Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
e afirma que o progresso técnico-científico tornou o gênero mais atual do que nunca
O herói e o monstro
É uma ilusão acreditar que o homem é dono de seus atos, nos diz a tragédia
FABIENNE DARGE
Por que textos escritos há 2.500 anos, que marcam a invenção do teatro, ainda
fascinam hoje? Fizemos a pergunta a Jean-Pierre Vernant, 91, especialista no homem
grego antigo, cuja abordagem ele renovou consideravelmente, sobretudo por meio da
psicologia e da antropologia. Para ele, a tragédia grega continua atual porque é "um
fenômeno social, estético e psicológico".
Filósofo por formação, historiador, diretor de estudos na Escola Prática de Altos
Estudos a partir de 1958, professor honorário no Collège de France, onde ocupou a
cadeira de estudos comparados de religiões antigas (1975-1984), Vernant é "um mestre
de liberdade no ensino universal", como o qualifica seu discípulo e amigo Pierre Vidal-
Naquet. Jean-Pierre Vernant contou sua trajetória de resistente e de comunista
dissidente em "La Traversée des Frontières" [A Travessia das Fronteiras, ed. Seuil,
2004]. Ele nos recebeu em sua casa em Sèvres para um mergulho nas nascentes do
teatro ocidental, revelador desse "homem trágico" nascido há 25 séculos - e ainda
atual.
2
Pergunta - O personagem trágico é um ser problemático?
Vernant - Esse é o ponto importante. O homem é ainda mais problemático porque não
somente tem condições de agir -ele acredita agir bem, enquanto o resultado é quase
sempre uma catástrofe- como também é muito difícil decidir se ele é culpado ou
inocente. Por trás da tragédia há uma pergunta geral: qual é a relação do homem com
seus atos? Em que medida ele é realmente seu autor? Seu ato não é resultante de outros
elementos, cuja existência ele só perceberá tarde demais? Assim sendo, ele é inocente
ou culpado? O que é a culpa? O erro e a inocência não estão misturados? Por trás dos
atos humanos não há dramas, crimes, queixas, lutos, já que é sempre o sangue que
escorre, a cada momento, manifestando-se no próprio texto, a presença dos deuses?
A presença do que eu chamo de mundo, o universo, não é um universo simples. Ele
também é ambíguo e contraditório, pois as divindades que intervêm na cena trágica
também são divididas. Não se trata de condenar, trata-se de mostrar as dificuldades para
compreender o que é o homem em suas relações com um universo ambíguo. A tragédia
é uma forma dessa interrogação sobre o homem e o mundo, sobre o justo e o
verdadeiro. Ela exprime uma profunda ambigüidade.
3
inventa não apenas um espetáculo e um tipo literário mas apresenta um homem trágico:
ela inventa o homem angustiado, o homem que questiona seus atos, que compreende
mais tarde que fez uma coisa totalmente diferente do que acreditava fazer...
É isso que continua a ressoar em nós. Se diretores e público, incluindo os mais jovens,
acorrem a esse tipo de teatro, enquanto o mundo da cultura grega se distanciou de nós, é
porque a mensagem da tragédia voltou a ser inteligível.
Há momentos históricos de otimismo, como no início do século 20, em que o homem
não tem necessidade de tragédia. Mas desde então o mundo ocidental se destroçou na
guerra de 1914, depois na de 39-45, no nazismo e nos campos de concentração. A
Alemanha, um país culto, refinado, mergulhou no impensável.
O surpreendente progresso científico e técnico que nos torna "senhores e possuidores da
natureza", como queria Descartes, nos dá ao mesmo tempo a sensação de que beiramos
a catástrofe a todo instante.
Fonte:
Jornal FOLHA DE S.PAULO
Caderno Mais, 10 de abril de 2005