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Em 8 de junho de 2017
Olavo de Carvalho
8 de junho de 2017
Muito bem, boa tarde a todos, muito obrigado pelo convite tão gentil para dar umas
explicações aqui sobre o meu livro O Futuro do Pensamento Brasileiro, que está sendo
relançado agora pela Vide e que pode gerar muitas discussões frutíferas e proliferar
em novos estudos sobre os temas ali anunciados, o que é exatamente o que eu espero
que aconteça. Todos os meus livros estão repletos de sugestões descontinuadas –
ideias para estudos absolutamente necessários e urgentes sobre a sociedade
brasileira, a cultura brasileira, a mentalidade brasileira etc. etc. que não foram
empreendidos até agora e estão esperando uma nova geração de estudantes e
estudiosos que preencha essa lacuna; essa geração são precisamente vocês. Quer
dizer, esses livros contêm não só um apelo, mas uma série de perguntas que eu não
tive nem tempo nem meios para responder, mas que precisam ser respondidas.
Então, com relação à cultura brasileira nós temos aí pelas nossas costas uma vasta
tradição de lugares-comuns, de chavões, de escritos culturais que sempre vão remeter
à tripla origem – portuguesa, índia e africana – e repetir os chavões de sempre sobre
isso. As origens étnicas da cultura brasileira, se vocês querem saber, não têm a mais
mínima importância, porque a grande cultura de um país não é feita pelas suas origens
étnicas, mas por indivíduos que exatamente transcenderam as suas origens étnicas e
estão falando numa escala mais universal. Se você disser: “Bom, nós vamos explicar
aqui a obra de Machado de Assis, Cruz e Sousa e Lima Barreto pelas suas origens
africanas…” Isso é absolutamente impossível! Não que não tenha nada, tem alguma
referência. Por exemplo, Machado de Assis está narrando uma história e tem na
história um neguinho passando na rua vendendo pipoca – está aí uma referência. Ele
fala que tem um escravo na casa – está aí uma referência. Mas todas essas referências
fazem parte da matéria, não da forma. Existe algo na forma da nossa literatura que
deva algo à literatura indígena, africana ou mesmo portuguesa? Não, porque as nossas
formas foram aprendidas em primeiríssimo lugar da literatura francesa. Aprendidas e
aprimoradas da cultura francesa, e da cultura europeia em geral. Por exemplo, não se
pode esquecer a influência tremenda que Laurence Sterne teve sobre a técnica
narrativa de Machado de Assis. Só que Machado de Assis vai infinitamente além do
Sterne, ele pega aquilo e aperfeiçoa, transforma num instrumento de sondagem
profundo do espírito humano. Do mesmo modo, você vê que a mentalidade do Lima
Barreto foi feita quase que inteiramente lendo os livros do Hippolyte Taine, um grande
historiador da época. Mas vão perguntar: “A técnica narrativa do Lima Barreto e os
assuntos dele dependem do Taine?” Não dependem, absolutamente, é tudo uma
elaboração original. A alta cultura é sempre obra de indivíduos que conseguem se
erguer acima de seu meio sociocultural, senão não seriam obras que pudessem
sobreviver à passagem das gerações e teriam apenas uma função documental.
Você veja: a porcaria da nossa Constituição declara como cultura nacional obras e
objetos que dão testemunho do modo de ser do povo. O que dá testemunho do modo
de ser do povo? Um exemplar de um jornal de crimes, de notícias populares dá
testemunho e nem por isso vai se integrar à nossa cultura. Qualquer noticiário policial
que dê conta dos sessenta ou setenta mil homicídios anuais dá conta do nosso modo
de ser. Essa desgraça toda que está acontecendo nas Olimpíadas do Rio dá
testemunho do nosso modo de ser. Isto é cultura? Bem, é, no sentido antropológico,
mas não é cultura no sentido pedagógico, não é algo que tenha em si uma força
educativa. Ao contrário, tem uma força tremendamente deseducativa. Qualquer
documentário de costumes bárbaros, antropofagia, por exemplo, no sentido
antropológico é cultura, mas nós vamos ensinar antropofagia às pessoas e dizer que é
bonito? Claro que não! Do mesmo modo, hoje em dia se quer impor à cultura humana
não só um ponto de vista antropológico – como se fosse algo monopolístico, que deve
dominar todo o panorama – mas se quer impor até o ponto de vista etológico: tem
gente que estuda a sociedade dos macacos bonobos e diz que isso é um modelo para a
sociedade humana porque eles resolvem seus conflitos mediante competição sexual,
em vez de fazer guerra. É muito bonito: os macacos grandes comem os macacos
pequenininhos, está ali a pedofilia institucionalizada e isto, de acordo com esses
antropólogos e etólogos, é um exemplo para a espécie humana. Então é claro que por
esse lado puramente antropológico a cultura acaba sendo reduzida a um desenho
absolutamente caricatural. E o ponto de vista antropológico tem predominado nos
estudos sobre a cultura brasileira de uma maneira absolutamente avassaladora. São
dezenas de questões públicas que são decididas na base de decisões de antropólogos.
Por exemplo, certas tribos de índios quando não querem um bebê simplesmente o
enterram vivo. “Vamos proibir isso?” Daí entra o antropólogo e diz: “Não, isso aí é da
cultura indígena, nós temos que respeitar, temos que continuar deixando fazer essas
coisas…” Então você entra num conflito entre o conceito geral de direitos humanos e o
conceito cultural de direitos humanos – você tem um direito para todo mundo e outro
direito para o pai que quer se livrar do bebê indesejado. Tem havido uma espécie de
imperialismo antropológico nos estudos sobre cultura brasileira. Nós temos que
restaurar o ponto de vista pedagógico, entender como cultura aquilo que tem valor e
que merece ser transmitido às gerações seguintes porque tem força pedagógica e vai
ajudar essas novas gerações a se situarem no mundo, a pensar, a tomar decisões
responsavelmente, a amadurecer, a se tornar pessoas adultas – é isso que nós temos
que transmitir na cultura, e este é o sentido pedagógico da cultura. Os antropólogos
têm orgulho de não fazer juízo de valor; em pedagogia, é impossível você não fazer
juízo de valor, ela é todinha é uma seleção baseada em valores – o que devemos
ensinar e como devemos ensinar, o que devemos transmitir, preservar das gerações
passadas e passar às gerações seguintes.
Na própria antropologia a regra da abstinência de juízo de valor já adquiriu um sentido
absolutamente perverso: primeiro você diz “a nossa ciência deve se abster de juízos de
valor” e no capítulo seguinte você já faz um juízo de valor que é o seguinte: “não há
juízo de valor, não há diferença de valor”. É claro que isso é uma coisa pueril, mas,
junto com a regra da abstinência do juízo de valor, a inexistência de valores diferentes
ou de uma escala de valores é transmitida a gerações e gerações de estudantes como
se fosse uma verdade do Evangelho. Nós não podemos comparar as práticas de S.
Francisco de Assis com as de um canibal porque são juízos de valor e nós não podemos
fazer. Ou seja, quando uma ciência se torna incapaz de perceber aquilo que qualquer
zé-mané da rua percebe, quem está errado não é o zé-mané, é a ciência. E isso é uma
coisa natural porque o senso comum da humanidade vem se desenvolvendo há
milênios. Agora, tem uma ciência que apareceu ontem e você quer que ela alcance o
nível de complexidade que o senso comum já tem? Claro, isso é impossível.
Por definição – para aqueles que acompanharam as minhas aulas já devo ter dito – não
existe nenhuma ciência que lide com fatos concretos. Isto é impossível. A ciência lida
sempre com uma seleção abstrativa que determina um ponto de vista, e este ponto de
vista é que seleciona os aspectos dos fatos a serem levados em consideração e
esquece os outros. Portanto, a ciência só lida com recortes abstrativos e jamais com
fatos concretos. Uma ciência do fato concreto é absolutamente impossível. E, no
entanto, todos nós na vida diária temos que lidar com fatos concretos – isso quer dizer
que o ser humano tem na órbita da sua (vamos usar o termo kantiano) razão prática
capacidades que na esfera da razão cognitiva ele não tem. Por exemplo, todos nós
temos uma certa capacidade divinatória sem a qual não conseguiríamos atravessar a
rua. Você tem certeza científica de que não vem vindo nenhum carro, de que nenhum
vai te acertar? Você não tem a certeza, você tem uma conjetura quase instintiva, e
essa conjetura funciona. Quando uma ciência alcança o nível dessas operações do
senso comum? Jamais. O senso comum sempre supera e vai adiante. A ciência
aprofunda o conhecimento em certos pontos bem determinados, mas, no que diz
respeito à existência geral do ser humano, o senso comum, os instintos, a intuição
continuam funcionando muito melhor. Se você vai para o ramo das ciências sociais, me
responda a seguinte questão: quantos grandes cientistas sociais, cientistas políticos
previram a queda da URSS em 1990? Praticamente ninguém. Conheço acho que dois
que mencionaram isso antecipadamente, que fizeram as contas e falaram: “Olha isso
não vai dar, isso vai falir, vai cair etc. etc”. Mas a maioria era o contrário. Cinco anos
antes da queda da URSS saiu o livro do Paul Kennedy, “Ascensão e Queda das Grandes
Potências”, dizendo que na geração seguinte os EUA iriam cair e que a URSS iria se
tornar a potência dominante. Fez um sucesso mundial. Depois que aconteceu
exatamente o contrário, o que o Paul Kennedy fez? Pediu desculpas? Não, fez de conta
que não era com ele – e tem gente que até hoje lê esse livro do Paul Kennedy como se
fosse uma grande obra. Agora me perguntem assim: quantos videntes e astrólogos
previram a queda da URSS? Certamente mais do que cientistas políticos.
Então isso quer dizer que existe um certo conhecimento disseminado na cultura que
não é formalizado (que não quer dizer que seja irracional, não tem nada de irracional)
e que não raro é mais eficiente que o conhecimento científico. Isto o que eu estou
dizendo já é um dos princípios da própria ciência. A ciência tem que partir de um
conhecimento pré-científico que ela tem que respeitar como um patrimônio, um
ponto de partida. Isso o próprio Aristóteles já dizia.
Então, nós temos que pegar de toda a produção cultural brasileira não aquilo que
documenta o nosso modo de ser, porque o modo de ser muda – aquilo que era
importante numa geração deixou de ser importante na outra –, mas aquilo que tenha
utilidade e valor pedagógico para as gerações seguintes e para o público do exterior,
idealmente para a humanidade inteira. Se nós perguntarmos o que nós demos
realmente para a humanidade, no conjunto da cultura – e neste livrinho me abstive
propositadamente de abordar literatura de ficção, as artes, o teatro etc. etc. e me
ative à área de filosofia e ciências humanas –, vi que espremendo tudo sobravam
quatro obras, que são a do Miguel Reale, a do Otto Maria Carpeaux, a do Gilberto
Freyre e a do Mário Ferreira dos Santos, que são riquezas das quais o mundo precisa, e
este que tem que ser o critério. Um país não pode viver na contemplação eterna de
seu próprio umbigo. “Ah, estamos procurando a nossa identidade!” Bom, você chega
na Islândia e que importância tem a identidade brasileira pro cara da Islândia, ou pro
cara da Zâmbia, ou pro cara de Serra Leoa? Nenhuma, ele quer que o brasileiro se
dane, ele está preocupado com o seu problema. O quê que nós vamos consumir da
cultura que vem desses lugares? Aquilo que tiver um valor universal e utilidade pra
nós, e eles farão exatamente a mesma coisa…
É isso o que eu queria dizer. Muito obrigado, muito boa sorte a todos e até a próxima
vez.