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AULA 6. A tragédia e a polis.

a) A poesia trágica: um gênero de literatura própria da Pólis.

Como tantas palavras da língua grega que continuamos a usar, a palavra tragédia
possui no vocabulário literário atual um sentido ao mesmo tempo próximo e distinto do
original. A poesia trágica nem nos é estranha nem se pode dizer que nos pertença. As
“tragédias” da tradição literária ocidental são herdeiras das tragédias gregas. Se não
existissem estas, aquela, que as tomou para si desde o Renascimento, seria diferente. Por
outro lado, a poesia trágica, tal como o espírito grego a concebeu não é mais concebível
pelo espírito moderno. Melhor, dizendo, é concebível, mas ao contrário do que ocorre
com a filosofia, não é mais realizável.
Os dramas de Shakespeare, Racine, Goethe, Schiller, Ibsen, o teatro e o cinema
modernos soam aos ouvidos leigos vagamente “trágicos” por que apresentam desenlaces
“catastróficos” (o termo vem do vocabulário da tragédia também, e significa “virada
abrupta”). Ora, os dramas de Ésquilo, Sófocles e Eurípedes também contam histórias de
quedas catastróficas: um rei vitorioso que volta pra casa e é assassinado pelo amante de
sua mulher; um que descobre que é a causa de uma peste; um filho que tem que vingar o
pai contra a própria mãe e é por divindades primitivas, uma irmã que desafia a lei da
cidade para enterrar o irmão e termina morta. O efeito que buscam, porém, é outro. O
trágico não se resume ao catastrófico. Não é a queda abrupta, a descida da mão do destino
sobre a cabeça do herói que importa e sim o fato de que esta ocorra no momento mesmo
que estes personagens estavam em vias de divinizar-se. O drama trágico é o drama de
uma vida humana que é ceifada no momento de tornar-se uma vida divina.
O sentimento que a interrupção de uma trajetória de vida deste tipo causa no
público não é de contrariedade, como nos dramas modernos. Ao contrário destes a
tragédia não constrói uma identificação prévia entre público e personagem. Tornar-se um
deus é um evento concebível para o público, mas raro, e moralmente ambíguo. O
espectador do drama trágico não se coloca no lugar do herói, assim como não nos
colocamos no lugar dos grandes personagens da política internacional, cujo drama
absorve nosso interesse sem que seu destino pessoal nos comova. Quando estes caem,
entendemos que aceitaram jogar um jogo em que nunca entraríamos, e perderam. O
mesmo ocorre com a queda de figuras como Édipo ou Orestes. O que comove o
espectador de sua queda não é seu destino pessoal mas a ação impessoal de forças
cósmicas. A esta comoção dá-se o nome de catársis: purificação. Trata-se um efeito
psicológico próprio da esfera religiosa que foi transferido para ambiente psicossocial da
cidade democrática do século V a C.
A catársis, cabe notar não é um sentimento no sentido em que entendemos a
palavra. A purificação que resulta da contemplação do drama cósmico que se desenrola
no palco não é tanto um tipo de sentimento como uma organização da sensibilidade. A
catársis é do sentimento. Para encontramos paralelos na sociedade moderna teríamos que
procurar nas instituições fora do mundo da literatura, como a psicoterapia, talvez algumas
práticas religiosas, talvez, como certos momentos especialmente intensos do noticiário.
Ainda assim, seriam paralelos distantes, nenhum dos quais um autêntico equivalente
funcional.

b) O contexto da representação trágica.

Não temos um gênero de discurso que consiga reproduzir a comoção catártica


pelas mesmas razões pelas quais não temos instituições aptas reproduzir na prática a
participação democrática. Uma delas diz respeito às condições de comunicação.
O teatro antigo era um evento social para o qual a sociedade moderna
simplesmente não tem paralelo. As peças que hoje lemos eram recitadas um palco para
até milhares de pessoas em um evento que era a mesmo tempo cívico e religioso. Portanto,
para um público cuja expectativa era distinta da expectativa estética do público moderno.
Mais importante ainda, quanto a este aspecto: a poesia trágica é o primeiro gênero de
representação ficcional de que temos notícia, o que significa que seus espectadores, que
eram além disso gente do povo em sua maioria, não tinha uma experiência prévia de uma
representação, e podia facilmente tomar o que acontecia em cena por um evento real.
Acostumados que somos ao naturalismo da TV, uma apresentação do teatro antigo, com
seus atores mascarados e parados no palco e seu discurso em versos soaria a um
espectador moderno o cúmulo do artificialismo, aproveitável como exercício intelectual
mas não mais que isto. Para o espectador antigo porém, a representação era tão fiel, os
limites entre ficcional e o real que os poetas tomavam o cuidado para que cenas de
violência não fossem representadas, para não serem imitadas pelos pelos espectadores.

c) A poesia trágica e os ritos sacrificiais.


A principal razão porém, não é de ordem técnica mas religiosa. A poesia trágica
está enraizada na prática ritual grega da qual ela, enquanto gênero, nunca se desvencilhou
totalmente. O efeito que ela provoca pressupõe a prévia educação da sensibilidade do
expectador pelos cultos rurais aos deuses da fertilidade, como Dionisio e Démeter, no
centro da dinâmica psicológica dos quais está a suscitação de solidariedade do grupo pela
técnica do sacrifício. Uma vítima é escolhida para ser imolada à divindade cultuada para
que a ordem social é restabelecida em seus fundamentos. Depois do sacrifício, os conflitos
são pacificados, os servos voltam a obedecer, os nobres a guerrear contra os inimigos e
não entre si, os reis a governar em favor do povo em não no próprio interesse. A lógica
por trás deste mecanismo é matéria de debate, embora o efeito em si não possa
razoavelmente ser posto em questão.
Elementos estruturais dos primitivos ritos de sacrifício podem ser facilmente
verificados nos enredos, inclusive coma ajuda do estudo comparativo. A liminalidade do
lugar social da vítima, isto é, a incerteza quanto a seu pertencimento ao grupo.
Estrangeiros (como o próprio Dioniso, deus estrangeiro), animais domésticos (entre o
animal e o humano), pessoas com deficiência, como Édipo (que estão entre o humano e
o não humano) estão entre as vítimas preferenciais dos ritos de sacrifício encontrados ao
redor do mundo. Da mesma maneira, o herói trágico é geralmente um personagem de
alianças divididas, como Prometeu, Orestes ou Antígona. Sobreposição entre o lugar de
vítima sacrificial e o de governante. Como o rei Édipo, que é ao mesmo tempo rei e vítima
sacrificial, os reis sacros das culturas primitivas são, frequentemente, vítimas sacrificiais
- ou vice-versa: a vítima sacrificial pode também voltar como rei. A relação entre o lugar
de vítima sujeita à violência e objeto de veneração, aparentemente paradoxal, é
compreensível se se levar em conta que, graças ao assassinato da vítima no rito os
conflitos internos do grupo (geralmente simbolizado por catástrofes naturais, como
pestes, guerras, enchentes) são resolvidos a sociedade salva. É o que acontece com Tebas
quando Édipo a abandona. A história conta da expulsão de um homem amaldiçoado pelos
deuses para a peste pudesse ir embora. O que se vê claramente porém, é um mecanismo
sacrificial em ação: uma vítima é imolada pelo grupo para que este possa recuperar a
solidariedade.
Antes que em um lugar, ou um rito específico, a origem da tragédia como gênero
literário está em um processo: na tentativa, por parte dos tiranos do século VI a C de
transportar os ritos sacrificiais rurais para dentro da pólis, com o intuito de aproveitar
politicamente seu efeito psicológico. As fases do processo são mais ou menos as
seguintes: os ritos dionisíacos eram comumente acompanhados por hinos em honra o
deus, o ditirambo, recitado por um coro. Quando o culto de Dioniso foi trazido para
Atenas, comas festas das Grandes Dionisíacas, o coro de ditirambos se dividiu em vários.
Cada tribo da cidade financiava um coro para cantar em uma espécie de competição ritual.
Eram coros enormes, como talvez cem pessoas cada, de modo que, no total envolviam a
participação de milhares de pessoas. Não é difícil adivinhar a relação entre a introdução
deste deus estrangeiro e as reformas democrática de Clístenes no ano de 508 a C. O
ditirambo a ser cantado era negociado com um poeta mas autoria em si não importava
muito. O ambiente competitivo servia de estímulo à introdução de inovações. Téspis de
Icária, à quem às vezes e concede a palma de inventor da tragédia, colocou um ator para
responder ao coro, transformando o que era uma recitação coletiva em um diálogo
imitado. Com a introdução de um protagonista, os poemas tornaram-se menos litúrgicos
e mais atrativos ao público. Ésquilo aperfeiçoou a obra de Téspis introduzindo ainda outro
ator, aumentando o drama e também a exigência do trabalho do poeta, que dispunha agora
de uma estrutura flexível com que trabalhar. Sófocles introduziu ainda um segundo ator,
e Eurípedes, complexidade psicológica nos personagens, encerrando o processo
evolutivo.
Uma peça era considerada uma dádiva para Dioniso, análoga aos primeiros frutos
da colheita, e não podia ser apresentada mais de uma vez em Atenas (a apresentação em
outros festivais não estava excluída). Somente a partir do ano de 386 a C passou a ser
permitida a encenação de peças clássicas, ao lado das que iam competir no festival. Este
ano pode ser assinalado como o do fim da poesia trágica em sua forma clássica, a qual
mesclava em igual medida rito, sabedoria e literatura. Depois desta data, ela tenderia a
ser cada vez mais apenas o terceiro destes elementos. É forma de discurso clássica da
Pólis, não por acaso a criação cultural mais típica de Atenas. Não é uma coincidência que
o processo de congelamento em literatura ocorra no fim da democracia, pouco depois da
instalação de oligarquia corrupta dos trinta tiranos. É também um ano próximo ao ano em
que Platão fará sua viagem a Siracusa, da qual voltará decepcionado com a ideia de
reformar a pólis e disposto a recriá-la em outra forma.

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