo histórico da etimologia dessas palavras mostrará a transmutação do
sentido das palavras segundo um princípio classista, aristocrático, para, enfim, tornar-se uma
depuração espiritual.

Nietzsche nos traz exemplos das línguas alemã, grega, iraniana, eslava e latina, relacionando,
em cada uma delas, o significado de “bom” àquilo que caracteriza os nobres, aproximando-se
em certos momentos dos conceitos de verdadeiro, poderoso, guerreiro, e mesmo divino, em
contraposição ao mentiroso, plebeu, covarde ou ao homem de raça inferior. “A palavra
‘esdlos’ significa pela origem, “alguém que é”, alguém que é real, que é verdadeiro”; depois,
por uma modificação subjetiva, o verdadeiro vem a ser verídico”(NIETZSCHE, 2011, p.34).
Em palavras que designam os plebeus, como mau/feio (‘kakos’), tímido/covarde (‘deilos’),
enfatiza-se a covardia – o que leva à hipótese de que outra expressão que serve para designar
“bom” (‘agathos’) estaria relacionada em sua origem à ideia de coragem. No latim, (‘mélas’),
“negro” estaria relacionado a (‘hic niger est’), o homem plebeu de cor morena e de cabelos
pretos. Neste último exemplo, temos a palavra derivada de características das raças
conquistadas, contrapondo-se às raças dos conquistadores.
“Para mim, é evidente, antes de tudo, que com essa teoria estão buscando o conceito de
‘bom’ num lugar que não é sua verdadeira fonte genética: o julgamento de ‘bom’ não
vem daqueles aos quais se manifesta a ‘bondade’! Antes, são os próprios bons, isto é, os
nobres, os poderosos, os homens de condição superior e espírito elevado, que se sentiram
bons e estimaram os seus atos como bons, de primeira ordem, em oposição a tudo o que é
baixo, mesquinho, comum e vulgar” (NIETZSCHE, A Genealogia da Moral, 2000, p.50)
A partir de tais análises, a designação de “bom” provém de uma característica interna, do seu
“ser”, de uma qualidade, e jamais de uma função ou utilidade “externa”. Tais designações
implicam avaliações, e a definição inicial do que é merecedor de estima ou desprezo deu-se
sempre a partir dos “nobres”, pautada em seus critérios valorativos. Segundo vimos, os
conceitos de “bom” e “mau” são humano demasiado humanos e; para além do bem e do mal.
Sua compreensão genealógica tem princípios históricos e etimológicos; introduzindo, assim,
uma nova forma de interpretar e avaliar os valores; e nos perguntamos: Quem interpreta os
valores? E a resposta: A Vontade de Potência.

Com este conceito, Nietzsche inaugura um novo modo de filosofar e propõe um novo núcleo
de valores a partir do qual todos os demais deveriam ser valorados. O filósofo Fink, por
exemplo, propõe uma oposição entre potência/impotência, e estabelece um vínculo biológico,
vital, cosmológico para a vontade de potência, que seria responsável pelo poder de domínio
das forças umas contra as outras, no sentido da superação, da potência. Mas, também, as
forças impotentes têm a capacidade de propor a superação. Assim, no caso humano, forças de
potência empurram o homem a superarem-se em valor e estima, do mesmo modo que, aquelas
ditas forças reativas têm o condão de lançarem-se sobre as forças ativas para agirem no modo
do ressentimento.

Tem-se uma dupla possibilidade de valoração para os juízos “bom” e “mau”, “bom” e “ruim”.
Azeredo, introduzindo em seu texto a interpretação deleuziana, nos colocará uma dupla
questão: ”O que é o bom quando a interpretação do senhor é determinante? O que é o bom
quando a interpretação vil vige?” (AZEREDO, 2000, p.55). Segundo Deleuze, Nietzsche
toma os fenômenos como sintomas, cujo sentido deve ser buscado nas forças e na vontade de
potência, “que estabelece a diferença de quantidade das forças em relação” (Ibdem, p.56).

Está claro que existem dois tipos distintos de forças: a dominante e a dominada; que por
serem ambas vontades de potência adviriam da mesma natureza. Mas a diferença na
quantidade entre elas, conformaria a qualidade delas como ativas e reativas. Desse modo,
tem-se a força do senhor, que seria interpretada como ativa; enquanto a do escravo seria
predominantemente reativa. Essa distinção dos valores em termos de quantidade marca,
essencialmente, a questão da diferença segundo Deleuze. A diferença encontra-se presente na
consciência do senhor que a afirma e, a partir dela cria valores. Em Para Além de bem e mal:

“As diferenciações morais de valor nasceram seja sob uma espécie dominante, que se
sentia bem em tomar consciência de sua diferença em relação à dominada – ou entre os
dominados, os escravos e dependentes de todo grau. No primeiro caso, quando são os
dominantes que determinam o conceito ‘bom’, são os estados de alma elevados,
orgulhosos, que são sentidos como o distintivo e determinante da hierarquia. O homem
nobre aparta de si os seres em que o contrário de tais estados orgulhosos e elevados chega
à expressão: ele os despreza” (NIETZSCHE, Para além de bem e mal, §260). (grifo
nosso).
Há duas formas de valorar bom/mau, bom/ruim, segundo se trate do senhor ou do escravo. O
bom/ruim é determinada pelo modo de valorar do senhor, que, entendendo-se como o “bom”
em primeiro lugar, torna desprezível, ruim, seu oposto. No outro caso, o homem vil, promove
uma inversão de valores, opondo-se exteriormente aos “bons”, aos guerreiros, aos nobres,
toma-os pelos “maus”, assumindo-se, então como os “bons”. No par bom/mau, não mais
significando nobres e desprezíveis, desloca-se a avaliação de ” ser” dos primeiros para a ação
dos segundos. Nietzsche introduzirá uma inversão, propondo a referência ao homem, um
resgate de sua interioridade, expressa na vontade de potência como fonte de toda ação.
Contudo, o vil também manifesta a vontade de potência, mas de que modo? Qual sua forma
de avaliar?

Paralelo a essa genealogia dos conceitos de “bom”, Nietzsche nos apresentará também uma
genealogia da moral, ou seja, a cada par de conceitos valorativos relativos ao “bom”, um
dado representante de um tipo da moral será relacionado. A cada tipo de homem, senhor ou
escravo, corresponde-se uma modalidade de moral. Apresentando sua avaliação dos valores
de “bom”, Azeredo constituirá uma topografia para a moralidade dos senhores e dos escravos.
A moral aristocrática, a dos guerreiros, dos fortes, dos potentes - a moral dos senhores, será
aquela que parte de dentro para fora. O senhor é aquele que possui uma superposição de
forças, ele é ativo, mesmo na reação ele age. Na moral do escravo o que prima é a negação.
Primeiro ele afirma seu opositor, o “bom” como o “mau”, para depois qualificar-se como
coitado, o passível de piedade, e, por isso, o “bom”.. Há aí, claramente, uma transvaloração da
moral dos escravos.

Os escravos são os negativos por excelência, pois negam-se quando afirmam-se, e reage
quando nega, nem desse modo chega à ação. Assim, dizemos que o homem da moral escrava
é também o homem do ressentimento, do espírito de vingança. Voltaremos a esse ponto mais
adiante.
E, dentre todos os homens da moral escrava, Nietzsche afirmará que o tipo dos sacerdotes será
o mais odioso de todos. Ascéticos, um tipo espiritual que nega seus instintos vitais, que prega
o igualitarismo para dominar a plebe e que desnaturalizou os atos da vida humana:
nascimento, rituais e morte, para tomar posse de seu sacerdócio, em suma, tomou o lugar de
Deus por meio do controle dos pecados, em suma, divinizou-se.

E dentre os sacerdotes há aqueles que são considerados como os mais odiados ainda: os
judeus. Conforme Nietzsche, foram eles os mais vis, os mais perniciosos, aqueles que
propuseram a transmutação da moral da aristocracia em moral dos escravos. Nunca mais os
bons, os altivos, os potentes, ao invés disso, através da moral judaico-cristã, somente os
pobres de espírito, os fracos, os aleijados, entrarão no reino dos Céus, não havendo
possibilidade de ascensão para os poderosos.

“Só um povo de sacerdotes, um povo de vingança retraída, podia obrar assim. Os judeus,
com uma lógica formidável, enfrentaram e inverteram temivelmente a aristocrática escala
dos valores (“bom” é igual a “nobre”, igual a “poderoso”, igual a “formoso”, igual a
“feliz”, igual a “amado de Deus”). E, com o encarniçamento do ódio da impotência,
afirmaram: “Só os desgraçados são bons; os pobres, os impotentes, os pequenos são os
bons; os que sofrem, os necessitados, os enfermos são piedosos, são os benditos de Deus;
só a eles pertencerá a bem-aventurança, pelo contrário, vós, que sois nobres e poderosos,
sereis por toda a eternidade os maus, os cruéis os cobiçosos, os insaciáveis, os ímpios, os
réprobos, os malditos, os condenados””(NIETZSCHE, A Genealogia da Moral, 2011,
I,§7) .
Acompanhando o pensamento de Schopenhauer, Nietzsche nos dirá que a compaixão e a
caridade são formas de enfraquecimento do homem, ao dar algo de si, e, ao não permitir que o
outro o tome para si, cresça por si, a compaixão á a impossibilidade de subversão do
fortalecimento do homem, através da diminuição da sua vontade de potência.

É importante ressaltar que o tipo psicológico do sacerdote, o representante da nobreza


espiritual, foi determinante para a transformação dos valores dominantes na cultura europeia.
Sua dominação é espiritual mais do que política. O tipo psicológico de cada um pauta-se, no
primeiro, em questões espirituais, afastamento da ação, representaria uma vitalidade menos
natural, ou seja, um perigo para a vida. Já no que tange à classe aristocrática, são um tipo de
instintos saudáveis e favoráveis à vida, guerreiros, espontâneos e naturais.

Esse afastamento da animalidade nos sacerdotes, significou para esses uma diferenciação que
dava-se pelas ideias de pureza e impureza. Com o tempo, interiorizaram-se como formas
simbólicas, relacionadas a disposições interiores e valores. Desse modo, abriram espaço para
a expansão dos valores das estirpes mais baixas, para a moral mais escrava, ou seja, uma
moral de rebanho.
Para Nietzsche, a cultura sacerdotal responsável por este novo domínio no campo axiológico
foi a judaica, que consolidou seus valores no Cristianismo. O que moveu, de fato, essa
transmudação do espírito judaico foi o espírito de vingança. Seres debilitados, propuseram
com a continuidade no espírito cristão uma vingança espiritual contra seus inimigos; um forte
acento de ressentimento contra os nobres, os romanos. Incapazes de agir, os sacerdotes judeus
propuseram um acerto de contas na imaginação, na vingança.

Através do Cristianismo operou-se uma “rebelião escrava da moral”: os valores nobres foram
apropriados pelos escravos e invertidos, o que se traduziu na “transvaloração-judaico-cristã”.
Um desprezo pelo que é nobre=poderoso=belo=feliz=caro aos deuses; e, uma estima do que é
pobre, fraco, sem energia, com baixa vitalidade, decorrentes de um deslocamento da
avaliação, do “ser” para a ação.

Os sacerdotes judeus inverteram a equação dos valores aristocráticos e o Cristianismo


completou essa revolta escrava na moralidade postulando um céu onde os mansos não apenas
entrariam, mas onde estariam salvos. Nietzsche, então, nos proporá a fórmula “Roma-Judeia,
Judeia-Roma”, e esta última será vencedora por mais de dois milênios. Onde quer que se
encontre os vencedores, encontrar-se-á três judeus e uma judia: Jesus de Nazaré, Pedro, Paulo,
e Maria, mãe de Jesus. Não é de se estranhar que o Cristianismo tenha sucedido o judaísmo.
Na interpretação nietzschiana, não há uma ruptura mas uma continuidade, uma espécie de
sedução. É o que Nietzsche afirmará. Os judeus, em confronto com os romanos, tentarão
seduzir a escória, aquele povo submisso ao Nazareno; submetido este a uma morte das mais
ignominiosas que houve, a morte da cruz, uma morte não pelo pecado dos outros, mas pelos
seus próprios, os políticos.

A sedução proposta pelos judeus no Cristianismo segue a necessidade de transformar o forte


em fraco, tornando todos inimigos. Segue-se na construção de “um ideal capaz de seduzir e de
persuadir os fortes mediante a compreensão da supremacia da fraqueza frente ao ideal
transcendente.”(Azeredo, 2000, p.71). Nietzsche chega a elaborar a hipótese de que essa
sedução visaria a buscar de todo jeito a adaptação dos homens aos valores judaicos.

Assim, segundo Nietzsche, o grande triunfo dos impotentes sobre a aristocracia guerreira deu-
se através do amor de Cristo. O amor que renuncia à força, que perdoa os inimigos, que dá a
outra face O sacrifício de Jesus, ao menos segundo certas concepções, trouxe a “salvação” dos
fracos, e, ao mesmo tempo, trouxe uma vingança eterna aos fortes: tornarem-se-lhes afastados
do reino de Deus para sempre; que não o merece.
Um outro modo de apresentar a transmudação da moral aristocrática em escrava é através do
ressentimento do fraco. Esse momento de transmutação da moral é aquele em que o
ressentimento se torna criador e passa a criar valores. Nietzsche tem uma reveladora criação
ao cunhar este conceito de ressentimento no bojo do campo da moral. O filósofo criará um
esquema em que, relacionando o tipo do ressentido, também revelará seu tipo psicológico.

A ambição de Nietzsche é identificar um ponto histórico em que a saúde toma lugar da


doença. Pois o tipo ressentido é aquele dispéptico, que não consegue esquecer, ou seja, que
nem reage e nem age. Sua impotência é enorme a ponto de desenvolver características de
ódio e vingança contra seu oponente, sem chegar a reagir ativamente; ele não esquece sua
ofensa e assim a sua memória torna-se-lhe a sua doença. A sua consciência é cheia de marcas
e não deixa lugar para o novo. Sua vingança é imaginária através do despeito e da
desesperança. Em seu lugar, o homem saudável, livre das más lembranças, não tem lugar para
desenvolver o rancor, lançando suas marcas para o âmbito do inconsciente. Sua consciência
torna-se-lhe um espelho e ele nem chega a ter tempo de sentir sentimento de vingança. O
ressentimento é definidor de um tipo, no caso, o tipo do escravo. O senhor, por seu lado, é o
criador de valores.

“O levante dos escravos da moral começa quando o ressentimento se torna criador de


valores: o ressentimento de seres tais, aos quais está vedada a reação propriamente dita, o
ato, e que somente por uma vingança imaginária ficam quites. Enquanto toda moral nobre
brota de um triunfante dizer-sim a si própria, a moral de escravos diz Não, logo de início,
a um ‘fora’, a um ‘outro’, a um ‘não-mesmo’: e esse Não é seu ato criador. Essa inversão
do olhar que põe valores – pertence, justamente, ao ressentimento: a moral de escravos
precisa sempre, para surgir, de um mundo oposto e exterior, precisa, dito
fisiologicamente, de estímulos para em geral agir – sua ação é, desde o fundamento, por
reação” (NIETZSCHE, A Genealogia da Moral, I, §10).
O ressentimento é definidor do tipo escravo; é-lhe inerente. No senhor esgota-se
imediatamente, por isso não o define. Seus inimigos, seus acidentes, aparecem-lhe como algo
sem importância. No tipo escravo, além do desenvolvimento de uma extraordinária memória,
nele determina-se a percepção do inimigo como mau. E, por razões para além da moral,
próprias do ressentimento, os judeus, pelo motivo de seu tipo, de serem eminentemente
sacerdotes, são seres vingativos, odiosos e ruins. Se isso não é um modo de atividade semítica
do pensamento do filósofo, precisamos de mais desdobramentos em suas ideias para discernir
entre sua atitude antissemítica ou uma atitude meramente antijudaica. Pretendemos
compreender em que medida há uma real diferença entre essas duas posturas, e entender qual
delas predomina nas reações filosóficas de Nietzsche contra o povo e a raça dos judeus.
2.2. O ANTICRISTO
“ Portanto, a pronunciação do [verdadeiro] Senhor, Jeová dos exércitos, o Potentado de
Israel, é : Ah! Aliviarme-ei dos meus adversários e vou vingar-me dos meus inimigos. E
vou fazer minha mãO retornar sobre ti e depurar-te-ei da tua escórnia como que com
barrela, e vou remover todo o refugo. E vou novamente trazer de volta juízes para ti,
como no princípio, e conselheiros para ti, como no início. Depois serás chamada Cidade
de Justiça, Vila Fiel”. (ISAÍAS, 1:24-26).
Segundo Nietzsche, o judaísmo continua grande enquanto afirma um Deus que é Rei, Soldado
e Juiz, um Javé em quem reflete a força judaica, antes das investidas seculares do sacerdócio
contra esses chefes. Nietzsche declara abertamente sua predileção pelo profeta Isaías em O
Anticristo. “Mas o povo conservou a sua mais alta aspiração e visão de um rei que é um bom
soldado e um severo juiz: sobretudo, aquele profeta típico (que se chama o crítico e satírico do
instante), Isaías.

Assim, seguindo a obra de Nietzsche, no que tange à problemática judaica, temos em 1888, a
obra postumamente publicada de: O Anticristo. Obra polêmica, que, pelo título, dá a noção de
uma ideia de ateísmo e de ódio ao Cristo. Mas, o que se vê nessa obra em relação aos judeus
é, um misto de problemáticas já abordadas em A Genealogia da Moral: como o sacerdócio e a
vontade de potência dos deuses, e ainda, a proposição de uma genealogia do povo judeu.

Nietzsche afirmará que a força de determinados deuses entre dados povos, que se dá segundo
a duração de sua vontade de poder, como foi o caso dos gregos. Ao revés, povos como os
judaico-cristãos são marcados pela fraqueza e pelo espírito de vingança, o contrário dos fortes
e guerreiros das raças gregas. E o que significa essa vontade de potência? É que existem as
religiões que afirmam a vida e as que as negam. Nietzsche dirá que com os sacerdotes, houve
uma desnaturalização da religião. Se antes Deus abençoava as plantações e colheitas, um
Deus das “bençãos”; depois, com a desnaturalização empreendida pelos sacerdotes, o
“pecado” tornou-se o responsável pelo castigo de Deus às ações humanas. Um “pecado” que
não tem fim, até o fim dos tempos.

O que significa dizer que, Deus, antes, consistia na consciência auto afirmativa de um povo,
para depois tornar-se uma concepção divinal, não “natural”, uma “desnaturação”. O fato é que
houve um dado histórico concreto sobre Israel: a anarquia interior, a ameaça assíria exterior e
a ascensão da classe sacerdotal.

Da crise da monarquia, coube aos sacerdotes que sobraram, lançar mão de um Deus
metafísico que se relacionava contratualmente com o povo. Assim, tem-se uma causa não-
natural para a vida, não mais inscrita na efetividade do mundo, mas uma causa espiritual,
metafísica, alienada, baseada na moral do indivíduo, uma causa antinatural.

A perspectiva de Nietzsche é a de que a classe sacerdotal interpretou mentirosamente toda a


história judaica até então, afirmando que Israel teria sido destruída porque seus ancestrais não
haviam guardado as Leis de Moisés. Na verdade os sacerdotes teriam sido os responsáveis
pela criação do “Reino de Deus”. Segundo Nietzsche quem estaria por trás de conceitos como
“ordem moral do mundo”, “vontade de Deus” e “Reino de Deus” seria a vontade de potência
do sacerdote judeu.

Sendo uma vontade fraca, essa descrita nos sacerdotes judeus, o que Nietzsche descreve é a
transvaloração de todos os valores fortes, nobres, ascendentes e afirmativos da vida por essa
classe no interior de Israel. Para Nietzsche, a mesma reinterpretação falseadora da história e
documentária realizada pela classe sacerdotal no período pós-exílico do povo judeu, com o
propósito de conservar-se e vencer seus opressores estrangeiros, foi operada pelos primeiros
cristãos que igualmente praticaram uma corrupção psicológica deturpando o tipo
fisiopsicológico do seu redentor, a figura histórica de Jesus.

Na interpretação de Nietzsche, umas tais deturpações só eram possíveis porque tinham o


mesmo “instinto judeu”, a mesma “raça”, as mesmas configurações pulsionais decadentes.
Transmitindo, assim, essa deturpação através dos escritos neotestamentários, como os
Evangelhos, que fundaram uma moral igualmente ressentida e vingativa contra os assassinos
de seus mestres; sejam romanos, sejam judeus.

Esse instinto pertence a todos os de cuja conjuração pulsional ou tipo fisiológico seja
decadente o bastante a ponto de valorar falsamente como bom aquilo que adoece seus
impulsos afirmativos e ascendentes de vida, o “crente”, ou o de “instinto de teólogo”. Essa
décedence quando levadas à filosofia, à literatura e artes seria a mesma fatídica repetição
histórica dos judeus do período pós-exílico e dos cristãos primitivos do primeiro século.

O perigo maior da dissolução da moral aliada à decadência é, sem dúvida, o niilismo que
produz. O instinto de teólogo em toda parte, da filosofia, literatura e arte – no esteio
axiológico de sua cultura europeia que ainda estava estabelecido sobre um fundamento
metafísico, platônica-cristã, torna-se niilismo puro.

Desse modo, o problema da origem do cristianismo resolve-se em que este não é um


movimento de reação contra o instinto judaico, é uma conclusão mais ampla na sua lógica
temível. “Plena degeneração do tipo Galileu que permitiu o uso que dele se fez, para um tipo
de ‘salvador’ da Humanidade”.

Em suma, O Anticristo reafirma o sentido de A Genealogia da Moral e a contraposição de


uma moral nobre a uma moral do ressentimento – à moral judaico-cristã importava a negação
de todo movimento ascendente da vida e a invenção para si de outro mundo.

3. O CÂNONE:

A história do pensamento ocidental é marcado por um processo de silenciamento e exclusão


de povos e minorias considerados estrangeiros, estranhos, ‘ekxénos’, etc. Concebemos a
ocultação das mulheres e sua linguagem, de povos selvagens e bárbaros, ou seja, de tudo
aquilo que pertence a uma tradição extra-europeia. Por isso concebemos a cunhagem do termo
raça e as opressões epistêmicas que ela sublinha.

Concebemos aqui neste trabalho, o predomínio epistêmico-territorial europeu como o


principal aspecto de domínio discursivo dos demais povos excluídos desse centro de poder.
No início de nosso discurso ressaltamos o racismo kantiano, nada ingênuo, até chegar à crítica
a um suposto antissemitismo enviesado de Nietzsche em algumas de suas obras. Conectamos
ambos os filósofos, de distintas épocas e de naturezas de racismos também diversos, porque
os racismos se interconectam, e não é possível conceber um racismo de escravidão, patriarcal,
misógino e sexista sem vir em seguida, a homofobia, o preconceito contra os povos
ameríndios e tudo o que isso signifique de interseccionalidade e mesmo transversalismo.

Quando nos referimos ao feminismo, por exemplo, concebemo-no sempre no plural, pois não
é possível trabalhar com a ideia de feminismo sem aquela outra da transversalidade. Do
mesmo modo, o racismo africano terá a mesma raiz do racismo judeu, ou ao menos,
compreenderá uma mesma ideia de exclusão oriunda do totalmente outro. Ressaltando-se que
o africano tem um acento fortemente biológico, enquanto o judaico enraíza-se numa ideia
eminentemente política.

Assim, no que tange à sua originalidade epistêmica, sobretudo a ‘ Crítica’ de Kant é exaltada
quanto à sua filosofia e, de certa forma, permanece indefensável; quanto ao caráter racista de
suas posições etnológicas, diz-se, trata-se de uma questão de “noção do tempo”, “de coisa de
época”, coisa e tal. Embora já houvessem críticos contemporâneos a essas posições
antirracistas kantianas em sua época, ainda subsistem hoje os debates sobre o racismo
antinegro e sobre os desdobramentos das relações entre colonização política e a invisibilidade
conferida aos saberes africanos, a dizer, as descobertas arqueológicas que remontam a
períodos anteriores à filosofia antiga grega, e, a oralidade guardada na memória de homens e
mulheres, transmitida de geração a geração, que também faz parte do conhecimento
imemorial. Precisamos ainda de novos marcos desse conhecimento ancestral, como novas
fronteiras epistêmicas territoriais, sexistas e raciais para a filosofia.

Mas a pergunta do cânone a Kant é uma: “É justo para com a diferença entre os povos afirmar
uma universalidade dos povos?” E ainda: ”Como pode existir uma universalidade moral dos
homens frente à exclusão de sistemas de vida que resistem, em muitos casos, ativa e
resolutamente à inscrição numa comunidade cosmopolita?”

Seguindo, em primeiro lugar, tem-se que, apesar da diversidade de existências que coexistem
na experiência, somente o conhecimento das coisas pelos homens é capaz de promover o real
conhecimento do mundo. O progresso moral marcha conforme o uso da faculdade da razão
tomando os homens por animais racionais. Mas quais sujeitos estão aptos a realizarem este
pleno exercício do conhecimento e posse do mundo através da razão?

Provavelmente a resposta encontra-se naqueles que se encaixam nos padrões de convergência


ao Estado, a saber, os não bárbaros, aqueles que se tornam um obstáculo para a realização da
“paz perpétua”. Digamos, assim, que a arquitetura kantiana é estável até certo ponto, mas tem
seu movimento, e nesse sentido torna-se questionável.

O racismo de Kant, sendo universal e conceitual, abre uma perspectiva de crítica


contemporânea próxima de conceitos criados mais próximos da experiência. Acchille
Mbembe, filósofo camaronês, por exemplo, cunhou o conceito de necropolítica a fim de
explicar a situação grave e atual do direito à vida ou à morte, segundo faça parte daquela
porção da humanidade que a priori já esteja excluída da vida, por exemplo, os negros. Nesse
lugar da necropolítica quase não há distinção entre vida e morte, onde as pessoas vivem sob
mínimas condições de sobrevivência.

Temos aqui, o contra cânone distinguindo e aclarando o racismo colonial, lançando novas
cores sobre a sua dissimulação em racismo epistêmico. A morte de indivíduos, no
capitalismo, é tomado por Mbembe como um de seus efeitos. E o risco da morte é presente o
tempo todo. No caso da morte de pessoas negras, torna-se necessário identificar as tecnologias
do racismo. As análises de Achille Mbembe apontam para decifrar o lugar do racismo
estrutural nesses processos.
O racismo estrutural é uma discriminação racial enraizada na sociedade, em que as
dominações exercidas sobre determinados grupos são reproduzidos nos âmbitos políticos,
econômicos, culturais, etc. No racismo estrutural, a sociedade possui o racismo como
componente de suas instituições e parte de sua própria ordem social. Em suma, segundo a tese
de Mbembe, a soberania na atualidade consiste no poder de determinar quem pode e quem
deve morrer. Levando-se em conta a existência do mundo contemporâneo, a construção da
sociedade cosmopolita deve ser fundada na tolerância e na base da igualdade real.

Mas, a pergunta que nos resta é, apesar de tudo, pode-se perdoar o racismo de Kant? Qual o
critério para separar uma coisa da outra? E então, no caso de Nietzsche, como são perdoáveis
os elementos semitas de sua filosofia? E ainda, e sua misoginia?

Poderíamos desacatar tanto Kant quanto Nietzsche e partirmos para um outro lugar? É o que
pretendemos fazer ao compararmos a posição antijudaica de Nietzsche amparada na
genealogia, ou seja, um método histórico e etimológico, e, considerarmos as Reflexões sobre
o racismo desenvolvidas por Sartre, que, através de seu Existencialismo, nos levam a um
caminho bem diverso daquele traçado pelo genealogista.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS:

Levando-se em conta, em relação ao antissemitismo de Nietzsche, que o melhor seria


descartá-lo, jogá-lo fora e tomar uma outra posição, escolhemos levá-lo a sério e cotejar as
suas contradições em um contexto de harmonização de ideias. Escolhemos tomar por
parâmetro de comparação, o texto de Sartre Reflexões sobre o racismo, para então propormos
uma crítica mais ampla sobre o assunto.

Da perspectiva existencialista de Sartre, o homem é um ser em situação, e assim também o


judeu. O judeu é um homem que os outros consideram judeu, ou seja, o judeu está em
situação de judeu porque vive no seio de uma coletividade que o considera judeu. Ser em
situação significa escolher-se em situação e os homens diferem entre si como diferem suas
respectivas situações. Um ser em situação significa que constitui um todo sintético com sua
situação econômica, política, cultural, etc. Não é possível distingui-lo desta situação, pois ela
o forma e decide de suas possibilidades, mas, inversamente, escolhendo-se em e por ela.
Em relação a Nietzsche, a abordagem do povo judeu assume uma perspectiva essencialmente
etnográfica, considerando as raízes históricas de seu povo e suas escrituras, considerando até
o ponto histórico da transmudação dos valores na moral do cristianismo.

Cotejando ambos os autores, a pergunta que nos interessa é: Nietzsche seria um antissemita
clássico, conforme descrito na análise psicológica de Sartre, ou apenas apresentaria algumas
características do tipo antijudaico?

Cumpre perguntarmo-nos, na perspectiva de Sartre, se as razões que inflamam o antijudaísmo


de Nietzsche são coerentes ou apenas passionais. Segundo Sartre, as razões do antissemitismo
se limitam a enumerar os defeitos que a tradição atribui aos judeus: avaros, conspiradores,
nefastos, etc. As razões, nesse caso, são de ordem passional, e não se assumem uma
perspectiva crítica, ou mesmo historiográfica ou sociológicas razoáveis.

Não há dúvida de que Nietzsche sustente seu ódio ao judeu de maneira passional, mas, por
outro lado, em A Genealogia da Moral, por exemplo, constrói todo um método historiográfico
e etimológico a amparar suas avaliações de “bom” e de “mau”, que darão em sua teorização
das morais de senhor e de escravo, ou seja, as condições possíveis para a sustentação do
sacerdote judeu vil, o responsável pela transmudação dos valores na moral cristã. Assim,
pode-se dizer, a postura de Nietzsche é passional e crítica ao mesmo tempo.

Ainda segundo Sartre, em sua análise psicológica do antissemita, é característico do


comportamento radical o fundamentalismo e a falta de espírito crítico. Seguindo, o
antissemita colocaria o raciocínio a serviço de suas ideias já cristalizadas e nunca na função
de método de investigação da verdade. A função da razão fica em segundo plano como uma
ferramenta a serviço de suas convicções. Não seriam essas as características mais próprias de
um pensador como Nietzsche, sempre se reinventando. Teríamos, então, uma Genealogia da
Moral tão elaborada como a de Nietzsche apenas um subterfúgio para seu racismo?

Sartre conclui que, para o antissemita, o judeu, alvo de sua ira e revolta, este não é senão um
pretexto, pois poder-se-ia ter um negro ou mesmo uma mulher. E aí se está, também, diante
da clássica misoginia de Nietzsche. A postura do filósofo que o leva a condenar a posição
independente das mulheres “solteironas” escrevinhadoras de livros, faria parte de mais uma de
suas idiossincrasias ou frutos genuínos de suas experiências biográficas traumáticas?
Ficamos numa encruzilhada, pois, nas palavras de Sartre a concepção do tipo antissemita é
aquela do ser incapaz de assimilar a realidade em sua complexidade e esse não é o lugar de
Nietzsche no restante de sua obra. Podemos perdoar Nietzsche e seguirmos em frente?

Foucault foi muito bem sucedido na aplicação que fez da genealogia em sua obra. E, mais, em
Assim falou Zaratustra, quando trata de dadas figuras femininas míticas (a vida, a sabedoria e
a eternidade), é com amor e veneração que se lhes dirige o filósofo.

Sob nosso ponto de vista, há que se lidar com as contradições de Nietzsche sem se lhe imputar
a acusação de antissemitismo, afinal, a diferença é o lugar propriamente cunhado pelo filósofo
em todo seu pensamento e isso nada tem a ver com o caráter de um antissemita. Um certo tom
antijudaico sim, sobretudo quando deseja atingir a crítica ao cristianismo. E uma misoginia
explícita, sim, mas ambígua, pois se mostra também um amante das mulheres:

“Nunca encontrei, ainda, a mulher da qual desejaria ter filhos, a não ser esta mulher que
amo: pois eu te amo, ó eternidade! Pois eu te amo, ó eternidade!” ( “Os sete selos, ou: A
canção do Sim e Amém. In: Assim falou Zaratustra, NIETZSCHE 1989, p.234).

5. BIBLIOGRAFIA:

. ANDLER, C. Nietzsche: vida e pensamento, volume 2, Contraponto, R.J., 2016.

. AZEREDO, V. D. Nietzsche e a dissolução da moral, discurso editorial, S.P., 2000.

. FINK, E. A Filosofia de Nietzsche, editorial presença, Lisboa, 1988.

. MBEMBE, A. Crítica da Razão Negra, Antígona, Lisboa, 2014.

_____________ Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política de morte, N-1


edições, S.P., 2018.

. NIETZSCHE, F. Além do bem e do mal, WVC, S.P., 2001.

_____________ Assim falou Zaratustra, bertrand brasil, R.J., 1989.

______________ Genealogia da Moral, Editora Vozes, Petrópolis, 2011.

______________ O Anticristo, edições 70, Lisboa, 1997.

. NOGUERA, R. O Ensino de Filosofia e a Lei 10.639, CEAP, R.J., 2011.


. SARTRE, J-P, Reflexões sobre o racismo, Difusão Europeia do Livro, S.P., 1965.

. YOUNG, J. Nietzsche Philosophy of Religion, Cambridge, New York, 2006.

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