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Por que Adquirir Cultura?

Imagem 1 — Shakespeare é uma grande herança para todos os seres humanos.

Qual é o grande problema de viver em um mundo onde uma peça de Shakespeare tem

o mesmo valor que um livro qualquer? Qual é o problema de viver em uma sociedade que não

possui mais uma formação literária? Será que tentar sufocar a consciência moral do que é belo

e o que não é, do que é certo e o que é errado, não causa nada aos seres humanos? São

perguntas que hoje, no Século XXI, ninguém mais faz. Abandonamos completamente a

herança cultural que grandes antepassados, verdadeiros gênios, deixaram para nós.

Contentamo-nos com migalhas.

As pessoas esqueceram que existe algo imutável em nós, algo eterno. O que aconteceu

em Dom Quixote, por exemplo, continua tendo uma pertinência simbólica para a minha vida,

mesmo que Miguel de Cervantes tenha morrido. Existe algo de permanente, que lida com as

questões humanas universais: as pessoas vão continuar tendo dramas morais, vão ter sempre

uma escolha entre o bem e o mal, vão ter sempre que escolher suas amizades e influências.
Este elemento da continuidade nos mostra algo universal, uma verdade que foge de uma

época e de um local específico.

Para Gottfried Wilhelm Leibniz, filósofo alemão, mais inteligente é o homem que

coleciona mais símbolos de experiência humana. E como podemos colecionar esses símbolos

de experiência humana? É possível fazer isso por meio da arte, — e a literatura, por exemplo,

é um tipo de arte que consegue representar profundamente determinada experiência de vida.

A partir do momento em que temos contato com uma ampla gama de experiências

literariamente representadas, nos tornamos mais inteligentes. O ideal é realmente saturar-se de

fatos e realidades diferentes, para que possamos utilizá-los em nossas vidas.

Stendhal, em seu livro “Do Amor”, faz uma defesa da literatura como forma de

autoconhecimento. De modo geral, ele diz que, da mesma maneira que não estudamos

anatomia abrindo as próprias tripas, mas, por comparação, estudando outro corpo, também

desconhecemos a face de nossas paixões sem um estudo observador da fraqueza alheia, por

causa da “vaidade e várias outras causas da ilusão”.

A vida humana oferece tantas possibilidades tão diferentes, tão díspares, que é

impossível ao indivíduo tirar o melhor proveito da sua vida baseado apenas na sua própria

experiência individual direta. A aquisição de cultura é, em última análise, a aquisição da

experiência dos outros, sem a qual eu poderia estar completamente desinformado para uma

questão crucial em minha vida.

E além de colecionar esses símbolos de experiência humana, é um fato que os

melhores bens que podem ser adquiridos na vida humana são bens culturais. A capacidade de

apreciar a beleza e de se alegrar com ela, a capacidade de discernir a verdade e agir

livremente — já que ser livre depende de conhecer a verdade acerca das coisas. Ninguém é

livre quando é enganado. Você não é coagido quando é enganado, mas não é livre também.
Uma vida que seja embebida de beleza e de bondade é incomparavelmente melhor do que a

vida privada dessas coisas.

O ser humano em relação aos bens espirituais é como o bebê em relação aos bens

materiais; o homem inculto é como o bebê: é completamente dependente dos outros. O bebê

nasce, e a primeira vez que ele sente fome ele sequer sabe o que está sentindo, não tem a

menor ideia de qual é aquela necessidade ou o que é que pode satisfazê-lo, no entanto, a

necessidade está lá e o oprime.

Uma carga enorme de sofrimento que há na humanidade hoje é causada pela falta de

cultura — às vezes, o simples senso de beleza já ajuda. Muitos passam a vida achando que

precisam de mais dinheiro, de mais tecnologia, de mais saúde… quando na verdade tudo o

que precisavam era de mais beleza, de discernimento, de mais certeza sobre as coisas da vida.

A diferença entre cultura e a falta dela é realmente incalculável no potencial para a

felicidade que o sujeito tem; o que acontece é que o homem inculto só se sente oprimido, ele

não sabe o porquê disso. Ele se sente sozinho, incompreendido, pobre, odiado, desprezado, se

sente menor e desqualificado, há muitos fatores de infelicidade na simples falta de cultura e

muitos fatores de felicidade na cultura. A ignorância, a incerteza, a dúvida é uma causa de

infelicidade.

Toda experiência cotidiana pode ser uma experiência contemplativa de encontrar

beleza, assim como também pode ser uma experiência de fechamento. Esta última, sem

dúvida, é a opção da maior parte das pessoas em nosso tempo. E é triste, pois quando o

relativismo toma conta, tudo é nivelado por baixo. A partir do momento que eu assumo uma

atitude existencial de, necessariamente, estar satisfeito com meus gostos, por tabela não

consigo evoluir na minha visão artística, por tabela me fechei em uma visão baixa, tornei-a

medíocre. Se resignar da experiência de tentar aprender a conseguir apreciar Shakespeare ou

Machado de Assis é nivelar tudo por baixo.


Devemos ter respeito pelos antepassados, por grandes ícones, verdadeiros gênios que

formaram a nossa cultura. As coisas que são de natureza cultural, no sentido de Cícero (as

obras de cultura), foram muito mais bem feitas pelos nossos antepassados. Não há ninguém

hoje capaz de criar uma “Divina Comédia”, uma obra com uma dimensão e profundidade

imensa. Nós precisamos lembrar da herança que os nossos antepassados nos deixaram, nós

temos direito de lançar mão dela — todos nós, enquanto seres humanos, temos direito de

mergulhar naquelas maravilhas que são as obras de Rafael, de Bach, de Shakespeare, de

Dante.

É preciso buscar a nossa herança, buscar aquilo que é mais alto. Platão observa,

sagazmente, que a recusa a participar da busca da verdade — do que é elevado — é uma

espécie de traição à natureza mais profunda do homem.

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