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O jovem Nietzsche e a crítica da linguagem

Como falar do caráter fundante da linguagem? Qual a natureza da linguagem? Será em


torno dessas perguntas que Nietzsche nos situará em sua crítica da linguagem. De um
lado o mito, em O Nascimento da Tragédia (1872), será explorado em seu sentido de
origem, fonte que reúne tudo. O mito é um ponto de emanação que se desdobra em
muitas direções. Por outro lado, temos o texto não publicado de Verdade e da Mentira
no Sentido Extramoral (1873), que irá delimitar um outro caráter crítico da linguagem
através do uso das metáforas e do discurso da verdade. Nietzsche não aceita o caráter da
linguagem como produtora de verdades. Assim, o esforço de Nietzsche será no sentido
de ir além da linguagem conceitual metafísica, libertando a palavra da universalidade do
conceito.

De um lado, a linguagem cria sentidos e interpretações para o mundo, de outro pode ser
entendida como uma soma de antropomorfismos. Qual a relação existente entre a moral,
a metafísica e a linguagem? Que linguagem seria mais apropriada para exprimir a vida
em seu caráter efêmero? São algumas das perguntas que veremos Nietzsche fazer no
sentido de libertar a linguagem para a criação, ou seja, uma linguagem não fundante
mais para diante.

Pretendemos mostrar como, nesse período de juventude da obra de Nietzsche, parte-se


de uma concepção metafísica para uma visão mais linguística. Nietzsche concebe o
fundamento metafísico para então torná-la uma versão da linguagem como relação de
signos e símbolos. Dentro de uma realidade onde só existe transformação e mudança a
linguagem não é uma ferramenta capaz de expressar a verdade. Na perspectiva
nietzschiana só uma criatura, ao mesmo tempo, ingênua e arrogante como o ser humano
pode acreditar que é possível existir a verdade. Por isso, em Nietzsche, a linguagem não
pode estar atrelada à verdade, mas a um transbordamento de forças. Num primeiro
momento, como em O Nascimento da Tragédia, a linguagem ainda está articulada a
uma compreensão mítica e ao mesmo tempo fundacionista, há um fundamento da
linguagem que é o próprio fundamento do trágico, ou seja, a origem.

Em primeiro lugar, precisamos entender a presença da metafísica e relacioná-la ao


problema da linguagem. Sobretudo sob a tutela da filosofia de Schopenhauer, a
metafísica foi incorporada por Nietzsche à estrutura de seu primeiro trabalho,

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entendendo-se inclusive o sentido metafísico kantiano, reproduzindo um pensamento


profundo.

Significativamente, algumas figuras de O Mundo como Vontade e Representação


reaparecerão em O Nascimento da Tragédia sob novas formas, é o caso da “vontade
helênica” em lugar da Vontade, ou o da figura da aparência, substituindo o conceito de
representação. Precisamos distinguir o sentido que a noção de metafísica assume na
filosofia de Nietzsche em seus primórdios, para enfim compreendermos o sentido e o
significado de sua posição radical assumida desde os intermédios de sua obra até se
tornar o fundador de uma verdade inaugural de uma tradição.

Nietzsche não irá propriamente construir a tragédia grega segundo os seus padrões, mas
determinará um novo sentido de interpretação para o fenômeno, que não
necessariamente coincide com a Antiguidade, uma espécie de arcaísmo, na figura do
Un-Einem(1), ou o Uno-Primordial, a Vontade, uma relação entre essse plano originário
e o mundo fenomênico. Segundo Cavalcanti (2005, p.187):

“ O filósofo (Nietzsche) observa que as pulsões artísticas da natureza, em sua


aspiração à aparência, nos revelam um elemento essencial do Uno Primordial, a
saber, a necessidade de libertação do ser verdadeiro, em sua eterna dor e
contradição, por meio da visão extática e da aparência prazeirosa”.
Comumente conhecemos Nietzsche como um filósofo iconoclasta e destruidor da moral
e das tradições, dentre seus alvos, o mais reconhecido é mesmo o da metafísica e seus
derivados, como a religião, as artes e os ideais suprassensíveis. Compreendendo os
signos da poética e da música no primeiro de nossos textos, e a questão das metáforas
referidas à problemática da verdade no segundo.

No sentido de abordarmos o centro fulcral da obra inicial de Nietzsche, O Nascimento


da Tragédia’, pretendemos abordar o antagonismo dos dois impulsos(2) artísticos
fundamentais que estruturam seu texto: o apolíneo e o dionisíaco. Essas duas forças da
natureza, originam-se e divergem das duas divindades gregas : Apolo e Dioniso.
Algumas outras oposições irão marcar distinções metafísicas nesta obra: essência e
aparência, coisa-em-si e fenômeno, vontade e representação, e, o par, apolíneo e
dionisíaco, ligando-se o primeiro às aparências e o outro à essência mais profunda do
ser.

Paralelo aos estudos das artes, preexiste uma oposição fisiológica que sobredetermina as
regiões do apolíneo e do dionisíaco: o universo do sonho e o da embriaguez. Retomando

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a linguagem do sonho e do êxtase anunciados, próprios dos deuses Apolo e Dioniso; em


contraposição à medida e à composição de belas formas próprias à atividade fabuladora
do sonho, próprias a Apolo ; o dionisíaco se manifesta através do terror total, próprio do
delicioso êxtase que toma conta do homem ao ser rompida a individuação e ser
suspendido o princípio da razão que governa as aparências fenomênicas.

E, em relação aos três princípios mais fundamentais da filosofia de Schopenhauer, que


Nietzsche se apropria no sentido de fazer aparecer o fenômeno do dionisíaco em toda
sua força, temos: “o princípio da razão”, que organiza as aparências fenomênicas por
meio da causalidade, Nietzsche irá propor a sua ruptura por meio do desgoverno
inserido pelo movimento dionisíaco que, por meio de suas beberagens e licenciosidade
sexual, rompe com as relações de tempo e espaço, estabelecendo o êxtase.

Outra ruptura percebida na ordem manifesta do mundo, destacada pelo fenômeno


dionisíaco é aquele do principio individuationis, ou da individuação, onde o princípio
que assegura a constituição das formas sensíveis é suspenso, e a ordem que compõe o
mundo fenomênico é desagregada. O homem tem acesso direto ao âmago do mundo. O
princípio da individuação é o mais próprio do apolíneo.

E, por fim, na imersão do êxtase generalizado, os seguidores de Dioniso são levados


pela torrente do canto e da dança, rompem-se as barreiras entre os homens – como se o
Véu de Maia (3) tivesse sido rasgado, esvoaçasse diante do misterioso Uno-primordial
(Un-Einen ). O Uno-primordial é identificado com a Vontade. O essencial que resta ao
fim das manifestações fenomênicas.

“Antes, a palavra do enigma é dada ao sujeito do conhecimento


que aparece como indivíduo. Tal palavra se chama VONTADE. Esta, e tão
somente esta, fornece-lhe a chave para seu próprio fenômeno, manisfesta-lhe a
significação, mostra-lhe a engrenagem interior de seu ser, de seu agir, de seus
movimentos” ( Schopenhauer, 2005, p.156).
Assim, o dionisíaco é esse que também é identificado à Vontade. A “vontade helênica”
não é diferente da própria Vontade. Uma interpretação nietzschiana. Embora a sua
rivalidade independa da mediação do artista, manifesta-se nas obras de arte, produzidas
pelo figurador plástico – a arte tipicamente apolínea –; enquanto na música, a produção
artística é a dionisíaca por excelência . Por outro lado, a música era conhecida como arte
apolínea, uma batida ondulante do ritmo, se insurge o padrão da música em geral, da
música dionisíaca com a violência de seu som, a propriedade de sua melodia e
predominância da harmonia.

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Durante algum tempo os gregos permaneceram protegidos pelas forças de Apolo. E o


elemento dionisíaco tornou-se o que de mais grotesco existisse contra aquele poder. No
entanto, um novo mundo de símbolos se insurge e crescem as forças simbólicas da
música. O homem deseja desalinhar-se de si próprio e aderir a essas forças. Nesse
momento, o grego apolíneo que até aqui se aterrorizava com esse pavor, torna-se
familiar ao mundo dionisíaco: “Apolo não podia viver sem Dioniso!” (N.T., 4 – p.41).

Em séries cíclicas, desde a Idade de Bronze, o impulso apolíneo vem sendo o propulsor
de um mundo glorioso, e, em seguida, engolido pelas forças invasoras do dionisíaco.
Mas como, face a tragédia ática e o ditirambo dramático, alvo de ambos os impulsos,
conjugaram-se, e após luta provisória, vivificaram-se e se uniram em tão supostas obras
de arte:

“ O encantamento dionisíaco musical do dormente lança agora à sua volta como


que centelhas de imagens, poemas líricos, que em seu mais elevado desdobramento
se chamam tragédias e ditirambos dramáticos”. (N.T.; §5, p.44).

Desse modo, na história linguística do povo grego, identificamos duas correntes


principais: a linguagem como tendo o fundo da aparência e da imagem ou da música.
Refletindo sobre esse duplo aspecto do mundo grego, a tragédia e a música,
encontramos dois motivos em Nietzsche para pensar o mundo moderno em suas bases.
Em relação à tragédia antiga, propõe o deslocamento de sua noção, como algo mais
abrangente que a Antiguidade, mais remota, algo como um arcaísmo. Assim, pode-se
dizer que Nietzsche não está a inventar a tragédia antiga, o que ele cria é o paradigma
arcaico da tragédia antiga – o que ele chama de Uno-primordial (Un-Einen).

Nesse sentido, a referencialidade torna-se um problema em O Nascimento da Tragédia.


Nietzsche busca um elemento não discursivo como fundamento na leitura da
Antiguidade, como o Un-Einen, por exemplo. Tendo essa compreensão da linguagem
como linguagem do Um, representa assim, uma linguagem da força cósmica, que é
apreendida na obra de arte.

A estética que Nietzsche defende é claramente pró-musical, mesmo que os problemas


que aborda estejam para além da música propriamente dita, ,sempre guardam íntima
relação com a linguagem. Estabelece um contraste que entre a arte dos sons e as
melodias, mas, em última análise: "A música enquanto mãe da tragédia".

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Nietzsche nos apresenta em sua obra uma concepção denominada de “metafísica de


artista”, onde propõe a arte como a situação exatamente metafísica do homem. Uma
contraposição à metafísica propriamente dita e à ciência. Em dado momento, Nietzsche
concebe como metafísica clássica, o saber racional e científico, fixando-os na figura de
Sócrates. Nietzsche concebe o saber artístico como superior porque, além de pôr o
homem em contato direto com as questões existenciais, proporciona a experiência
dionisíaca ao homem e ao artista.

Nietzsche refaz a linha da morte da tragédia grega desde Eurípedes e Sócrates.


Eurípedes importa a “estética racionalista” de Sócrates, e faz deste seu espectador
privilegiado. O Socratismo despreza o instinto, e assim, como ele, Eurípedes assinala o
padrão do belo, do consciente e racional. Ou seja, no propósito do tragediógrafo e do
filósofo, tudo era da ordem do entendimento, do conceito e da razão.

“Assim, o estudo da relação entre metafísica de artista e metafísica conceitual, que


tem como ponto de partida a crítica do socratismo estético, vai muito mais longe do
que uma simples questão de estética, remetendo, em última instância, como sempre
em Nietzsche, ao problema da verdade”. (MACHADO, 2002, P.31).

Segundo Nietzsche, Sócrates seria o não-místico por excelência. Alguém em quem se vê


a roda girando da lógica. Um olho que nunca “ardeu o gracioso delírio de entusiasmo
artístico”, quiçá ser tocado pelos abismos dionisíacos.

Aqui o pensamento filosófico ultrapassa a arte e a subjuga à necessidade da dialética.


Neste momento de Nietzsche face ao racionalismo e à ciência, pode-se dizer, também
estar-se presente um início de crítica à metafísica em seu sentido stricto. Em dado
momento de sua obra, em seus “Comentários Autocríticos”, Nietzsche lamenta: ”não ter
permitido uma linguagem própria para intuições e atrevimentos tão próprios”. Ou seja,
ele aponta o vínculo com Kant e Schopenhauer como um dos aspectos problemáticos de
O Nascimento da Tragédia. Assim, se por um lado o diálogo que se estabelece entre
aqueles filósofos e Nietzsche é eminentemente terminológico, as conclusões a que este
chega, especialmente no tocante à tragédia , divergem em tudo da direção de seus
mestres.

A linguagem musical que inspira Nietzsche é a de Schopenhauer e, sobretudo, aquela


trágica de Wagner. O mito da tragédia, o mito do povo, enfim, o mito da nacionalidade,
sustentarão o mito da Antiguidade, que darão o suporte do arcaísmo que construirá a

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verdade de Nietzsche sobre o seu mito trágico. Aliás, o arcaísmo em Nietzsche é um


que propõe a sustentação da Antiguidade, e não nenhuma verdade histórica, algo
anterior à própria Antiguidade. Nietzsche junto com Wagner irão propor uma nova
teoria da tragédia, que vai se desenvolver nas bases das teorias não-representacionais da
tragédia.

No drama musical wagneriano, Nietzsche reconhece o ressurgimento do espírito trágico


antigo, o que alimenta sua esperança de promover uma renovação cultural. Nietzsche
acredita que através da música alemã – de “Bach a Beethoven e de Beethoven a
Wagner” – a cultura grega poderia revivificar o espírito dionisíaco. Nietzsche se dedica
à elevação do trágico na cultura alemã. E deposita suas esperanças em Wagner e esse
renascimento da tragédia.

Eis alguns aspectos que unem a filosofia de Nietzsche ao projeto artístico de Richard
Wagner: o significado da revitalização da cultura grega, a projeção dessas propostas no
futuro, a criação de um novo tipo de homem, e a transformação e crítica dos valores
modernos.

O interesse de Nietzsche pela linguagem poética e musical, parte de uma concepção


metafísica para uma visão mais linguística, tal como vamos encontrar em Verdade e
Mentira no Sentido Extramoral. Nietzsche parte do fundamento metafísico para uma
versão da linguagem como relação de signos e símbolos.

Crítica à linguagem

Apresentaremos aqui, neste trabalho, um outro texto, Verdade e Mentira no sentido


Extramoral, não publicado, de 1873, que parece ser o primeiro com conteúdo anti-
metafísico a utilizar-se de princípios da linguagem.

O texto inicia-se, pela força ficcional, a partir de uma fábula:

“ Em algum remoto rincão do universo cintilante que se derrama em um sem


número de sistemas solares, havia uma vez um astro, em que animais inteligentes
inventaram o conhecimento. Foi o minuto mais soberbo e mais mentiroso da
“história universal”: mas também foi somente um minuto. Passados poucos fôlegos
da natureza congelou-se o astro, e os animais inteligentes tiveram de morrer”.
( V.M.E, §1º, p.31)

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Pode haver coisas em si, mas mesmo que haja, nós jamais o saberemos, porque nós
fomos tomados pelo acorde de nossa organização sensorial. Nesse sentido Nietzsche
acompanha Kant em sua tendência não correspondencionista entre objeto e linguagem.
Foucault(4) apresentará sua tese confrontando as noções de origem (Ursprung) e
invenção (Erfindung), no sentido de afirmar que o conhecimento é da ordem desta
última. Assim, como a religião, a poesia e o ideal, o conhecimento não é instintivo e não
tem nenhuma relação com o objeto a conhecer. Tudo na linguagem é metáfora. E
próximo da compreensão kantiana de que não se pode aproximar a essência das coisas.

Em relação ao conceito, ele não diz a essência, é metafórico também. O conceito tenta
estagnar o que é fluido, sendo extático. “Todo conceito nasce por igualação do não
igual”(5). A folha, por exemplo, nasce da ideia de que, desprezadas as diferenças em
cada uma delas, haveria uma ideia de “folha”, e nenhuma delas corresponderia “à cópia
fiel da forma primordial”(5). Nietzsche afirmará que a desconsideração do individual e
efetivo nos dá o conceito.

Os conceitos utilizados pelos filósofos são produtos de uma linguagem que na realidade
nada tem de objetivo, dada sua natureza metafórica, esquecida pelo ser humano. Deste
modo, tal esquecimento reforça o fato de que na realidade, este mundo verdadeiro nunca
existiu, e o anseio pela verdade, tão presente no pensamento ocidental, nada mais é do
que o anseio por uma ilusão, a metafísica. Podemos conceber que esse esquecimento
presente na estrutura das metáforas, permite que Nietzsche chame o instinto de verdade,
e a crença que os homens podem descrever, de realidade.

E, para Nietzsche, a verdade equivale à mentira, quando se equipara a um modo de dizer


as metáforas usuais, moralmente, segundo a obrigação de mentir - tal qual uma
convenção sólida. A intenção de Nietzsche é desmistificar a verdade como valor único,
sem um sentido histórico. Desmistificar o papel da razão, do intelecto, de produzir
conhecimento. Não mais essa ideia de um conhecimento descomprometido e
verdadeiro. O texto se constrói pela força do ficcional, o texto começa com uma fábula.
O intelecto não tem uma função que extrapole o ser humano, o conhecimento é
inventado, forjado, criado pelo homem. Não dá capacidade de desvendar mistérios. A
linguagem é como uma moeda gasta, que perde a efígie e só vale pelo valor do metal.
Em relação às metáforas Nietszche sugere o seguinte exemplo:

“Um estímulo nervoso, primeiramente transposto a uma imagem! Primeira


metáfora. A imagem por sua vez, modelada em som! Segunda metáfora. E cada vez

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completa mudança de esfera, passagem para uma esfera inteiramente outra e nova.”
(NIETZSCHE, 1987, P.33).

Mas, então, repetimos a pergunta: - De onde vem o sentido da verdade?

O homem deseja as consequências agradáveis tanto do engano quanto da verdade, e não


com o desagrado do engano em si. O que há é o estabelecimento de determinadas
normas que vão determinar os valores de verdadeiro e mentiroso. É fixado, é
determinado, o que é estabelecido põe as convenções das verdades. E, tendo em vista
que tudo é metáfora, inclusive a verdade; o que nós temos para dizer do mundo é
invenção, é ilusão, em suma, mentiroso, num sentido extra-moral.

“Esse impulso à formação de metáforas (...) procura um novo território para


sua atuação e um outro leito de rio, e o encontra no mito e em geral na arte. (...)
Aquele descomunal arcabouço e travejamento de conceitos, ao qual o homem
indigente se agarra, salvando-se assim ao longo da vida, é para o intelecto que se
tornou livre somente um andaime e um joguete em seus mais audazes artifícios: e
quando ele o desmantela, entrecruza, recompõe ironicamente, emparelhando o mais
alheio e separando o mais próximo, ele revela que não precisa daquela tábua de
salvação da indigência e que agora não é guiado por conceitos mas por intuições”.
(Nietzsche, 1987, p.34)

Diante das intuições, transportando palavras de uma esfera de significação a outra


totalmente distinta, o uso da metáfora pode bem ser uma estratégia do filósofo para
contornar as limitações da escrita. O projeto de mudar de lugar conceitos e reconstruir
(e destruir) nossos edifícios de ideias pode significar o estabelecimento de novas
criações, da tão almejada transvaloração dos valores, adiantada em algumas décadas.
Seguindo esta suposição, estaríamos lendo nas metáforas do filósofo não apenas
exercícios artísticos, mas seu esforço de, através da forma, demonstrar a impossibilidade
de se tocar pensamentos mais raros e, por outro lado, indicar a possibilidade de
reformulação de nossa matriz de pensamentos através da capacidade humana de
redefinição do conceito.

Mas, em relação à vontade de verdade, conceito cunhado por Nietzsche, mais adiante
em sua obra, o homem não deseja a verdade, mas a crença na vontade de verdade. O
ponto central das reflexões acerca do conhecimento é a crítica da vontade de verdade
que atua neste. E essa vontade de verdade sempre implica um determinado tipo de
vontade de potência.(6) No caso do conhecimento e da ciência dispõe uma vontade de
fraqueza, um niilismo.

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É preciso notar que a vontade de verdade é crença e é força de vida, não é uma força
moral, mas uma vontade de potência, mas uma que conserva e não expande a vida. Visa
os valores superiores e por isso significa uma vida melhor, um mundo verdadeiro. Nos
dirá MACHADO:

“A vontade de verdade é uma crença – crença na superioridade da verdade – e é


nela que a ciência se funda. Não há ciência sem o postulado, sem a hipótese
metafísica de que o verdadeiro é superior ao falso, de que a verdade tem mais valor
que a aparência, a ilusão.” (2002, p.78).
Nietzsche estabelece que os valores são históricos e portanto mutáveis. Por isso,
podemos afirmar com Deleuze que: “Todo mundo sabe que, de fato, o homem
raramente busca a verdade; nossos interesses e também nossa estupidez, mais do que
nossos erros, separam-nos do verdadeiro” (2018, p.123). Assim, diante do caráter não
correspondencionista da linguagem e de sua natureza implicada na vontade de verdade,
que em suma, é a vontade de potência, repetimos a pergunta de Nietzsche: “É a
linguagem a expressão adequada de todas as realidades?” (1987, p.33).

Notas:

(1) Expressão schopenhauriana: Ur-Einem. Ao longo do texto, Nietzsche recorre


reiteradamente ao termo Ur. Ele não foi transposto invariavelmente por “primordial”, sendo
alternado por “primigênio”, “original” ou “primevo”.
(2) Na tradução utilizada por nós, de J. Guinsburg, na nota 16, o tradutor explica a sua
preferência em traduzir Trieb por “impulso” e não por “instinto”, dada à carga biologizante
que este último vocábulo encerra.
(3) A expressão ‘Véu de Maia’ ou o “véu da ilusão” tem sido utilizada no significado de
esconder a realidade das coisas em sua essência, e nos vem da sabedoria hindu, dizendo que
o mundo não é exatamente aquilo que vemos, e sua realidade talvez não seja o que somos
levados a crer.
(4) NIETZSCHE, F. Verdade e Mentira no sentido Extramoral, Nova cultural, São Paulo,
1987.
(5) FOUCAULT, M. A Verdade e as Formas Jurídicas, PUC Rio, Rio de Janeiro, 2001.
(6) ‘Vontade de potência’ (Der Wille zur Macht) é um conceito da filosofia de Nietzsche. A
vontade de potência descrita por Nietzsche é a principal força motriz em seres humanos e
também em animais – realização, expansão e esforço para alcançar a posição mais alta
possível na vida.

Bibliografia:
. DELEUZE, Gilles, Nietzsche e a Filosofia. N-1 edições, Presses Universitaire de
France, 2018.
. FOUCAULT, Michel, A Verdade e as Formas Jurídicas, PUC Rio, Rio de Janeiro.
. MACHADO, Roberto, Nietzsche e a Verdade, São Paulo, Paz e Terra, 1999.

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. MENDONÇA, Adriany, F.M. A Invenção da metafísica a partir da arte: perspectivas


nietzschianas, Rio de Janeiro, Ape’Ku, 2020.
. NIETZSCHE, F. O Nascimento da Tragédia ou Helenismo e Pessimismo. Companhia
das Letras, São Paulo, 1992.
. _____________ Nietzsche, vol I, Nova Cultural, Coleção“Os Pensadores”,São Paulo,
1987.
. SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo como vontade e representação. Editora
UNESP, 2005.

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