Você está na página 1de 9

1

UNIVERSIDADE DE CAXIAS DO SUL


ÉTICA – 31/03/2020
NIETZSCHE: CRÍTICA À MORAL VIGENTE
Prof. Dr. Paulo César Nodari
Friedrich Nietzsche (1844-1900) nasceu na Alemanha. É filho de pastor luterano e bastante marcado
pelo rigor da religião protestante, foi um dos críticos mais mordazes da moral tradicional desde a filosofia
grega até o cristianismo. Ele pretende romper não só com a visão da moral judaico-cristã, mas também com
a tradição grega desde Sócrates, representativa de todo pensamento que prevaleceu em toda a cultura
ocidental. Torna-se o mais ferrenho crítico da modernidade. Particularmente, no caso da ética, ele tenta
mostrar que ela não se fundamenta na razão. A moral cristã se fundamenta e se caracteriza em uma “moral
do rebanho”, em que os indivíduos se deixam levar pela maioria e seguem os ensinamentos da moral
tradicional de forma acrítica. Trata-se da moral do “homem ressentido”, que assume a culpa e o pecado
como características de sua natureza e, por isso, reprime seus impulsos vitais, sua vontade, sua criatividade,
em nome da submissão à autoridade da religião e, por extensão, do Estado e das instituições em geral.
Segundo Nietzsche, é a “moral dos fracos” que consegue impor-se aos fortes exatamente através do recurso
à culpa e ao remorso, inculcados pela tradição em todos os indivíduos.
Sua crítica visa, pois, recuperar os valores afirmativos da vida que possam dar aos homens um novo
impulso em direção à superação de suas limitações por meio do incentivo à vontade, à sensibilidade e à
criatividade. A crítica de Nietzsche teve em todas as áreas uma forte influência no século XX. No que se
refere á moral, Nietzsche critica a tentativa tradicional dos filósofos de fundamentar a moral e de formular
uma “ciência da moral”, sem, contudo, jamais se perguntar sobre o sentido da própria moral, sem jamais
problematizá-la. Ele propõe, ao contrário, a adoção de uma perspectiva histórica sobre a moral, indicando a
necessidade de comparar as várias visões de moral culturalmente existentes.
A obra, A genealogia da moral (1887), aprofunda a crítica através do método genealógico.
Nietzsche, na primeira dissertação, mostra que os conceitos e os valores tradicionais da moral não são
universais e nem estabelecidos objetivamente. Eles têm sua origem em um momento histórico determinado,
em uma cultura específica e servem a certos interesses e propósitos que no desenvolvimento da tradição
acabam por ficar esquecidos. O método genealógico busca recuperar essas origens e desmascarar a aparente
objetividade dos valores e conceitos, o que acontece em casos como o da “moral do rebanho” da tradição
judaico-cristã, que impõe valores como compaixão e submissão aos fortes como forma de dominá-los. Sem
se caracterizar como uma análise histórica, esse método procura revelar, através de uma análise crítica,
pressupostos e elementos subjacentes da tradição, assim como o seu processo de formação. Nesta primeira
dissertação, Nietzsche analisa a psicologia do Cristianismo “nascido do espírito do ressentimento e não,
como se supõe, do Espírito, um movimento contrário em sua essência, uma grande rebelião contra a
dominação dos valores nobres.”. Por sua vez, a segunda dissertação aborda a “psicologia da consciência”,
não como sendo a “voz de Deus no homem”, mas o instinto de crueldade que se volta para dentro, quando
não se pode exteriorizar. “A crueldade é revelada, pela primeira vez, como um dos mais antigos e mais
indispensáveis elementos na fundação da cultura”. A terceira dissertação é uma resposta à questão sobre a
origem do terrível poder do ideal ascético. “Trata-se de três aberturas psicológicas decisivas que precedem
a transvaloração de todos os valores.”1.
Segundo Nietzsche, a própria moral é considerada como um dado natural, ou seja, algo que não se
pode ou não se deve problematizar. A questão que se coloca é de ser necessário exibir o fundamento
racional de suas pretensões de validade. Segundo ele, a tentativa filosófica de fundamentar a moral se
revela, pois, como submissão a uma determinada espécie de moral, a saber, a moral vigente, aquela de uma
região, de uma cultura, de um estamento, de uma igreja, de um espírito reinante em uma determinada época
e lugar. Com isso, elide-se considerar a moral criticamente como um problema. Com o propósito de
desestabilizar a moral vigente, Nietzsche combina perspectivas históricas e psicológicas, descobrindo
momentos de cristalização e processos de desenvolvimento em diferentes morais, mostrando o estatuto de

1
Cf. MARCONDES, Danilo. Textos básicos de ética. De Platão a Foucault. 4ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.
2

linguagem simbólica que é característico da moralidade, enquanto transfiguração de impulsos e afetos. A


consciência filosófica conquistou, segundo Nietzsche, o direito de colocar em questão, de transformar em
problema os valores morais mais venerados pela moralidade. É a partir dessa perspectiva que se articula a
denúncia de cumplicidade entre a moral cristã e o projeto político da modernidade.
Para Nietzsche, o projeto político da modernidade, sob a forma da extensão planetária da igualdade
democrática como a única forma de legitimação ética e política, constitui não apenas um modo decadente
da organização social, mas, mais profundamente, um modo de rebaixamento e mediocrização da
humanidade, de autodiminuição de valor do homem. Segundo Nietzsche, o homem moderno assume o ônus
de determinar-se ou terá que renunciar à sua autonomia e ser determinado por outrem, pelos deuses ou
pelos outros homens. Para Nietzsche, vigora nesse processo um tipo impessoal e camuflado de vontade de
poder, que oculta essa sua condição. Ao instituírem-se como valor absoluto e submeterem a si toda e
qualquer outra forma de sentimento de valor e valoração, as ideias modernas realizam esse seu impulso
inconscientemente tirânico e ao mesmo tempo promovem o nivelamento e a uniformização massiva da
humanidade2.
Segundo Nietzsche, no escrito, Aurora, o homem é a mais medrosa das criaturas e devemos
compreender a moral a partir dessa sensação básica. E o que suscita o medo é a presença do outro. A
relação com o outro é sempre de defesa e ataque e a base da moral se encontra nesta sensação básica. A
moralidade está toda fundada neste instinto de distinção, um instinto que fixou o caráter da humanidade,
senso sua autêntica e decisiva história primordial e que considerava a crueldade, a dissimulação, a
vingança, a negação da razão e o sofrimento virtudes. É o sucesso que garante nossa superioridade, a
autoconfiança que nos permite conquistar a fé, e fé em nós mesmos, e que pela dissimulação prolongada
torna-se natureza. É assim que surge a bondade: uma prolongada simulação para que, onde houvesse poder,
fosse infundida segurança, confiança, centuplicando o total do poder físico. A moral, para Nietzsche,
funda-se, portanto, na tradição, nos modos de agir e valorar costumeiros. Sem tradição, não há moralidade.
A ética, portanto, é obediência aos costumes, mas o que marca a moral é a obediência, isto é, um temor à
dependência apenas de si, da improvisação inicial que marcou a ação capaz de superar o medo da liberdade
e da dúvida que permitem essa ação.
Segundo Nietzsche, o que se toma como elevação é um verdadeiro embrutecimento da humanidade.
Porque, embora definamos o objetivo da moral como a conservação e também a promoção da humanidade,
nós deixamos de nos perguntar sobre aquilo que nos é essencial, o para quê de tal conservação e o para
onde da promoção, paralisando, por conseguinte, o pensamento. O preço para que a moral nos proteja do
medo do outro é a infusão em nós de um medo ainda mais difuso, o medo de um intelecto superior do qual
nos vemos dependentes, ao qual voltamos uma veneração impeditiva da crítica. A tutela que parece exercer
a autoridade não tem, portanto, um fim de condução da humanidade, que poderia se dar por meio de novas
experiências, assegurando-a contra os perigos do erro e desacerto.
A moral, contudo, vale-se de uma série de artifícios, para que essa compreensão não tenha lugar. Se
a crítica demanda que, como homens do pensamento, sejamos suspeitosos desses sentimentos superiores,
coloca-nos uma dúvida e nos volta contra a confiança incondicional que preside nosso sentimento moral. É
preciso coragem, pois, no pensamento, para que possamos avançar e nos permitir, com autonomia,
independência, imparcialidade, e tentar construir uma civilização forte. O conhecimento que evoca há de
ser procurado em nossa razão e em nossa experiência, e não mais em sentimentos herdados. É preciso dar-
se conta da contínua emergência do papel do indivíduo frente ao grupo. É preciso, então, deixar-se conduzir
pelo pensamento “egoísta” e não mais pela tradição. É preciso livrar-se da culpa e do ressentimento que
paralisam e aniquilam. É preciso superar a moral baseada na tradição e nos costumes habituais. Não é mais
possível buscar a denominada onipotência da verdade garantidora de segurança ao preço da mais alta
submissão e apagamento de si. É preciso apartar o medo e abrir-se ao prazer da experimentação e da
invenção.

2
Cf. GIACOIA, Oswaldo. Nietzsche & para além de bem e mal. 2ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
3

É essa consciência do poder e não do medo que fomenta a aparência da sensação de poder e,
consequentemente, dá a sensação real de poder, formando-se uma cultura que Nietzsche chama de
aristocrática porque fundada na libertação e educação de si, voltada à emancipação individual e que, por
isso, tem como tarefa democrática essa desmistificação do Estado e da moralidade sobre a qual se estrutura.
A esse poder superior dá-se o empreendimento de Nietzsche3.
A ética de Nietzsche é diametralmente oposta à ética kantiana, por exemplo. A ética de Nietzsche
pode ser considerada num sentido importante uma ética do caráter, que se propõe e afirma como exercício
do “cuidado de si”, cujo imperativo consiste justamente na “fidelidade a si”. Em última análise, não se trata
de uma teoria ética, mas de uma filosofia existencial. Nietzsche não aceita a liberdade transcendental
kantiana. Refutar a presente tese constitui-se em um objetivo fundamental de sua ética. É um recurso,
segundo Nietzsche, para assegurar a legitimidade de conceitos fundamentais da moralidade, tais como
responsabilidade e imputação, justificando, com isso, a culpa. Para ele, essa seria a estratégica para
fundamentar o castigo, a culpa, a expiação, ou seja, a hipótese metafísica da ética. A subjetividade em
Nietzsche não se baseia no caráter inteligível e não é um dado, mas sempre um “vir a ser”, como algo que
nos tornamos ao longo do caminho que nos conduz a nós mesmos.
Para Nietzsche, Kant é o padrão da ética. É a ética tem como padrão a obediência e segue os
costumes e a tradição. Costumes são comportamentos normativos que vêm chancelados por uma autoridade
provida de uma força coercitiva especial. A autoridade dos costumes é objeto de uma veneração que impõe
a obediência, de tal modo que a eticidade não é outra coisa senão o sentimento devotado à autoridade
sagrada dos costumes. Estes obrigam à obediência em virtude de uma autoridade que se impõe não em
função daquilo que comanda pela utilidade do que é prescrito, mas unicamente porque comanda. Para
Nietzsche, eticidade é veneração à sacralidade dos costumes. A eticidade dos costumes prescreve modos
gerais de comportamento, válidos para todos os membros do grupo, isto é, formas de ação que abstraem
completamente a singularidade e individualidade. Por isso, quanto mais ético é um indivíduo, segundo
Nietzsche, tanto menos indivíduo ele é, tanto mais nele comando o coletivo, o societário, impessoal, a
chamada “moral de rebanho”. Nesse sentido, o homem livre é aquele não ético, porque em tudo ele quer
depender de si próprio e não de uma tradição. Na tradição, o “malvado” é o que é individual, livre,
arbitrário, inabitual, imprevisível, incalculável. Paradoxalmente, segundo Nietzsche, quanto mais um
indivíduo se destaca do coletivo por sua singularidade pessoal, tanto menos ético ele é. Um indivíduo
soberano “senhor de si”, idêntico apenas a si mesmo, que obedece unicamente à própria legislação um
indivíduo autônomo, seria, para Nietzsche, um indivíduo não ético, amoral. O conceito de eticidade dos
costumes seria o longo e árduo trabalho do indivíduo sobre si mesmo, seu processo de formação. A
eticidade dos costumes seria o processo de domesticação, processo civilizatório.
Para Nietzsche, em sua crítica, a consciência moral em geral assim como a esfera do sagrado e do
religioso está associada não ao mundo suprassensível, à esfera inteligível das essências ideais, mas às
condições sangrentas, cruéis e violentas de origem, tal como podem ser resgatadas a partir de uma
interpretação global da existência com base no conceito-guia de vontade de poder. Para Nietzsche, a
consciência moral não é a voz de Deus como o é também para Kant. Para ele, o tribunal interior da
consciência moral é a crueldade internalizada do ressentimento sublimada na forma da corte judiciária, que
julga, condena e castiga incessantemente o triunfo de uma perspectiva de interpretação que coloca o
universo sob a égide do débito e do crédito, da recompensa e do castigo, da culpa e da expiação 4.
Nietzsche erguerá sua voz contra o sistema ético kantiano em todo o desdobramento contra a moral
cristã. Para ele, nada é mais ruidoso e ruinoso do que o dever impessoal. Toda a moral é, para Nietzsche, a
repressão do instinto, e tal repressão tem a sua origem na debilidade ou decadência do impulso vital. Para
ele, o instinto se comporta como o motor de desenvolvimento, enquanto que, para a tradição, o instinto é o

3
Cf. MELO, Eduardo Rezende. Nietzsche e a justiça. São Paulo: Perspectiva, 2004.
4
Cf. GIACOIA, Oswaldo. Nietzsche x Kant. Uma disputa permanente a respeito de liberdade, autonomia e dever. São Paulo:
Casa do Saber; Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2012.
4

princípio de afirmação do diferente, que se constitui em ameaça que precisa ser combatida e anulada. Esse
ressentimento do débil diante da força instintiva alheia, que se converteu em ameaça, é a moral. Nietzsche
se esforça em descobrir o quanto a humanidade está enganada sobre a vida interior Nesse sentido, ele
assume uma atitude imoralista. Para ele, a moral se coloca contra a natureza. Ela é contrária à vida e
também à natureza e apresenta Deus como o contraposto à vida. O Cristianismo seria o causador da
degeneração e decadência do mundo moderno. O Cristianismo foi e é a maio desgraça da humanidade.
Sempre se trabalhou com o horror ao diferente, a quem é diferente. É a antítese e o antagonismo do
bom e do mau. O homem do mal seria quem provoca medo. Este inimigo é desprezível. O bom é o
inofensivo. Segundo Nietzsche, a moral fundamenta-se sobre um formalismo vazio e inócuo. Ele nega que
os motivos traçados pela moral convencional tenham, de fato, levado os homens a agir. E nega também que
os juízos morais repousem sobre verdades, as quais impelem os homens a agir. Segundo ele, não há
critérios absolutos que levem a todos a agir de maneira uniformizada e absoluta. A moral e o Cristianismo
teriam levado a uma desrazão moral. A moral seria esse desinteresse pelos instintos. Nietzsche é
determinadamente contra à ontologia da moral, ou seja, à moral que fixa a ordem da vida. A ontologia
moral corrompeu a forma de vida e a razão, ao fazer virtude de debilidade. No cristianismo, para ele, nem a
moral e nem a religião estão em contato com a realidade. Só encontramos causas imaginárias, só efeitos
imaginários, um comércio de seres imaginários, uma ciência imaginária. Para ele, a moral é servil, vaidosa,
egoísta, confusa, exaltada, desespero, submissão. Ela nada tem de moral. A moral está submetida a um
trabalho de transformação constante, é o resultado dos crimes criteriosos. A moral não dispõe apenas de
meios de intimidação e tortura, mas tem certa arte de “entusiasmar”.
Em Nietzsche, é importante distinguir domesticação e adestramento. A primeira é enfraquecimento,
o segundo é uma dos meios do enorme acúmulo de forças da humanidade, de modo que as gerações possam
continuar a construir, tendo por base o trabalho de seus ancestrais, crescer a partir deles e não apenas
exteriormente, mas, interiormente, organicamente, no que existe de mais forte. Seria extremamente
perigoso acreditar que a humanidade cresce e se torna mais forte se os indivíduos vêm enfraquecidos,
medíocres, dominados pelos valores morais, pelos valores superiores, que são justamente os valores da
decadência. No processo de universalização o homem não pode ser deixado a si mesmo, na individualidade
infinita de suas experiências, pois se situaria no reino da arbitrariedade, do isolamento solipsista. Nietzsche
nega esse processo de universalização. A vontade de uma só moral consiste em ser a tirania de uma
espécie, a qual é medida por uma moral única. A exigência de uma humanização e uma hipocrisia por uma
espécie determinada para chegar ao domínio. Seria mais exatamente um instinto determinado, o “instinto
de rebanho”. Nesse processo de hegemonia da moral de rebanho três são as potências subjacentes: a) o
instinto de rebanho dirigido contra os fortes e os independentes; b) o instinto dos sofredores deserdados
dirigido contra os felizes; c) instinto do medíocre dirigido contra as exceções. O valor da vida não pode ser
fixado de modo absoluto e único. Os valores são criação do homem. São interpretações. O mesmo acontece
com os valores morais. Exige-se do homem que castre os instintos que lhe permitiriam fazer oposição,
prejudicar a concepção dualística, exigir vingança. A esta desnaturalização corresponde à concepção
dualística de um ser puramente bom e um ser puramente mau, ou seja, a luta de oposições.
Nietzsche quer mostrar que o seu problema central é o da moral. Ele quer fazer uma crítica radical
da moral. Segundo ele, não houve uma crítica séria da moral ao longo da história. O bom, em última
análise, emanou dos que se consideraram bons e não houve uma crítica séria do que viria, de fato, a ser
bom. Sentido da moralidade seria obediência severa aos costumes, sejam eles quais forem. O homem livre,
para Nietzsche, é imoral, porque quer depender absolutamente de si mesmo e não de uma tradição e de
costumes. Nietzsche vê que todas as formas de configurar o que é mau como o individual, o inabitual, o
arbitrário, o imprevisto. O bom é o que segue ordens e obedece a uma autoridade, não porque nos ordene o
que é útil, mas, fundamentalmente, porque ela ordena. Segundo ele, onde há moral, ali, há uma avaliação e
uma classificação hierárquica dos instintos e dos atos humanos. É a moral de rebanho, é aquilo que
aproveita e fixa o rebanho. É a atribuição de valor na manutenção do rebanho. Até o momento, segundo
Nietzsche, os moralistas só serviram para a manutenção da “moral de rebanho”. A moral na verdade não é
uma reflexão moral.
5

Nietzsche propõe um método denominado de genealógico. Constitui-se na tentativa de superação da


metafísica, através da história descontínua dos valores morais, pois ele não acredita em valores eternos. A
genealogia da moral seria uma crítica radical da moral dominante, isto é, dos valores morais dominantes na
sociedade moderna. Nietzsche parece, então, julgar a moral a partir da ética, mas, sobretudo, como se
denunciasse a moral pela destruição dos valores da ética. É a chamada “ética aristocrática”, pressupondo
uma atividade livre, criadora e alegre. Nietzsche alega ser importante a crítica à ética socrático-platônica e à
religião judaico-cristã. Ele elabora uma espécie de niilismo. Este seria no enfoque contra o ressentimento, a
má consciência e o ideal ascético. A noção de ressentimento foi introduzida por Nietzsche em 1887
(Genealogia da Moral). É o ódio impotente contra aquilo que não se pode ser ou não se pode ter. O
ressentido é aquele que não age e nem reage. A moral cristã seria o fruto do ressentimento, isto é, uma
manifestação do ódio contra os valores da classe superior aristocrática, inacessíveis aos indivíduos
inferiores. Outra manifestação é a raiva secreta dos filósofos contra a vida. Trata-se do mundo construído
dos filósofos a partir da moral e da metafísica. A moral seria o “círculo dos filósofos”. Este círculo os força
a serem caluniadores de todos os tempos. É a expressão ética da impotência. É a incapacidade de correr
riscos. Sobre a má consciência, Nietzsche a apresenta como o estado mórbido em que o homem deve ter
caído, quando sofreu a transformação mais radical a que nele se produziu, quando ele se viu acorrentado à
argola da sociedade. Seria uma espécie de interiorização que Nietzsche a chamou de alma. É a origem da
má consciência. O homem diagnostica como doente de si mesmo. Foi o rompimento com os instintos
animais e o processo de humanização, assim denominado. A ascese foi o terceiro ponto crítico observado
por Nietzsche. Seria uma espécie de treinamento para as regras da vida. As regras dos atletas começaram a
ser aplicadas, especialmente, com o auxílio dos pitagóricos, dos cínicos e dos estoicos, à vida moral. Seria
uma espécie de renúncia e mortificação. Para ele, o ideal ascético constitui o sistema moral do
ressentimento e da má consciência, que nada mais é do que a organização do tipo de moral judaico-cristã.
Este ideal é um caminho para o deserto. O triunfo está sempre na última agonia. A moral sã está regida por
um instinto da vida; a moral contranatural, ou seja, quase toda a moral até agora ensinada, venerada e
pregada, dirige-se, pelo contrário, precisamente, contra os instintos da vida.
Nietzsche se posiciona contra Kant. Para este, a moralidade significa a emancipação do homem para
a sua humanidade, pois consiste na autodeterminação da vontade. Ele não cessa de recriminar e acusar a
moralidade kantiana. O dever, a virtude, o bem em si possuem um caráter de impessoalidade e de validez
universal. Tudo é quimera que demonstra a queda e a decadência, bem como o esgotamento da vida. É
preciso lutar contra o formalismo, a manipulação gregária, a luta contra o diferente, o inassimilável, ditado
por regras absolutas e abstratas. Com Kant, com sua razão prática, dá-se uma espécie de fanatismo moral.
O dever é uma fantasia e um dogmatismo vazio. Segundo ele, Kant, para construir o seu império moral,
precisou de um mundo indemonstrável. Kant queria tornar invulnerável o “domínio moral”. Os princípios
transcendentais kantianos não são de gênese interna, mas são princípios de condicionamento. Kant, nesse
sentido, não realiza seu intento, o de realizar uma crítica imanente. Nietzsche nega o legislador kantiano,
enquanto obediente à razão. Ele rechaça o ser racional, funcionário dos valores em curso, assim como
afirma que o objetivo da crítica não é atingir os fins do homem ou da razão, mas sim o do super-homem.
Kant, para Nietzsche, integra na tradição o dualismo filosófico niilista. Para Nietzsche, o niilismo
representa o estado patológico intermediário. Significa que os valores superiores se depreciem. Que
absolutamente não existe verdade, que não há uma modalidade absoluta das coisas, nem da coisa em si.
Não é um niilismo no qual vivemos, mas de um niilismo radical. Segundo ele, se a humanidade não deseja
a sua ruína, é necessário que se encontre um conhecimento das condições da civilização, superior a todos os
alcançados até hoje. Todas as morais não passam de uma linguagem simbólica dos afetos, de acordo com
Para além do bem e do mal. O essencial é que se obedeça durante muito tempo e de um sentido único
convencionado.
O centro da preocupação de Nietzsche é o problema moral, ou melhor, o problema da própria moral,
não a crença na moral dominante, uma força terrível e enganadora que corrompeu a humanidade. Por isso,
ele adota o método histórico-genético dos conceitos do bem e do mal, visando destruir a falsidade de toda a
moral, revelando a origem espúria dos conceitos. Trata no início da etimologia e da história dos conceitos
6

do bem e do mal, ou então, entre os senhores e o vulgo. O indivíduo era considerado o acessório, é o que
causa medo, sendo independente. O habitual e o que segue o costume recebe o nome de virtuoso. A
moralidade não é outra coisa senão obediência aos costumes, sendo estes a maneira de agir e avaliar de
acordo com o tradicional. O bom é o que é útil. A diferença se dá entre a adesão e a não adesão a uma lei
tradicional. Os bons constituem uma casta e os maus agregam-se na multidão, nada mais que a ninharia. Há
entre a moral cristã e a ética aristocrática um conflito e uma vitória; vitória aparente da moral que
transformou o homem fera em homem domesticado, uma ave de rapina em cordeiro. Ele é contra o
enfraquecimento do homem e tornar o homem virtuoso, beato no seguimento do convencional. A moral
está alicerçada tem um juízo interpretativo falso. Nietzsche travou uma guerra de morte contra o homem
considerado superior, contra os incapazes do cristianismo. O cristianismo adotou o partido de tudo o que é
fraco, baixo, incapaz de ser oposição, oposição aos instintos de conservação e de vida forte.
A genealogia da moral expõe a antinomia entre uma moral nobre, aristocrática e uma moral de
ressentimento, esta sendo originada da moral judaico-cristã. Para poder dizer não a tudo o que representa o
movimento ascendente da vida sobre a terra, o crescimento, o poder, a beleza, a autoafirmação, foi
necessário que o instinto de ressentimento convertido em gênio fabricasse para si próprio outro mundo,
onde essa afirmação fosse considerada o mal, o reprovável para si. É interesse vital dessa moral é tornar a
humanidade doente e perverter as noções de bem e mal, de verdadeiro e falso. Nietzsche se empenha contra
a concepção da moral religiosa, uma disciplina moral doada pelos deuses aos homens. E para sancionar tal
tese inventou-se a ideia de culpa, sendo passível de castigo o ato que buscar infringir tal sanção. A prática
do bem, ao contrário, não pode estar condicionada ao terror de um castigo. O crescimento do mal psíquico
e moral é consequência d uma moral doentia e antinatural. Vive-se, pois, segundo Nietzsche sob o domínio
de uma moral dominadora. Logo, a genealogia da moral é a genealogia da vontade de potência. A vida
como valor supremo é superior ao bem e ao mal. A vida deve ser o critério de avaliação. Só há vontade na
vida, mas vontade é querer viver e não de acordo com a verdade, mas com a vontade de potência. Viver é
sempre querer viver mais potência (Der Wille zur Macht). Não é possível colocar a gravidade da vida no
além, na não vida. Viver para Nietzsche é repelir para longe aquilo que deseja morrer. Viver intensamente a
vida. Não é possível aceitar o desprezo contra a vida. Não é possível aceitar o ideal de vida ascético que
busca negar a própria vida. É paradoxal, segundo Nietzsche. A moral da renúncia é a moral da
degenerescência, da decadência. Ao invés de um pensamento que se opõe à vida, um pensamento que
afirme a vida. A vida seria a força ativa do pensamento e o pensamento seria o poder afirmativo da vida.
Pensar significaria descobrir, inventar novas possibilidades de vida5.
Mais especificamente acerca da obra: A genealogia da moral6. Ela foi escrita em 1887. Ela está
organizada em três dissertações: Dissertação primeira: Bem e o mal, bom e mau. Dissertação segunda: a
falta, a má consciência e coisas passadas. Dissertação terceira: o que significam os ideais ascéticos. Fala-se
frequentemente ser Nietzsche um destruidor da moral, um devastador, um monstro da maldade. O tema da
moral é uma preocupação central de Nietzsche. De fato, ele é um pensador atípico da moral. A Igreja não é
fiel a Cristo. O cristianismo e a moral tradicionais não dão liberdade e não deixam ao homem a
criatividade. Só há criação onde há liberdade. É preciso libertar-se das amarras da moral tradicional. É
preciso libertar-se das amarras da moral tradicional. É preciso viajar para o mais íntimo de si, para a
liberdade interior, superando todo tipo de desprezo e ressentimento de culpa e má consciência. Não é
possível ser “rebanho”. O homem criador é o homem livre e só quando ele é livre de fato é que ele é
criador. Só há criação onde há liberdade. O exercício da liberdade torna o homem criador, embora não seja
algo alcançável para todos. Não é possível temer a liberdade, pois quem teme a liberdade não conseguirá
ser criador. A moral de Nietzsche é a moral de homens livres, daqueles que desejam realizar o supremo
mandamento dos homens livres. O homem que renuncia a si mesmo estaria renunciando ao seu estado de
homem. E ao renunciar a si mesmo estaria renunciando ao que há de maior nele próprio.

5
Cf. BOMBASSARO, Décio Osmar. A ética aristocrática de Nietzsche. In: BOMBASSARO, D. O. (Org.). Da habilidade
humana em perscrutar o ente. Caxias do Sul: Educs, 1998, pp. 63-103.
6
NIETZSCHE, Friedrich. A genealogia da moral. 3ª ed. Petrópolis: Vozes, 2013.
7

Para Nietzsche, a moral não é imutável, nem dada historicamente. Ela é fruto de um longo processo
evolutivo. A moral não tem Deus ou o espírito como origem, mas os próprios seres humanos, suas vontades
e seus instintos. Como sabemos, para Nietzsche, a moral se dá a partir do confronto entre dois tipos de
moral, a moral dos senhores e a moral dos escravos. Nietzsche, portanto, escreve o texto de 1887 para fazer
frente ao problema moral e ao problema da moral no mundo moderno. Não é mais possível aceitar a moral
da convenção do rebanho, da falta de criatividade, do ressentimento, da má consciência e do ideal ascético
da renuncia da vida. É preciso lançar mão da tradição e criticar os valores morais em voga. A genealogia
tem como metodologia a investigação sobre as morais e permite romper com a busca da origem e do
fundamento da moral. Ela não se pergunta o que é a moral, a sua essência, mas acerca do tipo do ser
humano que se oculta por trás de tal sistema de valores. Trata-se de se perguntar sobre as condições
afetivas e psicológicas da emergência dos valores morais e interrogar o valor desses valores 7.
Dissertação primeira: “Bem e mal” e “bom e mau”. A origem de bom e de mau provêm do que se
convencionou considerar o oposição entre uma raça superior e dominadora em oposição a uma raça inferior
e baixa. Bom não tinha a ver com ação altruísta, mas com o vínculo do superior e dominador. Para
Nietzsche, a teoria tira a sua origem do conceito “bom” num lugar indivíduo. O juízo bom não emana
daqueles a quem se prodigalizou a bondade. Trata-se de uma linguagem que veio à tona como “instinto de
rebanho”. Há como que um preconceito democrático à investigação das origens. Enquanto toda a moral
aristocrática nasce de uma triunfante afirmação de si própria, a moral dos escravos opõe um ‘não’ a tudo o
que não lhe é próprio, que lhe é exterior, que não é seu; esta ‘não’ é o seu ato criador. É próprio do
ressentimento. A moral dos escravos necessitou sempre de um mundo oposto exterior. Necessitou de
estimulantes externos para entrar em ação. Sua ação é uma reação. É uma espécie de criação maniqueísta
do mal. O bom é o que segue o caminho da tradição e da subserviência. Há, portanto, os cordeiros e as aves
de rapina.
A segunda ideia acerca da origem da ideia de “bom” diz respeito à coisa em si, ou então, a
fabricação do ideal. A oficina onde se fabrica o ideal cheira para Nietzsche a mentira, embuste. O reino de
Deus, o juízo final, a fé, a esperança, a caridade e a vinda do reino, tudo vem representar e trazer presente a
fabricação ideal. E, para viver, este reino é preciso viver muito, viver além da morte, é necessário a vida
eterna para indenizar-se no reino de Deus. Os dois valores opostos, bom e mau, bem e mal, mantiveram no
decorrer dos anos luta terrível e ainda sendo válida tal percepção e constatação. E neste campo de batalha
que se chama humanidade, eleva-se Napoleão como a síntese do sub-homem e do super-homem. Todas as
ciências devem preparar ao filósofo a sua tarefa, que consiste em resolver o problema dos valores, em
determinar a hierarquia dos valores.
Dissertação segunda: A falta, a má consciência e coisas passadas. Educar e disciplinar um animal
que pode fazer promessas não é tarefa paradoxal que a natureza impôs ao homem. É uma tarefa admirável
ao homem quanto mais sabe dar valor aquela força que age em sentido contrário, o esquecimento. Fechar
de quando em quando as portas e janelas da consciência, permanecer insensível às ruidosas lutas do
submundo dos nossos órgãos, fazer silêncio e tábua rasa na nossa consciência, a fim de que aí haja lugar
para alguma coisa nova, principalmente, para as funções mais nobres para governar, para prever, para
pressentir, eis, aqui, o ofício desta faculdade ativa, desta vigilante guarda encarregada de manter a ordem
psíquica, a tranquilidade e a etiqueta.
O homem foi tomando consciência de sua responsabilidade de perfeição. Trata-se da origem da
responsabilidade. É a moral da moral. É o indivíduo soberano. É o indivíduo que consegue ser livre e
autônomo. Consciência de que há no mundo o funcionamento de promessas em que há de um lado os
credores e de outro lado há os devedores. Faz-se, pois, o contrato e deve-se procurar servir sua consecução.
O devedor, para inspirar confiança na sua promessa de pagamento, para dar uma garantia de sua seriedade,
de sua promessa, para gravar na sua própria consciência a necessidade de pagamento sob a forma do dever,
da obrigação, compromete-se, em virtude de um contrato com o credor, a indenizá-lo, em caso de
insolvência, com alguma coisa que possui e ainda tem poder, por exemplo, com seu corpo, com sua mulher,

7
Cf. 100 Obras-chave de filosofia. Petrópolis: Vozes, 2010, p. 109.
8

com a sua liberdade ou coma a sua vida. É com esse compromisso com o contrato que nascem e têm
origem os conceitos morais de culpa, consciência e dever. Essas ideias foram regadas com sangue ao longo
da história. É preciso criar todo um sistema de dor e sofrimento e do processo de envergonhar-se. E para
desterrar do mundo a dor oculta e sem testemunhas para negá-lo de boa-fé, tornou-se necessário inventar
criaturas intermédias de todas as alturas e profundezas e finalmente algo que se movimente nas trevas e são
testemunhas de todas as dores. E para o negador da palavra tem-se o remédio ideal e gradativo, o castigo.
Desenvolve-se, pois, o sentimento do executor da promessa e do dever sob a pena do sofrimento e da dor
causados pelo castigo. “Tudo tem seu preço, tudo pode ser pago”. Este foi o cânone moral mais antigo e
mais ingênuo da justiça, o começo de toda a bondade, de toda equidade, de toda boa vontade, de toda
objetividade sobre a terra. No decorrer da história veem-se as multiformes finalidades do castigo. O castigo
tem, porém, a finalidade de imprimir no culpado o sentimento da falta, que é o verdadeiro instrumento
desta reação psíquica, a saber, a má consciência, ou também, os remorsos. Além do sentimento da falta
adveio mais uma das fortes doenças, a má consciência. Então veio ao mundo a maior e a mais perigosa de
todas as doenças, o homem doente de si mesmo. Foi consequência de um divórcio violento com o passado
animal, de um salto para novas situações, para novas condições de existência, de uma declaração de guerra
contra os antigos instintos que antes constituíam a sua força de vontade e o seu temível caráter.
Diz o próprio Nietzsche que a consciência de ter uma dívida para com a divindade é como nos
ensina a história, não terminou com o declínio da forma de organização do parentesco consanguíneo da
sociedade. Assim como a humanidade herdou os conceitos de bom e mau da aristocracia (e também a sua
propensão psicológica de estabelecer hierarquias), assim o mesmo caminho da herança transmitiu a
divindade dos fundadores da raça também daquela da pressão de dívidas ainda não pagas e o desejo de sua
absolvição. O sentimento de uma dívida para com a divindade não cessou de crescer durante milhares de
anos e foi crescendo e desenvolvendo-se a ideia de Deus na terra como foi elevada para as alturas. E o
advento cristão foi o sentimento de culpa mais elevado. O triunfo do ateísmo há de libertar a humanidade
de todo o sentimento de culpa e devolver uma espécie de segunda inocência. Ateísmo e segunda inocência
são indivisíveis. Para construir um novo santuário é preciso destruir o atual santuário. Este homem do
futuro que nos há de libertar do ideal do presente e da sua natural consequência, o grande tédio, da vontade
para o nada, o niilismo, este sol do meio-dia e do grande juízo, este salvador da vontade, que há de restituir
ao mundo a sua fidelidade, a sua esperança, este anticristo e antiniilista, este vencedor do nada, é necessário
que venha um dia. Será o outro mais novo do que eu, diz Nietzsche, o outro de mais futuro, a outro mais
forte do que eu, a saber, Zaratustra, o semideus.
Dissertação terceira: o que significam os ideais ascéticos. Ideais ascéticos significam muitas coisas
para muitas pessoas. Fundamentalmente, na espiritualidade, é um repouso no nada, uma manifestação da
demência. De toda a diversidade de finalidades do ideal ascético do homem resulta o caráter essencial da
vontade humana, o seu horror ao vácuo, necessita de uma finalidade e prefere querer o nada antes que não
querer. Tratar-se-ia de uma espécie de desinteressamento e de um desinteresse ou então de uma irritação
filosófica e uma harmonia contra a sensualidade. O ideal ascético assenta-se sobremaneira sobre a pobreza,
a humildade e a castidade. Quanto mais deserto for o lugar para onde se retiram os idealistas do ascetismo
tanto melhor. É uma espécie de esquecimento de si e salienta-se uma espécie de espiritualidade superior e
renúncia radical e serena de si.
O sacerdote ascético assenta sua vida na esfera do devir (Werden). É o ideal que se liga à outra vida.
É o descentrar-se de si para centrar-se em Deus. É o processo de negar-se para ganhar-se. Seria uma espécie
de tentativa de eliminar a vontade e suprimir as paixões. É o desejo do sobrenatural. O ideal ascético tem a
sua origem no instinto profilático de uma vida que degenera e que por todos os meios procura a maneira de
se conservar. É uma luta pela existência. Não há dúvidas de que o homem é o animal mais doente, mais
mutável, mais inconsciente, é o animal mais doente, enfim. Duas pestes ameaçam o homem e precisamos
nos defender contra as mesmas: o tédio profundo do homem e a profunda compaixão pelo homem.
Segundo Nietzsche, efetivamente, cada um que sofre procura instintivamente a causa da sua dor, e procura
uma causa animada, uma causa responsável susceptível de sofrer, um ser vivo contra o qual possa, ao
menos em efígie, descarregar a sua paixão. Esta vingança é o supremo alívio, o narcótico de todos os que
9

sofrem. A meu ver, a verdadeira causa fisiológica do ressentimento e da vingança é o desejo de se aturdir
contra a dor, por meio da paixão. E o sacerdote seria o que muda a direção do ressentimento. O mal tem a
causa na própria ovelha. É preciso fazer com que cada uma se sinta culpado e pecador. A religião seria,
então, esse sentimento depressão fisiológica, sendo cada um culpado e causador de sua própria desgraça. É
contra todo esse sentimento que me proponho lutar, diz Nietzsche.
Não há dúvidas de que a característica das almas modernas e dos livros modernos não é a mentira,
mas a inocência do moralismo mentiroso. A obra-prima do sacerdote ascético para produzir na alma
humana está música extática foi a perfeição do sentimento de culpabilidade. O pecado, nome dado à má
consciência, é o acontecimento capital na história da alma doente, é o artifício mais nefasto da interpretação
religiosa. Em resumo o ideal ascético e o seu culto da sublime moral, esta sistematização engenhosa e
ousada de tudo o que tende à exaltação do sentimento, exercida, sob a máscara de um fim sagrado, está
escrita com caracteres terríveis em toda a história da humanidade. E não só sua história. Não conheço
nenhum ideal que mais haja minado a saúde e o vigor das raças, sobretudo das raças europeias; sem
exagero pode chamar-se o açoite por excelência na história sanitária do homem europeu.
Por sua vez, o ateísmo é a forma mais pura do seu tempo, ou seja, é a forma mais severa, mais
espiritualizada, mas esotérica e totalmente esotérica mais pura de seu tempo. O ateísmo absoluto é a última
fase da evolução ascética, uma das suas formas finais, uma das suas consequências lógicas íntimas, é a
imponente catástrofe de uma disciplina vinte vezes secular do instinto de verdade, que, no fim e ao cabo,
proíbe a si mesmo a mentira da fé em Deus. Tudo foi superado. A vontade da verdade, uma vez que seja
consciente de si mesma, será sem dúvida a morte da moral; é o espetáculo grandioso reservado aos dois
próximos séculos da história europeia; espetáculo terrível entre os terríveis, mas talvez fecundo de
magníficas esperanças. Esta falta de finalidade na dor é a maldição que pesou sempre sobre a humanidade.
Agora bem: o ideal ascético apresenta uma finalidade.
Os ideais ascéticos são uma espécie de ídolos que têm todos por origem a vontade de sentido.
Venerando a castidade, a humildade ou ainda a pobreza, Nietzsche mostra que os encontramos atuando em
toda parte, seja na arte, na filosofia, na religião ou na ciência, sob as formas mais diversas como a
contemplação, o em si, a redenção, a verdade. Nietzsche vê na ascese a resposta paradoxal à questão do
sentido do ser humano, uma vez que ela faz violência à vida. Em outras palavras, segundo Nietzsche, o
ideal ascético exprime sempre a mesma vontade de fugir e de diminuir a potência da vida8. Não pode
negar-se a natureza desta direção ascética, este ódio a tudo quanto era humano, quanto era animal, a tudo
quanto era material, este horror aos sentidos, à razão, à felicidade, à saúde, à beleza, à força, à mudança, ao
movimento, à morte, à vontade, ao esforço, ao desejo: tudo isto significa uma vontade para o nada, uma
hostilidade à vida, uma negação das condições fundamentais da existência, mas era ao menos uma vontade.
Repito o que a princípio disse: o homem deve preferir a vontade do nada a nenhuma da vontade.
Caxias do Sul, 31 de março de 2020.
Orientações
1) Após a leitura do texto acima, disserte sobre as principais características da crítica de Nietzsche à
moral ocidental?
2) O que é a “moral do rebanho”, segundo Nietzsche?
3) Você concorda com a crítica de Nietzsche. Por quê?
4) Postar no Webfólio até o dia 06/04/2020

8
Cf. 100 Obras-chave de filosofia. Petrópolis: Vozes, 2010, p. 109.

Você também pode gostar