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Reflexões sobre a felicidade e a esperança na pandemia
Gostaria, neste texto, de compartilhar um sonho que tive certa noite e que me
impactou muito na hora. Tanto que me senti impelido a escrever sobre. Diz
respeito à pandemia e ao crescente número de mortes que alastravam (e
continuam a alastrar) o país. O contador estava em 50 mil quando tive esse sonho
e comecei a escrever esse texto, tentando desvendar seu significado. Hoje,
passando de 100 mil vidas perdidas, dedico esse texto a elas, em especial, e aos
seus familiares e amigos.
Éramos muitos. Embora não houvesse nenhum rosto visível (ao menos nenhum
se revelava a mim) eu sabia que uma pequena multidão me acompanhava.
Devo deixar claro que esse nosso grupo era de filósofos e aprendizes (como eu) da
filosofia. Não que estivesse explícito, mas como cada sonho é capaz de contar
histórias sem precisar começar pelo começo, simplesmente compreendemos.
Muito bem.
De repente uma figura de terno aparece à nossa frente nos delegando nossa
missão. Éramos arquitetos e pedreiros que martelavam e pregavam as ideias.
Como a noite era vazia, conduzíamos nossos projetos e ferramentas com
inescrupulosa liberdade. Não tardou muito, essa liberdade foi parcialmente
substituída pelo escrúpulo, no caso, nosso dever. É-nos revelado que nossa
verdadeira missão é zelar pelas vidas dos que precisam de nossa ajuda e
orientação (vale dizer que esse ponto do sonho é uma referência, entre outras
coisas, ao meu desejo e interesse pela prática da filosofia clínica, uma forma de
orientação em consultório com o fito de ajudar o partilhante a desvelar sua
história e esclarecer a relação de seus problemas internos e, com isso, resolvê-los
– sejam angústias existenciais ou problemas mais imediatos como insatisfação no
trabalho ou num relacionamento e etc.). Pareceu que, como filósofos,
precisávamos praticar nossas ideias, e que a libertinagem teórica escapava da
realidade.
Foi aí que nosso trabalho ficou difícil. O ardor da realidade nos impedia de
congelá-la conforme a idealizávamos. O que se seguiu, e não pretendo entrar em
detalhes para cada caso individual, foi uma série de pessoas que me consultavam
livremente, uma por uma. O cenário era diferente para cada uma, mas todas
ocorriam durante a luz do dia, que nos permitia ver as coisas com clareza. A
universidade já estava muito distante (fazíamos trabalho de campo, por assim
dizer). E em todos os casos, unanimemente, ao fim da “consulta”, um horror
tomava a cena. Um silêncio mortificante enclausurava o clima, e como se sempre
tivessem certeza disso, os partilhantes se afastavam e se entregavam
completamente aos braços da morte. Antes de tirarem a própria vida, eu ouvia
com muita angústia, seus desesperos mais horripilantes. Eu mantinha uma
postura estoica e quase indiferente diante desses relatos, mas por dentro minha
alma gemia de dor. O mais estranho foi que eu jamais aconselhei ninguém nesses
casos. Fiquei de boca fechada, só ouvindo e fingindo compostura. Logo após os
relatos eu tinha certeza do que iria acontecer. Mesmo assim, não movia um
músculo. Então a pessoa corria para longe de mim (nenhum dos atos aconteceu
diante dos meus olhos) e eu ouvia o silêncio perfurante daquele instante em que
aquela pessoa corria para a morte sem a menor dúvida do que estava fazendo.
Pior que esse silêncio eram os gritos arredor: mães (em todos os casos), amigos,
parentes, transeuntes.
O que mais me doía eram os gritos das mães. Foi a única coisa que me fez mexer
meu corpo – para afastar mais ainda o olhar. Eram como mil facas me perfurando
no escuro. Não via nada, mas sentia cada pontada. Minha alma sangrava
violentamente. Eu forçava reflexões estoicas: é apenas a morte, não há o que
temer. Recordei de Epicuro: a pessoa apenas deixou de ser, para ela não há mais
dores ou consciência. Sua alma está em paz…
A alma dela até poderia estar em paz, mas aqui em vida, o desespero era
paralisador. Para cada morte, um eco no infinito. O luto me engolfava e a razão
perdia seu sentido de ser. Éramos todos zumbis errantes, vagando num
interminável cemitério sem sepulturas.
Toda essa obra de arte maravilhosa, esse parque arqueológico da pátria, essa
homenagem à nação… tudo construído sobre o mesmo cemitério sem sepulturas
que há pouco caminhávamos, mas que rapidamente fizemos questão de esquecer
ou nos convencemos que seus corpos serviam um bem maior. "É uma pena, vamos
sentir falta do prego nº 345. Mas pelo menos ele sustenta a viga da torre dos
direitos."
O jardim não tem mais espaço para os mortos. A terra, de tão atulhada com corpos,
virou um campo de germes. Para suprir essa demanda, na torre do Cemitério
Vertical, as gavetas rapidamente lotaram de cadáveres. Porém, cada uma também
guarda uma história. Pedras de mármore sem nomes, que abrigavam consigo
vidas inteiras, desejos inteiros, frustações, amores e potências infinitas... Se
pretendo cuidar desse jardim, não posso ficar calado, não posso me mexer só para
não olhar. O mundo é meu partilhante, está na hora de organizar essas ideias e
compreendermos nossa própria angústia (como faria um filósofo clínico com seu
partilhante). A realidade é cruel quando crua. Não cabe a nós travesti-la, mas
entendê-la. No labor da utopia, desse parque da pós-verdade (a que mais nos
apetece), a Filosofia escancara nosso "sonho dogmático". Logo em seguida, acordei
do meu. O dogma do ideal não é páreo para o dogma do real.
Assim como nas gavetas do cemitério, esse sonho, morto pela impiedade do real,
também precisa de um epitáfio. Pensei em um perfeito. O Capitão Picard
(personagem da série Star Trek: A Nova Geração) profere as palavras como se
fossem um tributo fúnebre, mas que ao mesmo tempo tão bem simula nossa
situação enquanto defensores da verdade e, com isso, da humanidade: “Há
obrigações que vão além do dever”. A obrigação é com a dignidade humana, e o
único dever que se justifica “além” dela, é o dever do respeito. Mas eles coexistem:
trata do dever de respeitar a dignidade humana.
Outra coisa que o quebrar dessa ilusão me indica, é que o desespero, isto é, a dor,
o medo e a angústia, nos pertencem da mesma forma que fazem o desejo e a
esperança. “Não há esperança sem temor, nem temor sem esperança”, já
reconhecia Spinoza. Quando a realidade é dura assim, a esperança cresce, e com
ela, o temor de não se realizar. Mas é o que o sofrimento nos ensina (não só agora,
mas sempre que ele nos visita): é para ver até onde aguentamos, o quanto
podemos suportar, e o que Comte-Sponville tenta nos ensinar, que “só teremos
felicidade à proporção do desespero que formos capazes de suportar, de habitar,
de atravessar.”
Triste? Talvez, mas real. Se quisermos um pouco mais de sabedoria nas nossas
vidas, e com isso sermos dignos da felicidade, como queria Kant, o real é nosso lar.
“Uma verdade triste é mais valiosa que uma felicidade falsa”, nos diz Sponville.
Ele relatava, nesse trecho, sobre o caminho do filósofo, mas que qualquer um pode
seguir, e se a sabedoria está na sua lista ou no seu horizonte, é uma frase
necessária. O que ela não pode ser, contudo, é mais uma esperança. Se a felicidade,
esta sábia, está na sabedoria que, por sua vez, está na aceitação do real, ela nos
escapa quando fazemos dela um novo ideal.
E o que é o real?
“... a sabedoria está na aceitação do real, não em sua negação. O que mais natural,
quando se sente dor, do que gritar? O que mais sábio, quando se está angustiado, do
que aceitá-lo? ‘Enquanto fazes uma diferença entre o samsara e o nirvana’, dizia
Nagarjuna, ‘estás no samsara.’ Enquanto você faz uma diferença entre sua pobre
vida e a redenção, está em sua pobre vida.” – Comte-Sponville, Bom dia, Angústia!
O que tiro disso? Que nenhuma felicidade é verdadeira se não for alcançada pela
verdade. E a verdade, que é como se faz essa sabedoria, é a verdade que Spinoza
conclui nas palavras finais de sua Ética:
“Se o caminho, conforme já demonstrei, que conduz a isso parece muito árduo, ele
pode entretanto, ser encontrado. E deve ser certamente árduo aquilo que tão
raramente se encontra. Pois se a salvação estivesse à disposição e pudesse ser
encontrada sem maior esforço, como explicar que ela seja negligenciada por quase
todos? Mas tudo o que é precioso é tão difícil como raro.”
(Perdoem-me pelo número de citações, mas é uma pena não usá-las quando a ideia,
ao meu ver, não poderia ser melhor dita, e é a perfeita desculpa para dar crédito
ao seu pensador.)
Como suportar esse desespero? Vivendo, por mais simples que soe. É senão o que
a filosofia nos ensina, e não só ela, mas a vida em si, que é senão para ser vivida.
E no trabalho diário e constante, e por vezes repetitivo desse trajeto, acumulamos
poeira nos cantos da alma, e deixamos de ver coisas que nos fazem quem somos,
que nos constituem, que ficam alojadas nos seus pontos cegos.
Por isso a arte, por isso a filosofia, por isso a comédia: não para abandonar nossa
loucura (o desejo, a esperança), que dela ninguém foge, mas para desfrutar mais
e melhor, sempre que pudermos, o que temos agora, o que não nos falta, e nos
encontrarmos no presente, que é o único tempo que existe, sem desejos futuros,
apenas alegrias reais, gozadas com apetite; não para esquecer, mas para lembrar
que agora é o único momento em que existimos de fato. De resto... é memória ou
esperança que sempre carrega consigo pelo menos um pouco de medo, um pouco
de angústia por não ser real, por não ser presente. Se eles não forem patológicos,
precisamos abraçá-los.
O que tudo isso significa, enfim? Que ajamos, sempre que pudermos (o real não se
transforma sozinho), em vez de esperar que mude. Que desfrutemos, sempre que
pudermos (o real é o que temos, ele jamais nos falta), em vez de esperar desfrutar,
de lançar nossa satisfação e alegria ao futuro e encarcerá-las em condição após
condição. Que amemos, sempre que pudermos, a nós mesmos, sem dúvida, e ao
outro, igualmente.
Vejam que não quero obrigar ninguém a ser sábio (nem poderia!), pois a sabedoria
decorre da vontade de saber, de amar a verdade. E como não me canso de falar
(talvez vocês de lerem), o amor não é um mandamento, mas um sentimento.
Spinoza dizia que o amor é uma alegria. Sponville, spinozista que é, afirma que
“não há sabedoria que não seja alegria”, assim como “não há alegria que não seja
de amar”. Amar então, um pouco da verdade, um pouco do que é, um pouco de
nós mesmos (amar-se demais, afinal, é sempre um perigo!), um pouco dos amáveis,
e na medida de nossas capacidades, dos cretinos e vilões, não para lhes dar afeto,
mas ao menos para compreendê-los, e tratá-los de suas deficiências psíquicas na
medida em que são tratáveis – amá-los, enfim, se não por amor a sua pessoa, ao
menos por amor à verdade, à sabedoria, e inclusive a si mesmo, já que a
alternativa é o ódio, que nenhum bem faz e nos torna por vezes tão vis quanto os
vilões que odiamos.