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“Bom dia, Angústia!


Reflexões sobre a felicidade e a esperança na pandemia

Gostaria, neste texto, de compartilhar um sonho que tive certa noite e que me
impactou muito na hora. Tanto que me senti impelido a escrever sobre. Diz
respeito à pandemia e ao crescente número de mortes que alastravam (e
continuam a alastrar) o país. O contador estava em 50 mil quando tive esse sonho
e comecei a escrever esse texto, tentando desvendar seu significado. Hoje,
passando de 100 mil vidas perdidas, dedico esse texto a elas, em especial, e aos
seus familiares e amigos.

Lembre-se que as regras narrativas de um sonho são maleáveis, portanto não se


espante com mudanças bruscas no cenário. Fiz o meu melhor para manter
fidelidade às cenas. Então segue aqui a transcrição desse sonho e a reflexão que o
acompanha:

Meu sonho dogmático: “A Sociedade do Cemitério Vertical”

Éramos muitos. Embora não houvesse nenhum rosto visível (ao menos nenhum
se revelava a mim) eu sabia que uma pequena multidão me acompanhava.

Devo deixar claro que esse nosso grupo era de filósofos e aprendizes (como eu) da
filosofia. Não que estivesse explícito, mas como cada sonho é capaz de contar
histórias sem precisar começar pelo começo, simplesmente compreendemos.
Muito bem.

Vagávamos pelo campus de uma universidade à noite, no que parecia um pátio


coberto. As luzes todas apagadas, a única iluminação era do luar. O silêncio da
noite cortado apenas por pequenos fios de vento que perpassavam uma fina
neblina que começava a tomar o interior do prédio.

De repente uma figura de terno aparece à nossa frente nos delegando nossa
missão. Éramos arquitetos e pedreiros que martelavam e pregavam as ideias.
Como a noite era vazia, conduzíamos nossos projetos e ferramentas com
inescrupulosa liberdade. Não tardou muito, essa liberdade foi parcialmente
substituída pelo escrúpulo, no caso, nosso dever. É-nos revelado que nossa
verdadeira missão é zelar pelas vidas dos que precisam de nossa ajuda e
orientação (vale dizer que esse ponto do sonho é uma referência, entre outras
coisas, ao meu desejo e interesse pela prática da filosofia clínica, uma forma de
orientação em consultório com o fito de ajudar o partilhante a desvelar sua
história e esclarecer a relação de seus problemas internos e, com isso, resolvê-los
– sejam angústias existenciais ou problemas mais imediatos como insatisfação no
trabalho ou num relacionamento e etc.). Pareceu que, como filósofos,
precisávamos praticar nossas ideias, e que a libertinagem teórica escapava da
realidade.

Não foi à toa que os martelos e ferramentas sumiram. Carregávamos agora


utensílios de jardinagem. Sim, era nosso dever regar e cuidar do jardim dessas
almas escarnecidas, onde as flores murchavam e as cores esmaecidas perdiam
qualquer contraste.

Foi aí que nosso trabalho ficou difícil. O ardor da realidade nos impedia de
congelá-la conforme a idealizávamos. O que se seguiu, e não pretendo entrar em
detalhes para cada caso individual, foi uma série de pessoas que me consultavam
livremente, uma por uma. O cenário era diferente para cada uma, mas todas
ocorriam durante a luz do dia, que nos permitia ver as coisas com clareza. A
universidade já estava muito distante (fazíamos trabalho de campo, por assim
dizer). E em todos os casos, unanimemente, ao fim da “consulta”, um horror
tomava a cena. Um silêncio mortificante enclausurava o clima, e como se sempre
tivessem certeza disso, os partilhantes se afastavam e se entregavam
completamente aos braços da morte. Antes de tirarem a própria vida, eu ouvia
com muita angústia, seus desesperos mais horripilantes. Eu mantinha uma
postura estoica e quase indiferente diante desses relatos, mas por dentro minha
alma gemia de dor. O mais estranho foi que eu jamais aconselhei ninguém nesses
casos. Fiquei de boca fechada, só ouvindo e fingindo compostura. Logo após os
relatos eu tinha certeza do que iria acontecer. Mesmo assim, não movia um
músculo. Então a pessoa corria para longe de mim (nenhum dos atos aconteceu
diante dos meus olhos) e eu ouvia o silêncio perfurante daquele instante em que
aquela pessoa corria para a morte sem a menor dúvida do que estava fazendo.
Pior que esse silêncio eram os gritos arredor: mães (em todos os casos), amigos,
parentes, transeuntes.

O que mais me doía eram os gritos das mães. Foi a única coisa que me fez mexer
meu corpo – para afastar mais ainda o olhar. Eram como mil facas me perfurando
no escuro. Não via nada, mas sentia cada pontada. Minha alma sangrava
violentamente. Eu forçava reflexões estoicas: é apenas a morte, não há o que
temer. Recordei de Epicuro: a pessoa apenas deixou de ser, para ela não há mais
dores ou consciência. Sua alma está em paz…

A alma dela até poderia estar em paz, mas aqui em vida, o desespero era
paralisador. Para cada morte, um eco no infinito. O luto me engolfava e a razão
perdia seu sentido de ser. Éramos todos zumbis errantes, vagando num
interminável cemitério sem sepulturas.

Meus olhos cerrados, impedindo qualquer lágrima que implorasse sair. De


repente, ao abri-los, estávamos de volta na universidade, no mesmo cenário,
cuidando de nossos projetos. Arquitetando ideias e martelando contradições. Era
infinitamente mais fácil construir nossa própria realidade, do que lidar com a que
nos foi dada. Era mais confortável ignorar o dia, barulhento, tumultuoso e sofrido,
e lidar com a noite, quieta, sem gritos, sem desesperos, perfeita para sonhar nossa
própria verdade. Era tão mais simples falar sobre cabeças de prego do que de
pessoas reais, com famílias e amigos. E era tão mais fácil martelá-los do que
entendê-los. E assim erigíamos um monumento da glória, da vitória, um
monumento que refletia nossa beleza e nosso saudoso passado, também repleto
de conquistas. Erguíamos estátuas em homenagem a outros marteladores e
pregadores.

Toda essa obra de arte maravilhosa, esse parque arqueológico da pátria, essa
homenagem à nação… tudo construído sobre o mesmo cemitério sem sepulturas
que há pouco caminhávamos, mas que rapidamente fizemos questão de esquecer
ou nos convencemos que seus corpos serviam um bem maior. "É uma pena, vamos
sentir falta do prego nº 345. Mas pelo menos ele sustenta a viga da torre dos
direitos."

São os pilares de uma ilusão. A imagem de salvadores da pátria que erguemos: de


salvadores têm só da própria imagem. Quem não tem fé nessa ilusão vira prego.
Que dever é tão grande que se satisfaz com um rastro de sangue para chegar ao
seu fim? Que dever é esse que prefere números a nomes? Prefere a imagem à
realidade. Prefere o louvor do disfarce à verdade, por mais dolorosa que seja.
Dever que se justifica pelo fim: dever que não tem fim, dever que jamais se
justifica...

O jardim não tem mais espaço para os mortos. A terra, de tão atulhada com corpos,
virou um campo de germes. Para suprir essa demanda, na torre do Cemitério
Vertical, as gavetas rapidamente lotaram de cadáveres. Porém, cada uma também
guarda uma história. Pedras de mármore sem nomes, que abrigavam consigo
vidas inteiras, desejos inteiros, frustações, amores e potências infinitas... Se
pretendo cuidar desse jardim, não posso ficar calado, não posso me mexer só para
não olhar. O mundo é meu partilhante, está na hora de organizar essas ideias e
compreendermos nossa própria angústia (como faria um filósofo clínico com seu
partilhante). A realidade é cruel quando crua. Não cabe a nós travesti-la, mas
entendê-la. No labor da utopia, desse parque da pós-verdade (a que mais nos
apetece), a Filosofia escancara nosso "sonho dogmático". Logo em seguida, acordei
do meu. O dogma do ideal não é páreo para o dogma do real.

Bom dia, angústia!

Assim como nas gavetas do cemitério, esse sonho, morto pela impiedade do real,
também precisa de um epitáfio. Pensei em um perfeito. O Capitão Picard
(personagem da série Star Trek: A Nova Geração) profere as palavras como se
fossem um tributo fúnebre, mas que ao mesmo tempo tão bem simula nossa
situação enquanto defensores da verdade e, com isso, da humanidade: “Há
obrigações que vão além do dever”. A obrigação é com a dignidade humana, e o
único dever que se justifica “além” dela, é o dever do respeito. Mas eles coexistem:
trata do dever de respeitar a dignidade humana.

Outra coisa que o quebrar dessa ilusão me indica, é que o desespero, isto é, a dor,
o medo e a angústia, nos pertencem da mesma forma que fazem o desejo e a
esperança. “Não há esperança sem temor, nem temor sem esperança”, já
reconhecia Spinoza. Quando a realidade é dura assim, a esperança cresce, e com
ela, o temor de não se realizar. Mas é o que o sofrimento nos ensina (não só agora,
mas sempre que ele nos visita): é para ver até onde aguentamos, o quanto
podemos suportar, e o que Comte-Sponville tenta nos ensinar, que “só teremos
felicidade à proporção do desespero que formos capazes de suportar, de habitar,
de atravessar.”

Triste? Talvez, mas real. Se quisermos um pouco mais de sabedoria nas nossas
vidas, e com isso sermos dignos da felicidade, como queria Kant, o real é nosso lar.
“Uma verdade triste é mais valiosa que uma felicidade falsa”, nos diz Sponville.
Ele relatava, nesse trecho, sobre o caminho do filósofo, mas que qualquer um pode
seguir, e se a sabedoria está na sua lista ou no seu horizonte, é uma frase
necessária. O que ela não pode ser, contudo, é mais uma esperança. Se a felicidade,
esta sábia, está na sabedoria que, por sua vez, está na aceitação do real, ela nos
escapa quando fazemos dela um novo ideal.

E o que é o real?

“...não passa da aceitação da vida tal como é, difícil e arriscada, cansativa,


angustiante, incerta... Nada está adquirido nunca, nada está prometido nunca,
senão a morte. Por isso só se pode escapar à angústia aceitando isso mesmo que ela
percebe, que ela recusa e que a transtorna. O quê? A fragilidade de viver, a certeza
de morrer, o fracasso ou o pavor do amor, a solidão, a vacuidade, a eterna
impermanência de tudo... Essa é a vida mesma, e não há outra. Solitária sempre.
Mortal sempre. Pungente sempre. E tão frágil, tão fraca, tão exposta!” – Comte-
Sponville, Bom dia, Angústia!

O medo e a angústia nos pertencem e, portanto, nos são inescapáveis. E a


sabedoria?

“... a sabedoria está na aceitação do real, não em sua negação. O que mais natural,
quando se sente dor, do que gritar? O que mais sábio, quando se está angustiado, do
que aceitá-lo? ‘Enquanto fazes uma diferença entre o samsara e o nirvana’, dizia
Nagarjuna, ‘estás no samsara.’ Enquanto você faz uma diferença entre sua pobre
vida e a redenção, está em sua pobre vida.” – Comte-Sponville, Bom dia, Angústia!

O que tiro disso? Que nenhuma felicidade é verdadeira se não for alcançada pela
verdade. E a verdade, que é como se faz essa sabedoria, é a verdade que Spinoza
conclui nas palavras finais de sua Ética:

“Se o caminho, conforme já demonstrei, que conduz a isso parece muito árduo, ele
pode entretanto, ser encontrado. E deve ser certamente árduo aquilo que tão
raramente se encontra. Pois se a salvação estivesse à disposição e pudesse ser
encontrada sem maior esforço, como explicar que ela seja negligenciada por quase
todos? Mas tudo o que é precioso é tão difícil como raro.”
(Perdoem-me pelo número de citações, mas é uma pena não usá-las quando a ideia,
ao meu ver, não poderia ser melhor dita, e é a perfeita desculpa para dar crédito
ao seu pensador.)

Como suportar esse desespero? Vivendo, por mais simples que soe. É senão o que
a filosofia nos ensina, e não só ela, mas a vida em si, que é senão para ser vivida.
E no trabalho diário e constante, e por vezes repetitivo desse trajeto, acumulamos
poeira nos cantos da alma, e deixamos de ver coisas que nos fazem quem somos,
que nos constituem, que ficam alojadas nos seus pontos cegos.

Por isso a arte, por isso a filosofia, por isso a comédia: não para abandonar nossa
loucura (o desejo, a esperança), que dela ninguém foge, mas para desfrutar mais
e melhor, sempre que pudermos, o que temos agora, o que não nos falta, e nos
encontrarmos no presente, que é o único tempo que existe, sem desejos futuros,
apenas alegrias reais, gozadas com apetite; não para esquecer, mas para lembrar
que agora é o único momento em que existimos de fato. De resto... é memória ou
esperança que sempre carrega consigo pelo menos um pouco de medo, um pouco
de angústia por não ser real, por não ser presente. Se eles não forem patológicos,
precisamos abraçá-los.

Se a esperança e o temor andam juntos, a felicidade e o desespero talvez também


o façam. Para quem leu meus outros textos, talvez saiba do que estou falando:
daquela tensão – a mesma que nos deixa entre a ética e a moral, entre a verdade
e a vontade, entre a certeza e a dúvida – pois nunca residimos em uma nem em
outra, mas pendulamos por ambas conforme a vida nos acontece, conforme nos
atrevemos a viver. A mesma tensão vale aqui, entre a felicidade e o desespero.
Mas não qualquer desespero, e Sponville faz questão de destacar isso em sua obra
A felicidade, desesperadamente:

“O que chamo de desespero, filosoficamente, é bem próximo do que Freud, a seu


modo e de outro ponto de vista, chama de trabalho do luto. Não é, de forma alguma,
um trabalho da tristeza! A meta do luto é a alegria. Você acaba de perder um ente
querido, tem a sensação de que tudo vai por água abaixo, de que nunca mais você
vai ser feliz. E eis que ao cabo de três meses, seis meses, um ano, você descobre que
a alegria voltou a ser possível! O trabalho do luto é esse processo psíquico, esse
trabalho sobre si que faz que a alegria pelo menos torne a ser possível. Desesperar,
no sentido em que emprego a palavra, é fazer o luto das suas esperanças, fazer o
luto de tudo o que não é, para se regozijar do que é (o que não quer dizer, mais uma
vez, que não transformamos: a ação faz parte do real, a vontade faz parte do real).”

O que tudo isso significa, enfim? Que ajamos, sempre que pudermos (o real não se
transforma sozinho), em vez de esperar que mude. Que desfrutemos, sempre que
pudermos (o real é o que temos, ele jamais nos falta), em vez de esperar desfrutar,
de lançar nossa satisfação e alegria ao futuro e encarcerá-las em condição após
condição. Que amemos, sempre que pudermos, a nós mesmos, sem dúvida, e ao
outro, igualmente.

Vejam que não quero obrigar ninguém a ser sábio (nem poderia!), pois a sabedoria
decorre da vontade de saber, de amar a verdade. E como não me canso de falar
(talvez vocês de lerem), o amor não é um mandamento, mas um sentimento.
Spinoza dizia que o amor é uma alegria. Sponville, spinozista que é, afirma que
“não há sabedoria que não seja alegria”, assim como “não há alegria que não seja
de amar”. Amar então, um pouco da verdade, um pouco do que é, um pouco de
nós mesmos (amar-se demais, afinal, é sempre um perigo!), um pouco dos amáveis,
e na medida de nossas capacidades, dos cretinos e vilões, não para lhes dar afeto,
mas ao menos para compreendê-los, e tratá-los de suas deficiências psíquicas na
medida em que são tratáveis – amá-los, enfim, se não por amor a sua pessoa, ao
menos por amor à verdade, à sabedoria, e inclusive a si mesmo, já que a
alternativa é o ódio, que nenhum bem faz e nos torna por vezes tão vis quanto os
vilões que odiamos.

É esse sentido da felicidade desesperada que exponho, a partir dos ensinamentos


de Comte-Sponville. É por fim, o mesmo que Montaigne (é claro) já evocava (e diga-
se que Sponville não se cansa de citá-lo, assim como a Spinoza, e eu que não me
canso de citar os três): “Ser feliz”, dizia em palavras próximas a estas, “é regozijar-
se em viver e lutar.”

Coragem! Pois a vida não nos cansa de exigi-la.

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