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ISSN 1809­2616 

ANAIS 
V FÓRUM DE PESQUISA CIENTÍFICA EM ARTE 
Escola de Música e Belas Artes do Paraná. Curitiba, 2006­2007 

O PAPEL DO CORO NA TRAGÉDIA GREGA EM NIETZSCHE 
Haroldo Osmar de Paula Júnior*
haroldo.depaula@pucpr.br 

Essa  tradição  [antiga]  nos  diz  com  inteira 


nitidez  que  a  tragédia  surgiu  do  coro 
trágico e que originalmente ela era só coro 
e nada mais que coro... (Nietzsche) 1 

Observa­se,  na  leitura  de  O  nascimento  da  tragédia,  o  coro  como  um 
elemento  fundamental  na  arte  ática,  associado  à  origem  ou  à  fonte  primordial  e  à 
sua natureza dionisíaca. Intenciona­se neste artigo, observar a relevância dada por 
Nietzsche para o papel do coro na tragédia grega. A hipótese aqui defendida é a de 
que,  segundo  Nietzsche,  o  coro  trágico  é  a  própria  expressão  da  voz  do  deus 
Dionísio, associado, por sua vez, à dimensão originária e primordial. 
Nietzsche  compreende  o  desenvolvimento  da  arte,  ou  da  tragédia  grega, 
como  uma  natureza  inconsciente  ligada  aos  mais  obscuros  instintos  vitais.  Daí  a 
concepção valorizada pelo autor, da experiência estética como ponto de partida para 
a reflexão sobre a cultura, e a sua investigação filosófica orientada para a dimensão 
dionisíaca.
Para  Nietzsche,  existe  uma  estreita  relação  entre  a  pulsão  artística  e  a 
própria  vida.  Quem  teria  percebido  e  vivido  com  intensidade  e  autenticidade  esta 
estreiteza,  fora  os  gregos  trágicos?  Neles  “a  vontade  queria,  na  transfiguração  do

*
Mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Professor do Depto de Filosofia 
da PUCPR 

NIETZSCHE,  Friedrich.  O  nascimento  da  tragédia  ou  helenismo  e  pessimismo.  São  Paulo: 
Companhia das Letras, 1992, reimpr. 2003. § 7, p. 52.
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gênio e do mundo artístico, contemplar­se a si mesma. [...] Tal é a esfera da beleza, 
em que eles viam as suas imagens especulares, os Olímpicos”. 2 
Para examinar o papel do coro trágico, faz­se necessário retomar a idéia da 
tensão  entre  as  pulsões  apolínea  e  dionisíaca,  bem  como  a  descrição  da  música 
propriamente dita nesse contexto. 
Os  constantes  conflito  e  reconciliação  gerados  pelas  duas  divindades  do 
mundo helênico configuram o desenvolvimento da arte trágica. De um lado, tem­se 
Apolo, o deus da forma. De outro, Dionísio, o deus da arte não figurada, o deus da 
música  dissonante 3  e  da  embriaguez.  Nesse sentido,  Nietzsche  inicia  seu  primeiro 
livro com este esclarecimento: 

A  seus  dois  deuses  da  arte,  Apolo  e  Dionísio  [...]  ambos  os 
impulsos, tão diversos, caminham lado a lado, na maioria das 
vezes em discórdia aberta e incitando­se mutuamente a produções 
sempre  novas,  para  perpetuar  nelas  a  luta  daquela 
contraposição  sobre  a  qual  a  palavra  comum  “arte”  lançava 
apenas aparentemente a ponte; até que por fim, através de um 
miraculoso  ato  metafísico  da  “vontade”  helênica,  aparecem 
emparelhados um com o outro, e nesse emparelhamento tanto 
a obra de arte dionisíaca quanto a apolínea geraram a tragédia 
ática! 4 

Apolo  e  Dionísio  coexistem  de  forma  ambivalente.  Não  obstante,  a  arte 


grega  e,  em  especial,  a  música  trágica  tacitamente  aparecem  como  diagnóstico 
contra o racionalismo socrático. E sobre os gregos e suas obras de arte, Nietzsche 
os define como 

a mais bem sucedida, a mais bela, e mais invejada espécie de 
gente  até  agora,  [...]  a  que  mais  seduziu  para  o  viver,  [...]  os 
gregos. [...]  Adivinha­se em que lugar era colocado, com isso, 


NIETZSCHE, 1992, reimpr. 2003. Op. cit., § 3, p. 38. 

Dissonância:  no  decorrer  da  história,  as  sonoridades  tidas  como  dissonâncias  ou  consonâncias 
variaram  sobremaneira.  São  considerados  consonâncias  os  sons  “agradáveis  ao  ouvido”  e 
dissonâncias,  os  “desagradáveis”.  Ora,  o  que  é  agradável  para  uma  certa  sociedade  não  o  é 
necessariamente  para  outra.  Como  exemplo,  pode­se  citar  o  caso  da  Música  Medieval,  em  que  a 
terça não era apreciada, sendo que no Classicismo e no Romantismo, ela passa a ser a essência da 
harmonia.  Outro  exemplo  é  a  música  védica  indiana,  na  qual  as  consonâncias  eram  a  quarta  e  a 
quinta,  as  dissonâncias  as  segundas  e  as  sétimas,  e  as  assonâncias  as  terças  e  as  sextas.  A 
dissonância  a  que  Nietzsche  se  refere  é  aquela  de  finais  do  Romantismo,  que  ele  relaciona  com 
Dionísio, isto é, às emoções intensas, extasiantes e até sufocantes, angustiantes ou doloridas. Para 
ele,  estes  elementos  caracterizam  a  tragédia  grega  (MICHAEL,  Ulrich.  Atlas  de  Música.  Madrid: 
Alianza, 1989. p. 21, 167 e 85). 

NIETZSCHE, 1992, reimpr. 2003. Op. cit., § 1, p. 27.
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o  grande  ponto  de  interrogação  sobre  o  valor  da  existência. 


Será  o  pessimismo  necessariamente  o  signo  do  declínio,  da 
ruína,  do  fracasso,  dos  instintos  cansados  e  debilitados  – 
como ele o foi entre os indianos, como ele o é, segundo todas 
as aparências entre nós, homens e europeus “modernos”? Há 
um  pessimismo  da  fortitude?  [...]  O  que  significa,  justamente 
entre  os  gregos  da  melhor  época,  da  mais  forte,  da  mais 
valorosa,  o  mito  trágico?  E  o  descomunal  fenômeno  do 
dionisíaco? O que significa, dele nascida, a tragédia? 5 

Ao  se  examinar  com  mais  detalhes  a  Tentativa  de  autocrítica,  percebe­se 
que, já no seu parágrafo primeiro, faz uma crítica à ciência, ao socratismo e à moral. 
Este prefácio está marcado, do início ao fim, por uma ênfase ao reconhecimento de 
Dionísio  como  necessário  contraponto  à  racionalidade,  intimamente  relacionado  à 
música  e,  portanto,  ao  coro  trágico.  Daí  a  justificativa  do  problema  da  presente 
pesquisa. 
É  relevante  assinalar  que  todo  o  texto  constitui  uma  autocrítica  quase  que 
condenatória  a  O  nascimento  da  tragédia,  pelas  adjetivações  deletérias  das  quais 
faz  uso,  designando­o  como  um  “livro  bizarro”,  “livro  temerário”,  “defeitos  da 
mocidade”,  “livro  impossível”,  “desagradável”,  entre  outras.  Não  obstante,  pela 
centralidade dos significados de Dionísio na construção do seu pensamento, mesmo 
considerando  essa  obra  “temerária”,  ao  reeditá­la  reafirma  sua  importância  no 
cenário  filosófico.  Enaltece  a  particularidade  do  deus  da  desmesura  na  trama  da 
experiência trágica, bem como sua manifestação existencial no plano artístico, isto é, 
no plano  da vida.  Arte  e vida se confundem  por  terem um  fundo  originário comum, 
sintonizadas, então, com a tensão entre as pulsões representadas pelos dois deuses 
e manifestadas no coro trágico. 
Nietzsche,  com  maior  contensão,  também  faz  um  elogio  à  própria  obra, 
reconhecendo­a  como  um  livro  para  artistas  especiais,  com  uma  metafísica  de 
artista no plano de fundo: “este livro temerário ousou pela primeira vez aproximar­se 
–  ver  a  ciência  com  a  óptica  do  artista,  mas  a  arte,  com  a  da vida”. 6  Neste  ponto, 
encontra­se  a  confirmação  do  elemento  musical  e  dionisíaco  pertinente  à 
argumentação sobre o coro na tragédia grega. 
Nietzsche  discorre  sobre  a  dificuldade  de  expressão  de  um  conteúdo 
reservado  a  “iniciados”,  ou  “batizados  em  música”,  um  livro  que  se  fecha  ao 


NIETZSCHE, 1992, reimpr. 2003. Op. cit., § 1, p. 13­14. 

NIETZSCHE, 1992, reimpr. 2003. Op. cit., § 2, p.15.
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profanum  vulgus  [vulgo  profano]  dos  homens  ditos  cultos,  mais  ainda  do  que  ao 
“povo”. E finaliza a seção cinco perguntando: “O que é dionisíaco?”. 7 
Para responder a esta pergunta contida na Tentativa de auto­crítica, pode­ 
se  tomar  as  palavras  do  próprio  filósofo,  que,  na  Seção  5  do  livro  em  questão, 
aborda Dionísio, o Uno­primordial e a música. Baseado em sua metafísica de artista, 
Nietzsche expõe o caso do poeta lírico, intuitivo e “embriagado”: 

Ele se fez primeiro, enquanto artista dionisíaco totalmente um 
só com o Uno­primordial, com sua dor e contradição, e produz 
a réplica desse Uno­primordial em forma de música, ainda que 
esta seja de outro modo, denominada com justiça de repetição 
de mundo  e  de segunda  moldagem  deste: agora,  porém  esta 
música se lhe torna visível, como numa imagem similiforme do 
sonho, sob a influência apolínea do sonho. 8 

Neste contexto, Nietzsche faz alusão em especial ao poeta trágico Ésquilo, 
ao dar primazia a um modo não conceitual e imediato de expressão, encontrado no 
canto do coral trágico. O filósofo remete a uma realidade inacessível à palavra ou ao 
conceito. A dramaturgia grega introduz na narrativa e principalmente no discurso do 
herói épico, esta redenção na aparência, ou a cura para a insuportável experiência 
de dor e contradição propiciadas por Dionísio. 
A partir desta constatação, Nietzsche propõe que existe um “equilíbrio” entre 
a  realidade  não  mediada  pela  palavra  e  pela  narrativa.  Observa­se  então  uma 
reflexão  sobre  o  inconsciente  e  a  passagem  desta  dimensão  dionisíaca  invisível  e 
indizível,  para  uma  dimensão  apolínea  – principium  individuationis  –,  que é visível, 
narrada  e  conceitual,  constituindo,  assim,  o  que  Nietzsche  descreve  como  o 
nascimento da tragédia a partir do espírito da música. Em suas palavras, no livro de 
1872, o autor afirma: “o sentimento se me apresenta no começo sem um objeto claro 
e  determinado,  este  só  se  forma  mais  tarde.  Uma  certa  disposição  musical  de 
espírito vem primeiro e somente depois é que se segue em mim a idéia poética”. 9 
Trata­se  de  uma  relação  entre  o  Uno­primordial,  enquanto  força 
inconsciente dionisíaca e o mundo apolíneo fenomênico, ambos retratados de forma 


NIETZSCHE, 1992, reimpr. 2003. Op. cit., § 4, p. 17. 

NIETZSCHE, 1992, reimpr. 2003. Op. cit., § 5, p. 44. 

NIETZSCHE, 1992, reimpr. 2003. Op. cit., § 7, p. 44.
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exemplar,  curativa 10  e  única  no  âmbito  da  tragédia  grega.  A  dor  é  oriunda  da 
percepção  de  um  fundo  originário  repleto  de  sofrimento  e  prazer  extremos, 
insuportáveis à consciência. Daí a cura dar­se na aparência e no sonho apolíneo. 

Aquele  reflexo  afigural  e  aconceitual  da  dor  primordial  na 


música,  com  sua  redenção  na  aparência  gera  agora  um 
segundo espelhamento, como símile ou exemplo isolado. 
O  artista  já  renunciou  à  sua  subjetividade  no  processo 
dionisíaco:  a  imagem,  que  lhe  mostra  a  sua  unidade  com  o 
coração do mundo, é uma cena de sonho, que torna sensível 
aquela dor primordial juntamente com o prazer primogênio da 
aparência. 11 

A  tensão  entre  as  pulsões  artísticas  é  fundamental  na  dinâmica  para  a 


transformação  na  existência.  Na  trama  trágica,  a  música  do  coro  é  uma  das 
manifestações  desta  tensão,  que  ocorre  especialmente  na  voz  da  multidão 
“embriagada” e identificada com o poeta lírico que, enquanto artista dionisíaco, é um 
só com o Uno­primordial. Este é o papel do coro na tragédia grega: a personificação 
do deus Dionísio. 
É  com  freqüência  que  Nietzsche  menciona  diretamente  As  Bacantes,  de 
Eurípides, para fazer referência à dimensão dionisíaca ou primaveril, relacionando­a 
com a música, como segue na Seção 5, de O nascimento da tragédia. 

O  encantamento  dionisíaco­musical  do  dormente  lança  agora 


à  sua  volta  como  que  centelhas  de  imagens,  poemas  líricos, 
que  em  seu  mais  elevado  desdobramento  se  chamam 
tragédias  e  ditirambos  dramáticos.  [...]    O  músico  dionisíaco, 
inteiramente  isento  de  toda  imagem,  é  ele  próprio  dor 
primordial e eco primordial desta. 12 

É em nota de tradução de As Bacantes, que Maria Helena da Rocha Pereira 
explica  a  facilidade  que  os  gregos  tinham  em  passar  da  personificação  à 
representação da  divindade,  ou seja,  passar  da  condição  de ser  humano  à  de  um 
10 
Os  termos  curativo  ou  beberagem  curativa,  associados  à  tragédia  grega  (Seção  21),  são 
explorados por Nietzsche,  em  O nascimento da tragédia, contrapondo­se à idéia de cura pela razão 
em Sócrates (Seção 13). O filósofo alemão adota a perspectiva dos poetas trágicos, enaltecendo­a e 
assumindo­a  como  sua  própria  filosofia.  Toma  a  razão  como  doença  e  tem,  no  mergulho  da 
dissolução  do  indivíduo  no  Uno­primordial,  a  noção  de  reconciliação  com  a  natureza  (Seção  16). 
Nietzsche  aponta  que  a  tragédia  e  a  arte  são  adotadas  pelos  gregos  como  proteção  e  remédio 
(Seção 15). Nos seus escritos, percebe­se que ele assume essa concepção. 
11 
NIETZSCHE, 1992, reimpr. 2003. Op. cit., § 5, p. 44. 
12 
NIETZSCHE, 1992, reimpr. 2003. Op. cit., § 5, p. 44.
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deus.  Isso  ocorre,  por  exemplo,  no  intervalo  entre  o  diálogo  de  Penteu  e  Tirésias, 
estrofes 370 e 385, no trecho do coro que diz: 

Reverência, senhora dos deuses, 
Reverência, que sobre a Terra 
passas tua asa dourada, 
ouves de Penteu as palavras? 
ouves a irreverente 
insolência para com Brómio, 
de Sémele o filho, ele que nos festins 
de belas coroas está à frente 
dos bem aventurados? ele a quem pertence 
fazer cessar os cuidados 
dançar no tíaso, 
rir ao som da flauta, 
fazer cessar os cuidados, 
quando ao banquete dos deuses 
chega o brilho dos cachos, 
e nos festins de hera engrinaldados, 
o krater13 
  derrama o sono 
sobre os homens. 14 

A  transformação  dos  personagens  em  divindades  para  que  estas  falem  e 


intervenham  na  vida  dos  gregos  também  é  observada  na  voz  do  coro,  que,  da 
mesma forma, cumpre com o papel de expressar a tragicidade imposta pela vida ou, 
como  os  gregos  viam,  imposta  pelos  deuses.  A  música  dionisíaca,  por  acessar  a 
fonte  originária,  ou  até  por  ser  a  sua  própria  manifestação,  é  considerada,  na 
perspectiva  de  Nietzsche, como  o  melhor  instrumento  para  carregar  esta  tensão  e 
envolver,  também  pelas  suas  características  inebriantes  e  imitativas,  o  espectador 
dentro da trama do espetáculo, da representação, da tragédia. 
Nietzsche,  na  Seção  6  de  O  nascimento  da  tragédia,  faz  uma  relação  da 
música  com  a  poesia  lírica,  esta  justificada  como  “fulguração  imitadora  da  música 
em  imagens  e  conceitos” 15  ou  representação  da  vontade  no  sentido 
schopenhaueriano.  Não  obstante,  acrescenta  que  o  espírito  da  música,  em  sua 
ilimitação, não precisa da imagem e do conceito; ou seja, dispensa a linguagem para 
alcançar  por  completo  o  simbolismo  universal  referente  à  contradição  e  à  dor 

13 
Krater: vaso de grandes dimensões, destinado à mistura de água com vinho, que era de regra nos 
banquetes (EURÍPIDES. As Bacantes. Lisboa: Ed. 70, 1998. p. 54. nota 18). 
14 
EURÍPIDES, 1998. Op. cit., p. 54, estrofes 370 a 385. Nota­se que Brómio é também um nome de 
Dionísio. 
15 
NIETZSCHE, 1992, reimpr. 2003. Op. cit., § 6, p. 50.
135 

primordial no coração do Uno­primordial. Na poesia da canção popular, a linguagem 
empenha­se para “imitar” a música e o coro é a representação do povo, que na cena 
trágica, mostra­se como um extrato da multidão, ou “espectador ideal”. 16 
Para Schiller, de acordo com Nietzsche, 17  o coro trágico se mostra como uma 
muralha  viva  contra  a  realidade,  ou  seja,  como  uma  esfera  da  poesia  que  não  se 
encontra fora do mundo ou da dimensão do mundo fenomenal, mas sim da coisa em 
si,  o  Uno­primordial,  tornando­se  o  consolo  metafísico.  Esse  consolo  metafísico, 
essa forma de o homem se posicionar frente à vida, essa é a essência da tragédia 
grega.  O  grego  dionisíaco  quer  a verdade da  natureza  em sua força  máxima,  com 
toda a sua dor e com o seu prazer. 
A  excitação  dionisíaca  é  “capaz  de  comunicar  a  toda  uma  multidão  essa 
aptidão  artística  de  ver­se  cercada  por  uma  tal  hoste  de  espíritos  com  a  qual  ela, 
multidão, sabe interiormente que é uma só coisa”. 18  Isto significa, no coro trágico, o 
processo de ver­se transformado diante de si como se estivesse entrando em outro 
corpo  ou  outra  personagem.  Nietzsche  usa  o  termo  transe  para  falar  de  tal 
fenômeno,  ou  de  epidemia  que  toma  conta  da  multidão,  que  se  sente  enfeitiçada. 
Talvez  se  pudesse chamá­lo  de catarse 19  ou metamorfose:  um  processo em  que o 
coro  ditirâmbico  é  um  coro  de  transformados.  O  coro,  aqui,  assumindo  o  próprio 
papel do espectador, do público, da platéia. Porém, observa­se que esta catarse não 
é uma descarga patológica da moral. 
E  mais:  o  autor  afirma  que “o  encantamento  é  o pressuposto  de toda a  arte 
dramática [...] é a sua  metamorfose. [...]  Nos  termos  desse  entendimento  devemos 
compreender  a  tragédia  grega  como  sendo  o  coro  dionisíaco  a  descarregar­se 
sempre de novo em um mundo de imagens apolíneo”. 20 
Dionísio,  efetivo  herói  cênico,  não  está  presente,  mas  representado.  É  o 
princípio  mais  antigo  da  tragédia.  O  coro  é  a  tragédia,  não  o  drama.  O  coro 
contempla  em  sua  visão  o  seu  senhor  mestre  Dionísio  –  o  coro  é  a  mais  alta 
contemplação  da  natureza  e  da sabedoria.  Quando  Dionísio  aparece  (se  objetiva), 
não é mais o mar perene, ou  viver ardente. Agora Dionísio fala como herói épico. 21 

16 
NIETZSCHE, 1992, reimpr. 2003. Op. cit., § 7, p. 52­53. 
17 
NIETZSCHE, 1992, reimpr. 2003. Op. cit., § 8, p. 57­59. 
18 
NIETZSCHE, 1992, reimpr. 2003. Op. cit., § 8, p. 59­60. 
19 
Catarse é um termo aristotélico associado ao descarrego e à liberação de tensões sociais. 
20 
NIETZSCHE, 1992, reimpr. 2003. Op. cit., § 8, p. 60. 
21 
NIETZSCHE, 1992, reimpr. 2003. Op. cit., § 8, p. 61­63.
136 

A  arte dionisíaca  repousa  no jogo com  a  embriaguez, com  o  arrebatamento. 


São  dois  os  poderes  que  principalmente  elevam  o  homem  natural,  ingênuo,  até  o 
esquecimento  de  si,  característico  da  embriaguez,  a  pulsão  primavera  e  a  bebida 
narcótica. 22  Esse  arrebatamento  pode  ser  compreendido  como  a  catarse,  a 
experiência  da  embriaguez  dionisíaca,  a  muralha  citada  por  Schiller,  ou  ainda  o 
aniquilamento da perspectiva do indivíduo: o principium individuationis é rompido. O 
princípio da individuação é a dimensão apolínea. O escravo e o homem livre deixam 
de existir frente à experiência do coro báquico. 23 

Aquele cantar e dançar não é mais a instintiva embriaguez da 
natureza:  a  massa  do coro  em  agitação dionisíaca já não é  a 
massa  do  povo  inconscientemente  arrebatada  pela  pulsão 
primavera.  A  verdade  é,  agora,  simbolizada,  ela  se  serve  da 
aparência, ela pode e precisa por isso também, usar as artes 
da aparência. 24 

Aqui se infere a importância de Apolo nas artes da aparência. Porém, se, em 
A visão dionisíaca do mundo, o autor se mostra mais schopenhaueriano, ao publicar 
pela primeira vez O nascimento da tragédia, ele busca um distanciamento e faz uma 
crítica  ao  seu  mestre.  No  posfácio  mencionado  ele  assume  definitivamente  um 
posicionamento  dionisíaco  enquanto  elemento  de  afirmação  da  vida.  Coloca  em 
questão o pessimismo de Schopenhauer, bem como a filosofia de sua época. 

Por  vezes,  a  vivência  da  música  é  tão  intensa,  que  tememos 


pelo  nosso  pobre  eu,  ameaçado  de  sucumbir  no  orgiasmo 
musical, de tão excitado com a música. Por isso, é necessário 
que entre a música e o ouvinte dionisiacamente receptivo, seja 
interposto um meio distanciador: um mito de palavra, imagem e 
ação cênica. 25 

Essa  é  a  explicação  de  Rüdiger  Safranski,  em  seu  livro  Nietzsche,  biografia 
de  uma  tragédia,  no  qual  afirma  a  importância  das  duas  dimensões,  ligadas  à 
consciência  e  à  inconsciência.  Aponta  como  Nietzsche  entende  a  música,  a  qual 

22 
NIETZSCHE,  Friedrich.  A  visão  dionisíaca  do  mundo  e  outros  textos  de  juventude  /  Friedrich 
Nietzsche.  Trad.:  Marcos  Sinésio  Pereira  Fernandes,  Maria  Cristina  dos  Santos  de  Souza;  Rev.  da 
trad.: Marco Casanova. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 8. 
23 
NIETZSCHE, 2005. Op. cit., p. 9. 
24 
NIETZSCHE, 2005. Op. cit., p. 31. 
25 
SAFRANSKI,  Rüdigger.  Ecce  Homo:  Nietzsche,  biografia  de  uma  tragédia.  Trad.:  Lya  Left.  São 
Paulo: Geração Editorial, 2001. p. 15.
137 

leva ao estado de arrebatamento dionisíaco, com a anulação dos limites e fronteiras 
comuns da existência. “A música leva ao coração do mundo”. 26  Apolo, por sua vez, 
propicia a consciência do indivíduo. 
No  jogo  ritualístico  encontrado  na  tragédia  grega,  o  espectador  do  teatro 
ático,  enquanto  povo,  multidão,  muralha,  está  sentado  nas  pedras  do  anfiteatro, 
disposto para a festa. Ele se dilui junto ao coro e é representado pelo herói trágico, 
na  mais  intensa  representação.  A  tragédia  grega  leva  para  o  palco  a  relação  de 
poder entre a palavra e a música. O protagonista domina a palavra, mas é a música 
do coro que domina o que as palavras produzem. 
Uma  importante  ressalva  para  se  compreender  este  discurso  ou  esta  falsa 
dualidade  é  a  compreensão  da  poiesis ,  que  via  todas  as  linguagens  artísticas 
(música,  poesia,  literatura,  dança,  representação  e  artes  visuais)  como  integrantes 
de uma mesma manifestação da vida. 
Sócrates  quebra  o  poder  da  música  e,  em  seu  lugar,  coloca  a  dialética.  O 
logos vence o pathos. E assim, ser e consciência não se harmonizam mais. 27 
Com a morte da tragédia, Sócrates inaugura o pensamento dialético­racional. 
Se,  na  tragédia,  o  coro  era  a  voz  da  multidão,  a  partir  de  Sócrates,  esta  mesma 
multidão se  torna  um  mero  espectador aprendiz. Se  a  tragédia  grega personificava 
no  seu  coro  o  deus  Dionísio  e  a  força  da  natureza  que  ele  representava,  com  o 
socratismo também a arte sucumbiria aos desígnios da lógica socrática. 
A  dimensão dionisíaca,  traduzida  na música trágica, no coro  e  na metafísica 
de artista é o elemento que Nietzsche aponta como via de acesso ao Uno­primordial 
ou  fonte  originária,  mediante  a  percepção  intuitiva.  Nesse  sentido,  este  filósofo 
busca na Antigüidade grega, em especial na discussão de Heráclito sobre o devir, o 
fundamento  para  a constante  transformação  do  mundo,  a  partir  da coexistência  de 
Apolo e Dionísio. 

REFERÊNCIAS 

EURÍPIDES. As bacantes. Lisboa: Edições 70, 1998. 
MICHAEL, Ulrich. Atlas de Música. Madrid: Alianza, 1989. 

26 
NIETZSCHE, 1992, reimpr. 2003. Op. cit., § 8, p. 61. 
27 
SAFRANSKI, 2001. Op. cit., p. 54­55.
138 

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A  visão  dionisíaca do  mundo e outros textos de juventude  / 


Friedrich Nietzsche. Trad.: Marcos Sinésio Pereira Fernandes, Maria Cristina dos Santos de 
Souza; rev. da trad.: Marco Casanova. São Paulo: Martins Fontes, 2005. 
_____.  O  nascimento  da  tragédia ou  helenismo  e  pessimismo.  Trad.,  notas  e  posfácio:  J. 
Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, reimpressão 2003. 
SAFRANSKI,  Rüdigger.  Nietzsche,  biografia  de  uma  tragédia.  Trad.:  Lya  Left.  São  Paulo: 
Geração Editorial, 2001.

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