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© Roberto Machado

CIP-Brasil. Catalogação-Na-Fonte

(Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ, Brasil)


Machado, Roberto Cabral de Melo, 1942-
Nietzsche e a verdade/ Roberto Machado. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
ISBN 85-7038-007-0

M133n

1. Nietzsche, Friedrich Wilhelm, 1844-1900. 2. Arte de ciência.


3. Metafísica. 4. Verdade. 5. Ética.
I. Título.

99-0152 CDD-193
CDU-1(43)

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1999
Impresso no Brasil I Printed in Brazil
II
CIÊNCIA E MORAL
1

Conhecimento e tipos de vida

A reflexão nietzschiana sobre a ciência, quando con­


frontada com a problemática da arte em seus primeiros escri­
tos, tem como tema central uma crítica da verdade. O mesmo
.
acontece quando a relação é estabelecida com a moral. Em
Nietzsche, a crítica nunca é uma teoria do conhecimento que
tenha por objetivo denunciar os pseudoconhecimentos, suas
ilusões, seus erros e estabelecer as condições de possibilidade
da verdade, o ideal do conhecimento verdadeiro. A novidade e
a importância do projeto nietzschiano em todas as fases de sua
realização é a crítica, não dos maus usos do conhecimento,
mas do próprio ideal de verdade; é a questão, não da verdade
ou falsidade de um conhecimento, mas do valor que se atribui
à verdade, ou da verdade como valor superior; é a negação da
prevalência da verdade sobre a falsidade.
Nada mais distante do projeto nietzschiano do que uma
crítica interna do conhecimento, exame de seus pressupostos,
busca de seu fundamento, como a crítica da faculdade de conhe­
cer que pretende submeter a razão ao tribunal da razão. "[. . . ]
não seria um pouco estranho exigir que um instrumento criti­
casse sua própria justeza e sua própria competência? que o
próprio intelecto 'reconhecesse' seu valor, sua força, seus li­
mites? não seria mesmo um pouco absurdo?"1 Uma crítica in­
terna da faculdade de conhecer é algo sem sentido. Chega a
ser cômico, segundo Nietzsche, querer reduzir a filosofia a uma
teoria do conhecimento: "É quase cômico ver os filósofos exi­
girem que a filosofia comece necessariamente por uma crítica
da faculdade de conhecer: não é inverossímil demais que o
órgão do conhecimento possa se 'criticar' a si próprio quando
nos tornamos desconfiados com relação aos resultados anteri­
ores do conhecimento? A redução da filosofia à 'vontade de

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Roberto Machado

uma teoria do conhecimento' é cômica. Como se pudéssemos


assim ter uma certeza!"2.
Malgrado os diferentes níveis em que situou sua análise,
independentemente das transformações conceituais por que pas­
sou sua obra, a posição de Nietzsche sobre esse ponto per­
maneceu sempre a mesma: o problema da ciência é indis­
cernível no terreno da ciência, a questão do conhecimento não
pode ser elucidada isoladamente. A apreciação do valor do
co_nhecimento - pois é disso fundamentalmente que se trata
na démarche nietzschiana - exige que se leve em conside­
ração outros valores. O conhecimento é um valor que deve ser
situado entre uma pluralidade de valores e que não deve, en­
tre eles, gozar de nenhum privilégio particular.
Se a questão da verdade não pode ser resolvida no âm­
bito exclusivo da ciência ou do conhecimento - por uma
espécie de autocrítica - é porque remete necessariamente pa­
ra um exterior. Mas é preciso que se entenda bem o que é essa
exterioridade. Pois não se trata da reivindicação do sentimento
ou da experiência tomados como instâncias exteriores à razão
e capazes de julgá-la. O que caracteriza o projeto nietzschiano
é a relação, mas uma relação imanente, intrínseca, do conhe­
cimento com outra ordem de fenômenos que lhe serve de
motivação, que lhe revela os pressupostos: a relação entre ver­
dade e bem ou, em termos metodológicos, a extensão da aná­
lise genealógica da ordem moral até a ordem epistemológica.
Só articulando o conhecimento com a moral é possível con­
siderá-lo de um ponto de vista crítico porque os dois fenô­
menos existem intrinsecamente ligados.
Não existe, por exemplo, filosofia independente da moral.
Mesmo quando os filósofos parecem preocupados com a cer­
teza e a verdade é sob o encantamento da moral que se en­
contram. 3 "Quando a melhor época da Grécia acabou, vieram
os filósofos da moral: a partir de Sócrates, com efeito, todos os
filósofos gregos são, antes de tudo, e no mais profundo de si
mesmos, filósofos da moral."4 A filosofia instauradora da ra­
cionalidade, criadora da oposição verdade-aparência, é UJl1a
filosofia moral. Platão, por exemplo, se desviou de todos os

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Nietzsche e a verdade

instintos fundamentais dos gregos arcaicos, está impregnado


de moral, é cristão antes do cristianismo, já postula a idéia de
'
bem como conceito supremo.5 A posição de Nietzsche é clara:
o móvel da filosofia é um determinado projeto moral; uma
filosofia não só é a confissão de seu autor, mas uma confissão
que tem como germe intenções morais.6
Qual é o objetivo de Nietzsche ao rejeitar uma crítica
interna do conhecimento e articular a questão da verdade com
uma genealogia da moral? Consiste em remeter, ou melhor, em
subordinar, por intermédio da moral, a questão da verdade a
uma teoria das formas de vida, dos estilos de vida, que fun­
ciona como critério de avaliação do conhecimento? Em outras
palavras, se a questão do conhecimento remete à da morali­
dade, se a norma do conhecimento não é epistemológica mas
moral, é porque a vida é o critério último de julgamento tanto
do conhecimento quanto da moral.
Em Além do bem e do mal, por exemplo, Nietzsche enun­
cia claramente essa relação entre conhecimento e vida. § 2:
"Seja qual for o valor que se venha atribuir à verdade, à veraci­
dade ou ao desinteresse, pode ser que se deva dar à aparên­
cia, à vontade de enganar, ao egoísmo e aos apetites um valor
mais alto e mais fundamental para qualquer vida." § 4: "Não
vemos na falsidade de um juízo uma objeção contra esse juízo
[. . .] A questão é de saber em que medida um juízo está apto
para promover a vida [. . .] renunciar aos falsos juízos seria re­
nunciar à própria vida. " § 1 1 : "[ . . .] já é tempo de substituir a
questão kantiana: 'como os juízos sintéticos a priori são
possíveis?' por esta outra questão: 'por que é necessário acredi­
tar em tais juízos?', isto é, já é tempo de compreender que a
conservação de seres de nossa espécie exige que acreditemos
neles. O que não impede, bem entendido, que esses juízos
possam ser falsos [. . .]8 Devemos, no entanto, acreditar na ver­
dade deles com uma fé que se contenta com a fachada e a
aparência, uma crença que pertence à ótica da vida e à sua
perspectiva. " § 34: "'É por puro preconceito moral que atri­
buímos mais valor à verdade do que à falsidade; esta é mesmo
a hipótese mais mal fundada que existe. Reconheçamos: nenhu-

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Roberto Machado

ma vida pode subsistir a não ser por estimações e aparências


inerentes à sua perspectiva. "

O caminho d a argumentação de Nietzsche e m direção ao


mais fundamental se faz, portanto, em duas etapas: do con­
hecimento à moral e da moral à vida. Em primeiro lugar, o
projeto de fundar a verdade ou a certeza é desclassificado e
reduzido a uma questão subsidiária, a um problema de se­
gunda ordem,9 na medida em que a confiança na razão é um
fenômeno moral10 e é a partir dele que é possível revelar os
interesses mais secretos do conhecimento. A questão dos valo­
res, e no seu âmago a dos valores morais, é mais fundamental
do que a questão da certezaY
Mas isso não é tudo porque a análise nietzschiana da
moral não é propriamente uma reflexão moral. Como pensar a
moral sem estar na dependência de seus pressupostos, sem
continuar escravo de seus preconceitos? Esta é uma exigência
crítica fundamental colocada por Nietzsche e uma exigência
difícil pois, segundo ele, esta tarefa ainda não tinha sido reali­
zada por ninguém.
"Até o momento, os historiadores da moral contam muito
pouco: eles estão geralmente sob o comando de uma moral e
na realidade apenas fazem sua propaganda."12 "Para que 'pen­
samentos sobre preconceitos morais' não sejam mais uma vez
preconceitos sobre preconceitos eles supõem uma posição fora
da moral, algo para além de bem e mal para o qual é preciso
subir, escalar, voar. "13 Essa posição exterior à moral, esse para
além da moral a que é preciso se elevar para ter uma perspec-
'- tiva do alto é justamente a vida considerada como instinto,
como força, como vontade, como potência, e seus diversos
tipos, ou, para designar o conceito que se impõe a partir de
Assim falou Zaratustra, como vontade de potência. E se essa
perspectiva é a única que ele considera crítica é porque a
: moral é um sintoma que remete a algo de mais fundamental: é
a "linguagem simbólica das paixões", 14 e é como tal que deve
ser investigada, se se quiser revelar seu significado, suas reais
dimensões. No fundo a moral é "imoral", os valores morais são

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Nietzsche e a verdade

valores vitais. É essa relação intrínseca entre moral e vida que


torna possível o projeto de uma genealogia da moral como
genealogia da vontade de potência que tem como objetivo
avaliar os valores morais a partir da vida - e das forças que
servem para defini-la - considerada como critério último de
julgamento.
Uma das motivações principais da filosofia de Nietzsche é
considerar irrelevante saber se os juízos de valor sobre a vida
são verdadeiros ou falsos. A razão é que, sendo a vida o prin­
cípio, o fundamento da criação de valores - sendo a vida que
avalia quando instituímos valores - ela não pode ser julgada,
seu valor não pode ser taxado.15 Um juízo de valor depende
das condições de vida e varia com elas; seja ele positivo ou
negativo, uma exaltação ou uma condenação da vida, deve ser
unicamente considerado como sintoma; sintoma de uma espécie
determinada de vida. "[. . .] tem-se necessariamente a filosofia de
sua própria pessoa; entretanto, existe uma grande diferença:
em uns são suas faltas que se põem a filosofar, em outros, suas
riquezas e suas forças [. . .] É legítimo considerar as audaciosas
loucuras da metafísica e particularmente as respostas que ela
dá à questão do valor da existência antes de tudo como sin­
tomas de constituições corporais próprias a determinados in­
divíduos [. . .] como sintomas da constituição viável ou falha do
corpo, de sua abundância e de sua potência vitais, de sua
soberania na história ou, ao contrário, de suas indisposições,
de seu esgotamento, de seu empobrecimento, de seu pressen­
timento do fim, de sua vontade de acabar. "16
Assim, quando a genealogia avalia o conhecimento, o im­
portante não será perguntar se ele é verdadeiro ou falso. Inú­
meras vezes Nietzsche assinala que o falso tem uma positivi­
dade quando considerado na perspectiva da vida, ressaltando
mesmo o caráter negativo da verdade pelo fato de ser a su­
pressão de um erro, de uma ilusão que é uma exigência básica
da vida. 17 O que é significativo nessa tentativa de inversão dos
valores estabelecidos, como toda vez que Nietzsche elogia a
aparência, é que o importante não é a verdade mas a força do
conhecimento. E como a força não se encontra no grau de

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Roberto Machado

verdade, 18 a análise do conhecimento em termos de forças que


realiza a genealogia deve determinar se ele é a expressão de
um excesso ou de uma indigência vital, de uma afirmação ou
de uma negação da vida. Que tipo de existência tem quem diz
tal tipo de coisa? - pergunta o genealogista remetendo os
valores à potência daquele que institui os valores. Em suma, a
questão nietzschiana do conhecimento pode ser enunciada
nos- seguintes termos: se existe um tipo de vida ativa e um tipo
de vida reativa, a serviço de que tipo de vida se coloca o
conhecimento?
Vou, portanto, expor, em primeiro lugar, a genealogia nietzs­
chiana da moral e a concepção da vida como vontade de
potência, que lhe é subjacente e lhe serve de fundamento; em
seguida, analisarei a relação entre ciência e moral, ou, mais
precisamente, a genealogia nietzschiana da verdade.

Notas
1 . Aurora (A), prefácio, § 3.

2. Frag. Post., outono de 1885 primavera de 1886, 1 [60); cf. também


-

outono de 1885 - outono de 1886, 2 [87) e 2 [161); verão de 1886 -

outono de 1887, 5 [11).

3. Cf. A., prefácio, § 3.


4. Fra. Post. , primavera de 1884, 25 [17).

5. Cf. Crepúsculo dos ídolos (C.I.), "O que devo aos antigos", § 2.

6. Cf. Além do bem e do mal (B. M.) § 6.

7. Para evitar possíveis equívocos talvez seja necessário esclarecer que esta
hipótese não é infirmada pelo § 1 2 1 da Caia ciência intitulado "a vida não é
um argumento" . Esse aforismo diz que, se os homens não podem viver sem
o mundo que construíram, isso não demonstra que este mundo esteja certo
como está na medida em que "entre as condições da vida poderia figurar o
erro". Para Nietzsche, "o primeiro problema é o da hierarquia dos tipos de
vida" (Frag. Post, final de 1886 - primavera de 1887, 7 [42)).
8. "Os juízos sintéticos a priori são possíveis, mas são - juízos falsos." Frag.
Post. , abril-junho de 1885, 34 [171).
9. Cf. Frag. Post, outono de 1885 - outono de 1886, 2 [1691 .

10. Cf. A., prefácio, § 4.

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Nietzsche e a verdade

1 1 . Cf. Frag. Post., final de 1886 - primavera de 1887, 7 [491.


12. Frag. Post., outono de 1885 - outono de 1886, 2 [1631.
13. A Caia ciência (G. C.). § 380.
14. B. M., § 187; "A moral é apenas uma linguagem simbólica, uma sintoma­
tologia: é preciso já saber de que se trata para tirar proveito dela." C./., "Os
'melhoradores' da humanidade", § 1 .
15. Cf. C./., " O problema de Sócrates", § 2.
16. G. C., § 2.
17. Cf. Frag. Post., primavera de 1884, 25 [1651.
18. Cf. G. C., § 1 10.

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2

Genealogia da moral e vontade de potência

"li: e mostrar o problema da moral, fazer uma crítica


radical da moral: essa é uma das tarefas essenciais da filosofia
de Nietzsche, que ele considera nunca ter sido realizada antes.
"Não vejo ninguém que tenha ousado fazer uma crítica dos
juízos de valor morais [. . .] até o momento ninguém examinou
o valor da mais famosa das medicinas chamada moral: o que
exigiria que se colocasse esse valor- em questão. Pois bem! É
esse justamente nosso projeto."1 9_projetq genealógico - daí
toda sua relevância e ambição - é uma tentativa de super�o
da metafísica através de uma história descontínua dos valores
morais que investiga tanto a origem - compreendida como
nascimento, como invenção - quanto o valor desses valores.
Ligar a filosofia à história - como ele também faz com a
filologia, com a fisiologia, com a psicologia - é um_ modo de
marcar uma posição, de assinalar sua diferença com relação a
uma filosofia que ele pretende denunciar com metafísica e mo­
ral. Se a genealogia é uma reflexão filosófica que pode ser
considerada como uma extensão da noção de história, um dos
motivos é que Nietzsche não acredita mais em valores eternos:
os valores são históricos, advindos ou em devir. "O que nos
separa mais radicalmente do platonismo e do leibnizianismo é
que não acreditamos mais em conceitos eternos, em valores
eternos, em formas eternas, em almas eternas; e a filosofia, na
medida em que é científica e não dogmática, é para nós ape­
nas uma maior extensão da noção de 'história'. A etimologia e
a história da linguagem nos ensinaram a considerar todos os
conceitos como advindos, muitos dentre eles como ainda em
devir."2
Os valores não têm uma existência em si, não são uma
realidade ontológica; são o resultado de uma produção, de

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Roberto Machado

uma criação do homem: não são fatos, são interpretações in­


troduzidas pelo homem no mundo. "Tudo o que tem algum
valor no mundo atual não o tem em si, não o tem por sua
natureza - a natureza é sempre sem valor - mas um dia
ganhou valor, como um dom, e nós somos os doadores. Fomos
nós que criamos o mundo que diz respeito ao homem!".3 O
mesmo acontece com os valores morais. Não existem fatos mo­
rais, fenômenos morais, mas apenas uma interpretação moral. 4
Nietzsche torna preciso seu pensamento, acrescentando:
uma falsa interpretação. 5 É inegável que ele sempre afirmou
que a moral é falsa. Mas isso, sem dúvida, não é a direção
mais importante de seu pensamento porque não se pode afir­
mar que a questão do valor dos valores seja uma crítica da
verdade desses valores. E a razão é evidente: é que a questão
da verdade nasce para Nietzsche no bojo da moral; este é o
seu aspecto mais essencial, a ponto de não se poder escapar
da moral sem se libertar da vontade de verdade. Neste sentido,
em vez de a genealogia ser uma pesquisa sobre a verdade do
valor, ela é muito mais propriamente uma pesquisa sobre o
valor da verdade. Dizer que a moral é uma "falsa" interpre­
tação é dizer que ela não é fundamentalmente moral; ela é
"imoral" ou de origem extramoral.6 Quer dizer, ela é um sin­
toma que, para poder ser compreendido, remete a um nível
mais elementar que muitas vezes Nietzsche chamou de fisio-:_ .
lógico: nível da vida e suas forças; nível da vontade de potên­
cia? Por isso, colocando a questão do valor, a genealogia da
moral está sobretudo avaliando sua força: "fazer sua crítica,
isto é , questionar: qual é sua força? sobre o que ela age? o que
acontece com a humanidade (ou com a Europa) sob o seu
domínio? Que forças ela favorece, que forças ela reprime? Tor­
na ela mais sadio, mais doente, mais corajoso, mais ávido de
arte etc.?"8 Colocando a questão das forças, considerando os
valores morais como valores vitais, a genealogia é , assim, tam­
bém uma interpretação; só que uma interpretação que se reco­
nhece "imoral",9 afirma uma incompatibilidade entre a moral e
a vida e proclama que é preciso destruir a moral para libertar a

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Nietzsche e a verdade

vida.10 Suspeitando do valor da moral, a genealogia pretende


desvalorizar os valores prevalentes até entãô.
Em suma, insurgindo-se contra a tendência a considerar
"o valor desses 'valores' como dado, como real, como além de
todo questionamento", n a genealogia tem por objetivo colocar
em questão o próprio valor desses valores pelo conhecimento
das condições de seu nascimento, desenvolvimento e modifi­
cação. Contra hipóteses metafísicas no azul, a cinza história
genealógica do que realmente existiu formula seu problema:
"Em que condições o homem inventou os juízos de valor bom
e malvado? E que valor eles têm?"12 São signos de declínio ou
de plenitude da vida?

Tese central de Nietzsche: a existência, não de uma única,


mas de uma dupla origem dos valores morais e de uma oposição
histórica irredutível entre dois tipos fundamentais de moral:
uma "moral dos mestres" e uma "moral dos escravos"13, ou,
para usar as expressões de Crepúsculo dos ídolos, uma "moral
sadia" , natural, regida pelos instintos da vida, e uma "moral
contranatural" voltada contra os instintos da vida.14 Dois tipos
de moral, afirma Nietzsche, mas que na realidade são total­
mente heterogêneos, nada têm em comum, implicam uma di­
ferença de níveis, uma hierarquia, mesmo que, como tipos,
existam em uma mesma sociedade e até em um mesmo in­
divíduo. 15 Em outros termos, a "moral dos mestres" , a "moral
sadia", mais propriamente do que uma moral, é uma "ética'� 16
A "moral aristocrática" é uma ética do bom e do mau
considerados como tipos históricos, como valores imanentes,
como modos de vida; ética dos modos de ser das forças vitais
que define o homem por sua potência, pelo que ele pode,
pelo que ele é capaz de fazer. Em contrapartida, a "moral
plebéia" é propriamente uma moral: um sistema de juízos em
termos de bem e de mal considerados como valores metafísi­
cos e que, portanto, refere o que se diz e o que se faz a
valores transcendentes ou transcendentais. Duas formas de con­
sideração da existência humana que se diferenciam irredutível­
mente como uma positividade e uma negatividade, não porque

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Roberto Machado

uma seja verdadeira e a outra falsa, mas porque uma é signo


de plenitude e a outra de declínio da vida.
O objetivo fundamental da genealogia é realizar uma crí­
tica radical dos valores morais dominantes na sociedade mo­
derna. Mais precisamente, analisar a "moral altruísta" e demons­
trar que não existe uma relação necessária entre o bom e as
aÇões "não-egoístas". Neste sentido, a ética aristocrática do bom e
do mau desempenha claramente o papel de um princípio de
avaliação e de modelo de alternativa crítica aos valores domi­
nantes. Como se Nietzsche julgasse a moral a partir da ética.
Mas sobretudo como se denunciasse a moral pela destruição
dos valores da ética. Daí, várias vezes ter afirmado a existência
de um momento e um lugar em que os valores aristocráticos
foram dominantes: a Grécia arcaica, que para ele sempre signi­
ficou o apogeu da civilização, é onde vai encontrar na arte-
na epopéia, na poesia lírica, na tragédia - os valores que
opõe à moralidade. Assim, do mesmo modo que a filosofia
socrático-platônica estabelece uma ruptura entre o trágico e o
racional, a religião judaico-cristã institui a ruptura entre ética e
moral. Balizamentos históricos diferentes mas que têm em co­
mum assinalar o nascimento de um período de decadência.
Há, portanto, entre a moral cristã e a ética aristocrática
conflito e vitória; vitória parcial da moral que transformou o
"homem-fera" em animal doméstico, uma ave de rapina em
cordeiro. Metáforas estas que evidenciam duas coisas: que a
análise não é só global, caracterizando povos e grandes perío­
dos, mas também molecular no sentido de privilegiar tipos
individuais; e, ao mesmo tempo, que o essencial da análise é a
dimensão das forças. A decadência é uma diminuição, um en­
fraquecimento do homem; é a transformação do tipo forte no
tipo fraco, o triunfo das forças reativas sobre as forças ativas; é
a decomposição das forças ativas, a subtração da força dos
fortes que fez com que os próprios fortes assumissem os valo­
res dos fracos. 17 "Eu distingo um tipo de vida ascendente e um
outro, do declínio, da fraqueza [. ..] Esse tipo mais forte já exis­
tiu freqüentemente: mas como acaso feliz, como exceção, nunca

j
como desejado. Muito pelo contrário, era ele justamente que

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Nietzsche e a verdade

mais se combatia, que mais se entravava - ele sempre teve


contra si o grande número, o instinto de toda espécie de me­
diocridade, melhor ainda, ele teve contra si a astúcia, a sagaci­
dade, o espírito dos fracos e - por conseguinte - a 'virtude'
[. . .] e foi o medo que ele inspirava que levou a querer, a criar,
a obter o tipo oposto: o animal doméstico, o animal gregário, o
animal doente, o cristão. " 18
Três características distinguem, de modo geral, a "moral
gregária" da "ética aristocrática" . A ética aristocrática é afirma­
tiva, é o resultado de um sim a si mesmo. É nobre, é bom, é
forte aquele que cria, que determina os valores e sabe muito
bem disto. "A humanidade aristocrática sente que ela deter­
mina os valores, não tem necessidade de aprovação, julga que
aquilo que lhe é nocivo é nocivo em si mesmo, sabe que é ela
que confere dignidade às coisas, é criadora de valores."19 Ela
também é positiva no sentido em que os aristocratas se posi­
cionam como bons, se sentem bons, estimam seus atos bons,
sem se incomodarem com os maus que - não interferindo
nesta autoposição de valores - são considerados secundários
ou simplesmente desconsiderados. Finalmente, a ética aristo­
crática pressupõe uma atividade livre, criadora e alegre; no
forte, atividade e felicidade estão intrinsecamente ligadas. �
aili'idade- é uma afirmação da potência: "o que faz agir não é a
necessidade mas a plenitude. . . contra a teoria pessimista segun­
do a qual todo agir se reduziria a querer · se livrar de uma
insatiifação, o prazer consigo mesmo seria o alvo de qualquer
ação . . . "20 Em contrapartida, a moral dos escravos, além de con­
siderar a felicidade como passividade, paz, repouso, é negativa
e reativa : funda-se na negação dos valores aristocráticos, da­
quilo que lhe é exterior e diferente. E, como é esse não que
instaura valores, sua ação nada mais é do que uma reàção.
Enquanto a equação dos valores aristocráticos, tal como
Nietzsche a estabelece a partir do poeta lírico grego Theognis
de Megara, pode ser enunciada como: bom = nobre = belo =

feliz= amado dos deuses, a moral judaica realizou uma total


inversão de valores, uma "vingança espiritual pura", ao afirmar
que bons são apenas os miseráveis, pobres, necessitados, im-

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Roberto Machado

potentes, baixos, sofredores, doentes, disformes e que os nQ� _


bres e poderosos são malvados, cruéis, lúbricos, insaciáveis,
í� . 21 Ou, como afirma Além do bem e do mal, "os judeus
�onseguiram essa prodigiosa inversão dos valores que, durante
milênios, deu à vida terrestre um atrativo novo e perigoso:
seus profetas fundiram em uma mesma noção 'rico', 'ímpio',
'malvado', 'violento', 'sensual' e pela primeira vez deram um
sentido infamante à palavra 'mundo' . Essa inversão dos valores
(que também pretende que 'pobre' seja sinônimo de 'santo' e
de 'amigo') mostra toda a importância do povo judeu: com ele
começa a revolta dos escravos na ordem moral.'122 De um pon­
to de vista extramoral, o "escravo" é um fraco, um infeliz que
denomina malvado o "aristocrata" , o tipo forte de homem. _A
moral judaico-cristã, inversão total dos valores positivos da éti­
ca aristocrática, expressa um enorme ódio contra a vida - o
ódio dos impotentes -, contra o que é positivo, afirmativo,
ativo, na vida; negação da vida que tem justamente a função
de "aliviar a existência dos que sofrem". 23 Em uma palavra, é
niilista.
A genealogia da moral define esse tipo de niilismo a par­
tir de suas três figuras principais: o ressentimento, a má-cons­
ciência, o ideal ascético. Situarei os resultados mais importan­
tes dessa análise.
O ressentimento24 é o predomínio das forças reativas so­
bre as forças ativas. O ressentido é alguém que nem age nem
reage realmente; produz apenas uma vingança imaginária, um
ódio insaciável. "Visto que o homem se consumiria rapida­
mente se reagisse, acaba por não reagir: eis a lógica. E nada
consome mais rapidamente do que os afetos do ressentimento.
O desgosto, a suscetibilidade doentia, a impotência em se vin­
gar, a inveja, a sede de vingança, o envenenamento em todos
os sentidos: eis para o homem esgotado o modo mais nocivo
de reagir. "25 Compreende-se a afirmação de Nietzsche de que é
preciso proteger os fortes contra os fracos. 26 Criando um ini­
migo que considera malvado e imaginando uma vingança con­
tra seus valores, o que faz o ressentido é dar sentido a sua
falta de força: o outro é sempre culpado do que ele não pode,

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Nietzsche e a verdade

do que ele não é. Concebendo o inimigo forte como malvado,


o ressentido - que é fraco, que é o seu oposto, que é a
negação dos valores que o outro institui - pode então se
considerar, ou melhor, se imaginar bom. Atitude diametralmente
oposta à dos aristocratas que se autoposicionam bons, consi­
deram mau o que é comum, o que não lhes é igual, e não
desprezam, ao contrário, veneram os inimigos, isto é, também
os consideram bons. "Os bons são urna casta; os maus uma
massa, urna poeira. Bom e mau são, por um tempo, sinônimos
de nobre e vil, mestre e escravo. Por outro lado, não se olha o
inimigo como mau: ele pode revidar. Em Homero tanto o gre­
go quanto o troiano são bons. Não passa por mau aquele que
nos inflige algum dano, mas aquele que é desprezível. '>27
A má-consciência ou o sentimento de culpa tem, segundo
a genealogia nietzschiana, uma dupla origem. A primeira é a
transformação do tipo ativo em culpado28 que se deu com o
nascimento do Estado, "a mudança mais profunda que se pro­
duziu na humanidade" . 29 A argumentação de Nietzsche nesses
importantes textos que analisam essa forma de surgimento da
má-consciência se faz pela relação entre instinto e consciência.
A idéia central é a seguinte: a força coercitiva, repressora, do
Estado - uma tirania terrível - abatendo-se sobre uma popu­
lação nômade, selvagem, livre, desvalorizou abruptamente os
instintos - instintos de liberdade, reguladores da vida, incons­
cientemente infalíveis -, reduzindo esses "semi-animais" ao
pensamento, à consciência, "a seu órgão mais miserável e mais
sujeito ao erro". 30 Impossibilitados de agir no exterior, esses
instintos fundamentais, que Nietzsche assimila à vontade de
potência,31 inverteram sua direção, voltaram-se para dentro, para
o interior, ou melhor, criaram a interioridade. A interiorização
do homem se produz quando os instintos mais potentes, não
podendo se expandir por causa de uma forte repressão social,
voltam sua força contra o próprio indivídu�. É a interiorização
desta força ativa, da vontade de potência, que cria a má-cons­
ciência. "Esse instinto de liberdade tornado latente pela violên­
cia - já o compreendemos - esse instinto de liberdade recal­
cado, coibido, preso no interior e só podendo se expandir e se

65
Roberto Machado

desencadear sobre si próprio: é isso, e nada mais do que isso,


a má-consciência no início" . 32
O segundo modo de surgimento da má-consciência é a
transformação do ressentido em culpado realizada pelo padre
ascético.33 O papel do padre é descarregar, aliviar seu rebanho
do ressentimento acumulado que ele considera um explosivo
capaz de destruir tanto um quanto o outro. Como se dá esse
alívio descompressor? O ressentido é alguém que sofre e por­
que sofre procura espontaneamente uma causa - um culpado
- de seu sofrimento para sobre ele descarregar seu ódio, "dis­
trair a dor pela paixão". Esse culpado, o padre lhe oferece: é
ele mesmo, o ressentido. "Alguém deve ser culpado de que eu
me sinta mal!" , diz o ressentido, ignorando a causa de seu
sofrimento; o padre ascético lhe responde: "Tem razão, minha
ovelha, alguém deve ser culpado, mas esse alguém é você
mesmo; é você mesmo e apenas você que é culpado de você!"34
Sua culpa, sua culpa, sua culpa! dizia incessantemente o res­
sentido; minha culpa, minha culpa, minha máxima culpa! dirá
agora o culpado. É o padre que muda a direção do ressenti­
mento. A má-consciência é o ressentimento voltado contra si
próprio. Nasce assim, segundo essa "psicologia do padre", o
pecado.35
Terceira forma de niilismo: o ideal ascético. O que car��
teriza o ascetismo religioso? É considerar a vida um erro, negá­
la e fazer dela uma ponte para outra vida, a vida verdadeira:
invenção de um além para melhor caluniar um aquém;36 in­
venção de um outro mundo que só se explica pelo cansaço da
vida que impera na moral, na religião, na filosofia. "Inventar
fábulas sobre um 'outro' mundo diferente deste não tem sen­
tido a não ser que domine em nós um instinto de calúnia, de
depreciação, de receio: neste caso nos vingamos da vida com
a fantasmagoria de 'outra' vida distinta desta e melhor do que
esta. "37 Calúnia suprema da vida que, para tornar desej ável
essa negação da vida, supõe a existência de outra vida, de um
mundo do além, de um mundo supra-sensível. Mas o ideal
ascético não se distingue essencialmente das duas atitudes an­
teriores; constitui, pelo contrário, o sistema moral do ressenti-

66
Nietzsche e a verdade

mento e da má-consciência, mais propriamente, os meios de


organização do tipo de moral judaico-cristã. O que caracteriza
a moral é ela ser a maior caluniadora e envenenadora da vida.38
Por quê? Porque ela é niilista; porque com ela os "instintos de
decadência" dominam os "instintos de expansão", a vontade
de nada vence a vontade de viver. "O instinto niilista diz não;
sua afirmação mais moderada é que não-ser é melhor do que
ser, que o desejo de nada tem mais valor do que querer-viver;
sua afirmação mais rigorosa é que, se o nada é o que há de
mais desejável, esta vida, como sua antítese, é absolutamente
sem valor - condenável"39 Niilista, a moral exprime uma von­
tade de nada, isto é, uma vontade não de afirmar mas de
n�gar, de depreciar a vida, possibilitando assim o triunfe.-d:its
forças reativas.
Pode-se compreender a importância que Nietzsche con­
fere ao nascimento de uma moral do bem e do mal e o papel
central que a reflexão sobre a moral desempenha em sua obra.
A sociedade moderna é niilista, isto é, dominada pelos valores
morais, pelos valores superiores que são justamente os valores
da decadência. E se a humanidade vive um período de de­
cadência, de degenerescência - dois milênios de antinatureza
e profanação do homem40 - isso se deve à vitória da "revolta
dos escravos na moral" . Se a espécie humana não atingiu o
grau mais alto de potência e esplendor, isso se deve ao fato de
a moral ser o perigo dos perigos. 4 1 Daí a posição de Nietzsche
em defesa de uma ética aristocrática como aspecto positivo da
denúncia da negatividade da moral. Daí sua posição imoral,
amoral ou extramoral, que pretende desmascarar a moral para
desmascarar o não-valor de todos os valores em que se acre­
dita, 42 criticar a domesticação do homem realizada pela moral
em nome de um conceito de cultura como adestramento e
seleção. Porque não se deve confundir domesticação, que é
enfraquecimento, com adestramento: "Como o entendo, o ades­
tramento é um dos meios do enorme acúmulo de forças da
humanidade, de modo que as gerações possam continuar a
construir tendo por base o trabalho de seus ancestrais - cres-

67
'1
Roberto Machado

cer a partir deles não apenas exteriormente, mas interiormente,


organicamente, no que existe de mais forte". 43
É por isso que contra o enfraquecimento do homem, con­
tra a transformação de fortes em fracos - tema constante da
reflexão nietzschiana - é necessário assumir uma perspectiva
além de bem e mal, isto é, "além da moral" . 44 Mas, por outro
lado, para além de bem e mal não significa para além de bom
e mau.45 A dimensão das forças, dos instintos, da vontade de
potência permanece fundamental. "O que é bom? Tudo que
intensifica no homem o sentimento de potência, a vontade de
potência, a própria potência. O que é mau? Tudo que provém
6
da fraqueza." 4

A exposição das teses centrais de A genealogia da moral


mostra como - ao privilegiar na análise as forças, os instintos,
a vontade de potência - a genealogia dos valores morais se
realiza tomando a vida como critério de avaliação; mas eviden­
cia também a definição mais especificamente nietzschiana da
vida como vontade de potência: a natureza da vida é a von­
tade de potência. 47 Essa posição primordial da vontade de po­
tência na análise - situação de critério último de avaliação -
permite também definir a genealogia, seja qual for o ob$to a
que ela se aplique, como uma teoria da vontade de potência, É
assim que Nietzsche define, pelo menos duas vezes, a "psi­
cologia", no sentido bastante próprio que ele lhe dá de ciência
mestra que conduz aos problemas essenciais, e que acredito
poder identificar com a genealogia: "morfologia e teoria ge­
nética da vontade de potência" ; "(teoria dos afetos), concebida
como morfologia da vontade de potência" . 48
E o que ensina a teoria genealógica da vida como von­
tade de potência? Essa teoria "psicológica" ou mesmo "fisiológica"
- uma "fisiologia da vontade de potência"49 - que considera
a vontade de potência o fato elementar, "a forma primitiva do
afeto" a ponto de afirmar que "toda força motriz é vontade de
potência, fora dela não existe nenhuma força física, dinâmica
ou psíquica" , 50 tem como tese fundamental - e sem a qual a
filosofia de Nietzsche seria incompreensível - que a vontade

68
Nietzsche e a verdade

de potência não é unitária; é constituída de formas ou tipos


diferentes. O que o homem quer é sempre mais potência,51
mas o homem é uma pluralidade de vontades de potência;52
viver é sempre querer mais potência, querer ser mais forte,
mas isso significa tanto estender quanto conservar a potência.
Por um lado, a vida deseja fundamentalmente53 um má­
ximo de potência; não propriamente uma conservação ou uma
adaptação mas um aumento, um acúmulo, uma expansão, uma
intensificação de potência. Alguns textos enunciam explicita­
mente essa importante tese da filosofia de Nietzsche. "E eis o
segredo que a vida me confiou: 'Vê, disse ela, eu sou o que
deve se superar a si mesmo indefinidamente' ."54 Toc!ç> corpo
"deverá ser uma vontade de potêf1cia enq1snada, -qU;.erá cres­
cer, se estender, açambarcar, dominar, não por moralidade ou
imoralidade, mas porque vive e a vida é vontade de potên­
cia."55 "A vida, como a forma mais conhecida do ser, é especi­
ficamente uma vontade de acumulação de força: todos os pro­
cessos da vida têm aqui sua alavanca: nada quer se conservar,
tudo quer crescer e acumular. A vida [. . .] tende a um senti­
mento máximo de potência: é essencialmente um esforço para
6
mais potência."5 "Minha concepção é que todo corpo espe­
cífico tende a se tornar mestre de todo o espaço e a estender
sua força (sua vontade de potência) e a repelir tudo o que se
opõe a esta extensão. Mas ele se choca constantemente com
esforços similares de outros corpos e acaba por se 'arranjar'
('se unir') com aqueles que estão mais próximos: - então eles
conspiram juntos para tomar o poder. E o processo continua."57
Por outro lado, não só na força ativa mas também na
força reativa existe vontade de potência. A análise genealógica
considera a vida como vontade de potência mesmo quando
ela é reativa, negativa, fraca, isto é, quando exprime uma von­
tade de nada, quando é niilista. A afirmação final de A gene­
alogia da moral é justamente esta: o homem prefere querer o
nada do que nada querer; a vontade de nada, a revolta contra
as condições fundamentais da vida, ainda é vontade de potên­
cia.58 Por quê? Porque permite dar um sentido à vida, à própria
vontade de potência. "Muitas coisas o ser vivo avalia mais alto

69
Roberto Machado

do que a própria vida; mas, mesmo nesta avaliação, o que fala


é - a vontade de potência. " 59
Compreende-se o significado da moral para Nietzsche. A
moral não é a manifestação de uma vontade forte, que excede,
de uma "virtude que dá", mas a manifestação de uma vontade
fraca que deseja uma potência que não tem, uma potência
imaginária, uma representação. A tese de Nietzsche é que o
6
ideal ascético não só exprime uma vontade, 0 como até mesmo
é uma astúcia da conservação da vida: "o ideal ascético tem
sua fonte no instinto de defesa e de salvação de uma vida em
vias de degeneração que procura subsistir por todos os meios
6
e luta por sua existência" . 1 Defesa, adaptação, conservação
são objetivos de uma vontade fraca, doente, pobre, diminuída
que se utiliza justamente do ideal ascético como meio de con­
tinuar vivendo. "A vontade de conservação é a expressão de
uma situação desesperada, de uma restrição do instinto vital
que, por sua natureza, aspira a uma extensão de potência e por
isso freqüentemente põe em jogo e sacrifica a própria conser­
6
vação" . 2 Se a moral é uma astúcia da vontade de potência
com o objetivo de conservar a vida - e não de expandi-la
criativamente -, se através dela a vida luta contra a morte,
sabemos também que tipo de vida é essa: uma vida sem força,
sem vigor, sem intensidade; Nietzsche lhe deu um nome: uma
vida de escravo.
Em que sentido pode haver incompatibilidade entre mo­
ral e vida se a vontade de moral é vontade de potência? No
sentido em que a vontade de moral é vontade negativa de
potência. Se a moral é incompatível com a vida isso não signi­
fica que ela o seja com todo tipo de vida. A posição nietzs­
chiana é que, pelo fato mesmo de servir para conservar a vida,
a moral é nociva às forças que possibilitam a auto-expansão da
vida, que são as forças mais fundamentais. Se a moral é um
leito de Procusto,63 se a moral é um fenômeno contranatural é
porque se insurge contra os instintos primordiais da vida, con­
tra a vontade afirmativa de potência.
Pode-se também compreender por que a perspectiva da
análise nietzschiana é extramoral. É que ela considera a moral

70
Nietzsche e a verdade

tomando a vida como critério, a partir das forças vitais. Se a


vida, ou a vontade de potência, é "imoral" ou não-moral, tam­
bém a moral, que essencialmente é apenas a expressão de um
6
tipo de vontade de potência - o tipo negativo - é imoral. 4
A grande insolência de Nietzsche é proclamar, contra a
exigência, contra o ideal de moralidade que rege nossas so­
ciedades, que o homem moral nem é melhor, nem mesmo é
propriamente bom; é apenas fraco, negativo, reativo. "Chamar
a domesticação de um animal seu 'melhoramento' soa aos nos­
6
sos ouvidos quase como uma piada. " 5 "Na verdade ri muitas
vezes dos fracos que se julgam bons porque têm as mãos pa­
66
ralíticas" . Quando considerada na perspectiva das forças, a
moral é um poderoso instrumento de conservação do fraco;
mas por isso mesmo enfraquece a vida, transforma a força em
fraqueza. "Minha opinião: todas as forças e todos os instintos
que tornam possível a vida e o crescimento caem sob o golpe
da moral: moral como instinto de negação da vida. " E Nietzs­
che conclui enunciando uma exigência que dá à sua filosofia a
característica de um instrumento de combate: "É preciso ani­
6
quilar a moral para libertar a vida" . 7 Exigência de se livrar do
disfarce da moral, de se situar para além de bem e mal, de se
6
posicionar acima da ilusão do juízo moral 8 como condição de
ser aristocrata: de afirmar, de "enobrecer" a vida. "Para que
seroe afinal de contas a moral se a vida, a natureza, a história
6
· são 'imorais'?" 9 É nessa perspectiva que vai ser analisada a
relação entre ciência e moral.

Notas
1 . G.C., § 345.

2. Frag. Post., junho-julho de 1885, 38 [14).

3 . G.C., § 301 ; Frag. Post, outono de 1887, 9 [40).

4. Cf., por exemplo, Frag. Post., outono de 1885 - outono de 1886, 2 [1651,
2 [ 190).

5. Cf. C./., "Os 'melhoradores' da humanidade", § 1 .

6 . Cf. Frag. Post. , outono de 1885 - outono de 1 886, 2 [165).

71
Roberto Machado

7. Cf., por exemplo, Frag. Post, outono de 1885 - outono de 1886 2 [190].
8. Frag. Post., outono de 1885 - outono de 1886, 1 [531.

9. Cf. Frag. Post. , agosto-setembro de 1885, 39 [ 1 5] ; "Os bons e os justos


chamam-me destruidor da moral: minha história é imoral." Assim falou Zara­
tustra (Z), I, "Da mordida da víbora".
10. Cf. Frag. Post., final de 1886 - outono de 1 887, 7 [6].
1 1 . A genealogia da moral (G.M.), prefácio, § 6.
12. G.M., prefácio, § 3.
13. B.M., § 260.
14. Cf. C.!. , "A moral como contranatureza", § 4 .
1 5 . Cf. B.M., § 260; Frag. Post., junho-julho de 1885, 3 7 [8].
16. Foi Gilles Deleuze (Nietzsche et la Philosophie, Paris, PUF, 1 96 1 , p. 138,
139) quem demarcou essa distinção conceitual, fundamental no pensamento
de Nietzsche, através dessa diferença terminológica também utilizada por ele
para distinguir a moral de Espinosa das morais tradicionais. Cf. Spinoza et te
Probleme de l'Expression, Paris, Minuit, 1968, p. 244-25 1 .
1 7 . Frag. Post., primavera de 1888, 1 5 [791.
18. Frag. Post., primavera de 1888, 15 [1 20]; cf. O Anticristo (AC), § 3.
19. B.M., § 260.
20. Frag. Post., setembro-outubro de 1888 , 22 [20]. Sobre a posição de Nietzsche
com relação à felicidade, cf. a comunicação de Henri Birault, "De la Béati­
tude chez Nietzsche", in Nietzsche, Cahier de Royaumont (Paris, Minuit,
1 967), que comenta o importante fragmento póstumo: "Que devo fazer para
me tornar feliz? Isso eu não sei, mas eu lhe digo: seja feliz e faça então o
que você deseja".
21 . Cf. G.M., I, § 7.
22. B.M., § 195.
23. B.M., § 260.

24. Cf. G.M., I, § 10, § 1 1 , § 13; II, § 1 1 .


25. Ecce Homo (E.H.), "Porque sou tão sábio", § 6. " . . . o pathos agressivo é
tão inerente à força quanto o sentimento de vingança e ódio o é à fra­
queza."/bid., § 7.
26. Cf. G.M., III, § 14.
27. Humano, demasiado humano (H.D.H.), I, § 45 .
28. Cf. G.M., II, § 16, § 17, § 18.
29. G M , II, § 17.
30. G.M., II, § 16.
31 . Cf. G.M., II, § 18.

72
_[
Nietzsche e a verdade

32. G.M., li, § 17.


33. Cf. G.M., III, § 15, § 16.
34. G.M., III, § 1 5 .
3 5 . Na Grécia antiga não havia sentimento de pecado; cf. G.C., § 135.
36. Cf. "Tentativa de autocrítica", § 5 in N. T.; Frag. Post., primavera de 1888,
14 [1341; E.H., "Porque sou uma fatalidade", § 8.
37. C.I., "A razão na filosofia", § 6; cf. Frag. Post., primavera de 1888, 14
[168).
38. Cf. Frag. Post. , outono de 1887, 10 [166).
39. Frag. Post., maio-junho de 1888, 17 [7).
40. E.H., "Nascimento da tragédia", § 4.
41. G.M. , prefácio, § 6.
42. Cf. E.H., "Porque sou uma fatalidade", § 8.
43. Frag. Post., primavera de 1888, 15 [65); cf. outono de 1887, 10 (68].
44. B.M., § 23.
45. G.M., I, § 17.
46. Frag. Post., novembro de 1887 - março de 1888, 11 [414); primavera de
1888, 1 5 [ 1 20); AC; § 2.
47. Cf. G.M., 11, § 12. Vários textos definem explicitamente a vida como
vontade de potência. Eis algumas referências: Z, li, "Do superar-se a si
mesmo"; Frag. Post, outono de 1885 - outono de 1886, 2 [190); verão de
1886 - outono de 1887, 5 [71) 10; final de 1886 - primavera de 1887, 7 [9)
e 7 [25); outono de 1887, 9 [1) e 9 [38); primavera de 1888, 14 [801.
48. Respectivamente, B.M., § 23; Frag. Post., início de 1888 - primavera de
1888, 13 [1).
49. Frag. Post., início de 1888 - primavera de 1888, 13 [1).
50. Frag. Post. , primavera de 1888, 14 [1 21). Este fragmento se intitula jus­
tamente: "A vontade de potência - de um ponto de vista psicológico" .
5l .Cf. Frag. Post., primavera de 1888, 14 [174).
52. Cf. Frag. Post., outono de 1885 - primavera de 1886, 1 [58).
53. "O desejo fundamental é a vontade de potência", ibid., 1, [591.
54. Z., li, "Do superar-se a si mesmo".
55. B.M., § 259.
56. Frag. Post, primavera de 1888, 14 [831.
57: Ibid., 14 [186).
58. Cf. G.M., III, §, 28.
59. Z, li, "Do superar-se a si mesmo".

73
Roberto Machado

60. Cf.. G.M., III, § 23.


61. G.M., III, § 13.
62. G.C., § 349.
63. Cf. C./., "Incursões de um intempestivo", § 43.
64. Cf. Frag. Post., final de 1886 - outono de 1887, 7 [6]; outono de 1887, 9
[159], 9 [173], 10 [206].
65. C./., "Os 'melhoradorés' da humanidade", § 2.
66. Z, II, "Dos sublimes".
67. Frag. Post., final de 1886 - primavera de 1887, 7 [6].
68. C.!., "Os 'melhoradores' da humanidade", § 1 .
69. G.C., § 344.

74
3

A "Vontade de verdade"

Q ue 'dação a ciência tem com a mornl, a ve,dade


com o bem? O estudo da problemática da moral e sua articu­
lação com a vontade de potência permitem retomar a questão
da ciência explicitando em que sentido a vida, concebida co­
mo vontade de potência, é um critério capaz de elucidar a
questão do conhecimento. E é preciso dizer antes de mais
nada que Nietzsche produz, com o objetivo de articular ordem
moral e ordem epistemológica, um conceito fundamental: o
conceito de "vontade de verdade" .
A análise nietzschiana da ciência tem como ternas princi­
pais: a oposição entre o universalismo e o perspectivismo do
conhecimento, a relação entre os instintos e a consciência, a
heterogeneidade entre conhecimento e mundo, a superação da
dicotomia essência-aparência, a crítica das noções de sujeito
e objeto . . . O ponto porém que se encontra na base de todas
essas reflexões é a crítica da vontade de verdade que atua no
conhecimento. A vontade de verdade é a crença, que funda a
ciência, de que nada é mais necessário do que o verdadeiro1 .
Necessidade não de que algo seja verdadeiro, mas de que seja
tido como verdadeiro. 2 A questão não é propriamente a essên­
cia da verdade, mas a crença na verdade .
Por que a verdade é tida como necessária? O que quer
quem procura a verdade? A originalidade e a importância da
filosofia de Nietzsche é ter compreendido que a crítica da ciên­
cia só pode ser eficazmente realizada como questionamento da
vontade de verdade, o que significa situar-se do ponto de vista
da vontade de potência. Se a questão do conhecimento não
pode ser elucidada limitando-se a seu interior é porque na base
do conhecimento está a vontade e porque a vontade de verdade
expressa sempre um determinado tipo de vontade de potência.

75
Roberto Machado

A teoria nietzschiana da ciência é, portanto, uma genealogia da


vontade de verdade que pretende determinar sua origem e seu
valor a partir da vontade de potência.
A genealogia da verdade prolonga e completa a genealo­
gia da moral. A crítica ao ideal de verdade, ao valor da ver­
dade é a extensão da crítica aos valores morais dominantes
que têm origem na moral judaico-cristã, cujo núcleo essencial
é o ideal ascético.3 A tese central da argumentação é que a
ciência supõe o mesmo "empobrecimento da vida" que carac­
teriza a "moral dos escravos" . Pobre de vida - em oposição à
riqueza, à plenitude características do forte - é quem modifica
o valor dado às coisas, empobrecendo-o. "Ao oposto daquele
que dá involuntariamente às coisas um pouco da plenitude
que ele encarna e sente, as vê mais plenas, mais potentes,
mais ricas de futuro - daquele que em todo caso sabe dar, o
esgotado diminui e desfigura tudo que vê, empobrece o valor;
é pernicioso. "4 Como sempre, é a partir da força ou da fra­
queza, da riqueza ou da pobreza, do excesso ou da falta que é
colocada a questão do valor. Isso aconteceu com os valores
morais, com a questão do bem; o mesmo acontece com os
valores epistemológicos, com a questão da verdade.
A ciência recebe da genealogia o mesmo tratamento que
a moral: é considerada do ponto de vista extramoral carac­
terístico da vontade de potência. "Seria portanto necessário exa­
minar como psicólogo a 'vontade de verdade' : ela não é uma
força moral, mas uma forma · da vontade de potência. Poder-se-ia
prová-lo pelo fato de que ela se serve de todos os meios imorais
- em primeiro lugar a metafísica - a pesquisa só se tornará
metódica quando todos os preconceitos morais forem ultrapassa­
dos."' Apenas essa postura permite equacionar o "problema" da
ciência. Do mesmo modo que o problema do significado da
moral é fundamentalmente o da potência da moral, 6 o pro­
blema da ciência - esse problema terrível, cheio de incógnitas
mas também rico de esperanças, que deverá ocupar ainda o
próximo século - é o da potência, da força da ciência: o do
significado da vontade de verdade.l

76
Nietzsche e a verdade

Assim colocado, o problema da ciência revela não só em


que sentido ela é dominada pelos valores morais mas também
em que sentido a vontade de verdade, como a vontade de
moral, está intrinsecamente vinculada à vontade de potência;
mas de uma forma de vontade de potência, de um tipo es­
pecífico que serve à conservação e não à expansão da vida.8
Tanto quanto a moral cristã, a ciência é uma atividade niilista
que possibilita a dominação da vida pelas forças reativas. O
perigo representado pela vontade ilimitada de conhecimento faz
Nietzsche aproximar vontade de verdade e vontade de morte,9 o
que mostra como para ele a ciência é um sintoma de decadência:
"Que a ciência seja possível, no sentido em que ela é praticada
hoje, isto prova que todos os instintos elementares, instintos de
legítima defesa e de proteção não funcionam mais" . 10 Em suma: a
ciência nem se opõe à moral nem pode ser sua superação por­
q�e não apenas tem as mesmas bases que ela como é a última
etapa de seu aperfeiçoamento; ainda que de modo insconsciente,
são os valores morais que reinam na ciência; até no melhor dos
casos, diz Nietzsche, a ciência "não é o contrário do ideal as­
cético, é antes sua forma mais recente e mais elevada" Y
Mas qual é o elo da argumentação que permite relacionar
tão profundamente a ciência com a moral? Se é possível esta­
belecer esta relação intrínseca, imanente, entre elas é porque a
vontade de verdade, que caracteriza a ciência, constitui o âma­
go do ideal ascético. Se a ciência não é antagonista da moral,
-
se ela depende da moral como instância que lhe dá valor -
. em vez de ser criadora de valor - é porque se funda na
·
verdade e a pesquisa da verdade é uma démarche moral; querer
a verdade é expressar o ideal ascético. Ciência e ideal ascético
"têm como base o mesmo terreno: a mesma superestimação da
verdade (mais exatamente: a mesma crença no caráter ines­
timável e incriticável da verdade), eles são portanto necessa­
riamente aliados, de modo que, se eles devem ser combatidos,
só podem ser combatidos, colocados em questão, juntos" Y
A vontade de verdade a todo custo é um fenômeno moral
porque a oposição verdade-aparência que ela institui signi­
fica a afirmação de uma "vida melhor", de um "mundo-ver-

77
Roberto Machado

�eira" e a negação da vida, do mundo em que vivemos;


criação de um outro mundo que justamente expressa o can­
saço da vida característico da moral. Se há continuidade entre
ciência e moral é porque tanto a verdade quanto o bem 13 sã_o
"valores superiores" ou aspectos da mesma realidade suprema
de onde derivam todos os valores. E como é a vontade de
nada que caracteriza os valores "superiores à vida", os valores
considerados superiores são negadores da vida: o que define o
01Ior dos valores superiores é o niilismo.
A argumentação de Nietzsche atinge assim o ponto culmi­
nante : a análise da relação intrínseca entre ciência e moral
revela a homogeneidade delas com a metafísica. Assim como a
moral dos escravos é uma moral metafísica porque julga� vi a 9
a partir de "valores superiores" - a metafísica é por natureza
niilista porque julga e desvaloriza a vida em nome de um mun­
do supra-sensível -, a condição de possibilidade da ciência é, ·
em última instância, a fé em um valor metafísico da verdade.
Privilegiando, na reflexão sobre a ciência, a vontade de ver­
dade, a crítica nietzschiana tem por objetivo esclarecer que ela
implica tanto a metafísica quanto a moral - uma moral me­
tafísica ou uma metafísica moral - na medida em que o valor
metafísico que se atribui à verdade, e que está na base da
vontade de saber e portanto da ciência, é a expressão do ni­
ilismo do ideal ascético. "[. . .] o ideal ascético dominou todas as
filosofias pelo fato de que a verdade era postulada como Ser,
como Deus, como instância suprema, pelo fato de que a ver­
dade não devia de modo algum constituir problema. " " [ . . . ] esta
vontade absoluta de verdade, não nos enganemos, é a fé no
próprio ideal ascético, mesmo quando for apenas seu impera­
tivo inconsciente; é a fé em um valor metafísico, em um valor
em si da verdade que apenas esse ideal garante e consagra
(ela subsiste e perece com ele) . " 14
A vontade de verdade é uma crença - crença na supe­
rioridade da verdade - e é nela que a ciência se funda. Não
há ciência sem o postulado, sem a hipótese metafísica de que
o verdadeiro é superior ao falso, de que a verdade tem mais

78
Nietzsche e a verdade

valor do que a aparência, a ilusão. "O grau de certeza a res­


peito das desejabilidades supremas, dos valores supremos, da
perfeição suprema era tão grande que os filósofos procediam
daí como de uma absoluta certeza a priori: 'Deus' no alto
como verdade dada."15 É porque privilegia em sua reflexão a
questão da vontade de verdade a todo custo que Nietzsche
não estabelece geralmente uma distinção essencial entre a ra­
cionalidade filosófica clássica e a racionalidade científica mo­
derna. O caráter incriticável da verdade como valor é o que
possibilita a afirmação da continuidade entre a ciência, a filosofia
e a moral. Pode-se ser ateu ou antimetafísico; basta porém
aceitar a "superestimação" da verdade - característica essen­
cial da reflexão sobre a ciência desde que Platão postulou que
"Deus é a verdade" ou que "a verdade é divina" - para que
�e_ expresse a crença metafísica que se encontra na base da
6
ciência. 1 "Alguns ainda têm necessidade de metafísica; mas
também esse impetuoso desejo de certeza que irrompe hoje
nas massas sob forma científico-positivista, esse desejo de querer
possuir alguma coisa absolutamente estável [. . .] tudo isso ainda
é prova da necessidade de um apoio, de um suporte, em su­
ma, do instinto de fraqueza que não cria mas conserva as
religiões, as metafísicas, e todo tipo de convicção."17 "A re­
ligião falsificou a concepção da vida: a ciência e a filosofia
sempre foram apenas ancillce desta doutrina. " 18
_ A posição de Nietzsche é clara: o ateísmo científico, o
positivismo nada mais são do que o aperfeiçoamento, o mo­
mento de maior refinamento da vontade de verdade criada
pela filosofia platônica e pelo cristianismo.19 Mesmo que a ciên­
cia critique a religião como dogma, essa crítica ainda está si­
tuada no terreno de seus valores, ainda é a conseqüência e a
expressão mais atual de sua moral, pois é a própria vontade
de verdade - como se sabe, a essência do ideal ascético -
que, se aperfeiçoando, proíbe a "mentira da crença em
Deus" .20
Nietzsche sabe muito bem que os valores são históricos e
portanto mutáveis. Mas sabe também que o fato de substituir

79
Roberto Machado

Deus pelo homem, de colocar valores reconhecidamente Q.u­


rnanos no lugar dos valores considerados divinos, não muda o
essencial . Não basta a "morte de Deus" para destruir e superar
o niilismo: isso pode representar apenas sua exacerbação. É
preciso destruir a moral. E a crítica do niilismo moral só é
�al com o questionamento da vontade de verdade.
Só através da crítica da vontade de verdade como von­
tade negativa de potência é possível elucidar o problema da
moral, da metafísica, da ciência. Só o questionamento do valor
da verdade é capaz de superar o niilismo e levar ao máximo
de sua radicalidade o projeto nietzschiano de "transvaloração
de todos os valores" .

Notas
1 . Cf. G.C., § 344.
2. Cf. Frag. Post., outono de 1887, 9 [38].
3. O principal conjunto de aforismos sobre o assunto se encontra em G.M.,
III, § 23 a § 28.
4. Frag. Post. , primavera de 1888, 14 [68].
S. Ibid., 14 [103].
6. Cf. GM., III, § 23.
7. Cf. G.M., III, § 27.
8. Cf. Frag. Post, outono de 85, 43 [1].
9. Cf. G. C., § 344; Frag. Post., agosto-setembro de 1885, 40 [391.
10. Frag. Post., primavera de 1888, 14 [2261.
1 1 . G.M., III, § 23.
12. G.M., III, § 25.
13. "[. . .] e quanto ao bem tal como Platão o compreendia (e depois o cris­
tianismo), ele me parece um princípio perigoso para a vida, caluniador da
vida, negador da vida": Frag. Post., final de 1886 - primavera de 1887, 7 [9].
14. GM., III, § 24.
15. Frag. Post., outono de 1887, 10 [ 1 501.
16. G.C, § 344; G.M. III, § 24.
17. G.C, § 347.
18. Frag. Post., novembro de 1887 - março de 1888, 1 1 [264).

80
Nietzsche e a verdade

19. É preciso não esquecer que para Nietzsche a história da filosofia é a


história do platonismo (cf. C./. "Como o 'mundo verdadeiro' acabou conver­
tendo-se em uma fábula" e a interpretação que Martin Heidegger dá desse
texto em Nietzscbe, I, "A vontade de potência como arte", Pfullingen, Neske
Verlag, 1 96 1 , tr. fr. , Paris, Gallimard, 197 1 , tr. ingl., Nova Iorque, Harper and
Row, 1968) e que o cristianismo é um platonismo para o povo (Cf. B.M.,
prefácio). O Frag. Post., novembro de 1887 - março de 1888, 1 1 [294]
qualifica Platão de "anti-heleno e semita instintivo".
20. G.M., III, § 27.

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