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BRETON, André. Manifestes du surréalisme. Ed.

Folio/ Gallimard, 1992

Manifesto do surrealismo (1924)

“SURREALISMO, n. m. Automatismo psíquico puro pelo qual nos


propomos a exprimir, seja verbalmente, seja por escrito, o
funcionamento real do pensamento. Ditado do pensamento, na ausência
de qualquer controle exercido pela razão, para além de qualquer
preocupação estética ou moral.” (36)

“ENCICL. Filos. O surrealismo repousa na crença na realidade superior de


certas formas de associações até então negligenciadas, na onipotência do
sonho, no jogo desinteressado do pensamento. Tende a arruinar
definitivamente todos os outros mecanismos psíquicos e a substituí-los
na resolução dos principais problemas da vida.” (36)

“Hoje Desnos fala surrealista à vontade. A prodigiosa agilidade com que


segue oralmente seu pensamento vale tanto quanto nos agrada com
discursos esplêndidos, que se perdem, já que Desnos tem coisa melhor a
fazer que fixá-los. Ele lê em si a livro aberto e nada faz para reter as folhas
que voam ao vento de sua vida.” (40)
“Composição surrealista escrita, ou primeiro e último esboço.

Instale-se confortavelmente no lugar mais favorável à concentração de


sua mente e faça com que lhe tragam material de escrita. Ponha-se no
estado mais passivo ou receptível possível. Abstraia de seu gênio, de seu
talento, e também do gênio e do talento dos outros. Diga a si mesmo que
a literatura é um dos mais tristes caminhos que levam a tudo. Escreva
rápido, sem qualquer assunto pré-concebido, rápido bastante para não
reter na memória o que está escrevendo e para não se reler. A primeira
frase surgirá por si mesma, a tal ponto é verdade que, a cada segundo,
ocorre uma frase estranha ao nosso pensamento consciente, que mais
não quer do que se exteriorizar. É muito difícil pronunciar-se sobre o caso
da frase seguinte; ao que tudo indica, ela participa, ao mesmo tempo, de
nossa atividade consciente e da outra, se admitirmos que o fato de ter
escrito a primeira implica um mínimo de percepção. Isto, aliás, deve
importar-lhe pouco: é nessas coisas que reside a maior parte do interesse
suscitado pelo jogo surrealista. É sempre verdade que a pontuação
certamente se opõe à continuidade absoluta do fluxo de que nos
ocupamos, embora ela pareça tão necessária quanto a distribuição de nós
numa corda em vibração. Prossiga enquanto sentir vontade de fazê-lo.
Confie no caráter inesgotável do murmúrio. Se o silêncio ameaça
estabelecer-se em virtude de um erro seu, minúsculo que seja – um erro,
por exemplo, de desatenção –interrompa, sem hesitar, uma linha
demasiado clara. Logo depois da palavra cuja origem lhe pareça suspeita
escreva uma letra qualquer, a letra l, por exemplo, sempre a letra l, e
traga de volta o arbitrário impondo esta letra como inicial à palavra
seguinte.” (41-42) (Tradução Sergio Pachá, p. 44-45)
Breton cita Pierre Reverdy (Nord-Sud, 1918): “A imagem é uma pura
criação da mente. Ela não pode nascer de uma comparação mas da
aproximação de duas realidades mais ou menos distantes. Quanto mais
as relações entre as duas realidades forem distantes e justas, mais a
imagem será forte – mais ela terá poder emotivo e realidade poética...”
(31)

“[A imagem surrealista] mais forte é aquela que apresenta o grau de


arbitrariedade mais elevado (...); aquela que se leva mais tempo para
traduzir em linguagem prática...” (50)

Cantos de Maldoror

É belo como a retratibilidade das garras das aves de rapina; ou ainda, como
a incerteza dos movimentos musculares nas feridas das partes moles da
região cervical posterior; ou melhor, como essa ratoeira perpétua, que
sempre é armada de novo pelo animal capturado, que pode pegar sozinha
os roedores, infinitamente, e funcionar até mesmo escondida sob a palha;
e, principalmente, como o encontro fortuito sobre uma mesa de dissecção
de uma máquina de costura e um guarda-chuva!

Comte de Lautréamont, Os cantos de Maldoror (1868-1870), pg. 252, trad.


Claudio Willer
“O surrealismo, tal como o considero, declara suficientemente seu não-conformismo
absoluto para que não possa ser o caso de traduzi-lo, no processo do mundo real, como
testemunha de defesa. Ao contrário, ele só poderia justificar o completo estado de
distração que esperamos alcançar aqui embaixo. [...] O surrealismo é o ‘raio invisível’
que nos permitirá um dia triunfar sobre nossos adversários. ‘Tu não tremes mais,
carcaça.’ Neste verão, as rosas são azuis; a madeira é vidro. A terra coberta em sua
verdura faz-me tão pouco efeito quanto um espectro. Viver e deixar de viver é que são
soluções imaginárias. A existência está em outra parte.” (60)

Informe

Um dicionário começaria a partir do momento em que não


desse mais o sentido, mas as tarefas das palavras. Assim, informe não é
apenas um adjetivo que tem este ou aquele sentido, mas um termo
que serve para desclassificar, exigindo geralmente que cada coisa
tenha sua forma. O que ele designa não tem seus direitos em sentido
algum e se faz esmagar em toda parte como uma aranha ou uma
minhoca. Seria preciso, de fato, para que os homens acadêmicos
ficassem contentes, que o universo tomasse forma. A filosofia inteira
não tem outra meta: trata-se de dar um redingote ao que é, um
redingote matemático. Em contrapartida, afirmar que o universo não
se assemelha a nada e é apenas informe equivale a dizer que o universo
é algo como uma aranha ou um escarro.

(Georges Bataille, Documents, n° 7, dezembro de 1929)


Segundo manifesto do surrealismo (1930)

“...o surrealismo não tendeu a nada tanto quanto a provocar, do ponto de


vista intelectual e moral, uma crise de consciência da espécie mais geral e
mais grave, [...] e apenas a obtenção ou não desse resultado permite
avaliar seu êxito ou seu fracasso histórico.” (72)

“...o surrealismo não temeu transformar em dogma a revolta absoluta, a


insubmissão total, a sabotagem sistemática, e não espera ainda nada a
não ser da violência. O ato surrealista mais simples consiste em, com o
revólver em punho, descer à rua e atirar a esmo, tanto quanto for
possível, na multidão. Quem não teve, ao menos uma vez, vontade de
acabar assim com o pequeno sistema de envilecimento e de cretinização
em vigor tem seu lugar marcado nessa multidão, com o ventre na altura
do cano.” (74)

“...o objetivo deve ser a ruína total das pretensões de uma casta a que
pertencemos à nossa revelia e que só poderemos contribuir para abolir
fora de nós quando tivermos conseguido aboli-la em nós.” (82)

“É normal que o surrealismo se manifeste em meio e talvez ao preço de


uma sequência ininterrupta de enfraquecimentos, de ziguezagues e de
defecções que exigem a todo instante que se recoloquem em questão
seus dados originais...” (100)
CARTA AO PAPA

O Confessionário não é você, oh Papa, somos nós; entenda-nos e que os


católicos nos entendam.
Em nome da Pátria, em nome da Família, você promove a venda das
almas, a livre trituração dos corpos.
Temos, entre nós e nossas almas, suficientes caminhos para percorrer,
suficientes distâncias para que neles se interponham os seus sacerdotes e
esse amontoado de doutrinas afoitas das quais se nutrem todos os
castrados do liberalismo mundial.
Teu Deus católico e cristão que, como todos os demais deuses, concebeu
todo o mal:
1°. Você o enfiou no bolso.
2°. Nada temos a fazer com teus cânones, índex, pecado, confessionário,
padralhada, nós pensamos em outra guerra, guerra contra você, Papa,
cachorro.
Aqui o espírito se confessa para o espírito.
De ponta a ponta do teu carnaval romano, o que triunfa é o ódio sobre as
verdades imediatas da alma, sobre essas chamas que chegam a consumir
o espírito. Não existem deus, Bíblia, Evangelho; não existem palavras que
possam deter o espírito.
Nós não estamos no mundo; ó Papa confinado no mundo; nem a terra
nem Deus falam de você.
O mundo é o abismo da alma, Papa caquético, Papa alheio à alma; deixe-
nos nadar em nossos corpos, deixe nossas almas, não precisamos do teu
facão de claridades.

Trad. Cláudio Willer (Révolution surréaliste, 1925)


UM HOMEM TRANQUILO

Esticando as mãos para fora da cama, Plume ficou surpreso de não


encontrar a parede. “Nossa, pensou, as formigas devem ter comido...” e
dormiu de novo.
Pouco depois, a mulher o agarrou e sacudiu: “Olhe aqui, seu
vagabundo!”, disse ela. “Enquanto você estava ocupado dormindo,
roubaram a nossa casa.” De fato, um céu intacto se abria por todos os lados.
“Bem, a coisa está feita”, pensou ele.
Pouco depois, um barulho se fez ouvir. Era um trem que estava
chegando em cima deles a toda velocidade. “Com esse ar apressado,
pensou, ele certamente vai chegar antes de nós” e dormiu de novo.
Em seguida, o frio o despertou. Ele estava encharcado de sangue.
Alguns pedaços da mulher jaziam perto dele. “Com o sangue, pensou,
sempre surgem inúmeros aborrecimentos; se esse trem pudesse não ter
passado, eu ficaria felicíssimo. Mas como ele já passou...” e dormiu de novo.
- Vejamos, dizia o juiz, como o senhor explica que sua mulher tenha se
ferido a ponto de ter sido encontrada dividida em oito pedaços, sem que o
senhor, que estava ao lado dela, pudesse fazer um gesto para impedir, sem
que o senhor sequer percebesse. É esse o mistério. O caso está todo aí.
- Por esse caminho, não posso ajudá-lo, pensou Plume, e dormiu de
novo.
- A execução vai ser amanhã. Acusado, o senhor tem algo a
acrescentar?
- Desculpe-me, disse ele, não acompanhei o caso. E dormiu de novo.

Henri Michaux, Un certain Plume, (1930-36), Tradução Margarida Vale


do Gato

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