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Pe.

Alberto Maggi OSM

A ÚLTIMA BEM-AVENTURANÇA
A morte como plenitude de vida

(Transcrição de gravação não revista pelo autor)


A última bem-aventurança – Alberto Maggi - OSM

INTRODUÇÃO

Antes de iniciar, falo mais para as pessoas que podem ser nova-
tas para estes estudos bíblicos, lembro dois aspectos importantes
que devemos sempre ter presentes na leitura do evangelho.
Os evangelistas não entendem nos transmitir uma crônica jor-
nalística de fatos, mas uma reflexão teológica.
As narrações deles não dizem respeito à história, mas à fé.
Eles não são como repórteres que presenciaram acontecimen-
tos e querem passa-los para frente descrevendo-os.
Eles são teólogos que querem comunicar aquela que foi a expe-
riência do Cristo pela comunidade.
Além disto, outro aspecto a se ter presente, é que os evangelhos
não foram escritos para serem lidos pelo povo, pelo simples fato
que as pessoas naquele tempo, pela grande maioria (94-95%)
eram analfabetas.
Os evangelhos são um concentrado de escritos teológicos, fei-
tos por uma pessoa culta da comunidade.
Este ‘concentrado’ era transmitido para outras comunidades
onde alguém, outra pessoa culta dessa comunidade, não lia sim-
plesmente, mas literalmente interpretava e decifrava essa lingua-
gem: o seu uso das palavras, as chaves de leitura, os símbolos e as
expressões literárias.
As chaves de leitura, o conhecimento do uso diferenciado das
palavras, palavras que sempre tem o mesmo significado, usadas
pelo evangelista dava segurança para a interpretação realizada di-
ante da comunidade que o recebia.
É esta a maneira que nós iremos usar na leitura e interpretação
dos textos evangélicos.

Pe. Alberto Maggi

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A última bem-aventurança – Alberto Maggi - OSM

Uma parábola moderna

No ventre de uma mãe havia dois bebês.


Um perguntou ao outro: “Você acredita em vida após o parto?”
O outro respondeu: “É claro. Tem que haver algo após o parto.
Talvez nós estejamos aqui para nos preparar para o que virá
mais tarde”. “Bobagem”, disse o primeiro. “Não há vida após o
parto. Que tipo de vida seria esta?” O segundo disse: “Eu não sei,
mas haverá mais luz do que aqui. Talvez nós poderemos andar
com as nossas próprias pernas e comer com nossas bocas. Talvez
teremos outros sentidos que não podemos entender agora”.
O primeiro retrucou: “Isto é um absurdo. Andar é impossível. E co-
mer com a boca!? Ridículo!
O cordão umbilical nos fornece nutrição e tudo o mais de que
precisamos. O cordão umbilical é muito curto. A vida após o parto
está fora de cogitação”. O segundo insistiu: “Bem, eu acho que há
alguma coisa e talvez seja diferente do que é aqui”.
Talvez a gente não vá mais precisar deste tubo físico”.
O primeiro contestou: “Bobagem, e além disso, se há realmente
vida após o parto, então, por que ninguém jamais voltou de lá? O
parto é o fim da vida e no pós-parto não há nada além de escuridão,
silêncio e esquecimento. Ele não nos levará a lugar nenhum”.
“Bem, eu não sei”, disse o outro,” mas certamente vamos encontrar
a mamãe e ela vai cuidar de nós”. O primeiro respondeu: “Mamãe,
você realmente acredita em mamãe? Isto é ridículo.
Se a mamãe existe, então, onde ela está agora?” O segundo
disse: “Ela está ao nosso redor. Estamos cercados por ela. Nós so-
mos dela.
É nela que vivemos. Sem ela este mundo não seria e não poderia
existir”. Disse o primeiro: “Bem, eu não posso vê-la, então, é lógico
que ela não existe”. Ao que o segundo respondeu: “Às vezes,
quando você está em silêncio, se você se concentrar e realmente
ouvir, você poderá perceber a presença dela e ouvir sua voz amo-
rosa lá de cima”.

Este foi o modo pelo qual um escritor húngaro explicou a exis-


tência de Deus e da vida plena em Deus depois desta vida biológica.

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1ª Palestra

Nunca morri antes... mas fiz a experiência do morrer

Fiz questão de manter de pé este encontro apesar de não me


sentir ainda plenamente legal. Confio em vossa paciência e com-
preensão.
Hoje teremos o apoio também de pe. Ricardo que irá dar a pa-
lestra sobre Apocalipse.
Como muitos sabem passei uma temporada bem especial... que
quero partilhar.
Faço um pouco a história: o dia 9 de abril, Sábado Santo, vive-
mos intensamente a Páscoa e a segunda feira, dia 10, foi o aniver-
sário de minha ordenação a padre.
Sempre o Senhor me dá um presente bonito naquele dia. Desta
vez exagerou...
Eu falei para ele: “No ano que vem... é suficiente um cartão!”
Estava sozinho em casa, Ricardo estava aproveitando de uns
dias para ir ver os parentes na Espanha, já estava no aeroporto
pronto para embarcar.
Eu estava me trocando para visitar minha mãe, operada no es-
tômago, e de repente, uma grande dor no peito, uma dor insupor-
tável, falta de folego, penso – alguém como eu que não é muito co-
nhecedor – “é infarto”. Ligo para a emergência, chega logo a ambu-
lância, me carregam.
Depois de poucos minutos, param. Perceberam que a coisa es-
tava grave e pediram uma ambulância com maiores recursos.
Chega logo, me trocam de ambulância.
E onde acontece está troca? Ao lado do cemitério! Aos que me
carregam para outro carro falo brincando, apontando para o cemi-
tério: “Não estão apressados... demais?”
O médico que veio na segunda ambulância faz o eletrocardio-
grama, me aplica uma injeção, coloca-me o oxigênio e continua-
mos.
O médico, muito gentil, me conta uma mentirinha: “Não se as-
suste, vamos colocar a sirene, mas não é pela sua situação, mas por
causa do tráfico”.

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Sentia aumentar a dor, mais tarde me explicaram que o que deu


em mim chama-se “Dessecação e dixeção da aorta”, isto é, a aorta
– vos digo com palavras simples e os médicos me perdoem – a
aorta é composta de 9 camadas, no meu caso arrebentaram de im-
proviso 8 e ficou uma só.
A dor aumentava e estava insuportável. Com toda esta dor, ape-
sar do oxigênio, não conseguia respirar e pensei: “Estou mor-
rendo” e estranhamente, apesar de nunca ter morrido antes... e por
isto era a primeira experiência em que estava enfrentando a morte
de cara a cara, não sentia nem medo, nem ânsia. Pelo contrário
sentia crescer uma grande serenidade, curiosidade... quase uma
euforia.
O único pensamento que me veio foi: “Estou morrendo... o que
devo fazer? Sei o que vou fazer!”
E ajeitei um sorriso bonito na minha cara, pois, pensei, “deste
jeito quantos virem meu cadáver dirão: ‘Olha quanto ficou con-
tente por estar morrendo’”.
Entendi que é verdade o que sempre afirmo: do jeito que a
gente vive pelos outros, morre-se também pelos outros. Nosso
jeito de morrer é o último presente que podemos fazer para as pes-
soas queridas. Nós não sabemos o que é a morte; sabemos o que é
a morte somente vendo os outros morrerem. Apesar de que no dia
de hoje cada vez menos se assiste alguém que morre, pois se morre
sozinhos nos hospitais.
A morte, nosso jeito de morrer, por isso, é o último presente
que podemos fazer para as pessoas queridas. De nosso jeito de
morrer elas entenderão o que é a morte.
Pois bem, a ambulância chega ao hospital. Fazem diversos con-
troles e pensam que seja uma gastrite. Tá bom, ligo para Ricardo,
peguei ele que estava no check-in e ele me diz: “Volto”.
E aí começa... Sempre nos momentos de precisão, quando a
gente vive para os outros, no momento da necessidade, o Senhor
atende mil vezes mais.
Uma senhora conhecida que tinha acompanhado a filha ao ae-
roporto, viu Ricardo e ficando sabendo de mim, dá uma carona
para ele até o hospital.
E ainda... dois dias depois tinha que apresentar, numa cidade

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perto, o meu último livro: “Versículos perigosos” e quem ia comigo


seria o famoso filósofo Roberto Mancini.
Ligo para ele e lhe digo: “Olha, pode ser que eu não consiga es-
tar presente”. E ele me pergunta: “Onde estás?” Falo: “No hospi-
tal...” Veio logo e ficou a noite inteira.
Estes são os anjos que o Senhor continuamente nos envia, nos
momentos de necessidade. Nos momentos que a gente precisa
mesmo, nunca estamos sós, sempre há um anjo perto da gente.

Precisa ter olhos para enXergar

Na manhã seguinte, finalmente, fazem uma Tomografia Compu-


tadorizada, percebem a gravidade da situação e com a ambulância
me transportam para outra cidade, num hospital maior e me bai-
xam na UTI, onde, entre dores fortíssimas e enfraquecido fico in-
ternado, mas... isto é estranho, crescia a dor, e no mesmo tempo
crescia a serenidade.
Esta experiência me confirma que quando a gente vive para os
outros, no momento em que precisamos o Senhor atende mil vezes
mais. O Senhor transforma tudo em bem e toma nossa vida sob
seus cuidados em todos os pormenores.
E estou experimentando morrer sem nenhum medo. Era isto
mesmo, estava morrendo e não sentia medo nenhum, o que tinha
mais era curiosidade e até euforia.
Tem, porém, algo que tinha acontecido comigo há uns 15-20
dias antes disto.
Pois eu acredito que na vida o Senhor nos prepara: tinha feito
uns sonhos significativos, e num deles tinha conseguido experi-
mentar a euforia da morte.
Do lado do nosso convento moram duas senhoras idosas que
nos querem muito bem. De manhã logo que abria a janela, uma de-
las, Lícia, me dizia: “Alberto, hoje...” e me falava do cardápio para o
almoço que ela preparava para nós também.
Ao meio dia, pontualíssimas nos traziam o almoço. Um dia Lícia
morreu. Depois de uma semana sonhei que seu pequeno carro ver-
melho vinha ao meu encontro.
Quem dirigia não era Lícia, mas a irmã, nos cumprimentamos e

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percebo a presença também de Lícia no assento do carona. Digo:


“Lícia, mas você o que tá fazendo aqui? Não está morta?” E ela:
“Epa! Você pode estar morto. Eu estou mais viva do que nunca”.
Então me veio a dúvida: “Se Lícia que morreu está viva, será que
eu morri?”
Então, sempre sonhando, corri ao convento, fui na cozinha,
onde estão Annalú, Júlia, Marcela, Gabriela, pessoas amigas... nada!
Elas não estão me vendo. Eu falo e elas não escutam e continuam
fazendo suas coisas. Subo até meu escritório, aí está Ricardo e ele
também não me vê.
Então? Então concluo: “Nossa, estou morto!” E me deu tama-
nha euforia, uma alegria tão grande que... como um canguru, vocês
têm presente os pulos do canguru..., pulava por todo o convento
exclamando: “Estou morto! Estou morto! Estou morto!”
Mesmo a alegria e a euforia do morrer...
Num destes pulos acordei. Eram as 4h da manhã, mas quando
os sonhos são muito fortes, como a gente faz para ter certeza se foi
sonho ou realidade?
Então digo para mim mesmo: “Agora vou até Ricardo e per-
gunto para ele se estou vivo ou se morri”. Porém penso: “São as 4h
da madrugada. Se eu estiver morto, tudo bem, ele não me vê, mas
se estiver vivo corro o perigo de dar um susto nele acordando-o à
toa naquela hora”.
Então, sendo que desde que temos os pedreiros em casa, temos
o costume de tomar o cafezinho juntos no meu quarto, onde tenho
a cafeteira elétrica, digo para mim mesmo: “Às seis e meia, quando
Ricardo aparecer, poderei ver se estou vivo ou se morri!” E fiquei-
esperando com paciência, acordado, esperei que chegassem as
seis e meia.
Pontualmente às seis e meia ele aparece para tomar o cafezi-
nho. Logo que ele entra lhe pergunto: “Ricardo, estou vivo ou estou
morto?” E ele... “Você é um bobo...”. Digo: “mas está me enxer-
gando?” diz “Mas claro que enxergo você, porque não deveria?” E
lhe contei meu sonho.
Pois é, este sonho ficou dentro de mim, e com a ideia de morrer,
na ambulância e depois, durante as cirurgias que se seguiram es-
tava totalmente sereno, e com curiosidade, curioso de saber como

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seria o momento da morte e isto com euforia.

Nada de medo, nada de ânsia

Descobri o que já sabia teoricamente: a beleza do morrer. O mo-


mento do morrer é o momento mais bonito da nossa existência,
pois finalmente abrimo-nos para a dimensão para a qual fomos
criados.
É por isso que dá de entender São Francisco que chamava a
morte de “irmã”.
A morte não nos tira nada, pelo contrário vem ao nosso encon-
tro presenteando-nos de tudo, vem ao nosso encontro para nos
dar de presente a dimensão da plenitude de vida para a qual vie-
mos neste mundo. Iremos ver isto neste encontro.
No hospital, devagar aconteceu um crescendo de augúrios, de
orações, de solidariedade, e então, a experiência de sermos tão
amados.
O dia anterior à minha cirurgia entra no quarto o Bispo de An-
cona. Então pensei: “Estou mesmo gravíssimo!” pois se o bispo que
até uns meses antes proibia as pessoas de vir escutar minhas pa-
lestras, vem me ver... quer dizer que estou muito grave mesmo.
Foi uma visita que apreciei muito, pois, além da doutrina, além
das diferenças teológicas isto manifestou a humanidade e a esta-
tura de uma pessoa.
Apreciei e muito a visita de Dom Eduardo Minichelli, bispo de
Ancona. Ele veio mais vezes me visitar e me telefonou dizendo que
veio com grande afeto, com grande amor.
Foram visitas de um irmão para um irmão, não de um bispo
para um padre: uma visita, por alguns motivos, muito simpática.
Conhecendo minhas ideias, saindo do quarto me disse: “E ofereça
seus sofrimentos em desconto de seus pecados”. E eu lhe respondi:
“Eu não tenho pecados”. E ele: “Este é o primeiro!” Ninguém pode
com os bispos, sempre eles têm a resposta pronta para tudo. Puxa
vida, sabem mais coisas do que o.… diabo.
Mas com um frei as coisas não foram bem. Sabendo que eu es-
tava mais para lá... do que para cá, pensou em salvar minha alma e
veio me trazer a comunhão, mas antes de me dar a hóstia, me fez

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um processo sobre todas as minhas ‘heresias’...


Ele estava com a hóstia na mão e me dizia: “porém você não
acredita nisto... não acredita naquilo... não acredita naquele ou-
tro...”. Ficou quase meia hora! E por fim disse... “pois, fiquei sa-
bendo que o senhor dá a comunhão aos divorciados e aos homos-
sexuais...”. Então não aguentei mais e lhe disse: “Escuta aí, se você
me deve irritar para me dar a comunhão, não a quero. Vá embora
e não apareça mais!”
Chamei a enfermeira responsável da repartição e lhe disse:
“Não deixem mais entrar este padre”. Ainda hoje no hospital é fa-
lado o fato de um padre ter expulsado um frei...
Estas pessoas são “guerrilheiros” da fé, por amor à sua verdade
estariam prontos até te matar... Não ligam com a pessoa.
Disse que o bispo, brincando, me falou de oferecer os sofrimen-
tos. Neste período experimentei o que já sabia, mas experimentar
é diferente de saber.
Quando passamos mal, quando estamos sofrendo, não devemos
oferecer os sofrimentos ao Senhor. O que ele vai fazer com nossos
sofrimentos?
O que precisa fazer é acolher um Senhor que oferece a sim
mesmo para aliviar, e ajudar a vivermos nosso sofrimento.
Então não ofereci meus sofrimentos ao Senhor, mas acolhi o Se-
nhor, que me ajudava a viver aqueles momentos inevitáveis de so-
frimentos e dores.
São dias difíceis fisicamente, estou consciente de estar em pe-
rigo de vida, falta um nada, pois sobrou só um estrato da artéria
aorta. Porém à gravidade correspondia um crescer de serenidade,
cada vez maior, até ser submetido à primeira cirurgia.
Aparece a equipe dos médicos, com ar tão sério, pois eles de-
vem-me pôr ao par sobre os riscos que encontrarei com uma in-
tervenção deste tipo.
Falavam toda uma série de palavras, pois não é fácil, nem para
eles falar deste assunto e, daquilo que eles diziam, entendia que o
perigo maior seria não aguentar e ficar na mesa de cirurgia. Eles,
porém, não usavam a palavra “morrer” etc. faziam todo um rodeio
de palavras...
Eu disse-lhes: – “querem dizer que posso ficar na mesa?” – “É, é

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isso mesmo!”, digo: – “Isto não é um problema... não é um pro-


blema, pois o que ficar de mim será a parte biológica, não eu! Eu,
até que enfim, experimentarei em plenitude essa vida eterna”.
Digo: – “E o outro perigo?” Eu mesmo os encorajava para conti-
nuarem. – “O outro perigo, muito, muito grande...” Como me expli-
caram, havia uma grande possibilidade que isto acontecesse, era o
perigo da paraplegia, de ficar paralisado nos membros inferiores.
Acrescento: – “Nem este é um problema: neste mês de hospital
vi que a atividade que eu faço posso continuar fazendo também
numa cama, mas não só isto: esta minha atividade não é diminuída
com isto, aliás é potencializada, pois as pessoas sentem que quem
fala é alguém que não apresenta teorias, mas fala de sua própria
experiência”. Continuemos: – “E o outro perigo?” Era eu que os ani-
mava para que apresentassem os riscos. Outro não teria conse-
guido aceitar... lesões cerebrais irreversíveis e isto seria ruim
mesmo.

A pessoa que é sagrada... não a vida

Hoje faleceu o cardeal Martini, ele renunciou àquele tratamento


terapêutico com o qual, com os meios técnicos modernos, são ca-
pazes de manter em vida também quando já a pessoa não está
mais viva...
É necessário se convencer de que não é a vida da pessoa que é
sagrada, mas a própria pessoa. É uma visão diferente.
Se afirmarmos que é sagrada a vida por ser ela algo sagrado em
si mesmo, então se mantém de pé uma existência simplesmente
biológica... um cadáver vivente até o infinito, até que se consegue:
se for a pessoas a ser considerada sagrada, sua dignidade como
pessoa será o que vale acima de tudo.
Quer dizer que estava consciente desses perigos, mas, estra-
nhamente na manhã da cirurgia o enfermeiro me acordou e me
disse: – “é a primeira vez que tenho que acordar uma pessoa que
sabe que será submetida a uma intervenção tão delicada”.
Isto é porque em mim havia uma grande serenidade ou incons-
ciência, nem sei dizer.
A cirurgia foi muito demorada. Trazem-me de volta para o

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quarto. A coisa mais enjoada é ter um tubo na boca, se alguém já


experimentou sabe.... Estava agitado.
As pessoas presentes, pobrezinhas, procuravam me consolar,
mas nesses casos a coisa melhor é ficar calados. Não sei quem foi
que me dizia, pois não lembro: “Fique calmo. Imagine estar num
prado verde!” Então me lembrei de Jó. Jó, quando os amigos vão
para consolá-lo e ele diz: “A desgraça maior são vocês que vieram
para me consolar. Eu também saberia dizer as coisas que vocês di-
zem, se me encontrasse no lugar de vocês!”. É assim!
Em seguida me tiram esse tubo e as primeiras palavras que eu
disse foram “‘pízzica, pízzica’ (belisca, belisca)”. Então Ricardo me
diz: “Não, não pode comer pizza, agora tem que ficar em jejum”.
Digo: “Não: ‘pízzica, pízzica’”. E então entende, pois ele sabe que
gosto muito da música ‘pízzica, pízzica’, essa música bem ritmada.
E então coloca no i-phone a ‘pízzica’.
Para que? Pois, com o ritmo, queria ver se os pés funcionavam...,
e então o perigo da paraplegia, nesta primeira intervenção, seria
afastado. Porém terei mais três cirurgias.

A nossa felicidade não depende das circunstâncias da vida

Neste meio tempo na repartição tinha-se criado uma atmosfera


belíssima.
O quarto onde eu estava foi chamado “o quarto da recarga”, pois
médicos, enfermeiros, auxiliares, pessoas da limpeza, vinham e di-
ziam que era para se recarregar um pouco.
De vez em quando vinha um enfermeiro ou um médico e dizia:
“posso ficar cinco minutos aqui para me recarregar?” E falávamos
da vida e vendo a minha serenidade, questionavam e eu falava: “A
felicidade não depende dos acontecimentos da vida. Se fizermos
depender a felicidade das circunstancias da vida, acontece que um
dia as coisas vão bem, outro dia vão mal”.
A felicidade é uma profunda experiência interior, que por nada
pode ser aranhada, por isso é possível ser felizes plenamente, na
condição de não permitirmos que a nossa felicidade seja condicio-
nada pelos acontecimentos exteriores.

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Pois bem, estávamos falando destas coisas com médicos e en-


fermeiros quando a responsável da repartição, perplexa, fala com
o primário: “Mas, doutor, não lhe parece estranho tudo isto? Nor-
malmente é o senhor que conforta o doente e aqui é o doente que
nos conforta”.
Então tinha-se criado uma bonita comunhão com todo o pes-
soal do hospital.
Já falei do padre que me trouxe a comunhão e que eu mandei
embora. Mandam outro, pessoa muito piedosa, mas para me dar a
comunhão exige todo o ritual, o do “Confesso a Deus todo pode-
roso” e tinha que dizer: “por minha culpa, minha culpa, minha
grandíssima culpa”.
Pouco convencido, no primeiro dia, meio tossindo, pois estava
com tosse, falei isto; no segundo dia novamente, antes de me dar a
hóstia, tinha que dizer “por minha culpa, minha culpa, minha gran-
díssima culpa...”. Então não aguentei e exclamei, “mas que coisa de
‘grandíssima culpa’ posso ter cometido de ontem para hoje? Eu es-
tou aqui, bonzinho, me furam de todos os lados, não falo nem uma
palavra... qual grandíssima culpa?”
E isto também me ajudou a refletir como a liturgia, umas ora-
ções, inculcaram nas pessoas o sentido de culpa. São estas pessoas
que, convencidas, dizem “minha culpa... minha grandíssima culpa”,
mas qual culpa? E isto é algo que foi usado por uma estrutura de
poder para dominar, para colocar dentro das pessoas o sentido de
culpa.
E então não quis mais nem este padre; já mandei embora dois
padres..., mas depois veio me trazer a comunhão o caríssimo Pan-
filo amigo do nosso Centro de Estudos Bíblicos. Líamos um trechi-
nho do evangelho, uma oração, o Pai Nosso e pronto.
Os dias passam, a primeira cirurgia não deu os resultados espe-
rados e neste tempo, pois as coisas acontecem juntas, o dia dez de
maio, falece minha mãe.
Foi algo que me pegou de surpresa. A mãe era a última de suas
irmãs e, durante os 37 anos de padre, celebrei o funeral de todas
as irmãs de minha mãe e me senti como que expropriado da morte
de minha mãe e isto foi um motivo de reflexão.
Entendi que frente aos acontecimentos da vida, também os que

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não conseguimos entender, não temos que nos colocar perguntas,


mas tentar compreender que eles estão no interior de um maravi-
lhoso desígnio de amor.
Também os acontecimentos mais incompreensíveis, mas estra-
nhos, menos fáceis de aceitar, são todas expressões de um pro-
cesso de amor, que está tudo a nosso favor.
Morreu minha mãe e fiquei sereno, com esta notícia. Quando
morrem nossos queridos, que nos deram a vida, eles nos pedem
uma única coisa: sermos plenamente felizes e serenos! É o único
presente que nós podemos dar para nossos queridos.
A primeira cirurgia, não deu muito certo, estava prevista mais
uma e, seja claro, o fato de estar sereno e também feliz, não quer
dizer que não tenha tido momentos de desanimo, de choro, espe-
cialmente quando as dores físicas se tornavam mais pesadas.
Foi no dia em que me fizeram a Tac (Tomografia computadori-
zada) e fiquei sabendo que a cirurgia não tinha sido bem-sucedida.
Estava desanimado de verdade e peguei no sono chorando de de-
sanimo.
A meia noite acordo sorrindo, me sinto invadir de uma grande
felicidade, uma felicidade crescente, que se torna euforia. Se não
fosse pela hora, meia noite, teria vontade de avisar todos os ami-
gos...

Para que fazer perguntas diante daquilo quem não en-


tendo

Não sei dizer o que tinha acontecido. No sono percebi, como no


momento da morte da mãe: eu não tenho que fazer perguntas
frente àquilo que não compreendo, mas viver.
Tenho a certeza que minha vida está inserida no interior de um
único grande projeto de amor, devo só acolher e procurar mani-
festá-lo.
Então, apesar de um dia do maior desanimo que me aconteceu
em todo o tempo de hospital, em seguida veio um crescendo de
felicidade.

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Enfrentei mais uma cirurgia, esta também não foi boa. Os mé-
dicos estão meio confusos com isto, estão desgostados, sou eu que
os animo e digo a eles: “Saibam que na vida o Senhor nunca nos dá
pedras, mas sempre pão. Têm acontecimentos na vida que nós
achamos serem pedras que nos esmagam. Não. Jesus nos falou:
‘Quem de vós, se um filho vosso está com fome lhe dará uma pedra
no lugar do pão?”
Há acontecimentos na vida, situações, circunstancias que po-
dem parecer pedras que nos esmagam. Não! Não são pedras que
nos esmagam: são pão que nos alimenta e que nos dá vida. Nós é
que devemos acolher estas oportunidades e estas chances.
Animei os médicos que estavam assustados, pois duas cirurgias
tinham sido inúteis.
E passavam os dias, os meses.... Foi bonito ver a atmosfera que
se tinha criado naquela ala de hospital e naquele quarto.
Apontava a cara de um médico e dizia: “Posso? Precisava só de
ver um sorriso!”
A mulher da limpeza veio limpar o quarto, mas deu uma faxina
em toda a vida dela; e foi uma experiência incrível. Desde sempre
e quase todos os dias tenho encontros com pessoas que vem se
abrir. No hospital fiz uma experiência estranha: as pessoas não só
se abriam, mas se ‘despiam’ completamente.
Algo que nunca tinha experimentado. Talvez me vendo numa
cama, me vendo fraco, frágil, com a mesma fragilidade delas, as
ajudei.
Pessoas que se achavam frustradas em sua existência, renasce-
ram.
Então entendi, (algumas coisas se entendem só vivendo-as), a
frase de Paulo na segunda carta aos Coríntios, onde diz: “quando
estou fraco é então que estou forte”.
E chegamos ao finalmente... a terceira cirurgia, a mais compli-
cada, a mais demorada, a mais perigosa.
Chega a equipe de médicos, e colocam coisas que para mim pa-
recem fantasia cientifica... me dizem que irão parar o meu coração
durante uma hora e meia.
Falo: – “Têm certeza que depois volta a funcionar?” – “Certo”,

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dizem, – “é só dar uma pancadinha e recomeça sozinho”. – “Cui-


dado... eh!”
O que os preocupava mais (e a mim) era o fato que tinham que
cortar a aorta e todos os vasos, as veias que levam o sangue até o
cérebro, e este também teria ficado sem sangue durante um mi-
nuto e meio, o máximo que poderia, e então eu ficaria como se
fosse morto: coração parado, cérebro sem sangue, um nada e você
já era!
Enfrentamos este último cirurgia, também desta vez confio to-
talmente nos médicos, falo: “Não vos preocupeis. Qualquer escolha
que ireis fazer na cirurgia, eu concordo”.
Apareceu o médico que tinha feito a primeira cirurgia e me fez
o seguinte augúrio: “Você conseguirá, tem que conseguir, você é
precioso demais para todos nós. Te conhecer enriqueceu nossa
vida”.
Quer dizer que o Senhor se serviu também de um período de
sofrimento e de dor para operar suas maravilhas, para me fazer
conhecer pessoas maravilhosas, pois na verdade esses médicos,
esses enfermeiros são de uma dedicação e abnegação incrível.

O que experimentamos é bem diferente daquilo que sabe-


mos

Porque contar para vocês tudo isto? Porque uma coisa são as
teorias, outra coisa é viver experimentando.
Há um salmo, o 23, onde é dito: “Se andasse no vale da sombra
de morte” – é o reino dos mortos – “não temerei mal algum, pois
você está comigo”. Antes não sabia o que fosse andar pelo vale da
morte e agora posso dizer que o atravessei e a vida não é mais a
mesma.
Fiz quase três meses de hospital, mas nunca, nunca me senti só:
sempre como que acompanhado por uma presença amorosa.
Antes acreditava, agora experimento e a vida muda. Fiz a expe-
riência de como o Senhor nos segue passo a passo, dá a sensação
de que nunca estamos sós, a sensação de estar dentro de um ma-
ravilhoso projeto de amor, quaisquer que sejam as situações que

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A última bem-aventurança – Alberto Maggi - OSM

encontrarmos.
Por fim, me colocam de pé, foi uma coisa belíssima, uma euforia
que não conseguia conter. Falaremos de Lázaro..., entendi ainda
mais que o de Lázaro não é uma narração, mas uma teologia, pois
quando me levantaram de pé, a fisioterapeuta me mandou andar
um pouco e me levou para fora. Eu estava fora de mim: saudava
todo mundo, ria, chorava, parecia enlouquecido.
Penso: “Lázaro saiu da tumba e não fala nem uma palavra, não
agradece, não saúda ninguém, imaginem só! Mas como é possível
que Lázaro se comporte deste jeito!”
Esta, pois, é a experiência que eu fiz do meu morrer, apesar de
não ter morrido, porém me preparou: quando vier o momento da
morte já sei que o viverei como um momento de plenitude de vida,
de beleza, de euforia.
Tudo isto nos deve ajudar também quando morrer uma pessoa
querida.
Se ficarmos pensando em nós seremos vencidos pela dor, pela
tristeza, pela angústia. Há mortes que podem ser devassadoras em
nossa vida!
O primeiro passo a ser feito é se situar do lado deles, não do
nosso. E nos perguntar: “Como eles são? Onde eles estão? O que
eles fazem?” Pois temos uma ideia da morte que não corresponde
à da mensagem de Jesus e por isto deveríamos mudar a linguagem.
Por exemplo, nós em nossa linguagem, contrapomos a vida à
morte, mas não está certo: não se deve contrapor a morte à vida,
pois elas são as duas expressões da vida. Os primeiros cristãos cha-
mavam o dia da morte “dia do nascimento”? Dia em que nasce-
mos...
Não morremos, nascemos duas vezes. Como da primeira vez
deixamos o que é o nosso mundo, a barriga da mãe, onde tínhamos
tudo, não conhecemos outros mundos, ali temos o que precisamos
e mesmo assim chega o momento de nossa existência que, se que-
remos que continue, devemos deixar, para nos abrir ao novo e so-
mente deixando a barriga da mãe podemos descobrir o que é a luz,
o amor e o calor dos pais.
Do mesmo jeito quando chega o momento da morte, repito, não
devemos contrapor a vida à morte, mas o nascimento à morte: as

16
A última bem-aventurança – Alberto Maggi - OSM

duas são expressões de vida.


Não morremos, nascemos duas vezes e a segunda vez é a defi-
nitiva, é para sempre.
A morte é aquele momento precioso que permite à vida de de-
senvolver-se, de desabrochar, de florescer em toda sua plenitude.
A morte não diminui a vida, mas é a que a enriquece, que a po-
tencia. Por isto que os primeiros cristãos chamavam a morte de
“nascimento”.
A vida não termina com a morte, mas com a morte ela entra em
sua dimensão definitiva, e a ressurreição, então, não é uma se-
gunda vida, nem uma nova vida, mas a plena realização da vida que
temos.

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A última bem-aventurança – Alberto Maggi - OSM

2ª Palestra

A morte como bem-aventurança

Enfrentamos um tema que normalmente prefere-se não en-


frentar, um tema que não é agradável, o da morte que, porém, é a
minha experiência, antes ou depois somos obrigados a enfrentar,
seja na morte de pessoas queridas, seja quando será o momento
de nossa morte.
A morte de um ente querido já é um momento dramático, as-
sustador, mas o é mais por causa das ideias falsas que existem a
respeito da morte.
A finalidade deste encontro, pois, é de procurar eliminar pelo
menos aquelas falsas e erradas ideias que nada tem a que ver com
a mensagem de morte e de vida, como nos é apresentada pelos
Evangelhos.
Quando morre uma pessoa querida ficamos atordoados e não
sabemos como administrar nossa relação com o falecido. Dizem-
nos que vão para o céu, que estão contemplando o Senhor, que go-
zam o eterno descanso, mas tudo isto serva para algo?
Para piorar a situação são as frases ‘pré-cozidas’, ‘pré-confecci-
onadas’ que especialmente as pessoas piedosas, as que acham que
sabem mais do que o Pai Eterno, vem falar para nós para nos con-
solar, para nos confortar.
Quem não ouviu dizer: “O Senhor o chamou”, ou “O Senhor o
tomou”...
Quantas vezes ouvimos, quando falecem pessoas ainda novas:
“estava maduro para o paraíso”, então os idosos... serão que eles
não estão ‘maduros’, eles estão ainda ‘verdes’?
Ontem, (31-08-2012), faleceu o cardeal Martini, e logo o co-
mentário dito e repetido foi: “São sempre as pessoas melhores que
se vão”, então nós que nos esforçamos em ficar aqui quer dizer que
somos os piores!
Quando acontece a morte de uma criança, ouvi uma verdadeira
blasfêmia: “As flores mais bonitas o Senhor as quer para si”... este
jardineiro louco, que toma, corta, arranca das raízes, poda... ou se
diz “é um anjinho para o Paraíso”. Ou, e este talvez seja o segredo

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A última bem-aventurança – Alberto Maggi - OSM

de nossa parte ‘sadia’ de cotidiana maldade: “os que são bons o Se-
nhor os quer para si”.
Se for isto... um pouco de... maldade todos os dias nos salvará
de sermos escolhidos!
E tantas frases deste jeito que fazem parte da estupidez religi-
osa e que nada têm a que ver com a mensagem de Jesus, mas infe-
lizmente o fato da morte foi rodeado nos séculos por uma coroa
antievangélica que o tornou um momento triste, tétrico.
Os da minha geração lembram como eram os enterros antes do
Concílio: as roupas do padre todas pretas, tudo em latim: um Papa
tinha introduzido na liturgia fúnebre um texto que era aterroriza-
dor: “Dies irae, dies illa...” = “Dia de ira, aquele dia...”
Um dia de ira e será por isto que mesmo as pessoas religiosas
são as mais apavoradas com o encontro com o Senhor, pois tudo
era colocado numa atmosfera tétrica.
Quer dizer que a morte é algo que nos colocava medo.
Há uns anos vivia conosco no convento um frei idoso que todos
os dias, todos mesmo, falava da morte... que ele morria, que nós
iriamos morrer.
Por exemplo, se alguém lhe perguntasse “o que vamos ter para
o almoço?” Ele ia dizer: ”se não morrermos antes... teremos
massa!” Ou: “nos encontraremos de noite para a missa” e ele: ”Se
não tivermos morrido!” E sempre deste jeito.
Um dia falei com ele “frei Donato, hoje vou sair, nos veremos de
tarde” “Se não morrermos”. Então não aguentei e lhe disse: “Mas
será possível que todos os santos dias você deve falar em morte?”
Ele me respondeu: “Certo, pois o Senhor falou que ele virá no mo-
mento em que menos o esperarmos”. Então, ele pensava sempre...
o Senhor não teria chance de surpreendê-lo!
A finalidade deste nosso encontro é de nos apropriar nova-
mente do sentido, (parece até estranho) positivo da morte, como
foi até no século passado.

Aos poucos a morte perdeu seu sentido natural

Aconteceu uma mudança no conceito da morte que coincidiu


com o lugar aonde a gente morre. Até há uns anos a morte chegava

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A última bem-aventurança – Alberto Maggi - OSM

normalmente, pela maioria das vezes, em casa, então o moribundo


estava rodeado pela família toda, inclusive as crianças – pois hoje
as crianças estão excluídas, de outro jeito ficam impressionadas...
Era um momento solene, sacral, onde a pessoa que estava mor-
rendo deixava suas últimas palavras, que eram guardadas como
fosse uma relíquia sagrada.
Pois bem, com o desenvolvimento das curas sanitárias transfe-
riu-se o lugar da morte.
Aos poucos não se morre mais em casa, mas no hospital e então
não mais rodeados pelo afeto e calor das pessoas queridas, mas
sozinhos, rodeados de maquinários, de jalecos, de enfermeiros e
de médicos e assim mudou também o tipo de morte desejado.
Hoje, quando se fica sabendo que uma pessoa morreu de im-
proviso, dormindo, comenta-se: “Que sorte! Nem percebeu. Mor-
reu sem perceber! Adormeceu como um passarinho!”.
Este tipo de morte, hoje mais desejado, já foi considerado uma
autêntica desgraça, pois havia até uma jaculatória que dizia: “Da
morte improvisa, livra-nos Senhor!”
Havia até livros, com o título: “Preparação para a boa morte”.
A morte era uma arte para a qual tinha preparação, pois era
visto como o momento mais importante da existência da gente.
Aos poucos tudo isto levou a mudar a ideia da morte, até che-
garmos, em nossos dias, ao rejeito da mortalidade, da morte, como
causa final de nossa existência.
Não se morre mais por sermos seres mortais, mas sempre se
procura uma causa.... Uma pessoa pode até ter 100 anos, mas ela
morreu porque... pegou uma gripe, porque levou uma queda, por
insuficiência cardíaca etc. Tira-se da meta final de nossa existên-
cia, o sermos mortais.
Isto porque não se sabe mais administrar este fato da mortali-
dade e as pessoas não morrem mais rodeadas pelo afeto das pes-
soas queridas.
Também para as pessoas idosas, quando não há mais nada a fa-
zer, escolhe-se sempre o hospital, prolongando, talvez, de uma se-
mana, dez dias ou um mês a existência, mas tirando a pessoa, e isto
dá um estresse muito forte, do ambiente de calor familiar onde a
pessoa tinha o direito de ficar.

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A última bem-aventurança – Alberto Maggi - OSM

Por que tudo isto? Porque não se sabe mais administrar o mo-
mento da morte, não sabemos mais o que fazer com alguém que
está morrendo e, mais ainda, com um cadáver. Tudo isto é muito
estranho.
Os falecidos nos dão medo, mas não porque estão mortos, pois
nada há mais inofensivo do que um cadáver... os mortos não nos
dão medo – quando há um velório se escutam experiência deste
tipo, de pessoas aterrorizadas por um mínimo sinal que poderia
manifestar que o morto volte para a vida.
Quer dizer que chegamos ao paradoxo de que os mortos não
dão medo por estarem mortos, mas por um eventual retorno à
vida. Isto nos aterroriza.
Isto tudo fez-nos eliminar o sentido da mortalidade e se vive,
normalmente, um tipo de enganação, uma mentira para com o que
está morrendo.
Não se fala a verdade para uma pessoa que está com uma do-
ença incurável, ‘não se pode dizer a verdade, pois isto pode agitá-
la...’ e então é privada, é furtada do momento mais importante de
sua existência.
Nós padres somos chamados seguidamente à cama de uma
pessoa que já está no fim, mas antes de nos deixar entrar nos avi-
sam: “Cuidado, não deixa que ela perceba nada... pois de outro jeito
ela se assusta, fica abalada”.
E, às vezes, entrando no quarto, o doente nos pede para fechar
a porta e ficando a sós nos diz: “Padre, eu sinto que estou no fim.
Não deixe os meus parentes perceberem isto, pois de outro jeito
eles se abalam”. É uma comédia macabra na qual se tolhe o mo-
mento mais importante da existência das pessoas.
A morte, pelo contrário, é um momento importante, pois é o úl-
timo presente que podemos dar aos nossos queridos. Porém, para
que isto seja redescoberto, revalorizado, vendo a positividade,
apesar de que seja na dor pelo fato da morte, precisa se relacionar
à mensagem de Jesus, à dos Evangelhos e nisto nos ajudará meu
confrade Ricardo.
Ele é um dos ótimos conhecedores de um dos mais complicados
livros da Bíblia, o livro do Apocalipse. Pois no livro do Apocalipse
o autor coloca perto duas palavras que parecem se contradizer:

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A última bem-aventurança – Alberto Maggi - OSM

“bem-aventurados”, o máximo da felicidade, com a “morte”.


Para recuperar o sentido positivo do morrer, seja dos nossos
entes queridos, seja a nossa, ouçamos Ricardo, que acolhemos e
agradecemos por esta contribuição.

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A última bem-aventurança – Alberto Maggi - OSM

3ª Palestra

A morte no livro do apocalipse – Pe. Ricardo

Estou um pouco emocionado em ter que falar para uma assem-


bleia tão importante, porém me sinto bem por poder partilhar este
dia com vocês.
O assunto é importante, pois se conseguirmos acolher bem o
que significa o morrer, conseguiremos também ter uma visão nova
e certamente melhor da nossa vida.
Não é possível separar uma coisa da outra, nosso viver e nosso
morrer.
Podemos falar da morte como bem-aventurança e podemos
fazê-lo tomando como texto o livro do Apocalipse de João, um
texto de grande atualidade e que procura fazer luz sobre aquelas
que são as questões fundamentais também para nós hoje.
Em nossa cultura tão para frente tecnologicamente, constata-se
uma falta de preparação para o assunto da morte.
A morte está quase ignorada como se ela não existisse, mas dei-
xar de lado a morte, como expressão daquele processo vital que
caracteriza nossa existência, coroando a vida da pessoa, significa
também ignorar o fato mesmo do existir.
Temos que ter coragem para entrar numa nova dimensão.
O Apocalipse nos ajuda para acolher uma nova visão, que clara-
mente tem suas raízes na mensagem evangélica, na boa notícia de
Jesus, em que a morte física, o morrer, é visto como uma passagem
para uma dimensão de plenitude.
As imagens do Evangelho nos colocam a morte sempre ligada
ao crescimento, ao germinar, ao dormir um sono recuperador para
acordar com mais energia ainda.

A morte não é o fim de tudo

No NT e também no Apocalipse, o que se percebe é que a morte


física, não pode interromper a existência da pessoa. Ela traz uma

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A última bem-aventurança – Alberto Maggi - OSM

percepção nova da própria existência, que não está mais condicio-


nada por nenhum tipo de limite, por nenhum obstáculo que possa
impedir seu desenvolvimento.
Eu acho que a coisa mais importante para todos nós é sentir que
nossa vida está crescendo sempre, não tem nenhum limite que
obstaculize tal processo.
Isto nos faz estar bem e nos permite de nos empenhar com
muita mais coragem, mais paixão, mais entusiasmo em todas as
coisas que temos de fazer, que temos de viver.
Por isso a morte neste sentido nos dá a possibilidade de dar
plenitude à vida, de nos fazer viver a vida de uma maneira nova.
Imbuíram-nos de medo da morte ao longo dos séculos, especi-
almente quando se olha para ela como uma interrupção brutal da
vida, que muitas das vezes está junto com o calvário da doença, da
dor e do definhamento.
Como é possível se libertar disto? A partir da mensagem da boa
nova que nos faz enfrentar este assunto, este tema de uma maneira
nova.
Um dos principais ensinamentos de Jesus está mesmo em nos
apresentar a morte como o fim de um processo biológico ao qual
todos estamos a caminho, mas que não estraga a vida da pessoa,
não interrompe este processo de crescimento, de desenvolvi-
mento, de amadurecimento da pessoa.
Quer dizer que acolher a boa notícia do Reino, e isto o encon-
tramos também no Apocalipse, não só não significa estar livres do
medo da morte, mas também livres da própria morte, vista como
interrupção, como o fim, o concluir-se de tudo.
A novidade do ensinamento de Jesus, com o qual o autor do
Apocalipse procurou levar para frente uma reflexão bastante séria
e profunda, é a de instaurar uma nova maneira de entender a rela-
ção com Deus e com os outros.
É uma modalidade de relações que permite libertar todas aque-
las capacidades de amor, de crescimento vital que estão presentes
na pessoa, em cada um de nós, até o alcançar essa maturação
plena.
Como procurou Jesus expressar este crescimento, este pro-
cesso de maturação?

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A última bem-aventurança – Alberto Maggi - OSM

Jesus o fez com a imagem da bem-aventurança. Este é o funda-


mento, é mesmo o programa que marca todo seu ensinamento, a
bem-aventurança do Reino.
Se nós falarmos de felicidade é claro que para ser feliz não po-
demos estar condicionados por nenhum esquema, por nenhum li-
mite que não permita nossa felicidade de se manifestar.
Por isto a bem-aventurança é aquela força da mensagem de Je-
sus, este convite à felicidade que quebra os esquemas de controle
e de dependência, que normalmente nos são impostos ou estabe-
lecidos pela religião, mas também por todo sistema que se opõe à
liberdade do ser humano, e a sua relação com Deus.
Entender a herança de Deus que quer o meu bem e que me fez
nascer para a vida e me fez estabelecer também relações com os
outros, tudo isto faz surgir, faz iniciar em mim um processo de
crescimento que me leva para uma dimensão de plenitude onde
não há mais limites que possam ser de obstáculo neste percurso.

Jesus nos quer livres de todo condicionamento

Quando Jesus fala em bem-aventurança é para romper, para


abater tantos condicionamentos ou tantos muros que, seja a reli-
gião, que a tradição, ou nossa maneira de resolver as coisas nos
impuseram.
Não podemos ser felizes (lembremos o “minha culpa... minha
grandíssima culpa...”) sentindo-nos sempre culpados. A bem-aven-
turança derruba este tipo de patologia, pois se nós descobrirmos
essa relação nova com Deus, de um Deus que quer nosso bem, não
nos sentiremos mais em culpa em relação a ele.
Não temos motivos para nos sentir trancados em nossos erros,
ou em nossas frustrações, ou em nossos traumas.
Ter uma imagem nova de Deus, uma relação com ele de confi-
ança, pela acolhida de seu amor, traz como consequência uma
nova relação com os outros.
Romper os diques, romper os esquemas, todos os condiciona-
mentos que nos foram colocados por imposição, garante nosso
crescimento e promove nossa humanidade.

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A última bem-aventurança – Alberto Maggi - OSM

Também o autor do Apocalipse percebeu muito bem esta novi-


dade trazida pela mensagem de Jesus com a bem-aventurança.
Alguém pode se perguntar o que tem a que ver o Apocalipse
com a bem-aventurança? Pois este livro sempre foi apresentado
com uma visão bem tétrica e até angustiante, violenta... um livro
cheio de imagem truculentas. E cadê a bem-aventurança?
O autor entendeu muito bem a novidade trazida por Jesus e
quis, ele também, dar sua contribuição, levando sua visão sobre a
maneira nova de ver esta bem-aventurança.
Antigamente falava-se de bem-aventurança = felicidade como
uma característica dos deuses.
Os deuses eram beatos, felizes. Por quê? Eles não tinham preo-
cupações.
Porém está maneira de entender a bem-aventurança foi des-
mentida por Jesus e também no livro, do Apocalipse, pois a felici-
dade não se pode encontrar vivendo desligados do nosso viver co-
tidiano, mas enfrentando as que são nossas situações contingen-
tes, também adversas, problemas, imprevistos, surpresas...
Não é possível sermos felizes fora desta realidade humana que
nos rodeia.
Os ricos poderão ter menos problemas, mas não são felizes, ten-
tam. Têm de tudo, mas não quer dizer que isto dê felicidade, pois,
no final das contas sempre tem um medo que ataca, o do morrer:
a morte!
Examinando a bem-aventurança na ótica do Evangelho, no livro
do Apocalipse, vejo que o caminho da felicidade está no se imergir
com maior força na realidade, isto é enfrentar com maior coragem
as situações que se apresentam.
Está claro que para ter esta visão das coisas eu preciso ter-me
libertado de qualquer tipo de limite, também o medo, que possa
estorvar no meu entrar de maneira mais forte e decidida no meu
dia-a-dia, para poder gozar das coisas que faço, também em mo-
mentos difíceis, também em situações precárias e sofridas.
O autor do Apocalipse usou o paradoxo, como fez também Je-
sus: falar do sermos felizes, como ninguém naquele tempo teria
ousado falar.
Pois para nós seria: “bem-aventurados os ricos, os que não têm

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A última bem-aventurança – Alberto Maggi - OSM

preocupações, aqueles que estão com um monte de mordomias”;


pelo contrário, Jesus falou de felicidade, bem-aventurança como
misericórdia, para os que constroem a paz e para isto uma pessoa
deve estar disposta também a estragar sua própria paz em vista da
paz dos outros.
Então não quer dizer estar sem preocupações, aliás, a bem-
aventurança cria mais preocupações, porém, experimenta-se ser-
mos pessoas autenticas, plenamente humanas e assim concreta-
mente felizes.
O Apocalipse retoma este paradoxo de falar das bem-aventu-
ranças não segundo o critério mais comum de uma humanidade
imatura.
O autor fará isto com paradoxo ainda maior, quando dirá: “bem-
aventurados os mortos”. Como se pode falar de mortos bem-aven-
turados, felizes?
O autor dirá bem-aventurados os que já entraram na vida, os
que já se sentem envolvidos na vida. A morte verdadeira – cha-
mada de segunda morte – “não tem mais algum poder sobre eles”.
Examinando as bem-aventuranças do Evangelho percebemos
que neste livro, o último e que fecha a Bíblia, o autor esparramou
nele as sete bem-aventuranças.
Falaremos de duas, a segunda e a quinta, lembrando sempre
que o número sete na Bíblia significa perfeição, totalidade e no
Apocalipse é a maneira do agir de Deus na história: o sete é o nú-
mero do divino.
Para nós é de estranhar isto, pois sempre foi apresentado o
Apocalipse com medo e distância. Sete vezes está nele o convite à
felicidade. Falar por sete vezes significa afirmar que Deus age na
história com uma única finalidade: a nossa felicidade. O que Deus
mesmo quer é que nós possamos ser felizes, totalmente felizes.
Tão felizes que nem a morte possa se tornar um fantasma, um
espantalho que seja empecilho do nosso crescimento, do nosso ca-
minhar rumo a uma humanidade cada vez mais profunda em cada
um de nós.
O autor é muito hábil em espalhar estas sete bem-aventuran-
ças, ao longo do seu livro.
O livro inicia com uma bem-aventurança e termina com outra

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A última bem-aventurança – Alberto Maggi - OSM

bem-aventurança.
Pelo estilo bíblico sabe-se que quando uma obra inicia num
certo modo e termina do mesmo jeito, isto significa que toda a obra
pode ser lida a partir desta chave de leitura.
O autor começa com uma bem-aventurança que diz respeito à
comunidade: “Bem-aventurado quem lê e os que escutam” e en-
cerra: “bem-aventurado quem põe em prática estas coisas”.
Para o autor é fundamental o grupo, a ideia de comunidade,
mas também é fundamental a pessoa.
A pessoa não pode nunca diminuir-se diante da comunidade,
mas no mesmo tempo a pessoa precisa de uma comunidade para
se sentir parte integrante desta boa notícia.
Em Ap 15 fala da segunda bem-aventurança, fala da morte e faz
isto de um jeito que pode parecer enigmático.
Ele diz: “E eu ouvi uma voz do céu que dizia: ‘escreva, daqui para
frente, bem-aventurados os mortos que morrem no Senhor. Sim, fala
o espírito. Eles descansarão de suas fadigas, pois suas obras os se-
guem”.
Esta segunda bem-aventurança está colocada num momento
importante do livro e de um jeito muito refinado do ponto de vista
literário e também teológico.
Tem como uma espécie de ponto alto em que o autor quer co-
locar em claro qual seja o objetivo do seu escrito. No cap. 14 apre-
senta este clímax, onde a bem-aventurança está inserida como
uma pérola que resume esta parte do livro.
Diz que na história do ser humano há uma realidade de vida que
Jesus está oferecendo para todas as pessoas e esta realidade de
vida nós sabemos que pode ser obtida a partir do momento em que
damos nossa adesão a ele e nos identificamos com sua pessoa, co-
locando nosso compromisso: fazer as mesmas escolhas de vida
que ele fez.
Isto significa que não há nada que possa impedir alcançarmos
essa plenitude. Porém, há também uma realidade de morte, uma
realidade que sempre tenta nos impedir de alcançarmos esta ple-
nitude, que possamos ter essa humanidade profunda, tão pro-
funda que o ser humano sente-se identificado com plena seme-
lhança com mesmo Senhor da vida.

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A última bem-aventurança – Alberto Maggi - OSM

É o que o autor apresenta com a figura do dragão: um sistema


de morte, o poder, isto é, tudo o que tenta bloquear, controlar, im-
pedir essa realização do desenho de Deus.

Na vida temos que tomar posição

Nesta altura do livro, precisa saber se posicionar, diz o autor:


ou estamos do lado da vida e nos empenhamos para crescer neste
dom que nos foi dado ou nos colocamos do lado dos que renegam
a vida.
O autor tira umas conclusões lógicas: quem se colocar do lado
da vida tem um futuro e sempre tem a garantia deste crescimento;
quem prefere, pelo seu interesse pessoal, ficar do lado do dragão
do sistema, aí não há futuro, não tem esperança, há somente
morte; uma morte que poderá ser definitiva.
O autor consegue entrar na mente dos seus leitores quando
chega ao clímax de sua obra, com a bem-aventurança onde chama
os mortos de bem-aventurados, felizes, pois a morte poderá ser
um momento a ser acolhido.
Isto dependerá do lado em que me posiciono, pois se estiver do
lado do sistema poderoso representado pelo dragão, a morte po-
derá chegar como algo violento, como um perigo que nos ameaça,
como se quisesse interromper nossa vida, produzindo prejuízos,
colocando a vida em perigo.
Chama os mortos de bem-aventurados..., é claro que se deve en-
tender os que pela adesão estão sendo testemunhas do Evangelho,
um testemunho forte da mensagem de Jesus e do seu agir, então
poder-se-ia traduzir: “Bem-aventurados todos os que morrem no
Senhor”; todos os que na vida souberam transmiti-la, comunicá-la
aos outros.
Então quem ama a vida vive para sempre.
O autor quer que fique bem claro que se posicionar em favor da
vida, do bem, das coisas boas, isso dá vida. Se posicionar do lado
oposto, do mal, da morte, só pode dar morte. Quer que isto seja
explicitado, não simplesmente descontado pelos seus leitores.
Por isso usa uma imagem, e a imagem vale mais do que mil pa-
lavras..., para que qualquer pessoa se questione: “eu, amo a vida de

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A última bem-aventurança – Alberto Maggi - OSM

verdade, até me doar com tudo de mim mesmo, com todas as mi-
nhas forças, com todas minhas energias em favor dela?”
Faz isto com a imagem da mulher no cap. 12, toma um persona-
gem feminino, “a mulher vestida de sol, coroada de estrelas, com a
lua debaixo de seus pés”. Esta mulher não é Nossa Senhora, mas é a
comunidade na qual Maria a mãe de Jesus tem um lugar relevante.
Apresenta esta figura feminina num momento particularmente
delicado e difícil: está com as dores de parto. O que quer dizer? É
o momento da máxima vulnerabilidade para uma mulher.
Está dando à luz. É um momento de sofrimento; um momento
que precisa de assistência, durante e depois, especialmente na-
quele tempo, sem todos os cuidados que hoje temos. É até um pe-
rigo para a vida dela.
O autor representa a vida da comunidade, numa situação pre-
cária, de quem está para dar à luz. Em contraposição coloca algo
imponente, poderoso: um dragão pronto para devorar a cria da
mulher.
Porém o dragão não consegue fazer nada, pois quem nasceu
está sendo arrebatado, sempre com imagens ricas de símbolos, até
o trono de Deus.

Nossa missão é sermos geradores de vida

É muito importante entender esta imagem para entender a


bem-aventurança, pois a missão de quem crê, a nossa, que nos de-
claramos seguidores de Jesus, não é senão ser geradores vida, ser
pessoas fecundas: a vida se gera quando se tem amor.
Esta mulher está grávida de todo o amor do Pai e quando al-
guém recebe este amor se torna uma pessoa grávida e pronta para
gerar amor.
A mulher, chegando a hora do parto não pode desistir disto, não
pode dizer: “agora não quero dar à luz”. Deve fazer isto, apesar da
dor e do perigo de vida.
Pois nem sempre o dar à luz ao bem, à vida, nos dá prazer, pois
às vezes é feito em situações hostis, onde esta “vida” não está
sendo valorizada e até está contestada.
As dores de parto, são este compromisso que assumimos, nosso

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A última bem-aventurança – Alberto Maggi - OSM

ser fieis como esta mulher, imagem da comunidade. O nosso acre-


ditar percebe a fecundidade do amor e então damos à luz a vida,
uma vida que se comunica. A coisa mais bonita nisto é o fato de
que o dragão não tem poder algum sobre esta vida que geramos.
A mensagem que aqui temos é algo fundamental: nós somos
chamados como seguidores de Jesus a comunicar vida e não para
combater dragões. Não temos que combater ninguém, temos so-
mente que nos sentir grávidos e esta gravidez nós a percebemos
quando nos deixamos envolver plenamente pelo amor do Pai.
Quando há amor não dá de desistir e dizer: “eu agora não vou
gerar o bem, não vou produzir o bem”, se isto acontecer quer dizer
que não há amor em nossa vida.
Se eu parar diante do bem que poderia fazer e não faço, quer
dizer que não há nenhuma gravidez dentro de mim, tudo podia ser
uma ficção.
Quando há amor do Pai acolhido de verdade não poderei deixar
de produzir vida.
A coisa mais importante é que nada daquilo que fazemos com a
marca do bem, nada, nem as coisas mais insignificantes vão se per-
der.
Isto é que fala o autor do Apocalipse, pois a força do dragão é
só aparente.
O dragão com todas as suas cores, com todos seus diademas,
com todos os seus atributos de poder, é somente aparência. Sua
força consiste na enganação, na sedução.
A enganação do dragão está naquilo que nós ouvimos todos os
dias: “Deixa para lá, pois isto não leva a nada! Porque se desgastar?
Você vê o que está acontecendo ao seu redor? Você não vê que a
corrupção está em todas as partes e está crescendo cada vez mais?
E você acha que adianta fazer o que está fazendo? Você não vê que
todo mundo te acha um iluso, um bobo! Aqui todo mundo leva o
máximo que pode e você fica aí dando uma de leal, de honesto?”
Essa é a única arma que o dragão possui: o engano! Alguém se
deixa prender pelo engano, se não sentir dentro de si esse amor
que está brotando, quer dizer que não sentiu realmente este dom
sem medida do Pai.
Sentindo este amor, eu não me deixo seduzir ou condicionar

31
A última bem-aventurança – Alberto Maggi - OSM

por nenhum tipo de sedução que possa fazer alguém que consi-
dero mais forte, do que eu.
O amor que carrego dentro de minhas vísceras eu o manifesto,
o comunico e continuo fazendo isto também em situações precá-
rias e de máxima vulnerabilidade, como a de dores de parto da mu-
lher.
Como Paulo, que afirmava ser mais forte, quando se sentia mais
fraco, como a mulher na situação de máxima vulnerabilidade, es-
tamos chamados para manifestar o máximo do poder, pois este po-
der apesar de as vezes parecer microscópico, aos olhos do Pai é
considerado como tendo uma marcha a mais.
Pois é seu desígnio que se realiza na história e isso pode ser do-
cumentado: as coisas amadurecem do nada e este amor nos trans-
forma alcançando todas as criaturas.

Todo gesto até mínimo de doação tem dimensões infinitas

Nada será perdido daquilo que fizermos com amor. Nada se


perde quando nosso gesto foi tocado pelo amor, foi fecundado pelo
amor.
Essa é a grande lógica que o autor do Apocalipse retoma de toda
a boa notícia de Jesus.
Em todo nosso gesto, precisa colocar sempre uma dose de ter-
nura, de atenção para o outro, de tolerância, de amor.
Isto torna nossos gestos autênticos e não podem ser apagados
por nenhum poder da terra, pois, pelo Pai isto é considerado como
uma contribuição, uma energia a mais, uma força a mais que eu
estou dando para que seu projeto magnífico se realize.
O autor quis nos abrir os olhos para que não nos deixemos en-
ganar pelo dragão que é tão chamativo, mas, na verdade, não tem
algum poder a não ser a força do seu engano.
Precisa também não se deixar condicionar quando o dragão nos
ameaçar dizendo: “olha que posso te devorar! A que serve teu em-
penhar-se?” Ele não pode destruir a gente, pois o bem tem um po-
der tão grande que não pode ser vencido.
Nenhuma força humana poderá impedir ao bem de se manifes-
tar e especialmente de ser visto e considerado com uma força a

32
A última bem-aventurança – Alberto Maggi - OSM

mais nesse crescimento que a história está levando pra frente.


O autor, como resumo de tudo isto nos diz: “Ouvi uma voz do
céu”... Parece até que toda a esfera do divino queira intervir nesta
declaração.
Sentimos como se fosse o eco do Espírito, esta voz que ressoa
continuamente em nossa vida. O eco do Espírito que diz ao autor:
“Deve escrever” e escrever significa que isto deve ficar sempre pre-
sente na vida de quem crê, que fique palavra indelével.
Escreve isto: “Bem-aventurados os mortos que morrem no Se-
nhor”. Não bem-aventurados os mortos que morrem PELO Senhor.
Não é um Deus que pede que se dê a vida por ele, que se renuncie
a tudo, pois ele pensa no nosso bem... este é o jeito de dizer da re-
ligião.
Não! Não! Não! Mas é morrer NO Senhor, isto é, morrer conhe-
cendo Jesus como o modelo da vida para a humanidade. Isto per-
mite também a nós, sermos como ele, pessoas verdadeiramente
humanas.
Sem dúvida quando ele fala desse morrer no Senhor, está fa-
lando do nosso morrer que se manifesta dia por dia quando me
identificar com Senhor que se doou, deu a manifestação de seu ver-
dadeiro poder.
Morrer no Senhor significa ser como ele, como foi ele: sempre
amante da vida.
No santinho em lembrança da mãe de pe. Alberto mandamos
escrever: “Quem ama a vida vive para sempre”. Esta é a bem-aven-
turança do Apocalipse!
Quando amamos a vida como a amaram nossos entes queridos
a morte não tem nenhum poder sobre nós: a morte física não é
uma interrupção desta vida, mas é o coroamento para uma dimen-
são de plenitude de vida ainda maior, muito mais rica.
Morrer no Senhor significa sermos como Jesus, pessoas que
amam sempre a vida.
Vendo nos Evangelhos os gestos que Jesus fez, suas palavras, se
percebe que são sempre sinal de uma paixão pela vida.
Jesus nunca apresentou grandes doutrinas, elaboradas teolo-
gias, nunca sentou numa cátedra para fazer grandes discursos,
mas sempre falou com a linguagem de quem estava apaixonado

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A última bem-aventurança – Alberto Maggi - OSM

das realidades que aconteciam ao redor dele.


Quando ele senta numa mesa será um momento fundamental
de comunhão. As dele são todas expressões de vida. Quando ama-
mos a vida nos tornamos vivos para sempre.
O morrer no Senhor será confirmado pelo Espírito, pois diz:
“Sim, diz o Espírito, que descansem de suas fadigas...” (Ap 14,13)

Um descanso eterno, o que é isso?

Aqui não se trata de um descanso como nós imaginamos, pois


ficamos estarrecidos pensando numa eternidade sem fazer nada,
aí parados... sem ação, não se trata de um ‘repouso’, ficando aí sem
fazer nada. Ele explica e diz: “pois suas obras os acompanham”.
Este “descanso” o que significa? Jesus tinha falado para a mul-
tidão em Mt 11,28: “Vinde a mim vós que sois cansados sob o peso
do vosso fardo e eu vos darei descanso”. Ele é nosso repouso.
Quer dizer que é o repouso do Criador, quando completou a
obra da criação do universo e goza de sua obra.
O repouso não significa inatividade, mas gozar, isto é contem-
plar, se comprazer daquilo que de bom a gente foi capaz de reali-
zar.
E quando alguém se compraz daquilo que de bom conseguiu fa-
zer não pode ficar indiferente, mas se joga, se imerge ainda mais
nessa realidade de vida.
João, o autor do Apocalipse retoma mais vezes tantos ensina-
mentos do quarto Evangelho, quando Jesus diz: “Meu Pai trabalha
e eu também trabalho”.
É verdade que Deus criou e descansou, mas não foi um des-
canso inativo. Compraz-se pelas coisas bonitas e está inserindo na
história energias novas, para estas coisas bonitas continuarem
crescendo.
Isto nos diz que os nossos entes queridos não estão numa imo-
bilidade, mas são criadores com Deus, estão gozando o fruto da-
quele bem que eles souberam gerar.
Enquanto se comprazem do bem estão inserindo na história,
juntamente com o Pai, a fonte da mesma história, coisas novas.

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A última bem-aventurança – Alberto Maggi - OSM

Podemos pensar nossos queridos falecidos como que continu-


ando a operar. Como seria chato pensar num ente querido sentada
aí num canto sem fazer nada... Na visão de João os mortos no Se-
nhor são colaboradores com o Pai, contribuindo àquele respeito
profundo que se insere na criação, àquele Espírito de vida que vai
transformando, vai promovendo, vai fazendo que a mesma vida se
manifeste com toda sua riqueza.
Repousam, isto é, gozam o fruto de suas obras e, diz João: “pois
suas obras o seguem”.
Isto é interessante, pois na mentalidade rabínica achava-se que
no momento da morte, antes de entrar no paraíso, o fiel seria pre-
cedido pelas suas obras.
As obras era tudo o que dizia respeito a observância, cumprir
com todas aquelas prescrições até mínimas. As obras eram algo
visto em si mesmas.
O autor do Apocalipse não aceita isto. Diz: ‘Não, as obras não
podem nos preceder, mas elas nos seguem, pois elas fazem parte
integrante de nós mesmos’. A reflexão que ele faz é de que nós não
podemos desligar a vida de nossa fé. Se nós cremos naquilo que
significa estar vivos, nos jogamos para dar, também com nossos
gestos, nossas obras, com tudo, para que a vida seja mais forte,
maior e mais rica.
Então as obras seguem-nos como identidade daquilo que fomos
como expressão máxima do compromisso em favor da vida.
Nessa bem-aventurança o autor que esvaziar a morte de sua
dramaticidade. A morte física não deve nos assustar: ela não se
opõe à vida, ela faz parte do processo biológico que inicia com
nosso nascimento e se conclui com o cessar do nosso ser biológico.
Este morrer significa cumprir um percurso rumo a uma nova
dimensão mais profunda, mais rica, de mais vida, e por isto João
acrescenta a “bem-aventurança” ao morrer. Quando não tenho
medo da morte física, então me empenharei com todas as minhas
forças para fazer crescer a vida.

Ter medo da morte significa ter medo da vida

O medo da morte pode significar também medo da própria

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A última bem-aventurança – Alberto Maggi - OSM

vida. Se tenho medo de morrer quer dizer que também tenho


medo do viver: me freio naquilo que gostaria de realizar.
Quando, porém, a morte não é vista como uma espécie de blo-
queio, de pedra sepulcral que põe fim à existência, eis que então,
eu começo a enxergar as coisas de maneira muito mais serenas e
percebo, que esta vida é para sempre, que a vida é uma coisa única,
não há uma vida aqui e outra depois... a vida é só uma.
Deus nos criou para a vida e esta vida que, sem dúvida, possui
uma dimensão terrena, continua, porém, depois da morte numa
dimensão de plenitude.
Quando eu não tiver mais medo da morte, eis que então posso
dedicar todas as minhas forças para fazer que a vida possa crescer
de maneira cada vez melhor e posso me deixar fecundar pelo amor
de Deus: eu também estar grávido, como aquela mulher, e dar à
luz, apesar de gritar pelas dores do parto, como ela, pois também
o parto me custará sacrifício, empenho, às vezes poderá acontecer
em situações particularmente difíceis, mas não é por isto que deixo
de me lançar nesta aventura. Jesus usa a mesma expressão do
parto: ‘A mulher, quando nasce seu filho esquece todas as suas do-
res, a alegria pela criança que nasceu, é maior do que o empenho
que precisou para enfrentar esse tipo de experiência’.
Quando a morte é esvaziada de sua dramaticidade e quando é
tirado esse sentido de fim irreversível, a vida é vista com olhar di-
ferente e nos sentimos assim prontos para manifestá-la sem mais
empecilhos que nos possam impedir de crescer.
O autor foi muito hábil em colocar esta bem-aventurança no
ponto central de sua obra, para que seus leitores, membros da co-
munidade se sintam sempre participantes desse ato criador do
Pai.
Nós somos colaboradores de Deus a partir do momento que sa-
bemos que podemos gerar vida e que, também depois da morte,
continuará nossa colaboração, este nosso contribuir com o Pai fa-
zendo com que a história em que ele nos imergiu, possa alcançar a
sua meta.
Quero terminar esta primeira parte com a frase que colocamos
na lembrancinha de Anna, a mãe de Alberto: “Quem ama a vida

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A última bem-aventurança – Alberto Maggi - OSM

vive para sempre e quem vive para sempre está sempre no cora-
ção de Deus, dessa fonte de vida que nunca nos abandona”.

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A última bem-aventurança – Alberto Maggi - OSM

4ª Palestra

O Apocalipse e a segunda morte – Pe. Ricardo

João escrevendo a Apocalipse foi verdadeiramente corajoso no


saber transmitir para a comunidade ideias que ajudam a refletir
sobre a Boa Nova: elas são aprofundamento da mensagem evan-
gélica.
Ele começa assim seu livro: “Apocalipse (Revelação) de Jesus
Cristo”, e o autor faz uma denúncia fortíssima do poder que está
em oposição ao crescimento, à possibilidade que o ser humano
tem, acolhendo a Boa Notícia do Reino, de alcançar seu amadure-
cimento.
Apresenta o poder também como executor de enganos, um po-
der que é todo aparência e que nunca vai gerar vida.
Ele faz esta distinção ao longo das páginas de sua obra para que
a comunidade fique muito atenta, saiba sempre se colocar em fa-
vor da mensagem de Jesus, da Boa Notícia, e a ponha em prática. É
deste jeito que o poder devagar será destruído.
Ele nos apresenta outras bem-aventuranças. A quinta que e
está em Ap 20,6 e diz: “Bem-aventurados e santos os que tomam
parte da ‘primeira ressurreição’. Sobre eles a ‘segunda morte’ não
tem poder, mas eles serão sacerdotes de Deus e do Cristo e reinarão
com ele por mil anos”.

Nossas boas obras (não méritos) nos seguem

João afirma que os que morreram no Senhor são bem-aventu-


rados, pois a morte não interrompe a vida, mas a potencializa, e
diz que estas pessoas que olham para a morte com esta nova visão,
são bem-aventuradas, pois suas obras os seguem.
As obras não são os méritos, como era na mentalidade judaica,
não é a observância da lei, que é coisa separada da vida e pouco
tem a ver com a realidade que vivemos.
“As obras os seguem” no sentido que todo o bem que se fez – a

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A última bem-aventurança – Alberto Maggi - OSM

imagem da mulher que está para dar à luz – o bem que se conse-
guiu comunicar. Isto é o que fica.
No momento da morte fica o bem que tivermos feito, todo o
resto some. Até as coisas mais simples e pequenas que tivermos
feito, com amor, com ternura, na acolhida do outro, tudo isto fica.
Nesta nova bem-aventurança: “Bem-aventurados e santos os
que tomam parte da primeira ressurreição. Sobre eles a segunda
morte não tem poder, mas eles serão sacerdotes de Deus e do Cristo
e reinarão com ele pôr mil anos”, encontramos uma das páginas
mais difíceis.
O livro do Apocalipse é complexo, não podemos achar que en-
tendemos tudo, mas podemos tomar umas pérolas assimilando-as
e testemunhando-as.
Estamos cientes que essas pérolas nascem em contextos de di-
fícil interpretação. Em Ap 20 é apresentado aquele reino milenário
de Cristo: “reinarão com ele pôr mil anos”.
Tudo isto abriu para uma série de interpretações, às vezes
muito equivocadas, erradas mesmo, e criaram uma confusão
dando ao livro do Apocalipse uma visão catastrófica... assustadora.
O que são estes “mil anos”?
Desde a Idade Média se tentou explicar, tomando a imagem no
sentido literal e passando por cima do simbolismo que marca todo
o livro. Pensou-se que “mil anos” fosse um período que, antes do
julgamento final, – olhando sempre negativamente – iria acontecer
na história, somente para os justos, antes da ressurreição.
Perguntavam-se: ‘quando será, então, este milênio?’. Uns di-
ziam: ‘deve antes acontecer uma segunda vinda de Cristo, naquele
momento haverá o reino dos mil anos com o grupo dos eleitos’.
Esta é a mentalidade que prevalece nuns movimentos, grupos,
numas Igrejas evangélicas: as testemunhas de Jeová, os adventis-
tas. Espera-se essa segunda vinda a fim de que se inicie o reino mi-
lenário com os eleitos.
Outros diziam: ‘o reino se manifestará no momento em que Je-
sus vai voltar, mas desde já se está sentindo no coração dos ho-
mens algo como...’ Em breve deram tantas interpretações – bas-
tante fora do rumo certo – lendo de forma literal está história dos
mil anos.

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A última bem-aventurança – Alberto Maggi - OSM

Agostinho tinha tido uma intuição, inspirando-se em outros Pa-


dres da Igreja. Afirmou algo que de verdade pode ser tomado como
interpretação mais certa.
‘Aquele reino milenário não é outra coisa a não ser o tempo da
Igreja na história’.
Desde o momento em que Jesus vence a morte abriu-se a última
etapa, a definitiva.
Esse é o reino de “mil anos”, não é para esperar mil anos... Neste
tempo a Igreja é chamada para manifestar o desígnio do Pai, então
é o momento em que também o Pai intervém na história a fim de
que seu projeto se realize.
Um salmo pode ajudar a entender, ele diz: “Para você mil anos
são como um dia que passa”. Este é o tempo de Deus, seu momento
presente, um agora contínuo.
Ontem estava sentado com uns de vocês aí fora, no mesmo lu-
gar onde nos sentamos no ano passado e alguém disse: “Puxa, nem
parece que se tenha passado um ano... parece que foi ontem que
estávamos sentados aqui”.
“Mil anos” é o tempo em que nós temos que intervir, descruzar
os braços e nos mexer nesta vida que brota e que nós temos que
manifestar... ‘temos que dar a luz’!
É o tempo da história, também da Igreja, da comunidade e neste
tempo o autor colocou a quinta bem-aventurança, onde nova-
mente se fala de ressurreição da morte.
Fala que os que participam da “primeira ressurreição” são os
que já experimentaram, até em seu corpo, a libertação da morte,
pois a morte não tem mais poder sobre eles.
Quando o autor fala de “primeira ressurreição” e que para esses
“a morte não terá poder”, usa duas imagens: antes “morte – pri-
meira ressurreição”, e “segunda morte”.
Mas não há uma sequência de tempo, falando de “primeira” e
“segunda”, como também não terá uma “primeira morte – ressur-
reição” e uma “segunda” que seguirá.
O autor quer puxar a atenção da comunidade sobre estas ex-
pressões que podem parecer até contrastantes, e que precisam de
maior interpretação.

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A última bem-aventurança – Alberto Maggi - OSM

Precisa entender “primeira ressurreição” como o que é priori-


dade, que está em primeiro lugar. Quer dizer que o que prevalece
para nós seres humanos é a vida de ressuscitados.
Isto o experimentamos já, a partir do momento em que damos
nossa adesão ao projeto do Pai, e continuará até o momento da
atualização total deste projeto.
Em primeiro lugar a ressurreição, que é única, Deus nos criou
para isto.
Paulo, falando para sua comunidade escreve: “Vós já ressusci-
tastes”, e falava de pessoas que estavam vivas, não falecidos. As
primeiras comunidades já experimentam esta dimensão de pleni-
tude bem antes de passar pela morte.
Está é a única prioridade, viver uma vida de tal qualidade que
seja definitiva. Então a morte física não passa de uma conclusão de
um processo biológico.
Quando alguém sufoca em si qualquer sopro de vida, então ex-
perimentará a que João chama de “segunda morte”, não porque
haja uma morte anterior: será o desfecho.
O autor fala “bem-aventurados os santos” e á a primeira vez que
no N.T. acrescenta-se ao “bem-aventurado” a palavra “santo”. San-
tos eram os membros da comunidade que fizeram sua escolha em
favor do projeto da vida e de plenitude dessa vida que o Pai comu-
nica.
Por isso, a partir do momento que eu me identifico com esse
projeto de vida eu vivo separado do mal, e na minha vida não ha-
verá nada que possa prejudicar o outro.
Por esta experiência o autor do Apocalipse se dirige aos seus
chamando-os de “santos”, então a santidade não é algo excepcional
que somente alguns possam experimentar, mas é a dimensão nor-
mal para quem fez a escolha radical em favor do outro.
São bem-aventurados e são santos porque têm parte da “pri-
meira ressurreição”. A expressão “ter parte” é retomada pelo autor
também do quarto Evangelho.
Em Jo 13 está: “Jesus lhe disse [a Pedro] ‘Se eu não te lavar os pés
não terás parte comigo’”.
“Ter parte” à primeira ressurreição significa: ‘Quem não entrar
nessa dimensão de serviço, quem não acolhe o gesto de Jesus, que

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A última bem-aventurança – Alberto Maggi - OSM

veio para servir e não para ser servido, quem não quer colocar sua
vida ao serviço dos outros, não terá parte com ele: não tem nada a
que ver com ele’. Quer dizer, não experimentará essa ressurreição.
Jesus continuará: “Se tiverdes entendido estas coisas, se as puser-
des em prática”...
Então, quem tem parte à “primeira ressurreição” são pessoas
que orientam sua própria vida em favor dos outros, fazendo do
serviço a expressão máxima de sua vida.
A grandeza do ser humano consiste nesse saber orientar suas
próprias forças para o bem dos outros. É isto que nos torna vivos
para sempre, diz o autor do Apocalipse.
Isto nos faz participantes do que é mais importante, o primeiro:
“a ressurreição”.

O serviço é minha verdadeira grandeza


Não há outra ressurreição e é algo que nós já experimentamos
a partir do momento em que assimilamos o ensinamento e enten-
demos o valor do serviço como sendo a verdadeira grandeza que
nos faz semelhante a Jesus.
A partir deste momento entra-se na condição de vida para sem-
pre. Por isso não há nenhum obstáculo que impeça o crescer, nem
mesmo a morte física.
Por isso o autor acrescenta logo: “Sobre ele a ‘segunda morte’
não tem poder nenhum”.
Quem em sua vida fez do serviço aos irmãos a expressão nor-
mal, a característica de sua pessoa, recebe uma qualidade de vida
tão grande que nada e ninguém, nem a morte poderá impedir que
a pessoa manifeste o melhor de si mesma.
Para falar da “primeira ressurreição” (= prioridade absoluta) o
autor emprega uma fórmula originalíssima que não se encontra
em nenhum outro lugar. No evangelho João fala de “primeiro man-
damento”, em Apocalipse ele fala de “primeiro amor”. Trata-se de
um mandamento, de um amor, que supera e que exclui todos os
demais.
A “morte segunda” então, não tem algum poder e esta é a confi-
ança com a qual a comunidade dos fieis deve-se colocar diante da
vida. E nenhum poder impedirá o compromisso no fazer o bem.

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A última bem-aventurança – Alberto Maggi - OSM

Se nós não gerarmos o bem é porque não queremos. Pois nin-


guém pode me impedir, por exemplo, de... perdoar, , de ser gene-
roso, ser tolerante, solidário.
Quem vive deste jeito não é condicionado por nenhum empeci-
lho, nem pela morte, pois garante João, “ela não tem poder algum
sobre eles”.
Falar de “segunda morte” é algo original, mas não exclusivo de
João. O encontramos na tradição judaica. Encontramos a “segunda
morte” nos “Targum” livros de traduções para o aramaico, feitas
nas sinagogas quando se lia em hebraico a Torah, a lei de Moisés.
Numa releitura do Dt 33,6 o tradutor do Targum escreve: “Viva
Ruben neste mundo e não morra da ‘segunda morte’, morte dos
que morrem os malvados no mundo futuro”.
O autor da Apocalipse retomou esta imagem da segunda morte,
para esvaziar a morte física de sua dramaticidade, de um sentido
de apagamento total.
Ela não tem poder algum sobre quem se abre à vida, porém
nessa segunda morte fica sempre uma possibilidade para quem
não quer escolher o fazer o bem nesta vida.
João, porém, não descreve como seja esta segunda morte. Só
para frente dirá que a segunda morte “é uma lagoa de fogo e enxo-
fre”, algo que nada tem a que ver com a ideia de inferno que nós
temos. Só quer dizer que aí a vida não pode brotar.
E acrescenta que nesta lagoa de fogo e enxofre até a própria
morte será eliminada, quer dizer que a segunda morte acaba com
ela mesma.
Fala da segunda morte como um alerta à comunidade para que
ninguém caia numa situação onde não tem esperança. E como não
precisa esperar morrer para experimentar a primeira ressurrei-
ção, também a segunda morte pode entrar nas pessoas que sufo-
cam em si mesmas todo gesto de solidariedade humana.
É algo que toma pé na vida das pessoas até chegar a sufocá-la.
Jesus apresenta de maneira figurada, quando fala da Geena, que
era o lixão de Jerusalém com fogo permanente. Falava de uma pos-
sibilidade de tornar nossa vida um lixo, para quem não tem a von-
tade de ter um amor que se abre à vida.
A morte segunda, sem descer em pormenores, é apresentada

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A última bem-aventurança – Alberto Maggi - OSM

como uma eventual possibilidade para quem não quis fazer de sua
vida uma oportunidade de crescimento, de encontro, de acolhida,
de partilha com os outros: o valor mesmo de estar vivos.
O que nos permite sempre ir para frente, não é a coragem, mas
a confiança.
Pois a coragem pode até faltar diante de algumas situações que
podemos encontrar, mas acreditando de verdade na proposta do
reino será a confiança que nos ajuda.
A confiança não exige forças especiais, só se sentir inserido na
onda vital e nos deixar levar por ela que sempre nos levará para
frente até quando nos parece faltarem forças.
Estamos vivos para sempre quando se ama a vida e se pode ex-
perimentar a dimensão autêntica da vida quando temos parte da
mesma Bem-aventurança de Jesus: quando somos capazes de ori-
entar nós mesmos em favor do bem dos outros e conseguimos ver
no serviço a expressão maior e mais certa deste bem.
É só entender isto e toda nossa realidade pessoal adquire todo
um valor positivo.

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A última bem-aventurança – Alberto Maggi - OSM

5ª Palestra

As imagens do morrer – pe. Alberto Maggi

A primitiva comunidade cristã que acolheu e fez florescer em


sua existência a mensagem de Jesus deu a esta mensagem o nome
de “evangelho” que é “Boa Notícia”.
E a boa notícia é a de um Deus–Amor, um Deus que deseja nossa
felicidade e, por Jesus, revela que aquela realidade considerada a
grande inimiga do homem, a morte, na verdade ela não existe.
A grandeza está na novidade trazida por Jesus: ele nos libertou
da própria morte, não só do medo da morte como tinham tentado
fazer filósofos, pessoas religiosas, conseguindo mais ou menos.
Jesus tinha garantido que terminando a vida biológica, não
acaba a vida da pessoa.
A impossibilidade por parte dos evangelistas em falar de uma
realidade que ninguém pode experimentar em sua plenitude, –
pois a morte é experimentada somente pelas pessoas que morrem
e nenhum defunto voltou para nos contar... – levaram os evange-
listas a precisar usar umas imagens tiradas todas elas do ciclo vital.
Falando desse momento importante da pessoa, sempre evita-
ram a palavra “morte”, pois o que morre acaba para sempre. Tam-
bém a Igreja evita a palavra “morrer”.
No dia 2 de novembro é celebrada a comemoração não dos
mortos, mas dos “defuntos”. Em latim “defungere” significa “termi-
nar uma função”, completar sua missão.
Também os evangelistas, indicam este momento importante na
existência da pessoa, usando imagens tiradas do ciclo vital da na-
tureza, como “dormir”, “semear” e “gastar”.
Em Mateus se lê: “os sepulcros se abriram e muitos corpos dos
santos dormentes se levantaram”. Falando dos que deram sua ade-
são a Jesus os evangelistas evitam usar a palavra “mortos” e escre-
vem “os que dormiram”. Jesus do Lázaro, dirá “nosso amigo ador-
meceu”.
A morte para os que acolheram Jesus e sua mensagem, não é o
fim de tudo, mas um momento no qual a pessoa descansa do can-
saço para depois acordar com novo vigor.

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A última bem-aventurança – Alberto Maggi - OSM

O dormir faz parte do ciclo vital e é indispensável para uma boa


qualidade de vida. Quem não dorme morre, mas quem dorme vive
melhor. O dormir é uma pausa que permite à pessoa retomar sua
atividade, sua vida, com maior vigor e maior força.
Os evangelistas usam a palavra “dormir” para indicar o fim da
pessoa humana, então querem dizer que a morte é uma etapa im-
portante da existência, como o dormir que serve para nos dar mais
vigor numa nova atividade.
A morte não é algo que leva ao fim, mas é uma etapa indispen-
sável para permitir à pessoa de voltar com maior força ao seu ciclo
vital. A palavra “cemitério”, que vem do grego, significa “dormitó-
rio”: o lugar onde os falecidos iam “dormir” como pausa no traba-
lho da existência. Para os cristãos a morte era adormecer e isto ti-
rava todo medo.

A semente plantada parece morrer, mas vira planta

Outra palavra muito significativa usada pelos evangelistas para


indicar o fim da pessoa a encontramos em João. Jesus afirma: “Se o
grão caído na terra não morrer, ficará sozinho. Se morrer, pelo
contrário, produzirá muito fruto”.
A morte, para Jesus, não destrói a pessoa, mas é o momento pri-
vilegiado e precioso onde é permitido à pessoa libertar todas
aquelas forças de amor e qualidades de vida que tinha dentro de si
e que no breve arco de sua existência – sempre breve demais... –
não conseguiu fazer brotar e florir. A terra não segura a semente,
mas lhe comunica seus alimentos para que exploda e libere todas
as suas energias. Assim também Deus, com a morte, não absorve a
pessoa humana, mas a potencia.
A imagem da semente é muito importante para nos fazer enten-
der que a morte não é destruição, mas libertação. Dentro de cada
um de nós existem enormes capacidades, forças, energia de amor,
de generosidade, de doação para com os outros.
Porém no arco de nossa existência não conseguimos fazer flo-
rescer todas elas para enriquecer a nossa vida e a vida dos outros.
Às vezes acontece – e é uma experiência que acho todos nós fi-
zemos – em momentos de emergência, quando um parente está

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A última bem-aventurança – Alberto Maggi - OSM

passando mal, quando temos que assistir uma pessoa querida des-
cobrimos dentro de nós energias, forças, capacidades de doação,
de sacrifício e de resistência, que nem imaginávamos ter.
Precisou aquela emergência para que florescesse em nós está
nova qualidade de vida.
Ela já existia, mas precisou de umas circunstâncias favoráveis
para emergir. Deste jeito é a morte. Não é a destruição da pessoa,
mas é o momento privilegiado aonde toda nossa capacidade de
amor, toda a força do nosso amar se liberta, desencadeia e se
transforma em uma vida nova.
Na imagem da semente nem tem comparação entre a beleza da
espiga e a da semente.
A beleza, a força, o esplendor da espiga já estava dentro do pe-
queno grão de trigo, porém, precisava de condições favoráveis, ne-
cessárias para que todas as energias fossem liberadas. Nesta vida
éramos um grãozinho, depois nos tornamos espigas.
São Paulo entendeu muito bem. Escreveu em 1Cor 15,36: “O que
semeias não readquire vida a não ser que morra. O que semeias não
é o corpo da futura planta que deve nascer, mas um simples grão de
trigo ou de qualquer outra espécie. A seguir Deus lhe dá corpo como
quer; a cada uma das sementes ele dá o corpo que lhe é próprio”. E
continua: “O mesmo se dá com a ressurreição dos mortos: se-
meado corruptível, o corpo ressuscita incorruptível; semeado
desprezível, ressuscita reluzente de glória; semeado na fra-
queza, ressuscita cheio de força”. E conclui: “semeado corpo psí-
quico” (= natural, biológico), “ressuscita corpo espiritual”. Isto
aponta para a morte como uma transformação.

A transfiguração como sinal de nossa transformação

A ressurreição não é um voltar para a vida, não é uma reanima-


ção de um cadáver, mas é a transformação que permite à pessoa
se manifestar em formas e modalidades novas.
É o que os evangelistas nos apresentam no episódio da transfi-
guração de Jesus.
Falando com seus discípulos Jesus tem uma grande dificuldade:
anuncia que vai morrer e eles não aceitam isto de jeito nenhum,

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A última bem-aventurança – Alberto Maggi - OSM

pois para eles não é possível que o messias possa morrer.


Depois do desentendimento que teve com Pedro, aonde chegou
a chamá-lo de “satanás”, (a palavra mais dura que Jesus tenha
usado com alguém dentre os discípulos), é apresentado o episódio
da transfiguração. E na transfiguração Jesus mostra qual é a con-
dição da pessoa que passa pela morte.
A morte não diminui a pessoa, mas a potencia: é sua plena rea-
lização! Os evangelistas colocam a transfiguração no sexto dia, que
seria o último dia da criação, mostrando em Jesus a realização de-
finitiva da criação da pessoa humana. Para indicar isto usam a
frase “e foi transformado diante deles e seu rosto resplandeceu como
o sol e as suas vestes se tornaram brancas como a luz”. “Resplande-
cer como o sol” era uma expressão que indicava a plenitude da
condição divina. Os evangelistas usam a palavra “transformação”
ou “transfiguração”.
A morte não é aniquilamento da pessoa, mas uma transforma-
ção. Nossa vida é toda uma sucessão de transformações, de “mor-
tes”. Se pegar uma foto de quando tinha dois aninhos já me reco-
nheço por aquilo que eu sou, porém naquela criança que está na
foto não há quase nada daquilo que eu sou agora.
Houve no decorrer da vida uma mudança, uma transformação,
os cabelos, a pele... mas sou sempre eu. Acontecerá num certo mo-
mento de nossa existência, essa transformação final. Está claro, en-
tão, que pelos evangelistas a morte é vista como uma transforma-
ção que inicia desde o começo da existência terrena. Ainda S. Paulo
(2Cor 3,18) afirma: “Somos transformados nessa mesma imagem”
[a glória do Senhor] “cada vez mais resplandecente, pela ação do
Senhor que é Espírito”.
Na vida da pessoa humana há uma transformação na qual
emergem aspectos que são importantes para entendermos a men-
sagem de Jesus: o conflito entre a parte biológica e o que constitui
a nossa verdadeira natureza. S. Paulo usa uma imagem muito bru-
tal para indicar este conflito: “Por isto não nos deixamos abater.
Pelo contrário, embora em nós, o homem exterior vá caminhando
para a sua ruína, o homem interior se renova dia a dia” (2Cor 4,16)
Esta é uma experiência que se compreende chagando a certa
idade..., percebe-se o conflito em nossa existência. Uma coisa é o

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A última bem-aventurança – Alberto Maggi - OSM

que aparece para os outros, nosso corpo físico, outra é a compre-


ensão, a consciência que nós temos de nós mesmos.
Cria-se um conflito, apesar de exercícios físicos, de cremes etc.
nosso corpo se encaminha para “a sua ruína” total. Mas ao mesmo
tempo em que nosso corpo se acaba, nossa realidade interior, que
dura para sempre, rejuvenesce dia após dia.
Até no falar se manifesta isto. Não percebemos o tempo que
passa, mais quanto o tempo passa mais nos sentimos jovens. Hoje
vi um grupinho de senhoras acima dos oitenta e uma delas disse:
“Vamos moças”, isto porque dentro de nós permanecemos jovens,
até rejuvenescemos.
Chegamos a certo ponto de nossa vida em que, olhando as fotos
que alguém tirou, começamos a dizer: “aqui não sai bem, aqui es-
tou feio, desta não gostei”. Não é que não saímos bem... não esta-
mos bem! Não é que sai feio... estou feio! É que a percepção que
temos de nós não corresponde àquela que refletimos externa-
mente. Paulo de forma bruta tem razão: estamos indo dia por dia
para a ruína.

Temos a vida biológica e a vida indestrutível

Os evangelistas nos ajudam com sua linguagem. Eles distin-


guem, usando duas palavras para indicar “vida”, usam: “bios” que
é a vida física que, para crescer, para se desenvolver deve ser ali-
mentada; a outra é “zoe” que significa “a vida indestrutível”, que se
alimenta se fazendo alimento para os outros.
Zoe seria um nome bonito para mulher. Porém, existem dois
nomes que não consigo convencer ninguém a pôr em crianças re-
cém-nascidas: “Zoe”, que indica “plenitude de vida” e outro que
precisaria ser recuperado é “Lúcifer”, que significa “portador de
luz”.
Este último era um nome muito usado nos primeiros 4 séculos
do cristianismo. Em seguida, com a lenda do anjo soberbo, [que
não está na Bíblia] este nome foi deixado.
Temos que encontrar o equilíbrio entre alimentar a bios e ali-
mentar a zoe.

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A última bem-aventurança – Alberto Maggi - OSM

Quem só recebe alimento e não se torna alimento para os ou-


tros desenvolve a parte biológica, mas deixa atrofiar a outra vida,
a “zoe” e isto faz acontecer que na chegada da morte biológica, a
morte de nosso corpo, vai ser o fim, pois a vida que dura para sem-
pre não foi alimentada e então se dá a “segunda morte” de que fala
o Apocalipse.
A “bios” cria um ser vivente, mas é a “zoe” que torna o ser vital.
Nós não temos que ser somente seres viventes, mas seres vitais,
temos que vivificar as pessoas.
Está clara, então, a distinção: nós possuímos uma parte bioló-
gica que para crescer deve ser alimentada, mas temos também a
outra parte da vida – a que dura para sempre – que para crescer
deve se fazer alimento para os outros.

Na eucaristia jesus se faz pão para nós sermos pão

Jesus realizou tudo isto na Eucaristia. Jesus se faz pão para que
todos os que o acolhem sejam capazes não só de comer este pão,
assimilá-lo, mas, por sua vez, se fazer pão para os outros.
Na Eucaristia temos o equilíbrio entre estes dois aspectos da
vida: somos alimentados para ser alimento para os outros. É muito
importante compreender esta distinção.
Chega-se a certo ponto na vida em que há como que uma sepa-
ração entre esses dois aspectos: enquanto a parte biológica, que
teve um começo, um crescimento e um desenvolvimento máximo,
inicia lentamente, mas implacavelmente, a decadência até o desfa-
lecimento total – apesar de nós tentarmos de muitas formas parar
isto – o outro aspecto, o que dura para sempre, continua a crescer
sem medida sem ser prejudicado.
Sabe-se que todo dia morrem em nós milhões de células. Chega-
se ao ponto em que essas células não se renovam mais, morrem e
não são substituídas. É o envelhecimento!
Chegará o momento em que todas as células que compõem
nossa existência acabam seu ciclo vital. Só quem terá desenvolvido
a outra qualidade de vida, a “zoe” escapará desta experiência de
fim.
Esta é a garantia que Jesus nos dá. Como é possível garantir este

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A última bem-aventurança – Alberto Maggi - OSM

estado de vida indestrutível que os evangelistas chamam de


“eterna”?
Toda escolha positiva, todo ato de amor, todo gesto de genero-
sidade, cada concessão de perdão que nós fazemos em nossa exis-
tência liberta em nós e faz crescer capacidades, realidades de amor
que concretizam o projeto que Deus tem sobre nós e nos dão a es-
trutura definitiva, isto é a “vida eterna”. Toda vez que nós amamos,
nosso gesto de amor fica para sempre. “As obras o seguem”, vimos
no Apocalipse. Quando a gente faz o bem, este bem fica para sem-
pre e nos proporciona a estrutura definitiva: a “zoe”.
Há o perigo das escolhas negativas que estragam e destroem
aquela realidade de vida que a pessoa estava chamada a concreti-
zar.

A grande ilusão: pensar só em si mesmos

Isto acontece quando a pessoa pensa só em si mesma, não


pensa em ser alimento para os outros. Quer alimentar só a si
mesma e está toda presa pelos seus interesses pessoais, pelas suas
necessidades que nem percebe as necessidades dos outros que lhe
estão por perto... Ora só para que Deus a socorra!
Há o perigo que quando chegar a morte biológica encontre a
pessoa totalmente esvaziada de energias vitais: será a “segunda
morte” falada no Apocalipse.
A morte biológica não atinge em nada a plenitude de vida de
quem teve uma qualidade de vida doada: esta os capacitou a supe-
rar a morte biológica.
A morte biológica pode não encontrar nada, pois a pessoa viveu
sempre e só pensando em si mesma, em suas necessidades. A pes-
soa pode ter desenvolvido a vida biológica, mas não fez crescer a
outra parte, a que devia permanecer para sempre.
É bom saber que este não é um papo religioso, seja bem claro.
É algo que diz respeito à humanidade das pessoas.
Quando Jesus explica estas coisas ele diz que o que realiza
nossa existência não será a atitude que tivermos mantida para
com o Senhor, aliás, muitos nem conhecem o Senhor, muitos o re-
jeitaram ou foi apresentado de maneira negativa para eles, mas o

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A última bem-aventurança – Alberto Maggi - OSM

que realiza nossa vida são as atitudes que nós tivemos para com
as pessoas.
Para nossa realização não é importante se tivermos crido no
Senhor, mas se tivermos feito o bem para os outros.
Não nos pedirá quantas vezes fomos ao templo para oferecer
sacrifícios, mas quantas vezes abrimos nossa casa, partilhando do
nosso pão com quem precisava. É na plena doação da pessoa que
se realiza a plenitude da vida que é capaz de superar a morte.
As pessoas que se ‘espiritualizam’, isto é, que tem uma relação
exclusiva com o Senhor e que essa relação com o Senhor não se
manifesta em atitude de humanidade, de atenção, de solidariedade
para com os outros, essa são pessoas que, apesar de sua religiosi-
dade, de sua vida de piedade aparente, não tem em si esta quali-
dade de vida que permite a elas superar a morte.
É um dado de fato e o confirmaram para mim médicos e enfer-
meiros, no tempo que passei no hospital, vendo minha atitude, me
falavam: “É de estranhar, mas as pessoas mais aterrorizadas pela
ideia da morte, na nossa experiência, são mesmo padres, freis e ir-
mãs”.
Isto acontece porque desenvolveram uma relação com o Se-
nhor a sentido único que não bateu com a humanização para com
os outros.

As perguntas comuns sobre os mortos

E agora vejamos as perguntas de sempre, falando dos entes


queridos que faleceram.
Onde eles estão? Como estão? O que estão fazendo?
No Apocalipse, o autor dizia: “Bem-aventurados, desde já, os
mortos que morrem no Senhor”.
Sim, fala o Espírito, repousarão de suas fadigas, porque suas
obras os seguem”.
Aonde, então, esta vida que continua terá sua continuação? A
primeira coisa a ser excluída é o cemitério. No cemitério vão os
restos mortais, mas não as pessoas.
No hospital redigi um testamento e dei todas as indicações exa-
tas para meu funeral, pois não queria que depois de minha morte

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A última bem-aventurança – Alberto Maggi - OSM

alguém entrasse de metido, falando coisas que eu nunca teria


aceito ou organizasse espetáculos contrários ao meu ser.

‘Organizei meu enterro...’

A primeira indicação foi que, no fim da missa, o féretro saísse


da igreja e fosse entregue à funerária que o levaria para o cemité-
rio sem que ninguém o seguisse.
Todos os participantes da eucaristia deviam logo passar para o
refeitório e no jardim do convento para festejar comigo, que esta-
ria aí vivo na plenitude da vida.
Então nós, apesar de que possa ser algo sofrido, apesar de ser
algo contrário ao costume e a uma atitude que parece piedosa, é
indispensável que façamos uma escolha, para poder manter uma
relação de plena comunhão com nossos queridos que agora entra-
ram na dimensão da vida com uma presença ainda mais próxima.
Quando Jesus, nos evangelhos, fala aos seus: “É melhor para vo-
cês que eu vá”...como é que pode afirmar isto? Como pode dizer que
é melhor para eles que ele morra?
É isto mesmo, pois somente passando pela morte Jesus poderá
potencializar sua atividade em favor dos seus, pois não será mais
condicionado pelo espaço, pelo tempo, pelos limites físicos, mas,
na plenitude da vida e do amor, poderá estar com os seus e cola-
borar com eles na ação vital.
Do mesmo jeito nossos entes queridos! Quando nossos queri-
dos, pela morte, entram nesta dimensão nova da vida, esta não os
separa de nós, mas os aproxima ainda mais.
A deles não é uma ausência, mas uma presença ainda mais in-
tensa. Mas por que não conseguimos perceber esta presença? O
que acontece?
Então vem a primeira escolha, anunciada acima, a ser feita. Te-
mos que escolher entre chorá-los como falecidos ou experimentá-
los como vivos.
O Evangelho nos dá indicações muito claras. Quando as mulhe-
res se dirigem ao túmulo de Jesus têm o caminho barrado por dois
homens, dois anjos, que fazem para elas uma pergunta muito clara:

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A última bem-aventurança – Alberto Maggi - OSM

“Por que procurais entre os mortos aquele que está vivo?” Preci-
samos encarar esta escolha, apesar de dolorida, e eu respeito a
sensibilidade de todo mundo, sabendo se tratar de assuntos que
podem chocar.

Temos que escolher

Escolhemos chorar como morto nosso querido que faleceu? En-


tão vamos para o cemitério. Queremos experimentá-lo como vivo?
Então nada de cemitério, mas tornemos presente uma qualidade
de vida a ser realizada para entrar em comunhão e perceber os si-
nais contínuos de sua presença que o defunto continua a nos dar,
como para dizer-nos: “Olhe que estou aqui, eu não fui para lugar
nenhum”.
Sei que não é fácil, pois fomos acostumados a um culto de cemi-
tério...
Quem conheceu minha mãe e a ligação forte que eu tinha com
ela, especialmente depois da morte de meu pai, sabe o quanto amei
esta mulher. Eu nem sei onde está sepultada: nunca irei ao cemi-
tério, nunca mesmo!
Não me interessa ir ao cemitério... para fazer o que? Minha mãe
não está debaixo de algum metro de terra. Minha mãe está pre-
sente continuamente em minha vida, incessantemente, e o amor
que ela tinha por mim não está diminuído, pelo contrário está po-
tenciado, pois continua a me amar, agora enriquecida pelo amor
de Deus.
Isto eu entendi quando, há uns anos, faleceu meu pai. Frequen-
temente falo destes assuntos doloridos, da morte, e digo para mim
mesmo: “Eu creio profundamente nestas coisas que falo e não falo
nada a não ser aquilo que acredito e experimento”.
Sempre me pergunto: “Quanto serei atingido pessoalmente,
isto é, quando morrer alguns dos meus queridos, estas coisas per-
manecerão verdadeiras, ou não?” Pois até que a gente fala de algo
que ainda não experimentou... pode-se falar qualquer coisa.
Pois bem, quando faleceu meu pai, tudo o que eu acreditava so-
bre a morte me foi confirmado, menos uma coisa. Eu acreditava
isto que se falava, que quando morre uma pessoa querida, morre

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A última bem-aventurança – Alberto Maggi - OSM

alguma coisa dentro de nós. Eu, porém, não senti morrer algo em
mim, mas senti dentro de mim uma explosão de vida que se trans-
formou em alegria.
Se falo isto, é porque muitos experimentaram a mesma coisa,
mas tem medo de manifestá-lo para não parecerem pessoais in-
sensíveis ou pouco amorosas para com a pessoa que morreu.
Eu, claramente, na morte de meu pai, chorei, mas me sentia in-
vadido de uma crescente alegria que não conseguia conter e que
até me colocou numa situação embaraçosa. Em seguida pensei:
por que esta alegria?
Estava claro. Meu pai me amava demais. Agora que estava na
plenitude do amor de Deus, este amor estava sendo derramado em
mim com uma força que até então desconhecia.
A mesma experiência fizemos, Ricardo e eu na Espanha, quando
morreu a mãe dele e fomos no funeral. Uma alegria crescente,
transbordante até se tornar incontrolável, tanto assim que eu
disse a Ricardo: “Espera um pouco antes de sair da sacristia, pois
teus irmãos poderiam pensar que enchemos a cara de vinho”. Está
é a experiência da morte!

Os mortos não precisam de flores... as flores para os vivos

Temos que optar. Sei que é dolorido, sei que muitos têm o culto
do cemitério, o culto das flores.... As flores levemo-las aos vivos!
São eles que precisam das nossas flores, não os mortos. As flores
para os defuntos... servem para quem as vende, e certamente não
para os defuntos. As flores... para os vivos!
Esta é a certeza de minha fé que se torna esperança. O remorso
daquilo que não foi feito em vida para os defuntos, se transforma
em culto de cemitério: procura-se devolver à pessoa do defunto o
que não lhe demos em vida.
Talvez esteja chocando a sensibilidade de alguém, pois as pes-
soas que vão frequentemente ao cemitério não vão se sentir bem,
mas temos que fazer uma escolha.
Vou repetir: quer chorar o defunto como morto? Continua indo
ao cemitério!
Quer experimentá-lo como vivo deves mudar de atitude.

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A última bem-aventurança – Alberto Maggi - OSM

Isto é o próprio evangelho que diz com o anúncio dos anjos às


mulheres: “Por que procurais entre os mortos aquele que está vivo?”
Se os nossos entes queridos não estão no cemitério, onde eles
estão? Estão na dimensão divina. Estão com Deus. E aqui entra o
problema dos nossos catecismos...
Acho que desde nossa infância nos ensinaram: “Onde Deus
está?” “No céu, na terra e em todo lugar”, isto é, traduzindo: em
nenhum lugar... Se ele está no céu, na terra e em todo lugar, por
que não percebemos sua presença? Este jeito de explicar corre o
perigo de passar a ideia que Deus não está em lugar nenhum.
Antes de conseguirmos recuperar a relação com os nossos que-
ridos mortos é fundamental estabelecer a relação com Deus, per-
ceber de sua presença em nossa vida e ver este Deus em toda cir-
cunstância. Isto é possível fazer.
As palavras dos evangelhos não são promessas, são realidade.
Todas as palavras do evangelho são verdadeiras e verídicas.
Jesus em Mateus anuncia que são bem-aventurados os puros de
coração – o coração no mundo hebraico é a mente: o puro de cora-
ção é uma pessoa transparente – pois verão a Deus.
Não é a promessa para o além, pois no além todos verão a Deus,
também quem não é puro de coração. É uma possibilidade no pre-
sente. Quer dizer, não é um prêmio para o futuro, mas a garantia
de uma constante, cotidiana presença na existência da gente.
O que mesmo significa “Bem-aventurados os puros de coração?”
Jesus coloca esta Bem-aventurança logo depois do convite para
sermos “pobres de espírito”.
Pobres de espírito não significa carentes, mas refere-se aos que
voluntariamente, livremente, por amor, escolhem partilhar o que
têm, o que são, com quem não têm, com quem não é. A renúncia
desses pobres bem-aventurados é de toda forma de ambição, de
ganância. Eles acolheram a novidade trazida por Jesus de se torna-
rem seus colaboradores do Reino.

Verbos malditos e verbos benditos

Eles renunciaram aos três verbos amaldiçoados, que causam no


homem o ódio, a rivalidade e a inimizade, os verbos TER, SUBIR e

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A última bem-aventurança – Alberto Maggi - OSM

MANDAR, e os substituíram com os verbos PARTILHAR, DESCER


(não considerar ninguém excluído do raio de nossa ação) e SER-
VIR.
Pois bem, estes pobres fazem a experiência constante de Deus
em sua existência.
Esta não é uma circunstância que possam viver somente pes-
soas especiais. Jesus não falou para uma elite de pessoas espiritu-
ais ou pessoas com particulares qualidades, Jesus se dirigiu a todo
mundo.
É possível para cada um de nós fazer experiência de Deus em
nossa vida. É importante não esquecer isto!
Quanta diferença entre crer que Deus é Pai e experimentar ele
como Pai!
A tragédia de nossa formação cristã é que nos imbuem de dou-
trinas, mas não nos permitem fazer as experiências.
Perguntem para qualquer pessoa batizada, que crê: “Você acre-
dita que Deus é Pai?” Todos dirão que sim. Perguntem em seguida:
“Me diga quando foi a última vez que você o experimentou como
Pai”, silêncio total.
Para que serve crer que Deus é Pai se não o se experimenta na
existência pessoal?
E isto é importante não somente pela relação com Deus, mas
pela relação com nossos queridos mortos que estão na esfera di-
vina.
O evangelho nos dá algumas indicações para podermos experi-
mentar Deus em nossa existência. Deus sempre está presente em
nossa vida e incessantemente comunica energias vitais para serem
acolhidas por nós, poder emergir e serem manifestadas.
Para que isso se realize precisamos limpar nossa mente de to-
das as imagens falsas que temos de Deus.
No AT, 1Reis 19,11ss Elias faz experiência de Deus. Está escrito:
“Veio um furacão que, de tão violento partia as montanhas e que-
brava as rochas... no entanto Javé não estava no furacão”. O vento é
uma manifestação de potência. “Depois do furacão, houve um ter-
remoto, Javé, porém, não estava no terremoto. Depois do terremoto
apareceu fogo, mas Javé não estava no fogo”.

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A última bem-aventurança – Alberto Maggi - OSM

O autor apresenta três elementos potentes: o furacão, o terre-


moto e o fogo, que eram consideradas manifestações do Deus, mas
o autor nega isto.
Deus não se manifesta no poder. E continua: “Depois do fogo ou-
viu-se uma voz mansa e suave”, e é aí que está a presença do Senhor.
Isto é importante.

Não ‘crer em Deus’, mas experimentá-lo como pai

Quem pensa num Deus de poder não conseguirá experimentar


um Deus de amor. Quem crê num Deus que está no alto, não po-
derá nunca perceber um Deus que desceu e veio aqui em baixo.
No evangelho de João há um episódio significativo quando:
“veio uma voz do céu”, uns acham que foi um trovão. Quantos pen-
sam num Deus poderoso, o pensam como um trovão. “Outros di-
zem, foi um anjo”, quantos pensam a Deus longe pensam que é um
anjo. E ninguém pensa que esta voz seja dirigida às pessoas.
E Jesus dirá: “Esta voz não veio para mim, mas para vocês”.
É importante, pois, a exata concepção de Deus para experi-
menta-lo em nossa existência e com Deus a dos nossos entes que-
ridos.
Deus se manifesta no amor e não no poder. Quando a pessoa
entra nesta dimensão percebe logo a presença continua, crescente,
cotidiana de Deus em sua própria vida, um Deus que cuida até dos
aspectos insignificantes.
Isto dá tanta serenidade. No AT encontramos a experiência des-
concertante de Jó que, depois ter feito a experiência de Deus,
afirma: “Certamente o Senhor está neste lugar e eu não sabia”. O
Senhor estava presente, mas ele não sabia.
Este pode ser nosso perigo também. Deus está presente em
nossa vida e nós não percebemos, e se não percebermos a pre-
sença de Deus não podemos também perceber da presença dos
nossos queridos falecidos que em Deus continuam sua existência
colaborando com ele à sua ação criadora.
Outra coisa a ser evitada é pensar na morte dos nossos queri-
dos como a uma partida para lugar desconhecido. Escuta-se dizer:

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A última bem-aventurança – Alberto Maggi - OSM

“Deus o tenha num bom lugar...”. Ou, o que é usado mais para pes-
soas religiosas e que se parece tão piedoso (e não é mesmo): “Vol-
tou para a casa do Pai”. Isto significaria que com a morte os nossos
queridos nos abandonam. A deles fica uma ausência.
Se o falecido voltou para a casa do Pai significa que não está
mais na nossa casa. Esquecemos que toda nossa fé, nossa lingua-
gem, nossa pregação deve se referir aos evangelhos. Temos que
rever estas afirmações que podem parecer piedosas e pelo contrá-
rio são vazias em relação ao ensinamento de Jesus. Jesus fala o con-
trário.
No evangelho de João afirma: “Se alguém me ama observará mi-
nha palavra e o meu Pai o amará e nós iremos a ele e nele faremos
nossa morada”
Esta que Jesus faz não é uma promessa para o além, mas é a
resposta do Pai para um comportamento levado para frente na
existência da gente. Quantos entre nós – hoje, agora mesmo – de-
cidem orientar sua própria vida para o bem dos outros e para o
serviço dos outros se tornam a casa de Deus.
Deus escolhe morar no íntimo das pessoas. E isto é importante
para entendermos o fato da morte. Deus mora na pessoa e a pessoa
é a casa de Deus, por isto com a morte ninguém vai para a casa do
Pai, pois a pessoa já é a casa do Pai.
Com a morte a gente não vai para o céu, pois o céu veio na pes-
soa. Isto é muito importante de ser compreendido e isto explica
nosso sermos eternos.
Com a morte não temos um partir para um lugar que é chamado
casa do Pai, mas há uma presença que se identifica, pois eu sou a
casa do Pai, a casa de Deus e por isto minha vida é eterna e indes-
trutível.
A partir dos evangelhos está excluída em absoluto a ausência
dos nossos queridos: uma partida! A morte – vou repetir, pois são
conceitos que devem entrar em nossa cabeça – não afasta nossos
queridos de nós, mas os aproxima; a deles fica uma presença mais
intensa, nunca uma ausência.

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A última bem-aventurança – Alberto Maggi - OSM

Maria mãe de Jesus e Maria Madalena


Esta ideia para entrar precisa de tempo, precisa de um cresci-
mento gradual.
Vejamos a imagem de duas mulheres que amadureceram sua
fé, mas num certo momento seus caminhos se separam. Elas estão
presentes aos pés da cruz de Jesus.
A ordem de prisão dada pelo sumo sacerdote não era só para
Jesus, era para todo o grupo. Não só Jesus era um perigo, mas pe-
rigoso era seu ensinamento.
O ensinamento dele era que Deus pede para morar nas pessoas.
E isto coloca em alerta a instituição religiosa. Se as pessoas acredi-
tarem nisto é o fim do templo e o fim das entradas do dinheiro que
o templo fornecia. E os 8.000 sacerdotes? Desempregados!!!
Então seria o fim do culto e da instituição religiosa.
A mensagem de Jesus é perigosíssima. A instituição religiosa ti-
nha conseguido separar Deus das pessoas, mantê-lo longe se colo-
cando no meio, como mediadora.
Se o povo acolher esta mensagem de Jesus, que Deus entra em
comunhão com as pessoas ao ponto de tornar a pessoa sua casa, é
o fim da instituição religiosa, por isso que tinha que se dar um fim
a todo o grupo de Jesus. A ordem era prender todo mundo.
E Jesus com uma postura de força, quando vão para prendê-lo,
diz: “Se é a mim que procurais deixem que estes vão embora”. Ele
mesmo tinha falado: “O pastor ama suas ovelhas”... e faz isto. Então
prendem Jesus e os outros fogem.
Os encontraremos trancados a chave por medo de acabar como
Jesus. Porém nem todos fugiram. Uns se apresentaram no lugar da
execução, não para consolar alguém que estava para morrer, mas
para demonstrar estar dispostos a seguir seu mestre até no suplí-
cio da cruz.
Por isto o evangelista nos apresenta Maria, a mãe de Jesus,
perto da cruz não como uma mãe que sofre por seu filho, mas como
a discípula que está disposta a ter o mesmo fim do seu mestre.
Com Maria está também Maria de Magdala. Estas duas mulhe-
res, corajosas, se declaram dispostas a ter o mesmo fim de Jesus.
Mas depois seus caminhos se dividem.
Jesus morre e a mãe desaparece. Fica só Maria de Magdala. Os

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A última bem-aventurança – Alberto Maggi - OSM

pintores, os artistas darão um jeito em falsificar esta conclusão,


apesar de sabê-lo fazer artisticamente.
Por que Maria não está presente na deposição do filho? Todos
temos presente a estátua chamada “‘La Pietà’ de Michelangelo”:
Maria com Jesus em seu colo!
Porém isto não passa de uma fantasia do artista, não está no
evangelho. Maria não está na deposição do seu filho.
Na deposição estão os discípulos que, incapazes de segui-lo na
vida, o querem adorar como morto, José de Arimateia e Nicode-
mos. A mãe não está. E, ainda mais impressionante, Maria não está
perto do tumulo do filho. Encontraremos Madalena.
Pois bem, Maria, que os evangelistas nos apresentam como mo-
delo de fé, a discípula perfeita, que compreendeu e acolheu a men-
sagem de Jesus, não chora um morto, mas continua seguindo um
vivente.
É por isso que não é a mãe que acolhe o filho deposto da cruz,
mas os que não conseguiram segui-lo na vida. A mãe não chora um
morto, pois sabe que ele está vivo.
Esta é a grandeza e a unicidade de Maria que os evangelistas
nos apresentam como modelo de plenitude de fé. Quer dizer que
Maria estava perto da cruz, disposta a morrer como o filho, mas
em seguida some.
Maria Madalena não entendeu a mensagem de Jesus, não o aco-
lheu, então chora um morto: não chegou a este nível de fé. Está
presente perto da cruz, mas ainda não está madura e chora o mes-
tre morto.

O segredo está em experimentar a presença dos falecidos

Até que ela chora diante do túmulo, não conseguirá perceber


ele vivo ao seu lado.
Em João 20 lemos: “Dito isto voltou-se para trás, viu Jesus que
estava aí de pé, mas não sabia que era Jesus”. Ela não percebe Jesus
vivente e vivificante atrás dela. E não percebe nem quando começa
a desgrudar o olhar do túmulo e olha para Jesus.
Maria representava, pelo evangelista, a comunidade que está
totalmente condicionada pela ideia judaica da morte, como fim de

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A última bem-aventurança – Alberto Maggi - OSM

tudo e, apesar de olhar para Jesus não o consegue perceber como


vivo. Enquanto continua a crer que Jesus está no túmulo não será
possível reconhecê-lo como vivo.
Então João escreve: “Disse-lhe Jesus: ‘Mulher, por que choras?
Quem procuras?’” Ela, pensando que fosse o guardião do jardim,
disse-lhe: ‘Senhor se tu o levaste embora, dize-me onde o colocaste
para que vá buscá-lo!’” Jesus lhe pergunta: ‘Quem procuras? Pro-
curas um cadáver ou procuras um vivente? Se procuras um vivente
não podes encontrá-lo no lugar da morte’. “Jesus lhe disse: ‘Maria’.
Ela virando-se para ele lhe disse ‘Rabbunì’ que em hebraico signi-
fica ‘Mestre’”. Como o pastor chama as ovelhas pelo nome, assim
Jesus se dirige a Maria. Maria se vira duas vezes, não bastou uma
vez. Isto não se refere a uma atitude física, mas espiritual.
É o sinal da conversão necessária, indispensável para o encon-
tro com o ressuscitado.
Esta é a possibilidade que todos nós temos, mudando a ideia da
morte poderemos experimentar a presença dos nossos entes que-
ridos vivificantes em todo momento, em toda circunstância da
nossa existência.
Concluindo, o único presente que podemos agora oferecer aos
nossos queridos, a eles que nos doaram sua vida, é parar de chorar,
doando nosso sorriso. Nossa serenidade será a plenitude da sere-
nidade deles.

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A última bem-aventurança – Alberto Maggi - OSM

6ª Palestra

Se acreditar verás

Vejamos agora um texto importantíssimo do evangelho, um da-


queles textos que, se acolhido e entendido, muda radicalmente
nossa relação com Deus, com nossos irmãos e, mais ainda, neste
momento, nossa relação com os aspectos da vida, da morte e da
ressurreição. Iremos examinar Jo 11, a Ressurreição de Lázaro.
Este episódio, na interpretação que nós lhe daremos poderá ser
desconcertante.
A que nós apresentaremos é uma proposta, quem sente estar
de acordo com esse desejo de plenitude de vida, a acolha; quem se
sente turbado fique mesmo com a clássica imagem deste texto: um
cadáver reanimado para morrer novamente...
São três as afirmações solenes contidas neste evangelho que es-
tão precedidas pela palavra “divino”.
Quando Moisés pergunta o nome, tem como resposta “Eu sou”
e a partir daquele momento, “Eu sou” se tornou o nome de Deus.
Em João, Jesus que é Deus se apresenta reivindicando a pleni-
tude da condição divina. Por três vezes afirma “Eu sou”; e afirma
ser “o pão vivo” (Jo 6,35) e esta afirmação, será em seguida ilus-
trada no episódio da multiplicação dos pães; afirma ser “a luz do
mundo” (Jo 8,12) e por sua vez esta afirmação será depois desen-
volvida com o episódio da cura do cego de nascença, e por fim, dirá
“eu sou a ressurreição e a vida”.
Em Jo 10,17 Jesus declara: ‘E dou a eles a vida eterna, não se per-
derão, ninguém os tirará de minhas mãos’.
No capítulo que estamos vendo agora o evangelista nos de-
monstra qual seja o destino de quem está nas mãos do Senhor, isto
é, de quem confiou completamente nele.
Esta mensagem que não é de fácil entendimento. O evangelista,
com suas chaves de leitura, vai nos guiar.

Primeira chave de leitura: “o povoado”

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A última bem-aventurança – Alberto Maggi - OSM

Jo 11,1 “Havia alguém doente, Lázaro, de Betânia, o povoado de


Maria e de sua irmã Marta”.
Para começo esta apresentação e muito estranha. Por que o
evangelista não escreveu, o que seria mais lógico: “havia um do-
ente, Lázaro, de Betânia, o irmão de Maria e de Marta”...
Coloca no centro (o que é não para esquecer) “o povoado”. Em
todos os evangelhos quando se fala de “povoado”, é uma chave de
leitura. “Povoado – vilarejo” é uma palavra técnica que os evange-
listas usam para indicar “resistência ou oposição” à mensagem de
Jesus. Isto porque o “povoado”, diferentemente da cidade, é o lugar
da tradição. As novidades chegam sempre em atraso, e elas são vis-
tas com suspeita.
Escrevendo “povoado” o evangelista dá uma indicação técnica
para nos dizer: atenção este episódio será marcado pela incompre-
ensão e hostilidade para com a mensagem de Jesus.Com palavra o
evangelista nos alerta: ‘cuidado! O que estou para escrever agora,
não será entendido, pois haverá oposição por aqueles que estão
agarrados firmemente à tradição’.
No mundo religioso toda novidade é sempre vista com suspeita.
Sempre si coloca a objeção: “mas por que mudar, sempre foi feito
deste jeito”. Isto é o “povoado”.
O evangelista diz: “Maria era a que tinha perfumado o Senhor e
lhe tinha enxugado os pés com seus cabelos, o irmão da qual era Lá-
zaro que estava doente” (Jo 11,2)
João antecipa a outra cena que vem logo: a comunidade cristã,
uma semana depois da morte e ressurreição de Lázaro, no lugar
de celebrar o banquete fúnebre como era costume, celebra – e é
isto que João nos faz entender – a eucaristia.
Nesta eucaristia, nesta casa é o perfume que inunda tudo. En-
quanto o símbolo da morte é fedor, o símbolo da vida é o perfume
que enche a casa.
João nos coloca o que dará a possibilidade de entender: o per-
fume que é imagem da vida que é mais forte do que a morte. Eis a
segunda chave de leitura!
A oposição será vencida e se descobrirá que a vida é mais forte
do que a morte.
As irmãs – se esperaria que falasse as suas irmãs – o evangelista

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A última bem-aventurança – Alberto Maggi - OSM

omite “suas” e quer nos indicar a realidade de uma comunidade de


fieis a Jesus. “As irmãs mandaram, então, que falassem a ele: ‘Eis –
atenção! – aquele a quem queres bem está doente” (Jo 11.3)
Jesus não tem discípulos prediletos, preferidos, a amizade é a
relação normal que ele tem para quantos o seguem fielmente; isto
significa que Lázaro é um discípulo dele.
“Mas ouvindo isto Jesus disse: ‘Esta doença não é para a morte’”
(Jo 11,4) Jesus fala claro: a doença que tem o discípulo que lhe deu
adesão não o levará à morte, pois o encontro com Jesus muda a
situação do futuro da pessoa.
Afirmando que esta doença não é para a morte o evangelista
insinua que há doenças que podem levara à morte, como, neste
evangelho, a adesão a um sistema injusto, pela instituição religiosa
que não deixa viver as pessoas e as leva para a morte total.
Jesus diz: “Esta doença não é para a morte, mas para a glória de
Deus, pois por ela manifesta-se a glória de Deus” (Jo 11.4) Onde há
o espírito de Deus há a vida e onde há a vida não pode ter a morte.
Na morte de Lázaro, o evangelista antecipa o manifestar-se visi-
velmente daquela qualidade de vida que Jesus comunicou para os
que lhe deram adesão.
Em seguida o evangelista corrige a visão das irmãs que lhe man-
daram dizer: “aquele a quem queres bem...” dizendo: “mas Jesus
amava Maria e sua irmã Marta e Lázaro” (Jo 11,5) Isto significa que
a comunidade ainda não percebeu a qualidade do amor de Jesus.
Para as irmãs Jesus queria bem a Lázaro, mas Jesus amava Lá-
zaro do mesmo jeito que amava Marta e amava Maria. Entre o
“querer bem” e o “amar” há diferença.
Querer bem é uma afeição de amizade. O verbo amar no evan-
gelho é “agapao” do qual vem apalavra “ágape” que significa amor
generoso, desinteressado, gratuito que não espera uma resposta
do outro.
Enquanto “querer bem” é uma relação de amizade pela qual eu
te quero bem e espero uma tua resposta. O amor marcado pela gra-
tuidade tem três aspectos principais:
- é capaz de querer o bem também quando o outro não merece;
- é capaz de fazer o bem sem esperar nada em troca;
- é capaz de conceder o perdão antes que este lhe seja pedido.

65
A última bem-aventurança – Alberto Maggi - OSM

A comunidade evidentemente ainda não entendeu isto.


“Quando Jesus ouviu que estava doente permaneceu mais 2 dias
no lugar onde se encontrava” (Jo 11,6)
É meio estranho... Jesus não se apressa, recebendo a notícia de
que Lázaro está doente.
O evangelista quer nos fazer entender que Jesus não veio para
alterar o ciclo normal da vida física eliminando a doença, a morte
biológica, mas veio para dar a isto tudo um novo significado. Fa-
lando “dois dias” faz lembrar o que Oséias escreve: “Dois dias de-
pois te darei a vida” (Os 6,2). Temos mais uma chave de leitura para
fazer entender que toda a relação se desenvolve num crescendo de
vida.
“Em seguida, depois disto disse aos discípulos – e aqui o evange-
lista dá um toque de ironia, até de comicidade – vamos novamente
para a Judeia” (Jo 11,7) Jesus convida os discípulos para segui-lo,
mas eles não tinham nenhuma vontade de segui-lo para a Judeia.
Jesus tinha escapado de uma tentativa de apedrejamento, e o pe-
rigo permanecia. “Os discípulos lhe disseram: Rabi, há pouco os ju-
deus procuravam apedrejar-te e você vai novamente para lá?” (Jo
11,8)
Os discípulos o chamam de “Rabi”, pela primeira vez em João,
que significa “mestre”. Aparecerá 7 vezes e sempre é num contexto
de incompreensão da mensagem de Jesus.
O “mestre” é aquele que explica a Lei, a lei de Moisés; não en-
tenderam a novidade de Jesus. Ele não veio para fazer observar a
Lei, mas para trazer uma nova relação com Deus fundada na aco-
lhida do amor dele. Os discípulos não têm nenhuma vontade de
seguir Jesus o que eles pensam é: “você pode ir, nós não voltamos
para lá”.
“Jesus respondeu: ‘não são doze as horas do dia? Se alguém chega
de dia não tropeça, pois vê a luz deste mundo, mas se chegar à noite,
tropeça porque a luz não está nele” (Jo 11,9-10)
A luz, neste evangelho, não é uma luz externa que ilumina a pes-
soa, mas uma energia de dentro que ilumina a existência.
“Assim ele falou e acrescentou: Lázaro nosso amigo adormeceu,
mas eu vou acordá-lo” (Jo 11,11)
“Os discípulos lhe disseram – agora não o chamam mais de Rabi

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A última bem-aventurança – Alberto Maggi - OSM

– Senhor se ele adormeceu se salvará” (Jo 11,12) Os discípulos não


tinham nenhuma intenção de seguir Jesus...O evangelista comenta:
“Porém Jesus falava da morte dele, eles, pelo contrário, pensavam
que ele falasse do dormir pelo sono” (Jo 11,13). Os discípulos racio-
cinam em termos de salvação da morte, enquanto para Jesus a sal-
vação é superar a morte. “Então Jesus disse para eles abertamente:
‘Lázaro morreu’”.
Jesus comunica claramente que o amigo, o membro da comuni-
dade morreu.
Mas, estranhamente, comunicando esta notícia, no lugar de di-
zer que estava triste ele diz: “E eu fico alegre por vocês”... Como é
possível dar um anúncio de morte com um anúncio de alegria? “Eu
me alegro por vocês para que creiais, mas vamos até ele” (Jo 11,14-
15).
Este paradoxo de morte e alegria serve para antecipar a vitória
da vida sobre a morte.
E esta é a fé à qual os discípulos devem chegar e aonde não che-
garam ainda. Jesus diz, vamos até ele... Jesus não vai para encon-
trar um morto, mas para encontrar o vivente.
Jesus não vai para consolar as irmãs, mas vai para encontrar
Lázaro.
“Disse então – e pela primeira vez aparece neste evangelho um
dos discípulos que talvez é o mais maltratado de todos – Tomé”...
Tomé passou para a história como o grande incrédulo, mas o evan-
gelista lhe atribui a maior expressão de fé do evangelho, pois Tomé
reconhece em Jesus o “seu Deus”. “Então diz Tomé, chamado dí-
dimo” (= gêmeo, mas de quem? É o ‘gêmeo’ de Jesus, porque entre
os discípulos é quem mais lhe assemelha, o que mais é parecido
com ele) “vamos também nós morrer com ele” (Jo 11,16).
Há uma diferença neste evangelho entre Tomé e Pedro. Pedro
afirma estar disposto a morrer com Jesus, mas acaba negando de
conhecê-lo. Ele está ainda condicionado pela realidade religiosa
pela qual as pessoas devem oferecer ao Senhor, devem chegar a
oferecer até sua própria vida e Pedro, sinceramente está disposto
a morrer por Jesus. Tomé entende a novidade trazida por Jesus.
Jesus, porém, não pede para morrer por ele, é ele quem morre
pelos seus discípulos, Jesus pede para serem capazes de enfrentar

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A última bem-aventurança – Alberto Maggi - OSM

a morte com ele e como ele, do jeito que Tomé entende. É por isto
que neste evangelho Tomé é chamado de gêmeo. “Vamos nós tam-
bém morrer com ele” não por ele!

Jesus chega até Marta, Maria e Lázaro

“Chegou então Jesus e o encontrou” Quem encontrou? O evan-


gelista não fala o nome, “o encontrou que já estava há quatro dias
no sepulcro” (Jo 11,17). É importante esse número 4.
Os usos funerários na Palestina eram os seguintes: o cadáver
era colocado numa escavação na rocha, numa gruta e achava-se
que durante três dias o espírito do morto ficaria aí fazendo com-
panhia ao cadáver.
Quando não dava mais de reconhecer o defunto, pois seu rosto
já tinha iniciado o processo de putrefação, a partir do quarto dia, o
espírito descia no reino dos mortos.
O evangelista afirmando que Lázaro já estava no sepulcro há
quatro dias significava que já estava em estado de putrefação: a
morte era algo definitivo.
Em seguida, estranhamente, o evangelista que está criando esse
clima de tensão, parece interromper a teologia para nos dar infor-
mações de topografia. E diz: “Betânia – é este o povoado – está há
três quilómetros de Jerusalém” (Jo 11,18).
O que tem quer ver isto neste momento, que se está falando de
Lázaro que morreu e que está no túmulo? Em João há uma inten-
ção teológica.
Betânia, o “vilarejo”, está sendo dominado pela influência da
instituição religiosa, que está bem perto e acredita na teologia, na
espiritualidade da instituição religiosa; por isto na realidade está
contra o anúncio de Jesus.
Porém, o evangelista sublinha que “Muitos judeus” – os chefes –
“vieram até Marta e Maria para as confortar pela perda do irmão”
(Jo 11,19). Como é possível que estes chefes que tentaram apedre-
jar Jesus sejam amigos desta comunidade e até vão para confortar?
Em Atos dos Apóstolos podemos ler que nas primeiras décadas
a comunidade cristã não chamou tanto a atenção, pois era umas

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A última bem-aventurança – Alberto Maggi - OSM

das maneiras de crer nos diversos messias, mas não criava ne-
nhum conflito e gozavam de bem querer.
Quando a comunidade tomará consciência da natureza de Je-
sus, Jesus que é Deus e aí surgirão os conflitos.
O evangelista nos faz entender que essa é uma comunidade que
ainda não rompeu com a instituição apesar de que Jesus tenha sido
declarado um perigo público deveria ser eliminado, por parte da
instituição.
No capítulo 5º deste evangelho começou a perseguição contra
Jesus porque aquela que é a vontade de Deus que Jesus apresenta
que toda pessoa se torne filho dele, para a instituição religiosa é
um crime tão grave que deve ser punido com a morte.
Como é possível que os que devem ensinar ao povo a vontade
de Deus considerem a vontade de Deus um crime grave, sendo que
a vontade de Deus é a acolhida de Deus na existência da gente, um
Deus que quer fundir-se com a pessoa humana e fazer nela sua mo-
radia? É possível, pois isto coloca em perigo a instituição religiosa
que percebe isto.
“Marta, então, logo ficou sabendo que Jesus estava vindo, saiu ao
seu encontro, Maria pelo contrário, ficou sentada em casa” (Jo
11,20). Ao movimento de Jesus corresponde o de Marta e o encon-
tro com Jesus, nos evangelhos, é sempre o encontro de dois movi-
mentos: Jesus vai para Betânia e Marta sai ao seu encontro. Maria
não, pois Maria não sabe ainda da vinda de Jesus. E Marta logo vê
Jesus o acolhe com uma bronca.
Tinha-o avisado que Lázaro estava doente, Jesus nem se impor-
tou.
Nas declarações de Marta o evangelista reflete o que é o senso
comum das pessoas: quanta gente fica contrariada com o Senhor
quando nos parece não intervir na nossa existência e quantas ve-
zes, mesmo aceitando sua vontade, permanece certo rancor para
com este Senhor que parece não se importar e não faz nada.

Marta está triste e frustrada

“Marta foi ao encontro do Senhor e disse: ‘Senhor se você esti-


vesse aqui meu irmão não teria morrido’” (Jo 11,21) Marta esperava

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A última bem-aventurança – Alberto Maggi - OSM

uma cura e agora manifesta toda sua frustração e tristeza também


com um jeito de ressentimento... ‘Mandamos te avisar que Lázaro
estava passando mal e nem se mexeu e agora você vem aqui que já
está no tumulo há quatro dias!!!’
Jesus curou pessoas que não conhecia por que não fez nada
para curar Lázaro que era amigo e que era um discípulo da comu-
nidade?
Marta, depois da investida, continua: “Mas agora sei que qual-
quer coisa que pedirdes a Deus, Deus te concederá” (Jo 11,22). O
evangelista faz entender quanto Marta, representando a comuni-
dade, está longe de ter compreendido a novidade trazida por Jesus.
Marta fala daquilo que ela sabe e que a tradição lhe ensinou e
diz que sabe que qualquer coisa que pedir a Deus... O verbo pedir
na língua grega escreve-se de duas maneiras: o que Marta usou é
o pedir de alguém inferior para alguém superior.
Outra maneira é quando o pedido é de igual para igual.
Marta não entendeu que Jesus é Deus e que o pedido ao Pai se-
ria de igual para igual.
João no prólogo afirma: “Deus alguém nunca o viu, só o filho que
é a revelação dele” (Jo 1,18) Por isso não é Jesus como Deus, mas é
Deus que é como Jesus. É a grande novidade trazida por Jesus e
que a comunidade ainda não compreendeu.
A comunidade crê que Jesus seja um profeta, crê que seja um
enviado de Deus, crê que pode ser o messias, mas não consegue
ainda chegar a crer que em Jesus se manifeste a divindade, porque
a instituição religiosa tinha lutado para afastar Deus dos homens
e dizia que Deus não pode se manifestar no homem. Deus é sempre
algo a mais.
Marta vê Jesus como um profeta, como Eliseu ao qual pediram
a cura de uma pessoa. O Deus de Jesus não é o Deus dos mortos,
mas é o Deus dos vivos. O Senhor não veio para ressuscitar os mor-
tos, mas doar aos vivos uma vida de uma qualidade tal capaz de
superar a morte. Marta e a comunidade pararam na tradição.
Jesus (estamos no centro do episódio) faz uma afirmação que
muda radicalmente o sentido da vida, da morte e da ressurreição.
“Disse-lhe Jesus: ‘teu irmão ressuscitará” (11,23)

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A última bem-aventurança – Alberto Maggi - OSM

Jesus não responde a Marta, como ela esperaria, ‘eu ressuscita-


rei teu irmão’, mas ‘teu irmão ressuscitará’. A ressurreição não
será por uma intervenção de Jesus, Jesus não fará nenhum gesto
sobre Lázaro, será por uma persistência da continuidade da vida
definitiva comunicada pelo Espírito. ‘Teu irmão ressuscitará’, não
‘eu o ressuscitarei’.
Por esta afirmação de Jesus, Marta responde mais contrariada
ainda a partir daquilo que sabe pela tradição: “Diz: ‘sei que ressus-
citará no último dia’” (Jo 11,24).
Há o conflito entre o que a tradição diz sobre a vida, a morte, a
ressurreição e a novidade trazida por Jesus.
Marta sabia que há a vida que teve um começo, e que com a
morte terá seu fim. Todo mundo, bons e malvados com a morte
descerão numa enorme caverna subterrânea: o reino dos mortos
e no fim dos tempos, os justos e somente os justos, ressuscitarão.
Ela acha que Jesus confirmou a mesma coisa quando falou: teu
irmão ressuscitará.

Ele é a ressurreição e a vida

É importante a reação de Marta. Quando falece uma pessoa


querida e as pessoas vêm nos consolar e dizem “irá ressuscitar”...
Mas quando? Hoje há noite? Amanhã? Daqui a um mês?... Não! No
fim dos tempos!
Uma resposta destas não só não nos consola, mas aumenta
nosso desespero... Saber que uma pessoa querida irá ressuscitar
no último dia não nos interessa muito, eu também naquele dia es-
tarei morto e ressuscitarei. Mas a novidade trazida por Jesus, a que
o evangelista nos apresenta neste texto muda radicalmente o sen-
tido da vida.
“Jesus disse: ‘Eu sou” – reivindica sua condição divina – “a res-
surreição e a vida’” (Jo 11,25) Jesus não vem para prolongar a vida
física que a pessoa possui, suprimindo ou retardando a morte. Je-
sus não é um médico. Jesus vem para comunicar a vida que ele
mesmo possui e a sua vida é divina e por isso indestrutível.
Jesus é a ressurreição porque é a vida, esta qualidade de vida
que quando se encontra com a morte a supera e isto é o que se

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A última bem-aventurança – Alberto Maggi - OSM

chama de ressurreição.
Então Jesus revela que a ressurreição já está presente. Jesus
não diz “eu SEREI a ressurreição”, ele diz: “eu SOU a ressurreição,
pois sou a vida”. Com Jesus a vida eterna não é uma esperança, uma
promessa para o futuro, mas uma certeza para o presente.
Enquanto na teologia judaica a vida eterna era sempre apresen-
tada como um prêmio futuro – ‘se você se comportar direito nesta
vida...’ – para Jesus a vida eterna não é uma promessa para o fu-
turo, mas uma possibilidade já no presente.
Jesus quando fala de vida eterna nunca fala em futuro, não diz
quem crê TERÁ ..., mas quem crê TEM a vida eterna. Não diz quem
ama terá..., mas que ama tem a vida eterna.
Jesus muda radicalmente a perspectiva da vida eterna e agora
o faz com a seguinte afirmação tão importante que Jesus faz a
Marta e, então, para toda a comunidade: “Quem crê em mim tam-
bém se morrer viverá” (Jo 11,25) À comunidade, que na frente da
destruição física da morte de Lázaro, no túmulo há quatro dias e
em estado de decomposição, Jesus garante que o discípulo vive
porque lhe deu adesão: “Quem crê – crer significa dar a adesão a
Jesus – também se morre continuará a viver” (Jo 11,26)
Todos os que derem adesão a Jesus recebem dele o dom do Es-
pírito, a mesma vida divina, e quem tem o Espírito não faz experi-
ência nenhuma da morte.
Jesus para a comunidade que chora um dos seus membros
morto, diz: ‘se esta pessoa creu em mim...’ – crer não significa acei-
tar uma doutrina, uma verdade, mas, como Jesus, ter orientado a
própria existência em favor dos outros.
Se uma pessoa amou, viveu sua vida para o bem dos outros,
apesar de morrer, apesar de agora ser enterrada, ela continua vi-
vendo.
A primeira afirmação é: a pessoa que nós conhecemos e que
morre, se deu adesão a Jesus, isto é, sua vida serviu para comuni-
car vida para os outros, apesar de nós agora vermos um cadáver,
sabemos que continua viva. É o biológico que acaba, não a pessoa.
A outra afirmação mais importante que diz respeito a nós, vi-
vos: “todo mundo que vive e crê em mim” – então nós que estamos
vivos e temos dado adesão Jesus: fizemos da vida um dom para os

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A última bem-aventurança – Alberto Maggi - OSM

outros – então “todo mundo que vive e crê em mim nunca vai mor-
rer”.

Jesus não tira o medo da morte, ele elimina a morte

Nós que vivemos e cremos nele não passaremos pela experiên-


cia da morte, serão os outros que quando chegar o momento em
que nossa componente biológica cessar de existir, verão um cadá-
ver, mas nós não, não passaremos por isto!
Este é o anúncio e a verdade que Jesus dá para Marta. E as pa-
lavras de Jesus são todas verdadeiras.
Então é para a comunidade, representada por Marta, que mais
tarde irá compreender, que Jesus garante: ‘se esta pessoa orientou
sua vida para o bem dos outros, fiquem tranquilos pois ela conti-
nuará a viver. Por isso não choreis um morto, mas vós que estais
vivos e me deram adesão, vós não passareis pela experiência da
morte’.
Serão os outros que perceberão que nós morremos, mas nós
não morremos.
Esta é a garantia de Jesus. Jesus não veio nos tirar o medo da
morte, mas nos libertar da própria morte.
A vida eterna para Jesus não é um prêmio, mas uma condição
no presente e isto tinha sido tão bem compreendido pelos primei-
ros cristãos que não acreditavam na ressurreição dos mortos, mas
na ressurreição dos... vivos.
Temos afirmações que parecem estranhas e até absurdas que
Paulo coloca em suas cartas; por ex., em Ef 2,6 diz: “Com ele nos
ressuscitou também a nós e nos fez sentar no céu”.
Mas como pode Paulo dizer uma coisa dessas? Paulo diz que já
somos ressuscitados! Quem deu sua adesão a Jesus já está ressus-
citado, não experimenta a morte.
Todos os que orientaram sua própria vida para o bem dos ou-
tros possuem uma qualidade de vida tal que já é a dos ressuscita-
dos: não farão experiência da morte.
São Paulo na carta aos Colossenses diz: “Então vocês estão res-
suscitados com Cristo”.
A ressurreição não acontece depois da morte, mas ainda em

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A última bem-aventurança – Alberto Maggi - OSM

nossa existência.
Os que entre nós orientam sua vida para o bem dos outros já
possuem, a partir do momento que fazem sua opção, uma vida de
uma qualidade tal que será capaz de superar a morte.
E Jesus pergunta a Marta: “Você crê nisto?” (Jo 11,26). Para Jesus
a morte não existe, mas Marta tem está fé? Jesus a desafia. Esta é a
novidade. Marta acreditava numa ressurreição futura, Jesus, pelo
contrário, pergunta de uma ressurreição presente e eis o cresci-
mento da fé em Marta (e da comunidade) e aí começam logo os
problemas.
“Lhe diz: ‘Senhor eu creio’” – antes Marta sabia, se referia ao co-
nhecimento do passado, agora ele cresceu, agora ela crê– “‘creio
que és o Messias, filho de Deus, aquele que deve vir ao mundo’” (Jo
11,27).
Marta deixa os ensinamentos do passado, e se abre à experiên-
cia do presente.
Marta compreende que aquele que deve vir ao mundo não é um
profeta como ela pensava – “qualquer coisa que pedirdes...”! um
enviado de Deus – mas é o filho de Deus.
Não precisa mais pedir a Deus porque ele mesmo é Deus. “E di-
zendo isto foi chamar as escondidas Maria sua irmã” (Jo 11,28). Por
que deve chama-la às escondidas?
O evangelista reflete a experiência da comunidade cristã. En-
quanto a comunidade cristã primitiva achava que Jesus era um
profeta, um enviado de Deus, não havia problema nenhum: havia
tantos grupos que criam em tantas coisas...
Mas quando a comunidade cristã chega, até que enfim, a com-
preender que Jesus é o filho de Deus, que ele mesmo é Deus, eis
que então que começam as perseguições.
Marta vai às escondidas até Maria, pois a casa está cheia de ju-
deus, os chefes da instituição religiosa e não pode manifestar a fé
da comunidade.
“Ela, então, como ouviu isto, levantou-se depressa e foi até ele” (J
11,29). Jesus não tinha entrado no povoado, lugar da tradição.
Para fazer a experiência de Jesus precisa largar o ‘povoado’ com
todas as suas seguranças, pois o povoado dá segurança. Jesus
nunca entrará nos povoados, o povoado é o lugar da tradição e o

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A última bem-aventurança – Alberto Maggi - OSM

lugar da morte. Serão as pessoas que devem sair de lá.

Com Jesus Deus não reside mais num templo

Quem quer encontrar Jesus e ter o dom da vida precisa abando-


nar o passado, a tradição religiosa, com todas as suas seguranças
que ela oferecia.
“Jesus não entra no povoado, mas encontrava-se ainda no lugar
onde Marta foi ao seu encontro” (Jo11,30)
O “lugar”, neste evangelho, é uma expressão que indica o tem-
plo de Jerusalém. Com Jesus Deus não reside mais num templo,
mas na pessoa de Jesus e isto é muito importante. Enquanto no
templo a pessoa deve ir, submetendo-se a umas determinadas
condições e muitas pessoas estavam excluídas do acesso ao tem-
plo, por serem consideradas impuras, pecadoras, com Jesus, novo
templo, santuário de Deus, não são mais as pessoas que devem ir
até ele, mas é ele que vai ao encontro das pessoas, especialmente
os excluídos, os marginalizados pela religião.
“Então os judeus que estavam com ela em casa para confortá-la,
quando viram Maria se levantar depressa e sair, a seguiram pen-
sando: ‘Ela vai ao sepulcro para chorar’” (Jo 11, 31).
O evangelista sublinha o efeito negativo do povoado. Os discí-
pulos estão recebendo as participações mesmo dos inimigos mor-
tais de Jesus. É uma comunidade que ainda não descobriu a novi-
dade e então não há nenhum conflito institucional com a autori-
dade religiosa, a única reação que esperam são as condolências e
o pranto.
Pensam que Maria se dirija ao sepulcro para chorar o morto e
não compreendem que, pelo contrário, Maria se dirige na direção
de Jesus, aquele que é a vida.
Mas poderia ser uma esperança também para os chefes. Eles
terão esperança de salvação? Estes líderes, estas autoridades reli-
giosas terão esperança? O evangelista abre uma brecha: eles se-
guem a discípula, saem também do povoado e encontram Jesus.
A indicação que João dá é preciosa: não é possível para o povo
experimentar a vida seguindo os chefes, mas são os chefes que se-
guindo o povo podem experimentar a vida.

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A última bem-aventurança – Alberto Maggi - OSM

Esta é a teologia de João, a teologia dos evangelistas e então o


evangelista abre uma possibilidade de salvação também para os
chefes da instituição.
Se o povo seguir os chefes vai ao lugar do sepulcro, da morte;
se os chefes seguem os membros da comunidade podem encon-
trar-se com Jesus. E esta é a teologia dramática que os evangelistas
apresentam para a relação do povo e com a instituição.
Nos evangelhos se fala de uma ovelha perdida, mas de muitos
pastores que se perderam e é papel do povo recuperá-los para o
evangelho e esta é a missão da comunidade cristã.
“Maria então, visto o lugar onde Jesus estava se jogou aos seus
pés dizendo: ‘Senhor, se você estivesse aqui meu irmão não teria
morrido’” (Jo 11, 32). Como Marta ele deu uma bronca em Jesus,
ela também cobra dele, mas Jesus não responde.
Para quem está esmagado e abatido pela morte, não servem pa-
lavras, só gestos com os quais comunicar a vida, que sentem ter
sido subtraída a eles, e então é o que Jesus fará ao encontrar as
irmãs e o irmão delas.
“Jesus então, quando a viu chorar soluçando”. O chorar na língua
grega escreve-se de duas maneiras, uma que indica o choro de de-
sespero por aquele que não está mais e aqui traduzo “chorar solu-
çando”, a outra é o choro de dor sereno na frente de um aconteci-
mento triste como pode ser a morte.
O evangelista usa a primeira forma, então “Jesus a viu chorar em
lagrimas e também os judeus que tinha vindo com ela” – a comuni-
dade cristã chora com um pranto de desespero com as autoridades
religiosas. É a dificuldade em compreender a novidade trazida por
Jesus.
E Jesus – e aqui o verbo é bem difícil de traduzir, poderíamos
dizer “estremeceu” (Jo 11,33) como alguém que reprime seus sen-
timentos, até de revolta.
A comunidade chora o morto exatamente como os judeus, um
choro de desespero e Jesus não suporta que seja feita esta condo-
lência fúnebre para Lázaro que ele considera vivo. “E disse: ‘onde
vocês o colocaram?’ Lhe responderam: ‘Senhor vem e vê’” (Jo 11,34).
Esta expressão “Vem e vê” – João a usou no começo do seu evange-
lho no convite feito por Felipe a Natanael e repetido por Jesus.

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Enquanto ele indicava a direção para a vida, aqui na boca dos


judeus, as autoridades religiosas, indica a direção para a morte.

Jesus chorou

Aqui temos uma indicação estranha: “Jesus chorou” (Jo 11, 35).
Por que? Se nós pegarmos esta narração como o relato de um fato
histórico, como um fato real, por que Jesus teria que chorar? Se ele
está para ressuscitar Lázaro, para trazê-lo de volta à vida, por que
chorar? O choro de Jesus é de sofrimento, mas não de quem não
tem esperança.
O evangelista quer evitar os fanatismos a respeito da morte,
próprio de algumas comunidades, de uns grupos, a morte é sem-
pre uma experiência triste, mas esta experiência triste não leva ao
desespero, mas a uma dor serena. Jesus chora, pois a ele também
veio a faltar um amigo querido, a pessoa que tinha amado.
“Disseram então, os judeus: ‘vede como ele o queria bem’” (Jo 11,
36). Os judeus como a comunidade não entenderam que a relação
de Jesus com Lázaro não era um querer bem, mas amor.
“Uns disseram: ‘Este que abriu os olhos ao cego, não podia fazer
que este não morresse?’” (Jo 11, 37).
Na cura do cego Jesus tinha repetido os gestos do Deus da cria-
ção, tinha feito barro... agora Jesus completa a ação criadora fa-
zendo que a comunidade tome consciência que a verdadeira cria-
ção culmina com uma vida capaz de superar a morte.
A primeira criação se concluía com a morte, a segunda com a
vida.
“Jesus ainda engasgado e fremindo, vai ao sepulcro” – o evange-
lista usa uma palavra que significava “caverna” – “que era uma ca-
verna e tinha na entrada uma pedra”. (Jo 11, 38).
Por que Jesus usa a palavra “caverna”. A “caverna” indicava o
lugar onde eram sepultados os patriarcas Abrão, Isaac, Jacó. A “ca-
verna” representa o antigo, então Lázaro foi sepultado segundo o
uso antigo.
O tinham colocado num sepulcro, numa caverna e com uma pe-
dra na entrada.
Os túmulos eram grutas onde era colocada uma grande pedra e

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lá era o fim de tudo.


É verdade que se cria e se esperava na ressurreição, mas... no
fim dos tempos, então uma data indefinida e irrealizada.
E agora chegamos ao ponto mais alto, ao momento mais impor-
tante, as ordens imperativas dadas por Jesus nessa que não é uma
crônica de um fato, mas uma profunda mudança de mentalidade a
respeito da vida e a respeito da morte que João oferece para a co-
munidade.
Então a pedra colocada sobre a abertura separava definitiva-
mente o mundo dos vivos do mundo dos mortos.
A primeira ordem de Jesus: “Disse Jesus: ‘tirai a pedra’”. Jesus
não se une aos outros, não diz, ‘vamos tirar a pedra’. ‘Vocês a colo-
caram, vocês devem tirá-la: vocês pensam na morte como o fim de
tudo. Vocês separaram o morto do mundo dos vivos, colocaram
uma pedra tampando’.
Esta é a primeira indicação que o evangelista dá para a comu-
nidade cristã. Com a morte não precisa separar o defunto do
mundo dos vivos, colocando uma pedra encima, separando defini-
tivamente; então a primeira indicação: “tirai a pedra”.
E temos o protesto por parte de Marta. Vejamos as incongruên-
cias na frase a seguir: “lhe diz a irmã do morto”. Sabemos que Marta
é a irmão do morto...
Por que não falou simplesmente Marta? Porque esta é a ideia
que nos colocaram na cabeça. Eles estão chorando um morto e não
pensam que Lázaro pode estar vivo.
Era suficiente dizer Marta.... Então esta incongruência do ponto
de vista literário, falando a irmã do morto, pois esta é a mentali-
dade que pesa sobre a comunidade.

A morte era algo definitivo na mente de todos

“Senhor já está fedendo” – é muito prática Marta – “pois é de qua-


tro dias” (Jo 11, 39).
Marta apesar de ter-se declarado disposta a crer, na frente do
caso real coloca sua dificuldade. Lhe ensinaram que a morte era
considerada definitiva no quarto dia, quando a decomposição do
cadáver já estava em estado avançado.

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A última bem-aventurança – Alberto Maggi - OSM

João em toda esta narração nunca definiu Marta como a irmã de


Lázaro, mas que Lázaro era seu irmão, agora pela primeira vez, é
apresentada como a irmã do morto.
É este o pensamento que amarra Marta e a sua comunidade que
ela representa: a morte. A irmã do morto não pode ser também
irmã de Lázaro, o vivo, então o evangelista nos faz entender que se
há esta mentalidade sobre a morte não se pode experimentar
aquele que está vivo.
“Diz-lhe Jesus: ‘Não te falei que se creres verás a glória de Deus?’”
(Jo 11, 40). Antes, no diálogo com Marta, Jesus lhe tinha dito para
crer não na glória de Deus, mas na vida indestrutível, na vida
eterna. Tinha falado que todos os que vivem e creem nele não irão
morrer.
Agora lhe pede para crer e assim ela verá a glória de Deus. Li-
gando as duas expressões – gloria de Deus e vida indestrutível –
João indica que na vida indestrutível, a vida capaz de superar a
morte, se manifesta a glória de Deus.
Na vida de Lázaro se tornará visível a ação de Deus. Para o evan-
gelista isto é importante. Não os sinais que ajudam a crer, mas é o
crer que se torna sinal.
A ressurreição de Lázaro, por Jesus, está agora condicionada
pela fé da irmã. Se ela crer verá, se não crer não verá nada. Então:
“se creres verás” Por que o evangelista escreve isto? Será que, en-
tão, os que não crerem não veem nada?
A ressurreição de Lázaro está condicionada pela visão da irmã,
não da vista dos olhos, mas da vista da fé; o evangelista mais uma
vez nos faz compreender que o que está descrevendo não é um
acontecimento histórico, mas teológico, não diz respeito à crônica,
mas à fé.
Por isto o que segue poderá ser visto só por quem crê. Quem
não crer não verá nada. Jesus lhe diz: “Não te falei que se creres
verás a glória de Deus?” Para experimentar a vida de Lázaro pre-
cisa ter fé no Deus criador, se não tiver está fé não será feita ne-
nhuma experiência.
“Tiraram, então, a pedra” – elimina-se a divisão, a ruptura entre
os vivos e os mortos e vai uma ação de Jesus – “Jesus levantou os
olhos para o alto” – gesto de comunhão com Deus – “e disse: ‘Pai te

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agradeço por ter-me ouvido’” (Jo 11, 41).


Marta tinha pedido a Jesus para pedir ao Pai, Jesus não pede ao
Pai, ele agradece. Jesus não ora ao Pai, o verbo orar nunca aparece
neste evangelho, mas agradece.
O verbo agradecer em grego é “eukaristeo” de onde vem a pa-
lavra “eucaristia”.
Três vezes neste evangelho aparece este verbo “agradecer” e
sempre em ligação com a eucaristia. As duas precedentes estão no
episódio da partilha dos pães.
Estes três episódios estão interligados e fazem compreender o
significado da eucaristia. O dom generoso daquilo que se tem e da-
quilo que a gente é, que foi realizado na partilha dos pães, comu-
nica uma vida capaz de superar a morte.
Quem não alimenta só a si mesmo e se torna alimento para os
outros contém, em si a capacidade de superar a morte: a relação
entre eucaristia e partilha está clara.
“Eu sabia que sempre me escutas, mas falo isto para o povo que
está ao meu redor” – este estar ao redor significa hostilidade, então
já existe esta hostilidade contra Jesus por parte das autoridades
judaicas que não aceitam esta novidade que Jesus trouxe – “para
que eles creiam que tu me mandaste” (Jo 11, 42) “E dito isto gritou
forte: ‘Lázaro, vem para fora!” (Jo 11, 43). Jesus não realiza ne-
nhuma ação sobre Lázaro.
Quando Jesus, nos outros evangelhos, ressuscita a filha de Jairo
(Mt 9, 18-26) a toma pela mão. Quando ressuscita o filho da viúva
de Naim (Lc 7, 11-17) toca o féretro.
Os dois gestos são considerados graves transgressões da lei
num contexto judaico. Aqui, pelo contrário, está no meio da comu-
nidade cristã.
Jesus chama Lázaro, o vivo. Lázaro foi colocado num lugar im-
próprio para um discípulo de Jesus, pois apesar de morto ele con-
tinua vivo: não se pode colocar uma pessoa viva no mundo dos
mortos. Jesus, no começo deste evangelho, tinha anunciado: “Che-
gou o momento e é este, em que os mortos ouvirão a voz do filho de
Deus e os que a terão escutado viverão” (Jo 5, 25). Lázaro como dis-
cípulo escutou a voz do filho de Deus por isto está vivo.

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Quem vai sair do sepulcro?

Agora o evangelista apresenta o máximo da dramaticidade na


cena a seguir.
Jesus grita para Lázaro para sair do tumulo, só que agora não
Lázaro... pois o evangelista diz: “Saiu o morto”. Como isto?
Se ele está morto não pode sair, se ele sai que dizer que não está
morto.
Por que esta incongruência? Mais ainda: “Saiu o morto com os
pés e as mãos amarradas com faixas e o rosto coberto com um sudá-
rio”. Como consegue? O evangelista não quer nos dar um relato de
repórter, mas uma profunda verdade de fé. Jesus grita... e sai o
morto!
Lázaro não está no sepulcro, Lázaro já está na plenitude do
amor do Pai. Não é ele quem deve sair do sepulcro, mas o morto.
É um convite para uma mudança radical de mentalidade por
parte da comunidade.
Nosso ente querido que passou pela morte já está na plenitude
de Deus, mas se nós continuamos a carregar dentro o sepulcro, nós
o sentimos morto. O convite que João faz é para fazer sair os mor-
tos dos túmulos. Até que o choramos ao sepulcro não poderemos
experimentar aquele que já está vivo vivente, vivificante, na pleni-
tude do amor de Deus. Por isto deve sair o morto do sepulcro.
Porque o evangelista diz: “com os pés e as mãos amarradas com
faixas”? Não era este o jeito costumeiro pelos hebreus de sepultar
as pessoas. O cadáver era lavado com água e vinagre, quem tinha
possibilidade o perfumava com unguento e em seguida era esten-
dido sobre ele um lençol que o cobria, sem amarrar nada.
João fala isto porque na tradição bíblica e mais vezes nos sal-
mos a morte era representada como algo que amarrava as pessoas.
O Sl 116 diz: “Me apertavam cordas de morte, estava preso por nós
pelo sheol do reino dos mortos, preciosa aos olhos do Senhor é a
morte dos seus fiéis, arrebentou minas correntes” ou Sl 18 “Me en-
volviam as amarras do reino dos mortos”
Este morto foi amarrado segundo a tradição hebraica mais an-
tiga de sepultar no reino dos mortos. “Saiu o morto com os pés e as

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mãos amarradas com faixas e o rosto coberto com um sudário”. “Je-


sus disse-lhes” – e eis as últimas ordens imperativas de Jesus e
creio que sejam a chave de leitura. Ás vezes nós lemos esse episó-
dio e não paramos o bastante para compreender o significado. “Je-
sus disse-lhes: ‘Desamarrai-o’” – ‘foram vocês que o amarraram,
vocês o enterraram no jeito hebraico achando-o no mundo dos
mortos, vocês agora têm que desamarra-lo’.
E desamarrando o morto a comunidade se liberta do medo da
morte.
O morto sai do sepulcro e uma vez desamarrado das amarras
da morte ele some... Lázaro já está com o Pai e é o morto que deve
ser liberado das amarras da morte.

A última ordem: “deixai-o ir”

E chegamos à última, estranha, incompreensível ordem impe-


rativa de Jesus.
Jesus manda desamarra-lo e podem imaginar a cena como se
fosse um fato real: saiu o cadáver do sepulcro, Jesus pede para de-
samarra-lo e o que deveria falar Jesus? ‘Vamos ao encontro dele,
vamos acolhê-lo, façamos festa’. Nada de tudo isto.
Estranhamente a última ordem imperativa de Jesus: “Deixá-lo
ir” (Jo 11, 44). E para onde Lázaro deveria ir?
Jesus deveria dizer ‘deixem-no vir, ajudai-o a vir, vamos ao seu
encontro’. Mas Jesus manda que o deixem ir.
Quer dizer que Jesus não devolve, como seria lógico, o morto
aos seus, para as irmãs, mas o quer livre para andar. Para onde? O
verbo “ir” neste evangelho é sempre usado por Jesus para indicar
seu itinerário para o Pai, a plenitude de Deus.
Não é que Lázaro deva ainda ir para o Pai, ele já está; é o morto
que deve ir. Seria como dizer: ‘se vocês o estão chorando como
morto, como podem compreender que ele, pelo contrário, está
vivo?’
São eles, a comunidade com Marta e a irmã dela Maria que de-
vem deixar ir o morto sem segurá-lo.
Neste episódio pede-se à comunidade cristã uma mudança de
mentalidade para passar da concepção judaica para aquela nova

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do cristão.
Com esta ordem conclui-se este episódio. Estranhamente Lá-
zaro não diz uma palavra, não faz nenhum gesto.
Lembram que eu comentava que quando, depois de tantos me-
ses de cama, a fisioterapeuta, pela primeira vez, me fez descer da
cama e me fez andar até fora do quarto, eu estava fora de mim pela
alegria, pulava, ria, chorava, não me parecia algo possível e eu pen-
sava: ‘Mas como... eu por uma experiência de doença estou tão eu-
fórico pelo fato que posso sair, Lázaro que estava morto e sepul-
tado, sai, não diz nada, não saúda ninguém, não corre para as ir-
mãs...’ Esta é uma incongruência.
Porque o evangelista não coloca nem uma palavra nem um
gesto de Lázaro? Estranho. Lázaro reaparece, só depois de uma se-
mana. Era costume na comunidade hebraica, depois de uma se-
mana da morte da pessoa fazer um banquete fúnebre.
Preparava-se a mesa e um lugar era deixado vazio. Era o lugar
simbolicamente ocupado pelo morto.
Pois bem, também neste evangelho, uma semana depois, fazem
o banquete e cada uma das personagens faz alguma coisa.
Temos Jesus que é o hospede, temos Marta que serve, Maria
como já o evangelista nos disse é aquela que ungiu os pés de Jesus.
Temos Judas que protesta e temos Lázaro.
Lázaro não faz nada, não diz nenhuma palavra. Lázaro, escreve
o evangelista, estava e temos um verbo meio complicado a ser tra-
duzido “estava co-deitado” com Jesus.
Naquele tempo nos almoços solenes comia-se deitado sobre ta-
petes, com almofadas. A presença de Jesus comporta a presença de
Lázaro.
Então estas indicações preciosas, importantes do evangelista
nos lembram que nossos queridos falecidos estão vivos, nossos en-
tes queridos estão presentes, mas o momento precioso no qual se
manifesta sua presença é o da eucaristia.

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Tradução: pe. Ezio Datres


Revisão: pe. Tino Treccani

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