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Sobre O Futuro do Pensamento Brasileiro

Em 8 de junho de 2017
Olavo de Carvalho

Transcrição feita por Alexandre Ferreira

8 de junho de 2017

Palestra realizada no I Encontro da Juventude Conservadora da Universidade Federal


do Maranhão, 5 de agosto de 2016, via videoconferência.

Muito bem, boa tarde a todos, muito obrigado pelo convite tão gentil para dar umas
explicações aqui sobre o meu livro O Futuro do Pensamento Brasileiro, que está sendo
relançado agora pela Vide e que pode gerar muitas discussões frutíferas e proliferar
em novos estudos sobre os temas ali anunciados, o que é exatamente o que eu espero
que aconteça. Todos os meus livros estão repletos de sugestões descontinuadas –
ideias para estudos absolutamente necessários e urgentes sobre a sociedade
brasileira, a cultura brasileira, a mentalidade brasileira etc. etc. que não foram
empreendidos até agora e estão esperando uma nova geração de estudantes e
estudiosos que preencha essa lacuna; essa geração são precisamente vocês. Quer
dizer, esses livros contêm não só um apelo, mas uma série de perguntas que eu não
tive nem tempo nem meios para responder, mas que precisam ser respondidas.
Então, com relação à cultura brasileira nós temos aí pelas nossas costas uma vasta
tradição de lugares-comuns, de chavões, de escritos culturais que sempre vão remeter
à tripla origem – portuguesa, índia e africana – e repetir os chavões de sempre sobre
isso. As origens étnicas da cultura brasileira, se vocês querem saber, não têm a mais
mínima importância, porque a grande cultura de um país não é feita pelas suas origens
étnicas, mas por indivíduos que exatamente transcenderam as suas origens étnicas e
estão falando numa escala mais universal. Se você disser: “Bom, nós vamos explicar
aqui a obra de Machado de Assis, Cruz e Sousa e Lima Barreto pelas suas origens
africanas…” Isso é absolutamente impossível! Não que não tenha nada, tem alguma
referência. Por exemplo, Machado de Assis está narrando uma história e tem na
história um neguinho passando na rua vendendo pipoca – está aí uma referência. Ele
fala que tem um escravo na casa – está aí uma referência. Mas todas essas referências
fazem parte da matéria, não da forma. Existe algo na forma da nossa literatura que
deva algo à literatura indígena, africana ou mesmo portuguesa? Não, porque as nossas
formas foram aprendidas em primeiríssimo lugar da literatura francesa. Aprendidas e
aprimoradas da cultura francesa, e da cultura europeia em geral. Por exemplo, não se
pode esquecer a influência tremenda que Laurence Sterne teve sobre a técnica
narrativa de Machado de Assis. Só que Machado de Assis vai infinitamente além do
Sterne, ele pega aquilo e aperfeiçoa, transforma num instrumento de sondagem
profundo do espírito humano. Do mesmo modo, você vê que a mentalidade do Lima
Barreto foi feita quase que inteiramente lendo os livros do Hippolyte Taine, um grande
historiador da época. Mas vão perguntar: “A técnica narrativa do Lima Barreto e os
assuntos dele dependem do Taine?” Não dependem, absolutamente, é tudo uma
elaboração original. A alta cultura é sempre obra de indivíduos que conseguem se
erguer acima de seu meio sociocultural, senão não seriam obras que pudessem
sobreviver à passagem das gerações e teriam apenas uma função documental.

Você veja: a porcaria da nossa Constituição declara como cultura nacional obras e
objetos que dão testemunho do modo de ser do povo. O que dá testemunho do modo
de ser do povo? Um exemplar de um jornal de crimes, de notícias populares dá
testemunho e nem por isso vai se integrar à nossa cultura. Qualquer noticiário policial
que dê conta dos sessenta ou setenta mil homicídios anuais dá conta do nosso modo
de ser. Essa desgraça toda que está acontecendo nas Olimpíadas do Rio dá
testemunho do nosso modo de ser. Isto é cultura? Bem, é, no sentido antropológico,
mas não é cultura no sentido pedagógico, não é algo que tenha em si uma força
educativa. Ao contrário, tem uma força tremendamente deseducativa. Qualquer
documentário de costumes bárbaros, antropofagia, por exemplo, no sentido
antropológico é cultura, mas nós vamos ensinar antropofagia às pessoas e dizer que é
bonito? Claro que não! Do mesmo modo, hoje em dia se quer impor à cultura humana
não só um ponto de vista antropológico – como se fosse algo monopolístico, que deve
dominar todo o panorama – mas se quer impor até o ponto de vista etológico: tem
gente que estuda a sociedade dos macacos bonobos e diz que isso é um modelo para a
sociedade humana porque eles resolvem seus conflitos mediante competição sexual,
em vez de fazer guerra. É muito bonito: os macacos grandes comem os macacos
pequenininhos, está ali a pedofilia institucionalizada e isto, de acordo com esses
antropólogos e etólogos, é um exemplo para a espécie humana. Então é claro que por
esse lado puramente antropológico a cultura acaba sendo reduzida a um desenho
absolutamente caricatural. E o ponto de vista antropológico tem predominado nos
estudos sobre a cultura brasileira de uma maneira absolutamente avassaladora. São
dezenas de questões públicas que são decididas na base de decisões de antropólogos.
Por exemplo, certas tribos de índios quando não querem um bebê simplesmente o
enterram vivo. “Vamos proibir isso?” Daí entra o antropólogo e diz: “Não, isso aí é da
cultura indígena, nós temos que respeitar, temos que continuar deixando fazer essas
coisas…” Então você entra num conflito entre o conceito geral de direitos humanos e o
conceito cultural de direitos humanos – você tem um direito para todo mundo e outro
direito para o pai que quer se livrar do bebê indesejado. Tem havido uma espécie de
imperialismo antropológico nos estudos sobre cultura brasileira. Nós temos que
restaurar o ponto de vista pedagógico, entender como cultura aquilo que tem valor e
que merece ser transmitido às gerações seguintes porque tem força pedagógica e vai
ajudar essas novas gerações a se situarem no mundo, a pensar, a tomar decisões
responsavelmente, a amadurecer, a se tornar pessoas adultas – é isso que nós temos
que transmitir na cultura, e este é o sentido pedagógico da cultura. Os antropólogos
têm orgulho de não fazer juízo de valor; em pedagogia, é impossível você não fazer
juízo de valor, ela é todinha é uma seleção baseada em valores – o que devemos
ensinar e como devemos ensinar, o que devemos transmitir, preservar das gerações
passadas e passar às gerações seguintes.
Na própria antropologia a regra da abstinência de juízo de valor já adquiriu um sentido
absolutamente perverso: primeiro você diz “a nossa ciência deve se abster de juízos de
valor” e no capítulo seguinte você já faz um juízo de valor que é o seguinte: “não há
juízo de valor, não há diferença de valor”. É claro que isso é uma coisa pueril, mas,
junto com a regra da abstinência do juízo de valor, a inexistência de valores diferentes
ou de uma escala de valores é transmitida a gerações e gerações de estudantes como
se fosse uma verdade do Evangelho.  Nós não podemos comparar as práticas de S.
Francisco de Assis com as de um canibal porque são juízos de valor e nós não podemos
fazer. Ou seja, quando uma ciência se torna incapaz de perceber aquilo que qualquer
zé-mané da rua percebe, quem está errado não é o zé-mané, é a ciência. E isso é uma
coisa natural porque o senso comum da humanidade vem se desenvolvendo há
milênios. Agora, tem uma ciência que apareceu ontem e você quer que ela alcance o
nível de complexidade que o senso comum já tem? Claro, isso é impossível.

Isso acontece em todos os ramos do conhecimento. Aquilo que é pré-científico já tem


uma história milenar e vem se desenvolvendo há muito tempo por mecanismos que
fazem parte da natureza e que não são controlados humanamente, como, por
exemplo, todas as doenças autorremissíveis. Muitas doenças são autorremissíveis.
Como é que faz isso? A natureza sabe, nós não sabemos. Até a ciência apreender esses
mecanismos vai passar muito tempo.

Por definição – para aqueles que acompanharam as minhas aulas já devo ter dito – não
existe nenhuma ciência que lide com fatos concretos. Isto é impossível. A ciência lida
sempre com uma seleção abstrativa que determina um ponto de vista, e este ponto de
vista é que seleciona os aspectos dos fatos a serem levados em consideração e
esquece os outros. Portanto, a ciência só lida com recortes abstrativos e jamais com
fatos concretos. Uma ciência do fato concreto é absolutamente impossível. E, no
entanto, todos nós na vida diária temos que lidar com fatos concretos – isso quer dizer
que o ser humano tem na órbita da sua (vamos usar o termo kantiano) razão prática
capacidades que na esfera da razão cognitiva ele não tem. Por exemplo, todos nós
temos uma certa capacidade divinatória sem a qual não conseguiríamos atravessar a
rua. Você tem certeza científica de que não vem vindo nenhum carro, de que nenhum
vai te acertar? Você não tem a certeza, você tem uma conjetura quase instintiva, e
essa conjetura funciona. Quando uma ciência alcança o nível dessas operações do
senso comum? Jamais. O senso comum sempre supera e vai adiante. A ciência
aprofunda o conhecimento em certos pontos bem determinados, mas, no que diz
respeito à existência geral do ser humano, o senso comum, os instintos, a intuição
continuam funcionando muito melhor. Se você vai para o ramo das ciências sociais, me
responda a seguinte questão: quantos grandes cientistas sociais, cientistas políticos
previram a queda da URSS em 1990? Praticamente ninguém. Conheço acho que dois
que mencionaram isso antecipadamente, que fizeram as contas e falaram: “Olha isso
não vai dar, isso vai falir, vai cair etc. etc”. Mas a maioria era o contrário. Cinco anos
antes da queda da URSS saiu o livro do Paul Kennedy, “Ascensão e Queda das Grandes
Potências”, dizendo que na geração seguinte os EUA iriam cair e que a URSS iria se
tornar a potência dominante. Fez um sucesso mundial. Depois que aconteceu
exatamente o contrário, o que o Paul Kennedy fez? Pediu desculpas? Não, fez de conta
que não era com ele – e tem gente que até hoje lê esse livro do Paul Kennedy como se
fosse uma grande obra. Agora me perguntem assim: quantos videntes e astrólogos
previram a queda da URSS? Certamente mais do que cientistas políticos.

Então isso quer dizer que existe um certo conhecimento disseminado na cultura que
não é formalizado (que não quer dizer que seja irracional, não tem nada de irracional)
e que não raro é mais eficiente que o conhecimento científico. Isto o que eu estou
dizendo já é um dos princípios da própria ciência. A ciência tem que partir de um
conhecimento pré-científico que ela tem que respeitar como um patrimônio, um
ponto de partida. Isso o próprio Aristóteles já dizia.

No Brasil aconteceu que o conhecimento popular da cultura foi sobrepujado pelo


ponto de vista especializado dos antropólogos. O resultado disso é que, por exemplo, o
Ministério da Cultura declarou o samba do recôncavo baiano como valor cultural
universal. Eu digo: ah, sim, é valor cultural universal, mas Villa-Lobos não é? [Inaudível]
não é? Hekel Tavares não é? Quer dizer, todos os nossos grandes compositores não
são? Por que que o samba do recôncavo tem essa importância? Ele é um valor de que
a humanidade precisa? A humanidade sem isto está empobrecida? É claro que não,
porque todos os países têm os seus folclores, estão lotados dessas coisas e não estão
precisando do samba do recôncavo da Bahia para porcaria nenhuma. No entanto, se
você perguntar: “A cultura universal precisa do Villa-Lobos?” Precisa, porque ele fez
alguma coisa que os outros não são capazes de fazer. Ele fez um upgrade em tudo o
que ele aprendeu com a música clássica e daí outros podem aprender com ele. São
estes valores, que têm utilidade, que têm uma importância às vezes salvadora para o
resto da humanidade, que nós temos que transmitir com o nome de cultura brasileira.
Ou seja, nós temos que ensinar aos outros coisas que nós sabemos fazer e que eles
não sabem. Se você pegar, por exemplo, toda a técnica novelesca do Machado de
Assis, não tem similar no mundo, e não é só porque é diferente. Ela é melhor, ela
aperfeiçoa, ela chega a pegar certas nuances da psique humana que é difícil você
narrar o aprendido de uma outra maneira. Do mesmo modo, se você pegar a obra do
Gilberto Freyre, ela alargou campo das ciências sociais de uma maneira formidável,
tornando cognoscíveis amplos setores da existência social sobre os quais antes nem a
sociologia, nem as ciências políticas, nem a antropologia tinha nenhum poder de
preensão. Ele ampliou isso aí, entregou esse material para seus sucessores, e isto foi
reconhecido no universo inteiro. Só no Brasil que não é. O cara dá uma riqueza para o
mundo, o mundo reconhece, mas no Brasil o pessoal faz de conta que não. Por quê?
Porque não corresponde às imagens estereotipadas. Isto não quer dizer que tenhamos
que concordar com 100% com as interpretações que Gilberto Freyre fez. É claro que
não. Muitas vezes a contribuição maior de um cientista social, de um historiador não
está nas suas conclusões explícitas, mas nos instrumentos que ele criou para usar.
Agora mesmo citei o Hippolyte Taine. O livro dele sobre a Revolução Francesa, “As
Origens da França Contemporânea”, está cheio de erros históricos, porque naquele
tempo não havia documentação suficiente, a documentação aumentou muito depois e
os historiadores seguintes corrigiram muitas das suas conclusões, das suas narrativas.
No entanto, ele tem um modo de enfocar as coisas que continua válido. Uma técnica
interpretativa e narrativa que vale por si independentemente da aplicação que seu
próprio inventor fez dela. Até hoje podemos aprender história lendo o livro do
Hippolyte Taine, ainda que não possamos acompanhar todas as suas conclusões sobre
os fatos. Do mesmo modo, o Gilberto Freyre tem muitas conclusões que foram
superadas pela documentação posterior. Mas ele criou um modo de fazer sociologia e
de fazer história social e esse modo continua ensinando gerações e gerações.

Então, nós temos que pegar de toda a produção cultural brasileira não aquilo que
documenta o nosso modo de ser, porque o modo de ser muda – aquilo que era
importante numa geração deixou de ser importante na outra –, mas aquilo que tenha
utilidade e valor pedagógico para as gerações seguintes e para o público do exterior,
idealmente para a humanidade inteira. Se nós perguntarmos o que nós demos
realmente para a humanidade, no conjunto da cultura – e neste livrinho me abstive
propositadamente de abordar literatura de ficção, as artes, o teatro etc. etc. e me
ative à área de filosofia e ciências humanas –, vi que espremendo tudo sobravam
quatro obras, que são a do Miguel Reale, a do Otto Maria Carpeaux, a do Gilberto
Freyre e a do Mário Ferreira dos Santos, que são riquezas das quais o mundo precisa, e
este que tem que ser o critério. Um país não pode viver na contemplação eterna de
seu próprio umbigo. “Ah, estamos procurando a nossa identidade!” Bom, você chega
na Islândia e que importância tem a identidade brasileira pro cara da Islândia, ou pro
cara da Zâmbia, ou pro cara de Serra Leoa? Nenhuma, ele quer que o brasileiro se
dane, ele está preocupado com o seu problema. O quê que nós vamos consumir da
cultura que vem desses lugares? Aquilo que tiver um valor universal e utilidade pra
nós, e eles farão exatamente a mesma coisa…

Então neste livrinho “O Futuro do Pensamento Brasileiro” a minha preocupação foi a


seguinte: o que nós temos para dar à espécie humana, não só a nós mesmos. Se nós
ficarmos o tempo todo só pensando em nossos problemas nacionais,
no umbigocentrismo da “nossa identidade”, bem, isso é tão interessante quanto você
ter um vizinho que só fala nele mesmo o tempo todo, ou você casar com uma mulher
que só fala dela, do pai dela, da mãe dela, da porcaria da identidade dela. Você não
aguenta uma semana, meu Deus do céu, você joga a mulher pela janela! Um país que
ao falar com os outros só fala de si mesmo é apenas um chato universal, e muito do
que nós transmitimos para o exterior é baseado nisto. São coisas que têm uma
importância folclórica e antropológica para nós, e é isso que nós mostramos no
exterior. Só que acontece o seguinte: você faz uma exposição sobre a cultura indígena
no raio-que-o-parta etc. etc., ou sobre costumes coloniais do séc. XVIII, e vai mostrar
isso aí na França. Bom, o francês vai tomar isso aí como matéria de estudo, como
objeto de estudo. Isto não vai transmitir a ele novas formas de compreensão. Ao
contrário, apenas vai dar um material documental, e eles vão estudar isso como eles
estudam a antropofagia de uma tribo da África ou aqueles sapatos chineses que
apertam os pés das menininhas – são curiosidades folclóricas que servem para
alimentar a curiosidade de antropólogos. As formas, os esquemas dos sistemas
antropológicos são os europeus. Então nós estamos nos oferecendo para ser objeto de
estudo, nós estamos entrando lá como um macaco entra num estúdio de zoologia.
Você não pode dizer que um macaco ou um hipopótamo são alheios à zoologia – não,
eles são objetos de estudos da zoologia. Então nós vamos lá e nos expomos num
museu, numa jaula, dizendo: olha, estudem-nos! Isso é que uma coisa profundamente
ridícula! Agora, se você chega lá com o Mário Ferreira dos Santos – e o Mário Ferreira
dos Santos não é objeto, é uma forma que se sobrepõe à cultura europeia e a amplia –,
ensina coisa que eles não sabem! Então, entre você entrar na aula como professor que
está ensinando ou você entrar como macaquinho que vai ser estudado, ou o sapo que
vai ser dissecado, o Brasil tem escolhido sistematicamente esta última alternativa. É
claro que é uma coisa absolutamente suicida, idiota, de você se fazer de palhaço.
Quem ganha com isso? A classe dos cientistas sociais ganha muito, porque eles se
tornam os donos da cultura, e aquilo que não entra na perspectiva deles fica fora da
cultura. Por exemplo, você não tem como reduzir o Mário Ferreira dos Santos às
categorias usuais de pensamento dos nossos cientistas sociais e filósofos
universitários. Então ele fica fora, ele é grande demais, ele não cabe. É como você
tentar fazer caber um hipopótamo numa ratoeira – não vai dar, então fica fora o
hipopótamo. E é isso que tem acontecido: os valores mais altos são desprezados e os
menores são cultuados, porque esses menores promovem e exaltam aqueles que os
estudam. Então você tem um interesse de classe – pessoas dedicadas às ciências
humanas, filosofia – em manter a cultura brasileira a sob sua administração. Quando
você entra no aspecto do campo ideológico, o tipo de seleção de material que se faz
nas universidades brasileiras é uma coisa de uma indecência extraordinária, porque só
entram duas correntes de pensamento: o marxismo e o positivismo. Até outro dia
estava aquele idiota semianalfabeto do Renato Janine Ribeiro dizendo o seguinte: “nós
temos que ser democráticos, nós temos que ensinar Marx mas também temos que
ensinar Durkheim”. Eu digo: mas isso vocês já fazem, e é este exatamente o problema!
Vocês escolhem o marxismo e o positivismo porque o positivismo representa a
revolução burguesa e o marxismo representa a revolução socialista – está tudo numa
linha de continuidade, e de certo modo o pensamento positivista já está absorvido no
marxismo porque o marxismo é o seu sucessor como a revolução socialista é sucessora
da revolução burguesa. Então o problema, e por isso eu tenho reclamado um pouco do
pessoal que fala da doutrinação nas escolas – olha, doutrinação é você transmitir uma
doutrina, e é impossível você transmiti-la sem discutir –, é que o que há não é
doutrinação, é propaganda mesmo. E, sobretudo, o que existe é censura: existe uma
seleção brutal do material, e exclusão de noventa por cento. E estes noventa por
cento, se incluídos, dissolveriam na hora aquele quadro mental tão pequenininho, tão
imitativo que tem sido imposto em todas as nossas universidades. “Ah, você vai
estudar sociologia, você tem que estudar Durkheim.” Não, não, não! Você tem que
estudar não a pessoa que disse um negócio parecido e que se opõe ao marxismo em
detalhes, como Durkheim ou Weber, mas alguém que tenha feito uma proposta cem
por cento oposta, inconciliável e tão ampla quanto o marxismo. Por exemplo, por que
você não pega o Werner Sombart, no livro Noo-Soziologie, A Sociologia do Espírito?
Isso você não pode fazer, porque não tem pontos de comparação com o marxismo. Por
que você não pega o pensamento do Luigi Sturzo, que foi o fundador da Democracia
Cristã Italiana, tão influente na política até hoje, embora já tenha morrido há não sei
quanto tempo, e tem também uma sociologia baseada em fatores espirituais? Nisto
você não pode entrar! Então fica aquela conversa: “ah, nós somos democráticos, nós
ensinamos Karl Marx, Durkheim e Weber”, ou seja, ensinando marxismo e positivismo,
que são gêmeos concorrentes. No próprio ato de mostrar que é democrático o Janine
Ribeiro mostra que ele não é, mostra que ele está impondo censura.
Se você pegar, por exemplo, em sociologia, o Marx e o Pitirim Sorokin – um russo que
foi ministro do governo de Kerensky, e que fugiu pros EUA, onde ele se tornou
presidente da Associação Sociológica Americana por muitos anos e era certamente o
sociólogo de maior prestígio nos EUA (quando ele morreu sumiram com tudo,
evidentemente). A sociologia do Sorokin é de uma amplitude que engole o marxismo.
Ora, o Weber e o Durkheim não engolem o marxismo; concorrem com ele em alguns
pontos. Então por que não Marx e Sorokin? Porque o Sorokin vai curar você do
marxismo de uma vez pra sempre, ao passo que Weber e Durkheim vão ficar
ranhetando e não vão fazer mal nenhum. É este o problema: não a doutrinação, mas a
exclusão, a censura, a moldagem, a pré-moldagem do debate. E disso eles não vão
abdicar de jeito nenhum, e é por isso que a proposta deste Encontro criou tantas
reações. “Ah, nós somos democráticos, nós pegamos o pessoal marxista e pegamos,
sei lá, o Mário Sérgio Cortella” (que não é marxista, evidentemente). Eu digo: sim, só
que ele não faz mal nenhum! Por que você não pega os seus marxistas e o Olavo de
Carvalho? Porque o Olavo engole todos, come todos de uma só vez, então isso não
pode. E é sempre assim, esta pré-moldagem do debate, esta imposição de padrões
limitadores, paralisantes, aleijantes têm acabado com os estudos de ciências sociais e
filosofia no Brasil, e é isso que nós temos que romper de uma vez por todas. Ou seja,
nós temos que ampliar o espectro da nossa área de interesse de uma maneira
monstruosa, nós temos que ler tudo o que eles não querem que nós leiamos – e que
eles nem conhecem também… Quando eu digo que eles impõem essa limitação, eles
impõem em primeiro lugar a si mesmos – eles não leem nada fora disso. Quantos
estudaram profundamente o Sorokim? Acho que no Brasil atual nenhum. Não conheço
um cientista social brasileiro que ao menos cite o Sorokim. Ou o Sombart. Deste, citam
alguma coisinha do livro dele sobre os judeus e o capitalismo, que foi objeto de
debate, este eles citam de vez em quando. Mas a grande obra do Sombart não é essa,
a grande obra dele é a obra teórica, a Noo-Soziologie.
Este livrinho [O Futuro do Pensamento Brasileiro] foi concebido como um pequeno
estímulo para começar a encarar o termo cultura brasileira de outra maneira, estourar
esse limite dessa concepção antropológica que é [inaudível], na verdade, e começar a
entender a cultura no sentido pedagógico, no sentido de grandes obras, grandes
contribuições que o Brasil já fez à cultura universal. Amputada dessas contribuições o
Brasil vira uma cultura provinciana a ser estudada por um antropólogo alemão ou
francês, que vai estudar os costumes dos nossos indígenas ou, sei lá, as lutas de classe
do campo. E tudo isto é matéria do estudo, e não forma – lembrando aqui a famosa
distinção de Aristóteles entre matéria e forma: toda ciência se distingue
primeiramente pela sua matéria, pelo seu objeto de estudo, e em segundo lugar pela
forma. Mas a matéria é praticamente a mesma em todas as ciências. Se você pegar
todas as ciências naturais, qual é a matéria delas? É o mundo natural; e elas se
distinguem pela forma, pelo ponto de vista específico que elas adotam. Nós temos que
parar de ser fornecedores de matéria prima para as ciências estrangeiras e começar a
ser forjadores da cultura universal. Ora, nós temos todos os elementos pra isso. Só
essas quatro obras que eu mostrei… me mostre, no mundo, um sujeito que tenha
explicado melhor a natureza do direito do que o Miguel Reale. Os caras tentaram
durante gerações e gerações e foi o Miguel Reale, com livrinho deste tamanhinho,
chamado Teoria Tridimensional do Direito, que matou o problema. Isto é uma coisa
que vale para o mundo inteiro, é útil pro mundo inteiro. Me mostra alguém que tenha
escrito uma história da literatura melhor que a do Carpeaux. Não tem! Me mostra um
filósofo com a amplitude cognitiva e explicativa do Mário Ferreira dos Santos. Também
não tem! É isso que nós temos que mostrar, é isso que nós somos realmente! Nós não
somos a matéria que nos compõe – nós não somos aquilo que nós comemos – mas
aquilo que nosso espírito criou. Temos que parar de ter essa concepção intestinal da
cultura e começar a ter uma concepção espiritual. É este que é o apelo do livro e é este
o apelo que eu estou fazendo a vocês. Se os seus professores acharem ruim… Bom, em
geral professor universitário no Brasil vocês sabem como é que é. Se cinquenta por
cento dos formandos das universidades são analfabetos funcionais, e está provado que
são, isto quer dizer que cinquenta por cento dos professores, ou pelo menos os mais
jovens, também são. Qual a autoridade intelectual dessa gente? Zero. Não há nada pra
apresentar. Eu há muitos anos não leio uma única tese universitária que não esteja
repleta de erros de gramática desde a primeira linha. Até onde vai continuar isso, esta
espécie de conspiração de incapazes, de analfabetos, para ninguém perceber que eles
não sabem nada? Até quando teremos paciência com essa porcaria?
A missão de todos vocês, a missão desta geração é a de estourar a bomba da qual eu
acendi o estopim. É esta sua missão: sanear o ambiente, elevar muitíssimo o nível do
ambiente.

É isso o que eu queria dizer. Muito obrigado, muito boa sorte a todos e até a próxima
vez.

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