Você está na página 1de 29

Running Head: ÉTICA ABORDAGEM CENTRADA NA PESSOA: ALTERIDADE 1

Ética e Abordagem Centrada na Pessoa: um diálogo com a Alteridade Radical

Emanuel Meireles Vieira

Professor da Universidade Federal do Pará (Brasil), doutorando em Psicologia pela

Universidade Federal de Minas Gerais (Brasil) e Mestre em Psicologia pela Universidade

Federal do Ceará (Brasil). ENDEREÇO: Rua Nair Pentagna Guimarães, 300, ap 301, bloco 4.

Heliópolis, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. CEP 31741545. E-mail:

[emanuel.meireles@gmail.com]. Telefone: (5591)82857876.

Francisco Pablo Huascar Aragão Pinheiro

É psicólogo da Coordenadoria de Organização e Qualidade de Vida no Trabalho da

Universidade Federal do Ceará (Brasil) e doutorando em Educação no Programa de Pós-

Graduação em Educação Brasileira na mesma instituição onde também possui Mestrado e

graduação em Psicologia. ENDEREÇO: Rua São Gonçalo do Amarante, 69. Damas,

Fortaleza, Ceará, Brasil. CEP: 60420-490. E-mail: [pablohap@icloud.com]. Telefone:

(5585)96772055.
ÉTICA ABORDAGEM CENTRADA NA PESSOA: ALTERIDADE 2

Ética e Abordagem Centrada na Pessoa: um diálogo com a Alteridade Radical


ÉTICA ABORDAGEM CENTRADA NA PESSOA: ALTERIDADE 3

Abstract

O artigo debate a relação entre ética e a Abordagem Centrada na Pessoa (ACP).

Discutem-se ideias de autores que colocaram questões à perspectiva fundada por Carl

Rogers, pautando-se pela Ética da Alteridade Radical de Emmanuel Lévinas. Admite-

se que os questionamentos sobre a ética, entendida como morada do humano,

antecedem as indagações epistemológicas. Assume-se que a ACP se aproxima de

posicionamentos românticos e liberais, mas ainda assim, são procuradas

possibilidades de abertura à diferença nesta perspectiva. A partir de Lévinas

considera-se a Alteridade como diferença radical que funda o sujeito e com a qual se

estabelece uma relação de assimetria intransponível. À luz da proposta levisaniana são

discutidos noções como “pessoa”, além das condições facilitadoras do processo

terapêutico. Conclui-se que os conceitos da ACP não são totalmente avessos a

Alteridade e que Rogers se deparou com ela em sua prática, apesar de não tê-la

reconhecido em suas formulações teóricas.

Keywords: Abordagem Centrada na Pessoa, Ética, Alteridade Radical.


ÉTICA ABORDAGEM CENTRADA NA PESSOA: ALTERIDADE 4

Ética e Abordagem Centrada na Pessoa: um diálogo com a Alteridade Radical

O tema da ética, frequentemente, passa ao largo da formação do psicólogo. Por vezes, o

aprendizado técnico, obviamente necessário à inserção profissional, se sobrepõe a discussões

basilares da disciplina. É raro ver nos psicólogos esforço para debater acerca de uma ética

constituinte de suas práticas. Quando muito, fala-se do código deôntico que regulamenta a

profissão.

Este trabalho tem por intuito refletir a respeito da relação entre ética e a Abordagem

Centrada na Pessoa (ACP). Para tanto, pretende-se discutir as ideias de alguns autores que já

se dispuseram a colocar questões à psicologia e, observando nosso interesse especifico, à

perspectiva rogeriana, pautando-se pela Ética da Alteridade Radical de Emmanuel Lévinas.

As ideias deste filósofo franco-lituano mostram que lidar com o Outro é acolher o

radicalmente diferente que, no imperativo de sua exterioridade e em sua anterioridade à

própria ontologia, é o constituinte da subjetividade. Alguns dos posicionamentos aqui fazem

duras ressalvas à teorização e às práticas do campo Psi e, em especial, à ACP. Por outra via,

há também aqueles que reconhecem limites no pensamento de Rogers, mas que procuram

descobrir potencialidades e criar caminhos e posicionamentos alternativos a partir de um

diálogo extemporâneo entre Rogers e Lévinas.

Inicialmente, faremos uso da Filosofia da Ciência, fundamentos no pensamento de Luiz

Cláudio Figueiredo (1992, 1996b), para quem a relação entre psicologia e epistemologia é

muito mais tensa do que naturalmente se poderia supor. Podemos afirmar, inclusive, que as

condições de possibilidade para o surgimento da Psicologia só se deram exatamente pelo

fracasso do projeto epistêmico moderno.


ÉTICA ABORDAGEM CENTRADA NA PESSOA: ALTERIDADE 5

Segundo Figueiredo (1996b), é possível identificar, na cultura ocidental, desde o século

XVII até meados do século passado, profundo engajamento para se determinar quais formas

de conhecimento seriam válidas e quais os critérios para identificar um saber capaz de

produzir afirmações verdadeiras. Isto acarretou numa intensa produção em torno de questões

epistemológicas e metodológicas, influenciadas sobremaneira pelo racionalismo cartesiano e

pelo empirismo de Francis Bacon.

De modo geral, tais perspectivas filosóficas pressupõem um sujeito capaz de conhecer o

mundo através da racionalidade e, por meio dela, utilizar formas sistemáticas para

compreender e explicar a realidade. De um lado, o sujeito que conhece, de outro o objeto a

ser conhecido e apreendido pelo método instrumentalizado pela razão.

Assim, para se legitimar como forma adequada de conhecimento do mundo, são

imprescindíveis à razão as ideias de liberdade e de indivíduo. Tal afirmação torna-se mais

robusta quando se considera que, no pensamento cristão, hegemônico na Europa do século

XVI, a natureza deveria ser contemplada e não desvelada pelo olhar humano. Nesse sentido,

o homem era tomado como mais um ente dentre as criações divinas, não cabendo a ele uma

individualidade (ou mesmo singularidade) dentro do contexto social. Para se chegar às bases

seguras de um conhecimento científico, em que o sujeito conhecedor se aparta dos entes a

serem conhecidos, se fazia necessário conceber uma subjetividade privatizada, da qual fosse

possível extirpar qualquer fenômeno que turvasse sua visão acerca de uma realidade a ser

representada.

Ainda de acordo com Figueiredo (1996b), o indivíduo autocentrado postulado pela

Modernidade passou a ser questionado a partir da segunda metade do século XIX. Até então,

o 'psicológico' não era um objeto, ou, ao menos, não era primordialmente um objeto
ÉTICA ABORDAGEM CENTRADA NA PESSOA: ALTERIDADE 6

de investigação. Para tornar-se assim era preciso que, ao lado do fortalecimento da

privacidade, esta entrasse em crise e se convertesse em objeto de suspeitas e cuidados

especiais. (Figueiredo, 1992, p. 129)

Se ao mundo natural este indivíduo se lançava com ideias de previsão e controle que

guiam as ciências duras, sua humanidade e as intempéries que daí advêm – como a finitude –

permaneciam um grande mistério para si.

Criou-se, então, uma fenda nas possibilidades de um sujeito epistêmico pleno, um vazio

não previsto nas promessas modernas de progresso e conhecimento pleno de si e do mundo. É

esta fenda que cria condições para questionamentos instituídos pela Modernidade, a partir do

que Figueiredo (1992) chama de território da ignorância, sobre o qual trataremos adiante. Isto

implica em dizer que o sujeito psicológico encontra possibilidades de existir quando o sujeito

epistêmico falha e seus limites são apontados.

Figueiredo (1996b) prossegue afirmando que “o campo próprio das psicologias é o que, do

ponto de vista epistemológico, teria o estatuto de dejeto do expurgo operado pelo método no

processo de constituição do sujeito purificado” (p. 23). Ou seja, o que atrapalha o

funcionamento do método e macula a imagem do indivíduo racional, quase onipotente, é

rotulado de “psicológico”.

Para Figueiredo, o território da ignorância é constituído por polos axiológicos que ora se

afastam, ora se aproximam entre si, formando um triângulo cujos vértices mantêm uma

relação de tensão. As Psicologias podem ser identificadas a partir de maior ou menor

proximidade com cada um destes vértices, sem que nenhuma delas possa ser fixada num

único lado do triângulo apenas. Os pontos de encontro entre as linhas que formam esse

triângulo são o liberal, o romântico e o disciplinar. No liberal, temos “o reinado do 'eu'


ÉTICA ABORDAGEM CENTRADA NA PESSOA: ALTERIDADE 7

soberano com identidades nitidamente delimitadas, autocontidas, autodominadas e

autoconhecidas” (Figueiredo, 1992, p. 150). Destarte, é caro ao liberalismo um pressuposto

de autonomia, de um eu capaz de autocontrole e autoconhecimento.

Já no romantismo, valorizam-se a “a potência dos impulsos e forças da natureza, em muito

superior à da consciência ou do homem como um todo. A valorização da natureza opõe-se,

como algo mais original e verdadeiro, à civilização com suas regras, seus métodos e sua

etiqueta” (Figueiredo & Santi, pp. 36-37). O romantismo, portanto, dá relevo à intuitividade,

a uma sabedoria presente na natureza e que antecede à razão.

Ao polo da disciplina,

pertencem as novas tecnologias de poder, tanto as que se exercem sobre identidades

reconhecíveis e manipuláveis segundo o princípio da razão calculadora, funcional e

administrativa, como as que se abatem sobre identidades debilmente estruturadas e

passíveis de manipulação mediante a evocação calculada de forças suprapessoais

encarnadas em figuras carismáticas ou projetadas em lendas e mitos saudosistas ou

revolucionários. (Figueiredo, 1992, pp. 150-151)

De acordo com essa citação, no polo disciplinar, a subjetividade vira um objeto a ser

manipulado a partir de objetivos previamente delimitados. Para tanto, faz-se uso da ciência e

sua capacidade de cálculos probabilísticos ou de uma figura de referência a ser seguida pelo

coletivo.

Nas aproximações ou distanciamentos de cada um desses polos, cada teoria psicológica

pode ser compreendida como “... um dispositivo apto a propiciar, configurar, formar e

constituir tanto os homens como seus mundos … são, em outras palavras, instalações do
ÉTICA ABORDAGEM CENTRADA NA PESSOA: ALTERIDADE 8

humano” (Figueiredo, 1996b, p. 26). Cada uma dessas instalações do humano seria, para

Figueiredo, um ethos, ou seja, seriam uma morada e um destino para o homem na lida com

aquilo que o ideário moderno rechaça de sua constituição.

Para Figueiredo, portanto, antes de se discutir as epistemologias das psicologias ou jugá-

las por um modelo de conhecimento a ser seguido, é fundamental compreender as moradas

que estas constituem para o humano. Como dito acima, o fenômeno psicológico só pode ser

concebido naquilo em que a epistemologia falha, ou seja, no que lhe escapa ao domínio.

Coelho Júnior (2007) chama atenção para uma atitude encontrada entre estudantes de

Psicologia, que privilegiam o aprendizado de técnicas psicológicas em detrimento da ética.

Para o autor, a apologia à técnica, de modo rígido e formatado, sem uma reflexão sobre

aquilo que escapa a este domínio, impede o contato com o que há de estranho, de alteridade.

É na relação com possíveis estranhamentos que Coelho Júnior (2007) distingue a ética da

moral, pois não a situa no campo de recomendações sobre modos de agir ou proceder. O

sentido que ele atribui a essa palavra diz respeito à lida com a diferença, em contraposição

àquilo que seja previsível. Assim, tanto para Figueiredo quanto para Coelho Júnior, o solo

que forma o território a partir do qual a Psicologia se constituiu pode engendrar formas

diversas de lidar com a alteridade.

Conforme exposto até aqui, antes de se pensar nos fundamentos epistemológicos das

psicologias, cabe perguntar acerca das moradas que constituem para o humano. Em especial,

naquilo em que o saber moderno se reconhece ignorante, ou, como diz Figueiredo (1992), no

território da ignorância.

Possíveis moradas para a ACP em meio ao território da ignorância


ÉTICA ABORDAGEM CENTRADA NA PESSOA: ALTERIDADE 9

Precisamos situar o debate ético no contexto da obra rogeriana. Diante na premente

necessidade de constituir a morada para o humano dentro das psicologias, que ethos pode ser

reconhecido na produção de Rogers?

Na obra rogeriana, não há uma discussão explícita a respeito da ética. Há, porém,

apontamentos que levam em conta os valores implicados com a perspectiva centrada na

pessoa; sobretudo, no que tange à distinção entre técnicas e atitudes. Outro ponto em que a

questão ética pode ser inferida está no debate entre humanismo e behaviorismo presente na

psicologia estadunidense dos anos 1950.

Ao definir as atitudes facilitadoras em torno das quais se estruturou todo o modelo de

relação da ACP, Rogers deixa claro que não se tratam apenas de técnicas a serem empregadas

fora de um contexto de valores. Denota-se então que, para este enfoque teórico, os valores

antecedem as técnicas. Segundo Kinget (1977a), estes valores dizem respeito a uma noção

positiva e liberal de homem e das relações humanas – noções muito próximas, aliás, do que

Figueiredo (1996b) define como os polos romântico e liberal na constituição do território da

ignorância. A noção positiva aparece na irrestrita confiança que o terapeuta deposita sobre o

cliente e sobre a relação terapêutica. Já a concepção liberal é notada na ideia de um homem

livre e capaz de fazer escolhas sem qualquer determinação do ambiente, no que pesem as

contingências inerentes a este.

Amatuzzi (2010) analisa a Abordagem Centrada na Pessoa para além de uma técnica. Para

ele, Rogers não definiu apenas novas formas de fazer, mas de ser com o outro, baseadas nos

seguintes valores: “da pessoa, o da comunhão inter-humana e o da honestidade em relação às

diferenças” (p. 24). Assim, Amatuzzi leva a discussão sobre as atitudes do terapeuta para o

âmbito da ética, de um modo de ser que orienta as relações com o outro.

Quando se define a teoria de Rogers a partir da ideia de atitudes, portanto, coloca-se que
ÉTICA ABORDAGEM CENTRADA NA PESSOA: ALTERIDADE 10

sem que o terapeuta tome para si os valores que fundamentam suas técnicas, elas não têm

qualquer efetividade. É neste sentido que Rogers (1966) afirma: “I suspect that each of us

would be equally effective if we held quite different theories, providing we believe them” (p.

9).

Outro ponto onde podemos situar a questão ética em Rogers reside no debate que este

autor travou com Skinner. Para Rogers (1974), sua divergência com Skinner é filosófica. A

definição rogeriana, porém, é vaga e não explicita muito claramente o aspecto ético

envolvido neste debate. No simpósio que expõe as divergências entre ambos, fica bastante

claro, para nós, que se encontra em jogo uma questão de compromissos quanto ao ethos de

seus respectivos saberes.

Para Skinner (Rogers & Skinner, 1956), os “concepts of choice, responsibility, justice, and

so on, provide a most inadequate analysis of efficient reinforcing and punishing

contingencies because they carry a heavy semantic cargo of a quite different sort, which

obscures any attempt to clarify controlling practices or to improve techniques” (p. 1058).

Skinner (1953/2005) afirma a necessidade de superação da concepção de um homem livre,

em prol de uma análise científica das contingências que produzem seu comportamento.

Ao invés de mente, alma, ou qualquer outro conceito que remeta a uma entidade interna

que comande a ação humano, o behaviorismo radical elege como objeto de estudo o

comportamento, compreendido como interação do organismo com o ambiente. É com esta

função que Skinner afirma: “why do we not ask why it is the car of our choice and resent the

forces which made it so?” (Rogers & Skinner, 1956, p.1058). O fundador do behaviorismo

radical afirma a constituição do social a partir de mecanismos de controle, seja através do

governo, das instituições educacionais, ou dos mecanismos de controle pessoal. Isto torna a

liberdade pessoal um mito a ser derrubado pela ciência do comportamento em favor da


ÉTICA ABORDAGEM CENTRADA NA PESSOA: ALTERIDADE 11

implementação de métodos científicos rigorosos que visem à superação de um estado pré-

científico de entendimento da ação humana.

Assumindo que, de fato, o controle é inerente ao comportamento, o cientista, segundo

Skinner (1953/2005), pode colaborar para o planejamento dos governos, visando ao bem-

estar dos governados. De acordo com o criador do behaviorismo radical, “if a science of

behavior can discover those conditions of life which make for the ultimate strength of men, it

may provide a set of 'moral values' which, because they are independent of the history and

culture of any one group, may be generally accepted” (Skinner, 1953/2005, p. 445).

Como se pode perceber, Skinner reconhece na ciência condições de discriminar o bem,

para além de aspectos históricos e culturais. O valor que guiaria o controle exercido por esta

ciência seria o fortalecimento da espécie a longo prazo, de modo que “control is ethical if it is

exerted for the sake of the controlled.” (Skinner, 1988, p. 175). O próprio Skinner

(1953/2005) reconhece, contudo, que não há garantias a respeito dos fins para os quais seria

desenvolvido este saber.

Rogers, por sua vez, afirma o homem como essencialmente livre e distinto dos outros

seres exatamente por sua capacidade de escolha e autodeterminação. Para ele, o objetivo de

alguém que procura psicoterapia é tornar-se aquilo que é (Rogers, 1961).

Para o criador da ACP, a ciência, como uma invenção humana, é feita por pessoas e,

portanto, implica sempre em escolha de valores (Vieira, 2009). É baseado nisto que Rogers

(Rogers & Skinner, 1956) afirma: “the first step in thinking about the control of human

behavior is the choiee of goals, whether specific or general. It is necessary to come to terms

in some way with the issue, 'For what purpose?'” (p. 1061).

Por este motivo, Rogers não compartilha do mesmo otimismo de Skinner e lança questões

de valor quanto ao controle do comportamento: “Who will be controlled? Who will exercise
ÉTICA ABORDAGEM CENTRADA NA PESSOA: ALTERIDADE 12

control? What type of control will be exercised?. Most important of all, toward what end or

what purpose, or in the pursuit of what value, will control be exercised?” (Rogers & Skinner,

1956, p. 1060). É neste ponto, fundamentalmente, que reside a distinção filosófica a que se

refere Rogers (1974) quando trata da comparação de seu pensamento ao do analista do

comportamento.

Rogers (1961) não desconsidera que, de fato, a ciência possa contribuir para o bem da

humanidade. Contudo, ainda de acordo com ele, “to hope that the power which is being made

available by the behavioral sciences will be exercised by the scientists, or by a benevolent

group, seems to me a hope little supported by either recent or distant history.” (Rogers &

Skinner, 1956, p. 1061). Assim, para Rogers, a ciência não conteria o bem em seus propósitos

a priori.

Skinner (1953/2005), por sua vez, reafirma seu inabalável otimismo na ciência quando

diz:

"Who should control?" is a spurious question—at least until we have specified the

consequences with respect to which it may be answered. If we look to the long-term

effect upon the group the question becomes, "Who should control if the culture is to

survive?". (p. 445-446)

No que pese toda a ingenuidade do humanismo rogeriano (Moreira, 2007), a crítica ética

que ele levanta a Skinner aponta para um fato interessante: a ciência não existe como uma

entidade descolada de um processo histórico e de interesses. Se a ética, para Skinner, se

define por um controle exercido para o bem de quem é controlado, para Rogers a definição a

respeito de o que é o bem neste contexto é de fundamental relevância pelo fato de haver
ÉTICA ABORDAGEM CENTRADA NA PESSOA: ALTERIDADE 13

sempre escolhas feitas pelos cientistas.

O ethos da teoria de Rogers, portanto, é o de um humanismo próximo aos polos romântico

e liberal definidos por Figueiredo (1996b), com todos os conflitos e aproximações que tal

aliança pode acarretar. Há momentos, inclusive, em que podemos identificar uma postura

disciplinar em Rogers, quando este estabelece, por exemplo, o ideal de uma pessoa em pleno

funcionamento (Rogers, 1969) como algo a ser atingido ao final do processo terapêutico.

Além disto, num período inicial de sua obra, Rogers (1951) manifesta profunda crença na

consecução de uma espécie de equação da relação terapêutica, num modelo se-então muito

caro às ciências duras.

O humanismo de Rogers, pelo próprio pressuposto de autonomia a que se refere Amatuzzi

(2010), tem profundo compromisso com a imagem de um homem autocentrado, consciente,

capaz de se determinar a partir de suas escolhas – tal como é postulado pela Modernidade. A

instalação do humano nele identificada padece, por vezes, de elementos que reconheçam

aspectos que fujam a esta imagem e descentrem este sujeito autodeterminado.

Uma questão relevante é: que espaço há para o dissonante, o absolutamente estranho? Que

compromissos esta forma de acolhimento assume? Diante disto, questionamo-nos a respeito

de que possibilidades de abertura à diferença podem-se visualizar na Abordagem Centrada na

Pessoa a partir do diálogo com a ética da alteridade radical, de Emmanuel Lévinas.

A Ética de Lévinas

Lévinas é tratado como um pensador denso e nada convencional. Tratado muitas vezes

como hermético, este judeu franco-lituano, de tradição hassídica, afirma a anterioridade da


ÉTICA ABORDAGEM CENTRADA NA PESSOA: ALTERIDADE 14

ética em relação à ontologia. Conforme Freire (2002), em vez de pensar a questão do ser,

Lévinas coloca o ser em questão.

De acordo com Pivatto (2000) e Poirié (2007), mesmo que não possamos reduzir Lévinas

apenas a um pensador judeu, a ocorrência da segunda guerra mundial deixou marcas

profundas na constituição de seu pensamento. Lévinas foi prisioneiro de guerra, viveu na pele

os horrores daí decorrentes e, a partir disto, fez parte de uma série de autores que

questionaram tudo o que criou condições para que aquele conflito ocorresse, ou seja, os

fundamentos da Modernidade.

A Modernidade havia se estabelecido, antes das duas grandes guerras do século XX,

tornando a razão e a noção de indivíduo livre garantias para que o homem não mais se

submetesse a tiranias, tais como as que ocorreram durante a Idade Média na Europa

(Figueiredo, 1992). Segundo Poirié (2007), porém, o início do século passado é marcado por

profundos questionamentos à Modernidade e suas promessas, em especial à noção de um

sujeito livre, pleno e conhecedor de si. É no lastro destes questionamentos que se situa o

pensamento levinasiano. Uma filosofia que, com todo o rigor e prudência, afirma a

radicalidade da ética na constituição do humano. Para Lévinas, afirmar a fundação do

humano a partir da ontologia poderia significar a violência da definição, do fechamento do

sentido deste ser, pois a preocupação primeira da filosofia seria com aquilo que é.

Lévinas é considerado discípulo de Heidegger, além de profundamente influenciado pela

Fenomenologia husserliana (Martins Filho, 2010). O plano de imanência da Fenomenologia,

a partir da ideia de consciência intencional, que captura os objetos do mundo por sua

atribuição de sentido a eles, soa a Lévinas (2007) como violência.

Nesse sentido, o Outro, para Lévinas, não se dá como objeto de conhecimento, não se

oferece à posse da consciência e, portanto, não pode ser desvelado (Vieira e Freire, 2006).
ÉTICA ABORDAGEM CENTRADA NA PESSOA: ALTERIDADE 15

Capturá-lo pelo conhecimento significaria matar sua diferença. Toda a filosofia levinasiana se

estrutura a partir da afirmação da impossibilidade de assimilação do Outro pelo Mesmo, ou

seja, de algo que sempre escapa à totalização operada pelo saber.

Com relação a Heidegger, é possível identificar em Lévinas severa crítica a seu

pensamento por este negligenciar a ética e enfatizar o Ser. Para Lévinas, trata-se de sair da

interioridade para ir em direção ao Outro, diante de uma intransferível responsabilidade.

No que pesem as críticas levinasianas a Husserl e a Heidegger, não se deve compreender

que Lévinas rejeita a noção de Ser, pois apenas a fundamenta sobre outras bases. Em

“Totalidade e Infinito”, Lévinas (1961) aborda o nascimento do Sujeito a partir da tensão

entre interioridade e exterioridade. Se a modernidade institui um sujeito autorreferente e

centrado em si, Lévinas (1961) afirma que esta interioridade só é possível a partir da relação

com o absolutamente Outro. Daí porque seu pensamento pode ser nomeado como ética da

alteridade radical, pois é a relação com a alteridade que nos funda como sujeitos. Vale dizer

que Lévinas não trata simplesmente do Outro como alguém diferente de mim, mas como

outrem, ou seja, todo e qualquer Outro, o absoluta e radicalmente diferente.

O Eu, então, por se fundar nesta relação com a diferença, é sujeitado a ela, e não senhor de

si, uma interioridade perturbada e tomada de assalto por uma exterioridade sobre a qual não

tem domínio. Para Poirié (2007) “o Sujeito – ou a subjetividade – nasce do há (il y a), aí se

[lhe] opondo e aí se [lhe] recusando” (p. 16). O il y a postulado por Lévinas é um ser

impessoal, “silêncio murmurante, que se escuta como a presença surda e invisível de um ser

indefinido, de um ser que exclui a humanidade, que desafia a existência” (Poirié, 2007, p.

17). É a relação de assujeitamento a este ser impessoal que cria condições para o Sujeito em

Lévinas, que é responsável pelo Outro numa relação de passividade (Lévinas, 1982).
ÉTICA ABORDAGEM CENTRADA NA PESSOA: ALTERIDADE 16

A responsabilidade pelo Outro, para Lévinas, não é uma escolha. Como bem afirma Freire

(2000), é uma incondição, ou seja, não se pode ser de outra forma, de modo que é esta relação

que caracteriza o humano. A morada do Sujeito é, então, cedida, com portas e janelas abertas

à visitação do estrangeiro, que o chama à responsabilidade de uma altura infinita.

Chegamos assim a outra característica marcante no pensamento levinasiano: a

verticalidade intransponível da relação entre o Eu e o Outro. Diferentemente, por exemplo, de

Buber (1923/1970), Lévinas não descreve a relação com a diferença como horizontal e

mútua. Embora reconheça imenso valor na obra buberiana e na proposição ética nela contida,

Lévinas (1976/1987) identifica nela o perigo da posse que a condição de igualdade

pressuposta numa mútua relação pode sugerir. Não há, então, síntese nesta relação tão

necessariamente desigual, já que a única resposta possível ao Outro é o “eis-me aqui”, pois se

é para e por Ele (Lévinas, 1982/1988).

A alteridade, para Lévinas, é sempre algo que escapa, inatingível em sua totalidade e que,

portanto, nos remete à ideia de Infinito revelada pelo Rosto, que não é fenomênico, pois, caso

contrário, poderia facilmente ser capturado por uma imagem. Na ética da alteridade radical, é

através da linguagem, e não da imagem, que me chega o Rosto do Outro (Freire, 2000; Vieira

e Freire, 2006). De acordo com Bauman (1995/2011), “despertar para o Rosto … é um

choque tão avassalador que torna ridiculamente insignificantes todas aquelas considerações

racionais que repousam na soberba do mundo das convenções e das obrigações contratuais”

(pp. 87-88). É um Rosto, portanto, que exige a resposta a ser dada pelo Eu ao Outro.

Por sua caracterização não-fenomênica, o Rosto não pode ser destruído, já que mesmo que

a morte física do Outro possa ser efetivada, sou vulnerável e passivo diante do terror de sua

irredutível diferença. O Outro, portanto, diferentemente do Dasein heideggeriano, é um ser-

para-além-da-sua-morte (Freire, 2002).


ÉTICA ABORDAGEM CENTRADA NA PESSOA: ALTERIDADE 17

A linguagem a partir da qual me chega o Rosto é um Dizer, e não um Dito (Lévinas,

1961), ou seja, a linguagem que é um “dirigir-se a outrem … A linguagem não é nem uma

experiência nem um meio de conhecimento de outrem, mas o local de Encontro com o Outro,

com o estrangeiro e desconhecido do Outro” (Poirié, 2007, p. 22). O Dito é o discurso que

não se abre à transformação, enquanto o dizer é inaugurador de novas possibilidades, abertura

e exposição à resposta exigida pelo Outro (Lévinas, 1982/1988).

O Dizer vindo do Outro abre o sujeito a uma dimensão de Desejo, neste contexto tomado a

partir da ideia de Infinito. Assim, Desejo em Lévinas não se caracteriza pela falta, mas por

excesso. Ou seja, mais do que remeter o sujeito ao que falta em si, a dimensão desejante da

constituição ética da subjetividade o remete àquilo que lhe excede e que é anterior a si. Fome

que se alimenta de fome (Freire, 2000). Conforme Freire (2002), o desejo pelo Outro é

sempre por algo que “... me escapa e me persegue” (p. 57). Relação, portanto, diacrônica, o

que torna impossível o encontro com uma pretensa completude.

Por isto a insistência de Lévinas na ideia de uma “má consciência de” (Freire, 2000; 2001;

2002; Lévinas, 2007). A tradição ontológica da Filosofia, ignora e por vezes é alérgica à

desmesura que acompanha a ideia de Desejo. Para o autor franco-lituano, “consciência

implica presença, posição-diante-de-si, isto é, a 'mundaneidade', o fato-de-ser-dado.

Exposição à captura, à tomada, à com-preensão, à apropriação.” (Lévinas, 2007, pp. 140-

141). Como se pode perceber, consciência para Lévinas necessariamente remete à apreensão

e, portanto, à tentativa de captura quanto à diferença do Outro.

Lévinas questiona-se a respeito daquilo que escapa à apreensão da consciência e,

deste modo, afirma a possibilidade de se pensar a diferença, de vê-la não a partir do que lhe

falta, ou do que ainda não é, mas considerando sua alteridade como tal. Assim, afirma a

positividade de uma consciência des-interessada (Freire, 2000), cabendo-lhe, então,


ÉTICA ABORDAGEM CENTRADA NA PESSOA: ALTERIDADE 18

desconstruir o humano, virá-lo pelo avesso. Sua ética rompe com uma tradição que reconhece

o humano a partir de uma consciência que captura e matematiza o mundo.

Lugares para o estranhamento na Abordagem Centrada na Pessoa

Apresentados os princípios gerais da Ética da Alteridade Radical, podemos agora retomar

os questionamentos feitos anteriormente neste texto a respeito de possíveis moradas para o

disruptivo na Abordagem Centrada na Pessoa. Para tanto, explanaremos acerca de diversas

produções que tomam a ética levinasiana como mote possível para a definição de um novo

ethos para o humano na abordagem em questão.

Um esclarecimento cabe, contudo, antes de prosseguirmos. Pode-se argumentar, como

visto anteriormente, que Rogers tem muito bem definida uma filiação com os polos

romântico e liberal que fundam o campo psicológico. Todavia, a partir de Figueiredo (1992),

é possível afirmarmos que nenhuma teoria psicológica se encontra presa a algum destes

polos, de modo a conter na totalidade de seus elementos características pertinentes somente a

este. Assim, as reflexões que se seguem apontam para outras possibilidades de relação com a

alteridade no discurso rogeriano, pois este, como todos os discursos psis e que habitam o

“território da ignorância”, pode apresentar facetas diversas – inclusive a de abrigo ao

estrangeiro que ora discutimos.

Gantt (2000), por exemplo, propõe, a partir da ética levinasiana, um modelo de

psicoterapia no qual o terapeuta responda à obrigação ética de “sofrer com” o cliente as

vicissitudes de suas experiências. Tal autor afirma que as atuais formas de psicoterapia foram

fundadas tomando como referência o modelo médico, de maneira que as doenças mentais

foram caracterizadas de forma similar a qualquer afecção orgânica. Por esta via, o sofrimento
ÉTICA ABORDAGEM CENTRADA NA PESSOA: ALTERIDADE 19

humano não passa de mais um sintoma dentro de um quadro de referência em que o outro

perde sua singularidade.

Freire (2000), por seu turno é crítico em quanto à relação entre alteridade e ACP. Dentre

outros aspectos, suas críticas se direcionam à simetria que Rogers admite na relação com o

outro. Tal postulado não seria condizente com a Ética de Lévinas para a qual o Outro, de uma

altura intransponível, reclama uma resposta. A possibilidade de compreender empaticamente

o outro, de adentrar em seu universo de significações e tentar comunicar os entendimentos

obtidos, também é questionada por basear-se em uma noção de interioridade que deve ser

superada. Para Lévinas, como já dito, importaria a constituição exterior de si pelo Outro. Por

outro lado, coloca-se a própria impossibilidade de encontro, o que inviabilizaria a empatia. O

Outro só deixa vestígios de sua passagem, pois ao chegar, encontra-se somente um lugar

vazio.

Partindo dos questionamentos de Freire (2000), Vieira e Freire (2006) avançam na

tentativa de repensar a ACP, de modo que esta abordagem psicológica abra espaço em seus

conceitos para o estranhamento e à diferença radical que reclama o absolutamente Outro, mas

esclarecem que não pretendem produzir uma abordagem com fundamento levinasiano.

Ao discutir as condições facilitadoras do processo terapêutico (consideração positiva

incondicional, autenticidade e compreensão empática), os autores apontam algumas

possibilidades de abertura à alteridade que podem ser exploradas. Com este intuito, propõem

que, para o acolhimento da diferença radical defendida por Lévinas, a ex-centricidade, no

sentido de descentramento, deve se fazer presente nas posturas adotadas pelo terapeuta.

Ainda segundo Vieira e Freire (2006), a consideração positiva incondicional pode ser uma

porta para a alteridade ao permitir que terapeuta e cliente se surpreendam com o imprevisível

trazido por ambos, de maneira que aquilo que há de inusitado na condição humana seja
ÉTICA ABORDAGEM CENTRADA NA PESSOA: ALTERIDADE 20

escutado e acolhido sem a predisposição de rebater essa diferença em torno de

prejulgamentos. Por outro via, essa forma de considerar o discurso e a experiência também é

definida como uma “amor não possessivo”, o que implicaria em não coisificar a pessoa

fazendo uso de categorias prévias, como as psicopatológicas.

No que se refere à autenticidade, Vieira e Freire (2006) recorrem a noção de “fala

autêntica” (Amatuzzi, 1989) para mostrar que há um movimento incontido, e exterior ao

sujeito, de expressão de um fluxo que desencadeia novas significações diante da experiência

cristalizada. Não haveria aí o acesso a uma essencialidade da pessoa, mas a revelação de uma

atitude criativa que não se reduz a uma apreensão cognitiva de uma totalidade de si.

Para Vieira e Freire (2006), a empatia, pensada em termos de ex-centricidade, pode ser

vista como uma tentativa de dar ouvidos ao estranho que fala diante do terapeuta, diferença

que irrompe, avessa a qualquer controle. Colocar-se no lugar do outro, não implicaria,

portanto, de aprisioná-lo em um universo de significação do si mesmo e impor esse

entendimento àquele que reclama seu espaço previamente usurpado.

Schmid (2008), por sua vez, toma a ideia de pessoa, em Rogers, para discutir a

psicoterapia como uma disciplina e profissão ética. Segundo este autor, é possível definirmos

pessoa a partir de uma perspectiva individualista, equivalendo pessoa a indivíduo, como fez

Rogers, ou de um ponto de vista relacional, no qual “uma pessoa é quem chegou a ser ele ou

ela mesma precisamente através dos outros, o que implica interdependência, solidariedade e

responsabilidade” (Schmid, 2008, p. 3).

De acordo Schmid (2008), a presença do terapeuta como pessoa nas duas dimensões

citadas consiste em se afirmar com o Outro e ao mesmo tempo se pôr contra ele, de modo que

haja um claro reconhecimento e afirmação das diferenças presentes na relação. A ideia é que

se chegue a um “... mútuo reconhecimento como pessoas ao invés de conhecimento acerca do


ÉTICA ABORDAGEM CENTRADA NA PESSOA: ALTERIDADE 21

outro” (p. 7), o que significa uma abertura à diferença do Outro, que se revela como um

mistério para além do que podemos perceber através de nossas teorias e técnicas.

Schmid, inspirado por Lévinas, compara a relação com a diferença do Outro à do

terapeuta com seu cliente. Segundo o autor, a relação com a alteridade é “um pedido e uma

provocação e a relação com ele é em princípio assimétrica. A pessoa que necessita representa

uma demanda” (p. 7). Isto quer dizer que o terapeuta se vê diante de um imperativo ético de

responder ao Outro (responsabilidade, ou habilidade de dar respostas) e reconhecê-lo como

uma pessoa.

Ainda no esteio de suas reflexões sobre uma relação pautada na pessoalidade, Schmid

afirma que a compreensão empática significaria um deixar-se tocar pela realidade do Outro e

tocá-la ao mesmo tempo. Mesmo reconhecendo a impossibilidade de total compreensão da

diferença do Outro, Schmid (2008) afirma que “ser empático significa construir uma ponte

em direção a uma terra desconhecida” (p. 8), diferentemente daquilo postulado por Freire

(2000). Esta abertura ao inesperado constituiria um fundamento epistemológico para a terapia

centrada na pessoa, pois implica numa postura em relação ao Outro que privilegia o

reconhecimento de sua diferença e não o conhecimento de sua totalidade. Para Schmid

(2008), o conhecimento se pauta pelo juízo, enquanto que o reconhecimento o faz pela

confiança, expressa na psicoterapia como consideração positiva incondicional, ou ainda como

amor ou Ágape, uma espécie de amor não-possessivo, que não exige do Outro, mas apenas se

coloca a serviço dele (Rogers, 1966).

Este tipo de amor presente na consideração positiva incondicional, ainda segundo Schmid

(2008), implicaria numa inversão na ordem habitual da comunicação: do Eu-Tu, passar-se-ia

a uma relação Tu-Eu, de modo que a referência e primazia se encontraria no Tu. Para Schmid,
ÉTICA ABORDAGEM CENTRADA NA PESSOA: ALTERIDADE 22

esta inversão seria o significado de responder autenticamente e se constituiria como “o”

desafio ético da relação.

Ainda em uma perspectiva levinasiana, Vieira e Pinheiro (2013) tentam, a partir da

releitura de um caso clínico rogeriano, vislumbrar o processo terapêutico como um espaço de

acolhimento da Alteridade. Para esses autores, a mudança terapêutica não visaria a uma

maior integração da experiência ao si-mesmo. O processo de recriação de si em terapia dar-

se-ia mediado pela assunção do estranhamento trazido pela exterioridade constituinte da

pessoa.

Segundo Rogers (1969), uma terapia bem sucedida conduziria a pessoa a seu pleno

funcionamento, caracterizado pela possibilidade de abertura à própria experiência; pelo

aumento na confiança em ter o organismo como crivo para avaliar ações; e pela vivência

contínua no aqui-e-agora. No que tange à personalidade, haveria uma maior integração e,

portanto, apaziguamento da tensão permanente entre a cultura, o self e o organismo. A

cultura, por meio das pessoas critério, exige que o sujeito se adeque a suas normas de

pertencimento e se torne digno de amor e consideração. O organismo, de forma radical,

demanda que suas necessidades sejam atendidas, ficando o self tensionado a manter um

autoconceito coerente diante desses dois interesses contraditórios.

Diante do modelo de processo terapêutico postulado por Rogers, os autores

problematizam que “...ignores a dimension of strangeness in the constitution of the pysche

and seeks to reduce it to what can be recognized by the self” (Vieira e Pinheiro, 2013, p.

235). Apesar disto, os autores argumentam que não são raros os relatos de terapeutas e

clientes diante de situações em que o estranhamento se manifesta e os surpreende. Rogers,

entretanto, trataria tais manifestações por um viés identitário, pois não compreenderia os

sentidos próprios trazidos pela diferença, mas procuraria integrá-la às dinâmicas já


ÉTICA ABORDAGEM CENTRADA NA PESSOA: ALTERIDADE 23

conhecidas, cabendo ao sujeito o esforço de reconhecer o estranho como também parte de si

mesmo.

Em um panorama geral, à exceção dos trabalhos de Freire (2000; 2001), nos quais é

decretada a alergia de Rogers à Alteridade e a impossibilidade do acolhimento do estranho na

Abordagem Centrada na Pessoa, todos os autores aqui debatidos procuraram reposicionar a

ACP, de modo a ver brechas onde o acolhimento à diferença radical possa ser pensado. Parte-

se do pressuposto básico de que, mesmo não tendo Rogers reconhecido a Alteridade enquanto

tal, haveria a possibilidade de redesenhar conceitos e atitudes, de modo que este aspecto

essencial à constituição da subjetividade possa ser pensado.

Há, entretanto, que se avançar mais: não somente reconhecer o Outro no campo teórico,

mas colocar à prova este novo posicionamento ético a partir da prática. Mostra-se essencial a

realização de pesquisa empíricas, assumindo que os psicológicos tentarão, genuinamente,

acolher a alteridade que, independentemente de seu desejo, reclamará seu lugar usurpado.

Considerações Finais

Obviamente, o discurso da alteridade, tal como pensado neste texto, não estava presente

na obra de Rogers, onde não há qualquer referência ao pensamento de Lévinas. A discussão

com outros filósofos, dentre existencialistas, pragmatistas e filósofos da ciência, foi registrada

em inúmeros textos do criador da ACP. Houve debates, mesmo que extemporâneos, com

pensadores como Kierkegaard, Buber, Tilitch, Dewey, Capra, Polanyi, dentre outros, mas

Lévinas nunca esteve presente nesse rol. Entretanto, isto não desmerece a Abordagem

Centrada na Pessoa. Rogers, à sua maneira, e limitado pelas condições históricas e culturais
ÉTICA ABORDAGEM CENTRADA NA PESSOA: ALTERIDADE 24

que lhe eram peculiares, revolucionou o pensamento psicológico de modo tal que sua obra já

merece reverência.

Por outro lado, dois aspectos não podem ser negligenciados. Um primeiro ponto: Rogers

pode não ter reconhecido a alteridade radical em suas formulações teóricas; pode, até mesmo,

ter tentado suplantá-la, mas isto não quer dizer que ele não tenha se deparado com ela em sua

prática. No que diz respeito a prática clínica, o texto Vieira e Pinheiro (2013) dá indícios que

corroboram com esse argumento.

O segundo aspecto a ser pensado é que os conceitos próprios da ACP não são,

necessariamente, totalmente avessos a Alteridade. É preciso, no entanto, com uma certa

inspiração deleuziana, fazer o autor, com suas próprias palavras, dizer o que ele não disse.

Nos fios de alteridade que sua própria obra carrega, nas entrelinhas podem-se puxar

pequenas linhas de fuga que possam ampliar a potência de um pensamento revolucionário.

Essa, por exemplo, é a tentativa de Vieira e Freire (2006) ao colar o adjetivo ex-cêntrico às

condições facilitadoras, bem como de Schmid (2008) ao rever o conceito de pessoa. Vieira e

Pinheiro (2013) avançam na tentativa de observar as marcas deixadas pela alteridade através

do conceito de organismo.

Por fim, é preciso ressaltar fortemente, apesar de isto já ter sido pontuado na introdução

deste trabalho, que não se concorda com a criação de uma Abordagem Centrada na Pessoa

levinasiana. À Filosofia cabe o papel de problematizar, de lançar questões, de levar o

pensamento em direção ao, aparentemente, imponderável, mas não cabe a ela suplantar os

conceitos psicológicos.

Psicologia e Filosofia são campos de produção de conhecimento distintos, apesar da

possível construção de canais de comunicação entre si. Nesse ponto, cabe à Psicologia rever

suas formulações a partir das inquietudes que a Filosofia produz, mas, fundamentalmente,
ÉTICA ABORDAGEM CENTRADA NA PESSOA: ALTERIDADE 25

concordando com Rogers (1951), o maior propulsor para a reconstrução das convicções

teóricas deve vir da prática cotidiana, que na psicoterapia se revela a partir da eleição da

experiência como autoridade suprema. Deve-se levar as formulações a campos antes

impensados, permitindo, assim, que alteridade areje o pensamento e o reconstrua.

O encontros e desencontros cotidianos com as pessoas, com as situações vividas, são as

melhores molas propulsoras para se pensar uma prática em que alteridade possa ser acolhida.

Não se espera aqui uma prática irrefletida, mas a própria superação da separação entre teoria

e prática. Nesse sentido, não é o discurso sobre a alteridade que vai afetar mais fortemente a

Abordagem Centrada na Pessoa, mas, a lida com a diferença radical que se impõe

cotidianamente ao psicólogo rogeriano. Pensando desta forma, não nos afastamos da ACP,

mas nos tornamos cada vez mais rogerianos, no que este talvez tenha sido um dos maiores e

mais importantes ensinamentos de seu criador: “os fatos são amistosos”.

Referências

Amatuzzi, M. M. (1989). O resgate da fala autêntica: Filosofia da psicoterapia e da

educação [The rescue of authentic speech: Philosophy of psychotherapy and

education]. Campinas, Brazil: Papirus.

Amatuzzi, M. M. (2010). Rogers: Ética humanista e psicoterapia [Rogers:

Humanistic ethics and psychotherapy]. Campinas, Brazil: Alínea.

Bauman, Z. (2011).Vida em fragmentos: sobre a ética pós-moderna. (A. Werneck,

Trad.) Rio de Janeiro: Zahar. (Original publicado em 1995).

Buber, M. (1970). I and Thou. (W. Kaufmann, Trans.). New York, NY: Charles

Scribners's Sons.
ÉTICA ABORDAGEM CENTRADA NA PESSOA: ALTERIDADE 26

Coelho Júnior, N. (2007). Ética e técnica em psicologia: narciso e o avesso do espelho

[Ethics and technical in psychology: Narcissus and the reverse of the mirror].

Revista do Departamento de Psicologia da UFF, 19 (2), 487-493.

Figueiredo, L. C. M. (1992). A invenção do psicológico: Quatro séculos de

subjetivação – 1500 -1900 [The invention of the psychological: Four centuries

of subjectivation – 1500 -1900]. São Paulo, Brazil: Escuta.

Figueiredo, L. C. M. (1996a). Matrizes do pensamento psicológico [Arrays of

psychological thought]. Petrópolis, Brazil: Vozes.

Figueiredo, L. C. M. (1996b). Revisitando as psicologias: Da epistemologia à ética

das práticas e discursos psicológicos [Revisiting the psychologies: From

epistemology to the ethics of psychological practices and discourses].

Petrópolis, Brazil: Vozes.

Figueiredo, L. C. M. & Santi, P. L. R. (2005). Psicologia: Uma (nova) introdução

[Psychology: A (new) introduction]. São Paulo, Brazil: Educ. (Original work

published 1997).

Freire, J. C. (2000). As psicologias na modernidade tardia: O lugar vacante do Outro

[The psychologies in late modernity: The vacant place of the Other]

(Unpublished doctoral thesis). Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil.

Freire, J. C. (2001). As psicologias na modernidade tardia: O lugar vacante do Outro

[The Psychologies in late modernity: The vacant place of the Other].

Psicologia USP, 12 (2), 73-93.

Freire, J. C. (2002). O lugar do Outro na modernidade tardia [The place of the Other

in late modernity]. São Paulo, Brazil: Anna Blume.


ÉTICA ABORDAGEM CENTRADA NA PESSOA: ALTERIDADE 27

Gantt, E. E. (2000) Levinas, psychotherapy, and the ethics of sufering. Journal of

Humanistic Psychology, 40 (3), 9-28.

Kinget, G. M. (1977a). O terapeuta. In C. R. Rogers & G. M. Kinget, Psicoterapia e

relações humanas - Volume 1 (pp. 104-115). Belo Horizonte: Interlivros.

(Original publicado em 1967).

Kinget, G. M. (1977b). Além das técnicas. In C. R. Rogers & G. M. Kinget,

Psicoterapia e relações humanas: teoria e prática da terapia não-diretiva -

Volume 2 (pp. 9-18). Belo Horizonte: Interlivros. (Original publicado em

1967).

Lévinas, E. (1987) Hors Sujet [Exterior Subject]. Paris, France: Fata Morgana. (

Original work published 1976).

Lévinas, E. (1982). Éthique et infini. Dialogues avec Philippe Nemo [Ethics and

Infinity: Conversations With Philippe Nemo]. Paris, France: Librairie Arthème

Fayard et Radio-France.

Lévinas, E. (1961). Totalité et infini. Essai sur l'extériorité [Totality and Infinity: An

Essay on Exteriority]. The Hague, Netherlands: M. Nijhoff.

Lévinas (2007). A consciência não-intencional. In F. Poirié, Emmanuel Lévinas:

ensaios e entrevistas. São Paulo, Perspectiva. (Original publicado em 1983).

Martins Filho, J. R. F. (2010). O Outro, quem é Ele? Considerações em torno da

Fenomenologia de Husserl, Heidegger e Lévinas [The Other, who is He?

Considerations around the phenomenology of Husserl. Heidegger and

Lévinas] Griot, 1 (1), 56-66.


ÉTICA ABORDAGEM CENTRADA NA PESSOA: ALTERIDADE 28

Moreira, V. (2007). De Carl Rogers a Merleau-Ponty: A pessoa mundana em

psicoterapia [From Carl Rogers to Merleau-Ponty: The mundane person in

psychotherapy]. São Paulo, Brazil: Anna Blume.

Pivatto, S. (2000). Ética da alteridade [Ethics of alterity]. In M. Oliveira (Ed.).

Correntes fundamentais da ética contemporânea [Fundamental currents of

contemporary ethics] (pp. 79-99). Petrópolis, Brazil: Vozes.

Poirié, F. (2007). Emmanuel Lévinas: ensaios e entrevistas. São Paulo, Perspectiva.

Rogers, C. R. (1951). Client-centered therapy: Its current practice, implications, and

theory. Boston, MA: Houghton-Mifflin.

Rogers, C. (1961). On becoming a person: A therapist's view of psychotherapy.

Boston, MA: Houghton-Mifflin.

Rogers, C. R. (1969). Freedom to learn: A view of what education might become.

Columbus, OH: Charles Merrill.

Rogers, C. (1966) Some learnings from a study of psychotherapy with schizophrenics.

In A. P. Goldstein & D. Sanford (Eds), The Investigation of Psychotherapy.

New York, NY: Wiley.

Rogers, C. R. (1974). In retrospect: Forty-Six years. American Psychologist, 29 (2),

115-123. doi: 10.1037/h0035840.

Rogers, C. R. (1992). The necessary and sufficient conditions of therapeutic

personality change. Journal of Consulting and Clinical Psychology, 60 (6).

827-832. (Original work published 1957).

Rogers, C.R. (1956, October). The essence of psychotherapy: Moments of movement.

Unpublished paper presented at first meeting of the American Academy of

Psychotherapists, New York, NY.


ÉTICA ABORDAGEM CENTRADA NA PESSOA: ALTERIDADE 29

Rogers, C. R., & Skinner, B. F. (1956). Some issues concerning the control of human

behavior: A symposium. Science, 124(3231), 1057-1066.

Schmid, P. (2008). ¿Conocimiento o reconocimiento? La psicoterapia como “el arte

de no saber”. Perspectivas de más desarrollos de un paradigma radicalmente

nuevo [Knowledge or recognition? Psychotherapy as “the art of not knowing”.

Prospects of more developments of a paradigm radically new]. Retrieved from

http://members.kabsi.at/pfs0/paper-pcep1-span.pdf.

Skinner, B. F. (2005). Science and human behavior. Retrieved from

http://www.bfskinner.org/bfskinner/Society_files/Science_and_Human_Behav

ior.pdf (Original work published 1953).

Skinner, B. F. (1988). The operant side of behavior therapy. Journal of Behavior

Therapy and Experimental Psychiatry, 19 (3), 171-179.

Vieira, E. M. (2009). Sobre a proposta de conhecimento presente na teoria Rogeriana,

ou da sabedoria residente na ignorância [About the knowledge proposal

present in Rogerian theory, or about the wisdom which resides in ignorance].

Revista do NUFEN, 1 (2), 4-19.

Vieira, E. M., & Freire, J. C. (2006). Alteridade e psicologia humanista: Uma leitura

ética da abordagem centrada na pessoa [Alterity and Humanistic Psychology:

An ethical reading of the person-centered approach]. Estudos de psicologia

(Campinas), 23 (4), 425-432.

Vieira, E. M., & Pinheiro, F. P. H. A. (2013). Person centered psychotherapy: an

encounter with oneself or a confrontation with the other?. Estudos de

Psicologia (Campinas), 30 (2), 231-238.

Você também pode gostar