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SÓCRATES E A GÊNESE DA SUBJETIVIDADE

(Publicado em Subjetividade e Legalidade. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2002)

Luís Felipe Bellintani Ribeiro

Vamos falar de assuntos contemporâneos, muito nossos, a partir de nossa


experiência, valendo-nos de ícones construídos desde a história que se conta à boca
pequena faz um tempo. Sem nenhum compromisso com valores como “objetividade”,
“rigor exegético”, “cientificidade” e seu corolário lastrado de empirismo e lógica,
estamos prestes a propor um erro, cujo critério de julgamento deve ser a maior ou menor
capacidade de provocar o homem atualmente vivo a pensar.
Admitamos, a partir do naturalismo implícito de nossa cultura, mas concluindo
contra ele, que num momento cronologicamente determinado do passado remoto um
pitecantropo tomou pela primeira vez um pedaço de pau como arma, anteviu num breve
plano um desfecho para o acontecimento que não estava inscrito na natureza,
experimentou o futuro e agiu, e que com isso irrompeu a consciência, o aparecer de algo
como algo, a qual, após um exame atento, se revela como o acontecimento dos
acontecimentos, já que todo acontecimento anterior a ela só se essencializa a partir dela
como o seu já retraído, adivinhado desde os vestígios remanescentes, como uma pré-
história da consciência imaginada pela consciência. Sem rodeios: admitamos a filosofia
da consciência.
Não importa se no papel do pitecantropo estiver o amigo de Prometeu ou Adão
comendo do fruto. O que importa é que o ente se abriu para si próprio através dos olhos
dos homens, dos poros de corpos terráqueos, que nunca conseguirão sintetizar num
discurso o fato fundamental da possibilidade de ontologia e o fato fortuito de rastejar
brevemente sobre um pedregulho ínfimo do vasto universo.
Por enquanto, consciência significa a própria superfície da abertura e não a
atividade ou, pior, a capacidade de uma entidade profunda, substância ou sujeito.
Consciência não é algo que o homem tem, mas que o homem suporta, de bom ou mau
grado.
Sem dúvida, qualquer aparente só pode aparecer se ressai contra um fundo de
alteridade, daí a díade na origem. A mônada que é o universo só se experimenta à custa
de uma cisão entre um “si” e seu alheio. Impróprio seria pensar aqui numa síntese. Talvez
fosse o caso de deixar essa ferida exposta: ser é ser de alguma maneira seccionado,
exilado da unidade absoluta. A ulterior determinação da cisão fundamental em termos de
sujeito e objeto é apenas a sua fixação pela via mais fácil, é tomar a evidência como não-
problemática, ao invés de justamente tomá-la como o problemático por excelência.
O primeiro ser humano propriamente humano que se mirou numa superfície d’água
reconheceu-se. A reflexão já está posta no gesto mais irrefletido. O que cabe dizer sobre
essa situação singular?
A experiência da cisão não isola do ente, mas exatamente o abre pela primeira vez.
Como o raio de Heráclito, reúne ao afastar. Já que ela é um acontecimento primeiro e não
o efeito da atuação de uma causa, a experiência de habitar um mundo cheio de entes é
muito mais pregnante que a de uma consciência solitária que se sabe diferente de seu
conteúdo.
Há, por um lado, um quê de medida correta na atitude natural da consciência, a
atitude realista própria do senso comum, já que não se arroga a tomar o aparente como
representação sua; o ente é ele mesmo em sua plenitude, os deuses estão vivos, o humano
habita o locus compartilhado com sua coletividade como sua casa mais íntima e a ação é
plena de vigor épico. O idiótes (indivíduo) ainda não nasceu. Mas, por outro lado, há um
quê de desmedida incorreta na essência humana. O tempo em que a história era feita por
povos, por civilizações, e não por indivíduos, já passou. Diante dele, nostalgia análoga à
sentida diante do tempo circular da natureza.
De todo modo, quem já se deu conta de sua clausura cultural já, ipso facto, começou
a livrar-se dela e prefere agora livrar-se de todo tradicional, por mais clássico que seja,
nem que o abandono à responsabilidade por si mesmo tenha de arrastar-se pela mais
sórdida das paisagens. Ser feliz por ingenuidade não seduz ao não-ingênuo, mesmo
quando ele não sabe se há outra forma de ser feliz.
O vir-a-ser do ente ontológico, que é o humano que brota do húmus cósmico à sua
própria revelia, acontece no tempo abrupto do raio e, não obstante, dura um punhado de
milênios. É que, a cada vez que acontece de novo pela primeira vez (e é isso que significa
“princípio”), acontece como memória e destino, consciência de identidade e diferença, de
ser herdeiro e ter de projetar-se adiante. O devir da História é o devir do Ser e é graças a
esse fato que podemos pensar em Sócrates no bojo do processo que se desenrolou no
século V a. C. como uma peripécia da nossa própria história.
Haveria um ocidente da consciência, isto é, um poente, um declínio, um ocaso?
Parece fatal que ela tope alguma hora com seu maior perigo: si mesma. O idiota nasce,
então, e toda certeza conferida pela natureza e pela cultura cede lugar à única certeza: “a
medida não está dada e ainda assim tenho de viver”. Isso explica por que a consciência
doravante cai tantas vezes nas várias formas de desmedida. Uma delas consiste em
presumir poder erigir definitivamente o império da medida.
Está na essência humana (e na do próprio Ser, se o humano é o ente ontológico) o
restar esquecido na partilha dos dons naturais de Epimeteu, o ser banido do Jardim. Seu
quinhão é um expediente excepcional, extraordinário, furtado ao divino. Está na essência
humana o ser além da natureza, a metafísica, mas para que ela seja assumida
explicitamente e convertida em decisão é preciso uma história. É preciso que o sol que
até então manteve a atenção presa às coisas por ele iluminadas comece a cair em seu
périplo.
Sócrates é aquela figura urbana de fim de história que nos é bem familiar. As
antigas e recentes tradições “orientais” chegavam aos seus ouvidos com tom de opinião,
como dogmas coerentes e atraentes, mas que se dissolviam reciprocamente na polifonia.
A tranquilidade de viver sob a unidade de uma cultura subtraiu-se. A cultura prolixa de
Atenas já era àquela altura um mosaico e se orgulhava disso. Na passagem da pólis para
a cosmópolis começa sempre de novo o Ocidente, esse que não é uma cultura dentre
outras, mas o assimilador de culturas, o assimilador de deuses. Sócrates foi humilde o
suficiente para se confessar desamparado, ignorante. Sabia que algo grave estava

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implicado na perda do absoluto, que, por isso mesmo converte-se em meta. É exatamente
porque o Ocidente é a perda do absoluto que sua história se torna a escalada de uma
vontade incondicional. Como diz Diotima no Banquete, o filósofo só pode amar e desejar
o belo e o bom, porque não os tem. Só pode aspirar à verdade porque não a tem. Pois
bem, este homem entregue a si pela Natureza e pela Cultura, que Protágoras percebera
como o minimum, como critério último, é Sócrates, que, curiosamente, ao invés de
resignar-se em ser uma voz no coro dissonante de opiniões, pôs-se em busca da medida,
afinal segundo Protágoras era prerrogativa sua. A sentença platônica “Deus é a medida
de todas as coisas” não deve ser entendida apenas em oposição à do abderita, segundo à
qual essa medida é o ser humano, mas também como o próprio inflar-se dessa última,
como seu exemplo mor, como a chancela metafísica para a perspectiva humana, afinal de
contas, o deus de Platão é que é, paradoxalmente, avatar do agir teleológico com arte
(artifício) e providência, o qual, por sua vez, é apanágio do humano demasiado humano.
A identidade entre mais-ente e mais-cognoscível operada por Platão mostra quão
antropológica é sua onto-teo-logia, para usar um termo que Heidegger usa para
caracterizar a metafísica ocidental.
Parece que o problema de toda metafísica está em discernir certos entes no meio
dos entes como substâncias, como desembaraçados a priori da trama em que todos se
confundem e determinam reciprocamente. Fica aberto o caminho para as hierarquias, as
dicotomias, as unilateralidades típicas da aplicação do esquema causa-efeito. A ação
passa a ter sujeito. Seu sentido retira-se da superfície temporal para alojar-se no profundo
de um fio condutor teleológico. A moral desentranha-se espontaneamente da metafísica,
pois a disjunção entre mais-ser e menos-ser pressupõe um dever-ser.
É nesse ponto que surge na história da consciência um modo de ser que poderíamos
chamar de “cibernético” que em grego designa o relativo ao piloto e a pilotagem;
kybernetiké téchne, a arte cibernética, a arte da pilotagem. Mas pilotagem do quê? Do
destino, que na tragédia é o sem-piloto por excelência, já que o próprio Zeus está sob a
Moira, o lote finito lançado sem mediação de uma ponderação segundo desígnio. O
destino é a concretude da história da totalidade que, sendo apenas a trama resultante de
todas as histórias particulares, as arrasta ao mesmo tempo consigo, e que cumpre, ao
acontecer a cada vez, um sentido inexoravelmente irreversível. Mas a cibernética é
bafejada por um otimismo quanto à reversibilidade. Para isso é necessário que o sujeito
se desembarace da trama e se coloque no leme.
A operação que faz com que o sujeito se desembarace da trama é a mesma que
começa a desembaraçar cada coisa, outorgando-lhe um estatuto ôntico qualquer,
desinfetando-a da alteridade, fator de alteração, identificando-a a ela mesma e fazendo
valer para ela o princípio de não-contradição. Como alguém que abre uma caixa de
fósforos e desanda a enfileirar sobre a mesa os palitos um a um, assim a razão etiqueta
um número em cada coisa e põe-se a calcular. A multiplicidade infinita estará dominada
enquanto a razão puder discernir unidades simples, elementares, fixas de certo modo, para
que o sistema possa girar em alguma base. Instinto apolíneo, desde os pitagóricos, para a
descontinuidade do ser, para a proliferação dos átomos, isto é, dos indivíduos, para a
compreensão ôntica do ser. O sujeito converte tudo em sujeito, em um algo que jaz sob

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seu fenômeno múltiplo. Nesse jazer, coisa de morto e adormecido, estaria o elemento
niilista da metafísica.
A história do Ocidente é a do otimismo, a da cibernética. Curioso é vivermos nos
seus estertores, no tempo do individualismo e das biografias, da complacência e até
apreço pelo idiossincrático, do controle e da manipulação, e, no entanto, se subirmos à
cabine à cata do comandante, veremos que a nau segue no piloto-automático, o que faz
com que ela ande sobre aquela linha tênue que separa a segurança monótona da
previsibilidade do cálculo e a acefalia completa, como na nau desgovernada da República
de Platão, já que o piloto-automático é, no fundo, nenhum piloto. Terra de ninguém,
embora repleta de gente e de gente bem voluntariosa. A racionalidade ocidental tornou-
se tão poderosa que os próprios homens de carne e osso se tornaram dispensáveis. A sua
virulência é que garante que todos a encarnem. Reino da vontade naturalizada, da pessoa
impessoal.
O otimismo ocidental consiste basicamente na recusa da finitude e no torpor com
a ideia de infinito, que, contrariamente aos gregos arcaicos que pensavam o infinito do
lado do não-ente, é pensando agora como do lado do ente. Uma avalanche de entes é o
resultado da admissão da produção infinita. Resquício de cristianismo apropriado pela
modernidade? Sim, mas já no discurso do Sócrates platônico (demasiado platônico) do
Fédon podemos perceber a recusa da finitude, naquela certeza de que, além do corpo e
do tempo, a vida continua numa hiper-vida, a consciência, numa hiper-consciência. É
claro que todo arcabouço mítico dos órfico-pitagóricos pode ser deixado de lado e o texto
considerado uma extensão da diferença entre transcendental e empírico, mas é exatamente
a importância dada ao caráter apriorístico do conhecimento matemático que em última
instância caracteriza o platonismo típico do Ocidente.
Admitamos, porém, que o ocidente da consciência é uma peripécia inevitável sua,
já que ela possui um elemento essencialmente ocidental, que consiste no seu caráter de
ser cindido, ser separado, a saber, dessa unidade originária e espontânea que se costuma
chamar Natureza. Admitamos que tudo que o Ocidente fez e faz de “bom” e “mau” ou se
“abençoa” ou se “amaldiçoa” em bloco, já que é ainda a mente ocidental separadora e
excludente a que pensa poder reter a música de Bach e os avanços da medicina e eliminar
a vergonha do genocídio colonialista e a poluição do planeta.
Melhor ainda: admitamos que sequer esta alternativa existe, pois o que seria a
maldição, se não um dizer-sim a contragosto, rangendo os dentes? A verdadeira
alternativa é: ou a grande benção, a benção trágica ou... nada.
Mas a boa mente ocidental, voluntarista que só, não tardará a objetar aos brados:
resignação, conformismo, legitimação da maldade. Ela não percebe que a resignação
acusada é uma criação do seu próprio voluntarismo, é o páthos daquele que sempre
acreditou ter o ente sob seu controle e de repente descobriu que não tinha. O niilismo
passivo é filho do ativo, ou seja, da cibernética. Que desde os primórdios os homens não
tenham feito outra coisa a não ser aquiescer no bem e repelir o mal, não obstante todas as
diferenças com que as diferentes culturas representam estas noções, não significa que
tenham pretendido extirpar o mal de uma vez por todas da vida. Para algumas tradições,
a origem é dual, ou seja, o ser é, de saída, tão positivo quanto negativo.

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Na própria Grécia anterior aos sofistas e a Sócrates soprava um vento oriental. Em
Hesíodo, Morte, Miséria, Engano, Velhice e Discórdia são figuras de seu panteão, que
nascem da Noite de modo espontâneo e necessário, como Afrodite nasce da espuma
cipriota. E Discórdia ainda gera Fadiga cheia de dor e Dor cheia de lágrimas. E o primeiro
deus a nascer é Caos. E Abismo é deus primordial. E Gaia é anterior a Urano. E o reinado
dos Titãs, anterior ao dos olímpicos. E estes permanecem reinando graças ao
recalcamento daqueles, os quais, no entanto, podem irromper à superfície a qualquer
momento: Zeus não se livra da ruga inculcada por Prometeu.
Já o anjo caído é só um anjo caído. Blasfêmia tão somente compará-lo ao onipotente
infinito, cuja onipotência e infinitude é tal que mal dá para acreditar que sob sua égide
anjos caiam. Também as empresas aéreas, a grande imprensa e o grande público e,
sobretudo, os sempre-cheios-de-razão-e-direito clientes-usuários mal acreditam que um
avião, produzido, mantido e inspecionado por mãos insuspeitas de tecnólogos, possa cair,
mas as empresas se apressam em descobrir e divulgar a “causa do acidente”, pois há de
ter uma razão até para a razão falhar. E quando se a descobre e se a divulga, todos respiram
aliviados, afinal, falha humana ou falha mecânica, não se trata de um absurdo
incontrolável. Demita-se o homem, aperfeiçoe-se a máquina e não acontecerá mais. Se
acontecer, será de novo fato esporádico, não essencial, e o aperfeiçoamento deve ser
infinito. Inclusive, as estatísticas estão aí para provar que voar de avião é seguro: há muito
mais voos bem-sucedidos que acidentes. E não só voar de avião, mas viver, viver no
Ocidente, viver sob o Ocidente. Só um rústico do sertão para insistir no mote: “viver é
muito perigoso”.
A grande bênção não fala de resignação, mas de superação. E não se supera
caminhando para frente, pois isto seria, ao contrário, estender a vigência e o alcance do
princípio. O passo atrás possível hoje, e necessário, nada tem a ver com o
restabelecimento de valores passados, nem com o cultivo de ideologias adornadas com
temas orientais, até porque não está em causa uma medida geográfica ou cronológica,
mas ontológica. Trata-se de reconquistar o ponto em que a consciência se descobre como
irredutível à matéria inerte e ao determinismo natural sem representar o seu caráter
projetivo em termos de subjetividade, trata-se de olhar seriamente para o “si” e isso se
consegue olhando para si e não para o "em-si" de uma coisa pronta e acabada. Esse “si”,
que se é, não tem nada de pronto e acabado, mas o aberto radical de sua condição também
não se experimenta como “autonomia”, “liberdade”, pelo menos não com aquela aura de
esclarecimento. A consciência, sem dúvida, é um fato de claridade, mas o porquê de ser
assim permanecerá para sempre obscuro. Ela acontece antes de tudo como afecção
(páthos), por isso o aparente primeiro é da ordem do padecimento e não da ação, para a
qual a vontade, se aceita isso, torna-se curiosamente mais apta. O inconsciente, palavra
que deveria permanecer banida de um texto que parte da assunção da filosofia da
consciência, nomeia aqui, entretanto um índice elementar seu, não no sentido de ser um
“algo” que determinasse a consciência, mas de ser a medida de sua humildade, pois se,
ao se dar, ela sabe alguma coisa, que o ente é e não antes o não-ente, e si mesma inclusa
no ente, não sabe absolutamente nada das raízes de seu advento, porque se descobriu já
lançada no meio do caminho. Por sua vez, o discurso científico, consciente portanto, sobre
o inconsciente é, isso sim, exponenciação da consciência, legislação em terreno outrora

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fora de sua alçada. Exponenciação e, paradoxalmente, naturalização: morte com o próprio
veneno. Vontade de objetividade que objetiva a própria vontade.
O recuo possível ao ocidental é o ponto-Sócrates da história da consciência,
premido entre uma “filosofia da natureza” e uma “retórica” que se pretende autônoma, já
que esse é o nosso ponto, o da cultura de cientistas e publicitários. O que se faz com o
fato de que, por um lado, nenhum fisicalismo tira de cada qual a responsabilidade por
suas palavras e obras, de que nenhuma ideologia livra de ter de sustentar-se por si no
discurso, e, portanto, ou se age moralmente ou se fundamenta e se assume a ação não-
moral, e, por outro lado, o melhor que a vontade faria seria aprender enfim a deixar ser.
Quando e se formos capazes de experimentar de novo o mais antigo dos acontecimentos,
a superabundância da pobreza, a dádiva do grilhão, o radical não-saber, a irônica condição
de ser qual um micróbio diante da vastidão do universo gigante, capaz, entretanto, de
trazê-la à abertura ontológica, então não precisaremos buscar deuses no céu ou além dele,
em escrituras sagradas ou profanas, nem nos converter nós mesmos em deuses para
compensar o eventual malogro da busca. Algo muito mais sagrado já estará em obra.

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