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Os Problemas Espirituais Dentro do Pensamento

Moderno

O primeiro problema que acomete ao homem moderno é o seu desejo por


“pensar por si mesmo”; todavia, isso não é benéfico, muito menos inteligente de se
fazer, porque esta exigência não está de modo nenhum em conformidade com a
natureza humana, pois o homem normal e virtuoso, enquanto membro de uma
coletividade social e tradicional, em geral dá-se conta dos limites de sua competência.
Se desligar das tradições, pois acham elas fanáticas demais e supersticiosas, é tão
atestado de falta de inteligência quanto atestado de inteligência. A mania de pegar o
indivíduo e separá-lo da hierarquia intelectual, ou seja, de individualizá-lo
intelectualmente, é uma violação gravíssima de sua natureza e equivale praticamente à
abolição da inteligência, e também das virtudes sem as quais o entendimento real não
poderia se actualizar1 plenamente. Assim não se chega senão à anarquia e à codificação
da incapacidade de pensar.

***

Uma multidão imensa de pessoas vivem hoje como se elas fossem “mundo”, do
qual é um dos motivos do sujeito acreditar que a consciência não existe, que a
subjetividade não existe, que a inteligência não existe e que, portanto, ele mesmo não
existe — ele é apenas um efeito colateral do mundo. Ora, por que isso acontece? Veja
bem, o mundo é para nós uma sucessão de estímulos; o tempo todo o mundo te dá
informações acerca dele. Essas informações são agradáveis, desagradáveis, hostis, úteis
e etc; na medida que a nossa vida é um mero reagir, podemos dizer, a esses quatro
polos — útil, hostil, agradável e desagradável — nós somos mundo. A nossa vida
torna-se diretamente proporcional aos estímulos que à ela se apresentam: esse é o
ponto de vista habitual do homem profano. É esse estado que o Cristo se refere como
as “trevas exteriores”, ou seja, o estado de um sujeito que a sua subjetividade existe fora
dele mesmo; e, isto é trevas porque ninguém pode prever todas as contingências do
mundo, quero dizer, para esse sujeito que vive em estado de “mundo”, de “trevas

1
Grafamos a palavra com “c” para indicar a “passagem da potência ao ato”. Em português esta acepção não está
nos dicionários recentes, nem mesmo no Aulete, mas consta de traduções de certos compêndios filosóficos –
como por exemplo o conhecido Curso de Filosofia, de Régis Jolivet –, bem como do dicionário de filosofia de
Mário Ferreira dos Santos, autor que a utilizou em seus livros. A noção de “ato”, como se sabe, é clássica na
filosofia.
exteriores”, a vida dele é absolutamente imprevisível — é isso que significa um “estado
infernal”.
E por que isso não aparece para o sujeito como um estado infernal? Porque o
mundo é uma coisa boa, nem tudo que o mundo apresenta é somente sofrimento. A
própria criação do mundo é um bem; o próprio Deus dá testemunha disso depois de
criá-lo: “Então Deus contemplou toda a sua criação, e eis que tudo era muito bom”
(Gn 1:31). Contudo, tudo que o sujeito é, quero dizer, como toda a subjetividade dele se
define como algo que está fora dele, no momento que ele perder esse contato, a vida
dele torna-se um inferno — a vida dele se revela realmente como ela é; em suma, o
bem-estar está aí para servir nossos fins últimos como a argila está aí para fazer potes;
e é por isso que em nossos dias, a pobreza engendra com demasiada frequência a
descrença e a inveja — nos países industrializados ou atingidos pela mentalidade
industrialista —, de modo que ricos e pobres estão quites; à hipocrisia dos primeiros
responde a impiedade2 dos últimos.
De qualquer forma, esse tipo de “subjetividade externa” só é normal em uma
criança muito pequena, para quem o mundo ainda é uma grande novidade. Mas como
saber se o sujeito está vivendo habitualmente nesse estado? Eis um dos grandes males
do mundo moderno: o sujeito não sabe, porque o sujeito nunca fica só com ele mesmo;
quando ele está completamente só, ele abre a geladeira, liga a TV, toca uma música ou
pega o telefone e fala com alguém. Então, é completamente possível para uma imensa
massa de pessoas viverem nesse estado infernal e não saberem que vivem nesse estado.
Afinal, ela tem meios para não ficar só com ela mesma; contudo, caso ficasse sozinha
com si mesma, ela perceberia que não é nada, que tirado o mundo não sobrou
literalmente nada.
Ora, todos os povos tradicionais recomendavam — para ter o mínimo de
espiritualidade e amor a Deus — fazer retiros solitários, rezar sozinho, jejuando e se
abstendo do mundo. A abstinência do mundo serve, exatamente, para a descoberta do
“eu”, para a descoberta do que realmente você é, isto é: o Princípio torna-se
manifestação a fim de que a manifestação volte a tornar-se Princípio3, a fim de que o
eu retorne ao Si; ou, simplesmente, a fim de que a alma humana tome contato, através
de determinados fenômenos, com os arquétipos celestes, e por isso mesmo com seu
próprio arquétipo. Não diziam os Santos Padres que “é impossível um homem ficar
sozinho e não se tornar um monstro ou um santo”? Então, é um “revelar-se” para si
mesmo.

2
No sentido de “desprezo pela religião”.
3
Santo Irineu: “Deus tornou-se homem a fim de que o homem torne-se Deus”.
O Deserto é um Fogo Purificador

Os Padres do deserto mostraram que antes de agir é preciso ser, e que as ações
são preciosas na medida em que o amor de Deus as anima ou nelas se reflete, e são
toleráveis na medida em que não se opõem a este amor. Mas por que “antes de agir é
preciso ser”? Porque o ato — assim como o ego e as coisas — é praticamente um ídolo,
um véu que esconde o Absoluto. É preciso igualmente levar em conta isto: este é o
drama do contemplativo que é obrigado à ação. Ao lermos Hamlet de William
Shakespeare, notamos que é isso que exprime a tragédia de Hamlet. Na história, havia
fatos e ações, e exigências de ação; a contemplação, ou afasta da ação fazendo
desaparecer seus objetos, ou torna a ação perfeita fazendo Deus aparecer como agente.
Contudo, a contemplatividade de Hamlet tinha até “desmascarado” o mundo, mas
não se havia ainda fixado em Deus. Na obra, ele é arrastado pela ação e aprisionado
nela, e é por isto que ele é também o homem do pecado. A ação torna-se de qualquer
forma autônoma e totalitária.
Muitos reclamam que os contemplativos não ligam para as outras pessoas a não
ser para si mesmo na matéria salvação, todavia, isto é em primeiro lugar hipócrita e
em segundo lugar absurdo, porque é impossível salvar os outros; aquele que despreza
sua própria salvação certamente não salva ninguém.

***

A nossa sociedade se tornou um culto da mediocridade e da vulgaridade, com


uma proteção sentimentalista, não dos fracos, mas das fraquezas e dos defeitos morais
dos seres humanos modernos. Infelizmente, na sociedade democrática tornamo-nos
calamitosamente pobres; perdemos a única coisa necessária para entender a fonte da
nossa existência, perdemos aquilo que “corporifica uma aproximação mais estreita à
verdade absoluta”. A moleza psicológica diante de todas as formas da permissividade e
do vício, a imoralidade sustentada em nome da “liberdade”, do “progresso”, da
“ciência” e da “sinceridade”, a asneira e a tagarelice travestidas de “cultura” — se é que
podemos chamá-la assim —, causou a desvalorização e hostilização da inteligência, a
decapitação de qualquer broto de intelecto que podia nascer, o desprezo pela sabedoria
e a neutralização da religião, depois agravou os danos de uma ciência atéia que nos leva
à superpopulação, à degenerescência e à catástrofe.
Os antigos nunca estiveram tão certo, e a nossa sociedade é a prova disso: ela é a
representação sublime de uma autêntica “queda no tempo”. A situação atual implica,
em verdade, numa perda mal disfarçada da liberdade — e a distração (com atividade
inconsciente das suas psiques, isto é, sonhos, fantasias, nostalgias, etc) é a única evasão
possível à escala coletiva.
De certa forma, os Santos, nas sociedades tradicionais, eram como
“Anti-vírus” que apareciam em momentos cruciais na história humana. Na época de
Santo Antão, por exemplo, a sociedade estava em uma crise espiritual tão grande, que
comparada com a nossa, a nossa não seria nada. Naquela época existia a heresia do
Arianismo4, onde Cristo era não um Deus, mas apenas uma criatura com simples
poderes. Contudo, Deus enviou Santo Antão, o deserto de fogo purificador em carne e
osso, o único capaz de salvar toda a sociedade cosmológica da época; mas não com
dialética, com retórica ou qualquer contemplação intelectual, muito pelo contrário:
Santo Antão viu o próprio Cristo. Ele tinha a contemplação do Real e do Absoluto, o
que, portanto, é mais que palavras, mais que argumentos, mais que conceitos e
doutrinas, era o Princípio manifestado!

4
O arianismo foi uma visão cristológica antitrinitária sustentada pelos seguidores de Ário, presbítero cristão de
Alexandria nos primeiros tempos da Igreja primitiva, que negava a consubstancialidade entre Jesus e Deus Pai,
que Os igualasse.

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