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Como tantas palavras da língua grega que continuamos a usar, a palavra tragédia
possui no vocabulário literário atual um sentido ao mesmo tempo próximo e distinto do
original. A poesia trágica nem nos é estranha nem se pode dizer que nos pertença. As
“tragédias” da tradição literária ocidental são herdeiras das tragédias gregas. Se não
existissem estas, aquela, que as tomou para si desde o Renascimento, seria diferente. Por
outro lado, a poesia trágica, tal como o espírito grego a concebeu não é mais concebível
pelo espírito moderno. Melhor, dizendo, é concebível, mas ao contrário do que ocorre
com a filosofia, não é mais realizável.
Os dramas de Shakespeare, Racine, Goethe, Schiller, Ibsen, o teatro e o cinema
modernos soam aos ouvidos leigos vagamente “trágicos” por que apresentam desenlaces
“catastróficos” (o termo vem do vocabulário da tragédia também, e significa “virada
abrupta”). Ora, os dramas de Ésquilo, Sófocles e Eurípedes também contam histórias de
quedas catastróficas: um rei vitorioso que volta pra casa e é assassinado pelo amante de
sua mulher; um que descobre que é a causa de uma peste; um filho que tem que vingar o
pai contra a própria mãe e é por divindades primitivas, uma irmã que desafia a lei da
cidade para enterrar o irmão e termina morta. O efeito que buscam, porém, é outro. O
trágico não se resume ao catastrófico. Não é a queda abrupta, a descida da mão do destino
sobre a cabeça do herói que importa e sim o fato de que esta ocorra no momento mesmo
que estes personagens estavam em vias de divinizar-se. O drama trágico é o drama de
uma vida humana que é ceifada no momento de tornar-se uma vida divina.
O sentimento que a interrupção de uma trajetória de vida deste tipo causa no
público não é de contrariedade, como nos dramas modernos. Ao contrário destes a
tragédia não constrói uma identificação prévia entre público e personagem. Tornar-se um
deus é um evento concebível para o público, mas raro, e moralmente ambíguo. O
espectador do drama trágico não se coloca no lugar do herói, assim como não nos
colocamos no lugar dos grandes personagens da política internacional, cujo drama
absorve nosso interesse sem que seu destino pessoal nos comova. Quando estes caem,
entendemos que aceitaram jogar um jogo em que nunca entraríamos, e perderam. O
mesmo ocorre com a queda de figuras como Édipo ou Orestes. O que comove o
espectador de sua queda não é seu destino pessoal mas a ação impessoal de forças
cósmicas. A esta comoção dá-se o nome de catársis: purificação. Trata-se um efeito
psicológico próprio da esfera religiosa que foi transferido para ambiente psicossocial da
cidade democrática do século V a C.
A catársis, cabe notar não é um sentimento no sentido em que entendemos a
palavra. A purificação que resulta da contemplação do drama cósmico que se desenrola
no palco não é tanto um tipo de sentimento como uma organização da sensibilidade. A
catársis é do sentimento. Para encontramos paralelos na sociedade moderna teríamos que
procurar nas instituições fora do mundo da literatura, como a psicoterapia, talvez algumas
práticas religiosas, talvez, como certos momentos especialmente intensos do noticiário.
Ainda assim, seriam paralelos distantes, nenhum dos quais um autêntico equivalente
funcional.