Você está na página 1de 15

ELPIS

ESPERA E ESPERANÇA DA MORTE PRÓXIMA

É uma curiosidade de nossa época que a morte se tornou tabu e o sexo deixou de
sê-lo. Outrora, era o contrário. A transição se processou no correr de minha geração.
Como grande era antes a natalidade nas famílias enormes, intensa era também a
mortalidade e baixa a expectativa média da vida, assistindo-se tão comumente à morte de
pessoas familiares que a presença da megera se tornava banal, companheira constante da
vida. Também havia mais fé, da qual hoje carecemos num século de quase universal
apostasia. Outrora, pensávamos na morte, memento mori, porque o destino chamava para
o céu, o purgatório ou mesmo para o inferno, para o qual nossos inimigos nos ordenavam.
E julgávamos conveniente uma preparação adequada. Nas classes mais cultas das nações
avançadas, poucos hoje ainda sinceramente acreditam na imortalidade pessoal... quiçá até
o “momento da verdade”. Na literatura, no cinema, nos jornais, nas conversas de boa
sociedade, ninguém muito hesita em retirar o sexo da extrema privacidade em que existia
para uma publicidade ostensiva, explícita – enquanto o fim se tornou um escândalo, uma
vergonha, um tema extremamente desagradável, revoltante, imoral, quase obsceno, É, de
qualquer forma, algo “numinoso” em que não se deve tocar. Morre-se agora na mais
absoluta solidão, freqüentemente em hospital, longe da família, num ambiente feio e frio
como tememos.
Há obviamente um relacionamento íntimo enter os dois fenômenos. Se o reino de
Deus não mais interessa porque não existe, a solução é aproveitar os monochrone hedone,
os momentos de prazer aconselhado Aristipo de Cirene, um dos pais da filosofia
epicurista. A morte vem aí: ela é certa, embora incerta a hora, como ponderavam os
romanos. O melhor é nela não pensar. As cerimônias funerárias são construídas para
esquecer a contingência. Nos Estados Unidos, pinta-se as faces do cadáver para fazer crer
que é uma pessoa dormindo. No Brasil, quando muito, admite-se o humorismo – como
daquele gaiato que, ao se despedir do amigo num velório, gritou-lhe: “Um abraço meu
caro. Até breve, até o próximo...”. Patéticos são quase sempre os discursos de elogio à
beira da cova...
O humor e a ironia são raros no momento da morte, mas acontecem. O
Imperador Vespasiano virou-se par os amigos e comentou, sorrindo: “Ora essa! Sinto que
me estou tornando um Deus”. E Voltaire, notando, na agonia, que a vela da cabeceira se
reacendia com fulgor, murmurou: “O que? As chamas... Já?”, o mesmo ocorrendo com
outra celebridade francesa: visitando Talleyrand que, à beira da morte, gemia de dores
terríveis, Louis Philippe ouviu do famoso diplomata e genial sem-vergonha a queixa: “
Sire, je souffre comme um damné!”. Ao que lhe respondeu o Rei, com um discreto
sorriso: “Dejà, mon cher?”. A mãe de Goethe também não se abalou. Uma criada veio
trazer-lhe um convite; a grande dama virou-se na cama e pronunciou suas últimas
palavras: “Vá dizer que Frau Goethe não pode ir à festa porque, no momento, está muito
ocupada com os afazeres da morte...”. Outras “últimas palavras” que entraram para a
história foram, ao que consta, de Júlio de Castilhos. Alguns amigos foram ver o ditador
gaúcho, e ouviram-no gemer: “Coragem, Júlio”, disseram-lhe, ao que lhe respondeu o
mais famoso positivista brasileiro: “Coragem eu tenho! O que me falta é ar...”.
Escreve-se hoje pouco sobre a morte, salvo como violência que sofrem “os
outros”... Tolstoi ainda podia contar, em pequena obra prima, “A Morte de Ivan Ilitch”.
Mas será talvez Heidegger um dos últimos filósofos que meditaram em torno do tema
funesto. O existencialismo, é bem verdade, leva grandes escritores aos limites da morte,
sem nunca se declararem claramente pela salvação, a danação ou o néant sartriano.
Graham Greene ou Camus, por exemplo. O que se constata com Angst crescente é o
absurdo da vida, correspondente ao absurdo da morte. A escatologia secularizou-se. Nos
tempos modernos, os heróis que morrem em combate ou nos conflitos políticos horrendos
do passado século, projetam sobre o futuro, o futuro terreno de nossa “história” humana,
sua “imortalidade histórica” positivista. Desse tipo de morte, estão cheios a literatura e o
cinema. Até mesmo as Academias de Letras... Não obstante, o pensamento filosófico
ataca a questão com um terrível sentimento de frustração, ignorância e incontida revolta.
Phillipe Ariès estuda, de um ponto de vista histórico mas já psicológico, o
problema de L’Homme devant la Mort (1977). Para domar o horror, explica ele que a
morte obscena foi cada vez mais privatizada e escondida, acabando nos quartos dos
hospitais. Vladimir Jankélevitch reflete, no mesmo ano e em mais de 400 páginas, sobre
o absurdo da sobrevivência, juntamente com o absurdo do niilismo céptico – e não há
solução na contradição. A arte de morrer, ars moriendi, é abordada por um livro recente,
How to Die – Reflections os Life’s Final Chapter (Knopf, NY 1994), de Sherwin Nuland.
Esse professor de cirurgia de Yale enfrenta a ansiedade e o horror dominantes na
medicina desde quando, aparentemente, atingiu os limites de seus milagrosos avanços
com a impotência diante do câncer, das infecções e sobretudo da AIDS – uma epidemia
como que enviada por uma divindade terrível a fim de reduzir às devidas proporções a
imensa vaidade humana. Horror e esperança que retorna, com a investigação do Genoma
e do mistério da molécula do DNA, com sua dupla hélice... Pois, realmente, estará ali o
segredo da vida?
Num ensaio de 1934, Jung chamou-nos, contudo, a atenção para a Wirklichkeit de
Seele, a realidade da alma. Insiste Jung no fato que a natureza da psique atinge
profundidades abissais que vão muito além de nossa capacidade de compreensão
intelectual. Como fizera Kant, que na célebre sentença com que termina sua “Crítica da
Razão Prática”, comparava o mistério da lei moral em nós com o do céu estrelado acima
de nós, argumenta Jung que os obscuros enigmas da psique são tão infinitamente grandes
quanto os do Universo galáctico ou os da física das partículas. Na dimensão do Tempo e
nas profundezas do Eu existe, em cada um de nós, um Universo tão imenso quanto
aquele que, na dimensão do Espaço einsteiniano, se estende a 15 ou 20 bilhões de anosluz
– e nesses dois universos, conforme a própria ciência sugere, as categorias cartesianas
clássicas de tempo, espaço e causalidade não mais funcionam. Nos deparamos sempre
com as antinomias de Kant, uma parede intransponível à filosofia.
A sombra de Nietzsche se projeta então sobre nosso século, ordenando-nos que
consideremos a nossa condição moralmente precária depois da “morte de Deus”. Que
recorramos à única virtude digna dos homens, a coragem existencial! No Phaedo
platônico, Sócrates ensinou-nos que “aqueles que se aplicam corretamente à filosofia
estão, toda sua vida, se preparando de moto próprio para morrerem e para a morte. E os
que assim se preparam, pois bem, seria absurdo que se perturbassem com aquilo que
sempre anteciparam”. Somos hoje chamados de volta à velha questão levantada no Salmo
89:49: “Quem viverá sem ver a morte?”...
DA ESPERANÇA
Falamos de morte. Dela falamos porque, como Fim ou Meta final da vida, é ela a
principal inspiradora da Esperança. Na verdade, é a vida uma constante procura, uma
espera. Foi Alexander von Humboldt quem acentuou ser todo sentimento religioso
sustentado numa necessidade mental: esperamos e tememos porque desejamos. Humboldt
talvez se lembrasse da terceira das grandes questões filosóficas que Kant colocou em sua
“Crítica da Razão Pura”, aquela que vem depois da pergunta epistemológica, “que
posso saber?”, e da pergunta ética “que devo fazer?”, e que é a seguinte: “o que tenho o
direito de esperar?”
A vida possui constantemente um objetivo, um fim, um telos, e sendo uma
expectativa, positiva ou negativa, possui, pelo menos, um marco futuro certo, o único
aspecto da existência e do nosso conhecimento do mundo do qual podemos ter certeza
absoluta, incontrovertida, irrefutável, uma certeza apodíctica – a certeza da Morte. Pois
se, racionalmente, não podemos afirmar coisa alguma como indubitável, nem do tempo
que vai fazer em qualquer lugar, nem das curvas da Bolsa, nem mesmo, com acentuava
Hume, se o sol se levantará amanhã, esta certeza absoluta eu possuo, a certeza de que vou
morrer. Ela acompanha, logicamente, a dúvida metafísica que é corrigida pelo cogito de
Descartes, “Penso, logo existo”. Ninguém me poderá contradizer, certo... mas, se penso
que existo, penso necessária e igualmente que vou deixar de existir um dia...
A morte pode, porém, para os homens de fé, ultrapassar-se num fim
transcendente, post-mortem, para o Bem ou para o Mal. É a Esperança de Gabriel Marcel.
Nesse sentido, é a vida um aguardar sem fim do amanhã, um aguardar que se pode tornar
rotineiro, monótono, repisado, recopiado, revisitado, repetitivo na vulgaridade de um
quotidiano sem expressão, na interminável e penosa tarefa de Sísifo que, com sua carga
insuportável, levará a pedra até o alto da montanha, para vê-la novamente retornar a seu
ponto de partida. É também uma espera que se pode iluminar de expectativas e anseios,
ao ser transfigurada com a fé na realidade futura, pela virtude da Esperança. Como
acentuava o apóstolo Paulo, em Hebreus 11.1, a Esperança consubstancia a íntima
associação entre a fidelidade à realidade, considerada como verdadeira, e a fé como “a
substância das coisas esperadas e a evidência das coisas invisíveis”.
O mundo presente do espaço aqui e agora não é todo o mundo. Existe um outro
mundo na subjetividade de nosso pensamento que se estende sobre o passado,
definidamente pela memória, e indefinidamente pela expectativa na dimensão do futuro –
enquanto no presente nos encontramos, aqui estamos, Dasein. Um mundo que é o reino
das idéias, das imagens e dos espíritos, é o futuro num mundo de inteira liberdade a ser
realizada no tempo. O futuro, de fato, não existe concretamente, o futuro existirá. Ou,
melhor, ele só existe como antecipação (expectatio) em nossa mente, nos termos de
Agostinho. Um mundo de formas a serem criadas. Um universo percebido pela idéia mais
sublime da moralidade que se projeta para a frente, temporalmente. Um cosmos de
cultura do qual participamos em comunidade de amor e de fé, e que livremente
construímos segundo os princípios da moralidade positiva.
Numa “sociedade cosmopolita”, seria a missão derradeira do homem como a que
imaginava Kant, a construção do Reino de Deus na terra, sempre que obedecemos ao
imperativo categórico da ética e consideramos o homem, em sua dignidade, não como um
meio, mas como um fim em si mesmo. Kant fala no “propósito supremo”, no “propósito
derradeiro” do homem, na meta final de um processo de aperfeiçoamento guiado pela
Idéia – como postulado de nossa razão prática. Não deixa essa intuição transcendente de
Kant de se conformar com a idéia positivista de uma “imortalidade ideal” nas crônicas da
história em que estão registrados os nomes dos grandes homens, dos santos, dos sábios,
dos filósofos, dos heróis, dos artistas, dos construtores e descobridores, daqueles
“Homens Superiores” de Nietzsche que, para a Cultura, contribuíram. Seria esse o
fundamento kantiano de nossa esperança iluminadora num mundo sombrio, confuso,
desorganizado e incompreensível em que, hic et nunc, sobrevivemos – mas do qual nos
livraremos, pelo postulado da razão prática, somente através da esperança da
Imortalidade.
Muito embora em sua serenidade de pacífico professor solteirão na pacífica
cidade de Koenigsberg, da Prússia oriental, reconhecesse Kant o caráter conflituoso e
fragmentado da vida humana, assim como as desigualdades e frustrações do destino, e se
perguntasse como a glória e sabedoria da Criação se poderia racionalmente
compatibilizar com o espetáculo miserável da absurda história humana, do qual
deveríamos afastar nossos olhos com indignação, no desespero de jamais encontrar um
propósito racional – não pretendia Kant, no entanto, apenas transferir nossas esperanças
para o “outro mundo”. A atitude que devemos filosoficamente tomar deve sentir os
efeitos de uma história que reflete as tensões inerentes ao tema contraditório do progresso
e da decadência. Mas, enfrentando o absurdo geral das coisas - a “confusão era geral”
machadiana - neste nosso histórico mundo humano, atrevia-se Kant a conceber um
propósito que “tornaria a história, de acordo com um plano determinado da natureza
possível para criaturas que agem sem qualquer plano próprio”. O filósofo deseja partir do
mito da Gênesis, capítulo 2 a 4, com o qual parece concordar fiel e lilteralmente. E
postula ortodoxa, porém de certo modo inaceitávelmente, que “a História da natureza
começa com o Bem, pois é o trabalho de Deus; a história da Liberdade começa com o
Mal, pois é o trabalho do homem”. De onde surge um conflito inevitável entre cultura e
natureza, do qual a história providencial nos deve arrancar. Entretanto, encontra o
filósofo um propósito natural, uma causalidade teleológica na vida da espécie, que é
imortal enquanto os indivíduos racionais que a compõem devem morrer. Dessa maneira,
ele acaba propondo uma tese próxima do deísmo de sua época, segundo a qual estaria a
espécie conduzida por uma espécie de Mão Invisível - tal qual, antes dele, postulara
Adam Smith.
*******************
É graças ao Judeo-Cristianismo que a civilização ocidental tornou-se a civilização
futurista por excelência. Poderíamos definir a nossa como a cultura do Futuro ou a
cultura da Esperança... A imagem das coisas sucessivamente esperadas, com a substância
das coisas invisíveis, tal é nossa vida terrena. Quando crianças, contamos os anos, às
vezes os meses para a nossa maioridade que nos deve proporcionar liberação e poder.
Esperamos a brincadeira, os jogos, as férias, espreitamos o que a vida amanhã nos
reserva. Quando jovens, esforçamo-nos por crescer e, como adolescentes, fazemos
projetos, imaginamos grandiosas realizações, matutamos ambiciosas conquistas,
ansiamos por sexo e amor e poder, vislumbramos triunfos extraordinários e, se já com
seriedade, pensamos no fim dos estudos que implicará a escolha da profissão que
seguiremos na vida. Uma “profissão” de fé...
Em breve chegará essa oportunidade de Ação sobre o grande mundo, tão
ansiosamente prometido. A saída de casa, do afago materno para a grande aventura da
vida – eis a conquista da maturidade. No ímpeto romântico da adolescência, esperamos a
novidade de cada experiência amorosa, a mulher enfim descoberta em seu mistério e
fascínio – e todo jovem registra, pelo menos em imaginação, o ímpeto inquieto de um
dom Juan. O amor que o adolescente aguarda seria o paradigma da emoção que se traduz
em Esperança: a “expectativa alegre” da definição filosófica. O primeiro encontro, o
primeiro beijo, a primeira declaração, a primeira transa. O homem persegue a imagem da
mulher – o que os psicólogos chamam de ânima - a Imagem do eterno feminino da Alma,
aquele Fantasma dos belos versos de Castro Alves - na imaginação do introvertido ou na
ação do extravertido, confunde-se o ímpeto da alma para o futuro, a tal ponto que, em sua
integridade vital, essa expectativa definiria a própria juventude.
Mas chegamos à maturidade e, como adultos, aguardamos com temor a velhice.
Depois da doença e antes da morte, é a velhice o segundo dos Três Males que o Buda, o
Príncipe Siddharta Gautama, descobriu e que o conduzia, pela ascese e a meditação, à sua
Iluminação sob a árvore Bô. E quando velhos, já resignados, com a expectativa da morte
permanecemos e, por ventura algo duvidosos, do que virá depois. A Felicidade é o que
mais comumente se espera, procura e persegue. A Pursuit of Happiness acabou sendo
inscrita como um direito inalienável na própria Declaração de Independência americana –
consubstanciando-se como princípio constitucional. Como indica Charles Murray em sua
obra The Pursuit of Happiness and Good Government, seria este o propósito máximo da
Modernidade.
De modo semelhante, espera a mulher. Com mais atenção e submissão talvez aos
ciclos fatais da existência, aguarda ela sucessivamente as fases naturais de seu ciclo
biológico. Esperará encontrar o homem que lhe é destinado. Esperará ser Mãe e cumprir
seu destino como realização criadora, a mais perfeita possível, do “eterno feminino” que
nela se configura. Após o casamento, com a almejada estabilidade e felicidade segura,
esperará os filhos e a estes se dedicar, educando-os e acompanhando-lhes as expectativas
e para eles esperando o Melhor. Mais concretamente do que o homem, pois mais próxima
da Natureza, mais sólida, mais forte e mais telúrica, ao mesmo tempo do que a sílfide
vaporosa dos poetas, ela figurará sua esperança em termos humanos, projetando-a sobre a
família e a linhagem indefinida do futuro.
Impaciente na mocidade é a espera: do sonho, do vôo intuitivo que explora as
possibilidades abertas e sobre elas se precipita, cegamente, sob o aguilhão do desejo, da
ambição ou da nietzscheana Vontade de Domínio, Wille zur Macht – vamos caminhando
para fins que procuramos antecipar mais visivelmente, em marcos de nossa vida
profissional. Prosaicos são, às vezes, esses fins; outras vezes sublimes: o diploma, o
contrato de emprego, a nomeação, o primeiro negócio, o reconhecimento público, a
aventura, o triunfo, a homenagem, a glória. Virão os primeiros sucessos e as primeiras
decepções – as frustrações, os desastres, as doenças, os fracassos, o desemprego, a
falência - chama-se a isso amadurecer na espera. Todo sucesso incentiva o anelo ou a
ânsia da espera; todo conflito também se resolve no futuro. Pois, que somos nós, de fato,
senão esboços, rascunhos, rabiscos, abortos de uma obra cuja conclusão jamais
atingimos? Na idéia da sinfonia inacabada, do opus não concluído, da viagem que
procede para uma estação incerta, da expedição ou navegação por mares nunca dantes
navegados, da interminável procura do Graal – há sempre presente o sentimento do
tempo que passa e de um futuro para o qual nos dirigimos, sem saber exatamente qual
será. De onde? Por que? Para onde? Cantava Omar Khayyam,
Há uma porta para a qual chave não possuimos,
Um véu através do qual ver não podemos
Também nesse livrinho póstumo, surpreendente, que é a secreta autobiografia do
antigo Secretário-Geral da ONU, escreveu Dag Hammarskjöld, ainda jovem, estes versos
de inquietação perante o futuro:
Carregado estou para a frente
Para uma terra desconhecida.
O passo cada vez mais íngreme
Mais frio e áspero o ar.
Um vento que sopra de meu fim desconhecido
Mexe com as cordas da expectativa.
Continua, porém, a questão:
Jamais lá chegarei
Onde ressoa
Uma nota clara e pura
No silêncio?
Se as funções perceptivas ou de sensação nos permitem configurar o presente –
sentí-lo e aceitá-lo, aqui e agora, segundo a fórmula cara aos filósofos existencialistas – é
a função intuitiva aquela que, profeticamente, sobre o futuro projeta nossa consciência da
temporalidade no eterno presente. Pelo pensamento lógico, sem dúvida, damos forma ao
porvir. Em obediência à lei estrita de causa e efeito, sabemos que todo episódio atual
resulta de uma causa anterior e, daí, concluímos que toda ação atual terá um efeito futuro.
Nosso espírito transita na dimensão do tempo e, como podemos recordar, foi Sto
Agostinho o primeiro filósofo a introduzir a noção do tempo como dimensão essencial da
psique que, do passado, procede pela memória; no presente, obtém a percepção imediata
da realidade objetiva pelos sentidos; e, sobre o futuro, se projeta pela expectativa. Assim
também, são as funções afetivas que impulsionam o Eu para a ação segundo o desejo (ou,
em última análise, sob o estímulo energético do que Freud concebeu como a Libido),
sempre em obediência a critérios particulares de valor. A Intuição, contudo, é a função
psíquica que transforma a espera puramente fria e mecânica de um efeito provocado; ou
de o impulso cego do desejo, que quer um resultado correspondente – num objeto
procurado, imaginando as consequências possíveis, senão necessárias, dos atos que
efetivamos. A melhor intuição de um Bem futuro alcançado, dizíamos, configura
verdadeiramente a virtude da Esperança.
Em português, rico de sentido é o verbo esperar. Esperar confunde essas várias
conotações de antecipação do futuro: contém o significado neutro de “contar ou aguardar
a realização do acontecimento anunciado, pela concatenação lógica de causa e efeito”.
Trata-se de uma simples expectativa, objetiva, material, concreta e realista: na esquina,
espero o ônibus que deve chegar dentro de dez minutos; espero o pôr do sol pois já são
seis horas da tarde; espero a minha remuneração, salário ou lucro de fim do mês – uma
espera materialmente importante que é “o pão nosso de cada dia”. Espero consequências
desagradáveis se não pago aquilo que devo na data marcada... A espera induzida pela
intuição proléptica funciona, entretanto, de modo diferente: diante de uma série de
possibilidades indefinidas, a intuição nos faz perceber, por via inconsciente, a
eventualidade futura cuja ocorrência não é, de modo algum, racionalmente exigida. Em
inglês distingue-se to wait – o que quer dizer, ficar na expectativa de algo que ocorrerá
posteriormente, ou está pronto para entrar em ação por força de uma necessidade
intrínseca, aceita pelo pensamento racional – de to expect, onde já se traduz uma
antecipação de algo possível ou motivada pelo desejo. To hope é outra coisas - quando a
antecipação feliz vem acompanhada da certeza íntima de que aquilo que é, forte e
positivamente, desejado como um Bem poderá realmente acontecer, como uma
possibilidade futura secreta e confiantemente antecipada. Assim por exemplo, na
Normandie do dia D, o soldado prestes a desembarcar está pronto para a ação, ao pisar na
praia (to wait); está de sobreaviso ante a iminência do combate próximo (to expect); e
alimenta a secreta esperança de não ser atingido e escapar com vida (to hope). Em
francês, distingue-se, do mesmo modo, attendre e espérer. Attendre é uma submissão à
necessidade material, à fatalidade e ao ritmo objetivo do tempo físico, meramente
exterior; espérer é a espera que transcende o tempo e, pelo desejo, nos coloca
milagrosamente no futuro.
A intuição é uma função leve, sutil, jovem. Na juventude todas as possibilidades
estão abertas diante de nós e livremente jogamos com nossas expectativas. A juventude
se distingue pela intensidade das expectativas positivas. Atingimos depois a meia-idade.
A realidade objetiva cada vez mais se impõe sobre nossas imagens e desejos, em sua
ambivalência, e adquirimos a consciência brutal da necessidade – Anankê – as
imposições absolutamente inflexíveis de uma realidade externa, reconhecida como
absoluta. Lá para os 35 ou 40 anos, às vezes antes, frequentemente bem mais tarde, uma
nova intuição, sombria esta, principia a emergir no horizonte de nossa consciência: é a da
espera e certeza da morte.
O homem é o Ser para a morte – proclama Heidegger, em Sein und Zeit.
Ninguém pode arrancar do homem sua própria morte – eis aí o conceito de nossa absoluta
liberdade. Nós somos o ser que, deliberadamente, caminha para seu próprio fim.
Heidegger lembra uma sentença medieval que afirmava: “o homem tão pronto entra na
vida, já velho está e pronto para morrer”. A essência do “ser” – Sein - ou “estar aí” –
Dasein - se encontram em sua existência” - das Wesen des Daseins liegt in seiner
Existenz - e a existência termina em sua própria negação, como Sein zum Tode”, “ser para
a morte”. Nesse sentido, o Dasein, como fenômeno que é a possibilidade de vida, exige a
impossibilidade de Dasein, que é a morte. O princípio da sabedoria coincide com uma tal
descoberta do Tempo – Zeit - que fecha e determina o futuro.
Como acentuava Unamuno, “o Sentimento Trágico da Vida” é revelado pelo
medo – medo da morte ou medo da vida, o que seria a mesma coisa: initio sapientiae
timor Domini. Uns acreditam que foi mesmo o medo que criou os deuses: timor fecit
deos. Quando, pela primeira vez, se apresenta a Megera diante de nossa consciência
como uma fatalidade inelutável, sofremos a Segunda crise importante de nossa vida (já
que seria a puberdade, a adolescência, segundo Freud, a primeira). Poderia ser também a
terceira crise de nossa vida se, segundo Rank, for o trauma do nascimento a primeira...
Atravessamos então a fronteira para o início daquilo que Jung denomina a “Segunda
Metade da Vida”. No Processo de Individuação que acabamos de percorrer, vislumbra-se
uma enantiodromia, uma “mudança de atitude” que, educando-nos no sentido de
substituir nossa contribuição para a Vida, imposta pela Natureza, por uma nova
contribuição, para a Cultura humana, também começa a nos preparar para o Fim. Felizes
aqueles que cumprem integralmente esse ritmo sucessivo da existência. Para a análise do
período de transição de nossa Espera vital, muito contribuiu o sábio de Zurique com seus
estudos de Psicologia profunda. Pois é, nessa altura da existência individual, que mais
violenta se apresenta o conflito entre as expectativas futuristas da consciência mais lúcida
com o eterno substrato, insensível ao tempo e ao espaço, do Inconsciente atemporal. O
Inconsciente confunde passado e futuro numa mesma imagem arquetípica do desenrolar
da vida da Espécie. O Inconsciente, entretanto, se cala no presente pois, precisamente, no
eterno presente vive a consciência. Com um esforço para sublimar o choque emocional
dessa crise, todos nós procuramos a essa altura – pelo amor, pelo trabalho, pela criação
artística, pela produção intelectual ou pela Ação concreta que visa permitir realizar-nos
na vida – obter uma visão do Fim que se aproxima num ritmo de acelerada velocidade.
Sobreleva o desejo universal de reconhecimento, thymos. Já os antigos o propunham
como objetivo máximo do homem, o reconhecimento do valor do serviço que prestou em
vida. O Fim pode ser um goal, um telos, um objetivo completo e perfeito que transcenda
a realidade. Pode ser um simples término, esboço frustrado, projeto, acabamento ou
remate de algo essencialmente finito. Pode também transcender a realidade fatal na
criação de algo grande e novo, que vai afetar a História.
Nesse mais alto nível, se transmuda a Esperança em expectativa escatológica dos
fins últimos que nossa existência como indivíduos e como coletividade postula. Num
ensaio que desenvolve uma conferência pronunciada em Harvard em 1965, sobre o tema
da Imortalidade, fala-nos Eric Voegelin de um texto egípcio que teria cerca de 4000 anos,
relativo a uma “Disputa de um Homem com sua Alma, ao contemplar o suicídio”. O
homem se encontra em angústia mortal. Não pode nem aceitar a fé convencional, nem
tampouco o ceticismo banal. Quatro mil anos antes de nós, esse debate depressivo
consigo mesmo reflete a mesma situação de incerteza e ansiedade em que, no mundo,
hoje nos encontramos. Mas, em sua angústia, recusa-se o homem à escapatória fácil do
hedonismo - o Carpe Diem. O conselho não o satisfaz. Está abaixo de sua dignidade
humana. E, na agonia de sua existência como Dasein, seria a última afronta, a suprema
miséria de uma Alma na esperança desesperada. No silêncio do impasse intransponível,
recua com asco:
Ouça, meu nome vai exalar em ti
Mais fedor do que esterco de pássaros
Em plena canícula, num dia de verão
Poucos anos após esse desesperado poeta, um faraó, Akhenaton, talvez dos mais
extraordinários que quatro mil anos de história egípcia hajam registrado, faria uma
derradeira prece a seu Deus, o Deus único Aton (o futuro Adonai dos Hebreus) , que foi
ele o primeiro a intuir:
Respiro o doce sopro da tua boca.
Diariamente contemplo a tua beleza.
Meu desejo é ouvir tua voz suave.
Semelhante ao vento do Norte.
E por ti revigorado meu corpo sentir.
...
Faze, na eternidade, a chamada de meu nome
E jamais ele perecerá...
Já no México anterior à chegada dos espanhóis, ouvimos um eco quase exato nas
perguntas angustiadas de um príncipe Azteca, Huexotzingo, que a nós similarmente se
dirige (na tradução castelhana) através do abismo vertiginoso dos séculos:
Solo asi he de irme,
Como las flores que perecieron?
Nada quedara em mi nombre?
Al menos flores, al menos cantos!
A inspiração do egípcio anônimo, do faraó Akhenaton e do príncipe azteca é tão
profunda quanto a do Eclesiastes, para quem tudo tem seu tempo, tempo de nascer e
tempo de morrer. Mas quiçá mais angustiado do que o Kohelet, o autor se pergunta
Com quem posso eu hoje falar?
Meus vizinhos são perversos;
Os amigos de hoje não tem amor...
Será a morte quase como uma libertação desejada, uma salvação suprema?
Enfrenta-me hoje a morte
Como a esperança de um homem
que de novo encontra o lar,
Depois de muitos anos de cativeiro.
Voegelin assinala que o homem contemporâneo se depara numa posição
substancialmente semelhante à do pensador egípcio de quatro milênios atrás. O filósofo
de hoje não sabe onde se encontra a verdade. Perde-se diante da inextricável confusão de
hipóteses e alternativas que, por intermédio das seitas, das escolas e das ideologias, lhe
oferecem imagens contraditórias do futuro. Ora, é o futuro nossa própria substância.
Assim pensavam Pascal e Nietzsche. “Meu interesse está sempre no futuro”, com fina
ironia também assevera Karl Wilhelm von Humboldt (+1835), “pois é lá que vou passar o
resto de minha vida”... Por mais distantes que estejamos uns dos outros - o futuro não é
mera ilusão como insiste Freud, numa de suas últimas obras, “O Futuro de uma Ilusão”,
ao assaltar a fé religiosa. Para o filósofo francês Gabriel Marcel, expoente do
existencialismo cristão, é a Esperança, essencialmente, a virtude que enfrenta a morte:
“Na presença de uma prova qualquer, particular, minha, a qual terei de enfrentar e que
jamais será outra coisa senão a especificação das provações humanas em geral – estarei
sempre exposto à tentação de me fechar em mim mesmo; e, ao mesmo tempo, de sobre
mim trancar o tempo como se, havendo esgotado sua substância e mistério, não devesse
ser o futuro outra coisa senão o locus da repetição pura; como se não sei que espécie de
mecanismo desregulado devesse aí perseguir sem tréguas seu funcionamento, o qual não
seria presidido por qualquer intenção animadora. Um futuro assim desvitalizado, porém,
não sendo mais um futuro, nem para mim, nem para qualquer outro, seria antes uma
negação do próprio futuro”. Num sentido paralelo medita Tarcísio Padilha em seu ensaio
sobre a Esperança.
Insiste Voegelin na importância do texto “Disputa com a própria Alma” do
egípcio anônimo, comparando-o com a noção de ambiguidade da vida e da morte que
permeia o Gorgias de Platão. “A vida é estranha”, afirma Sócrates nesse supremo diálogo
da filosofia perene (429/93). “Pois na verdade te digo, não me admira se verdadeiras são
as palavras de Eurípedes, quando pergunta: Quem sabe se viver é estar morto, e
morrer é viver? E talvez estejamos realmente mortos; e de fato ouvi certa vez dizer por
um de nossos sábios, que estamos agora mortos e é nosso corpo um sepulcro”. A idéia do
corpo mortal como sepulcro, que nos afasta da eternidade, tornou-se banal na metafísica
gnóstica. Ela reaparece no gnosticismo de Jung para quem o Inconsciente Coletivo
contém o Bem e o Mal, a Vida e a Morte, porque escapa das dimensões a priori de
Descartes e Kant, porque contém a eternidade.
Mas insistamos no conteúdo da Esperança como a prophetic soul do Hamlet de
Shakesperare. É a virtude da alma profética porque constitui a função imaginativa das
possibilidades do mundo futuro. Não há certeza em coisa alguma. Nem no dia de
amanhã, nem no próximo ano, nem em qualquer peripécia da história, próxima ou
longínqua, nem muito menos do que advirá nos séculos e milênios futuros. Há, porém,
certeza da morte. Certeza absoluta. A morte, dizíamos, não é possibilidade, não é uma
probabilidade como a de Hume; é a única certeza e, por conseguinte, imune a qualquer
intuição cronológica, exceto quanto à sua data incerta – eis seu tremendo mistério e
terror. Sempre é ela a absoluta certeza do Não-Ser, a certeza do Nada, pois a
correspondente negação do Dasein. Quanto ao resto, há somente possibilidades,
expectativas, antecipações, projeções, cálculos, probabilidades, uma espera indefinida, e,
enquanto haja possibilidades abertas, alimenta-se a intuição – função profética.
Quando cessam estas na rotina, na velhice, na prisão, na enfermidade, surge o
desespero. No portal do inferno, lasciate ogni speranza voi ch´entrate ... Certo: há muitos
relatos de pessoas que antecipam exatamente seu fim, sentem chegá-lo. A antecipação
pode ser exata como a do condenado ante o paredón, ou daquele que, seguido por um
esbirro fardado, é mandado caminhar para frente em determinado corredor,
sanguinolento, nos escuros subterrâneos do KGB em Moscou; ou na “sala de banho” de
Auschwitz. Mas a Esperança constitui a virtude que encontra possibilidades para além do
terror, da resignação, do embrutecimento, da rotina, da velhice ou da pena de Sísifo.
Encontramo-la mesmo no canto enlouquecido de Nietzsche, no “Zarathustra”. Concebido
durante um memorável passeio em Sils-Maria, na Engadine suíça, o desejo de eternidade
se explicita em forma obsessiva, para o filósofo já desequilibrado pela moléstia, como um
ímpeto de superar ou sobrepujar a Necessidade mortal. Überwindung é o termopor ele
usado. Nietzsche escreve: “Uma tábua de virtudes está pendurada sobre cada um. Vejam,
é a tábua de seu sobrepujar (Überwindung). Vejam, é a Vontade de Poder”.
Vontade de Poder. Ó pobre alma insatisfeita, angustiada, que desejas Poder mas
enfrentas a inflexível Necessidade – pobre alma que sonhas com os dias de amanhã!
Ambicionas, antecipas, esperas, imaginas sempre: plus ultra, plus ultra! Viver quer dizer
exceder-se, ultrapassar-se, romper o véu que nos esconde a realidade interior da ânima a
qual, precisamente, coincide com a imagem do futuro sempre esperado e antecipado. Na
verdade, sempre se projeta a Esperança para a eternidade e, em seus Quatro Quartetos,
T.S. Eliot define a história como um padrão de momentos intemporais, sendo “o ponto de
interseção do intemporal com o tempo”. Encontramo-nos, de fato, sempre entre o tempo e
a eternidade. Colocamo-nos na história porque nos situamos, como assinala Voegelin
com o uso do termo platônico, na metaxy, no in-between, no entre o passado e o futuro, o
que também quer dizer, no ponto intermediário entre o eterno presente, ilusório e
transitório, e o futuro de permanência no infinito, desconhecido e futurístico do pleroma.
Nas nuvens de cúmulos encasteladas vemos os castelos dos deuses onde
moraremos um dia. Os Sultãos Gão-Mogóis da Índia apreciavam a nefelomancia. Mas
todos os soberanos e homens da antiguidade, e muitos hoje mesmo, insistem nos
augúrios, presságios, bons ou maus auspícios, anúncios sibilinos, promessas oculares,
sinais astrológicos e mesmo nas adivinhações antecipatórias de cartomantes – nas altas
montanhas encobertas de brumas, além dos Himalaias, cidades utópicas ou Shangri-las de
beleza inigualável, vislumbradas pelos sonâmbulos – nas fantasmagorias socialistas da
“Terra sem Mal” de nossos índios tupis-guaranis. A terra dos sonhos, vemos além da
Taprobana, ilhas do amor, jardins encantados, sociedades perfeitas, Atlântidas platônicas
como em todas as utopias escritas ou pensadas desde a antiguidade. Pois se não fosse a
Utopia, que a todo momento construímos em nossa mente, como aceitaríamos a condição
humana? Como aguentaríamos a rotina diária? Como suportaríamos o ennui de Pascal, o
tédio opressor da existência de Schopenhauer, a Sorge do Fausto de Goethe (a
preocupação ou cuidado), ou a Angst heideggeriana? Como nos resignarmos à trágica
realidade que nos cerca amiúde? Como nos libertarmos daquele sentimento do tempo
como separação, como disjunção, como alienação, exílio ou prisão – o tempo inexorável
de que nos fala Marcel? Como, verdadeiramente e sem um reflexo de horror, aceitarmos
em sã consciência este pensamento de Jorge Luís Borges
Ya somos el olvido que seremos,
El polvo elemental que nos ignora...?
Temos a Esperança. A Esperança, porém, é a expectativa daquilo que não se vê...
Neste sentido, distingue-se ela, a Elpis da Epístola de Paulo de Tarso, do Princípio da
Esperança, Prinzip Hoffnung de Ernst Bloch. Pois o que o néo-marxista alemão nos
propõe, quando acentua que “a verdadeira coisa no homem, como no mundo, está sendo
aguardada, está esperando”, é uma esperança concreta numa imagem que pode ser
positivamente formulada e descrita, e utopicamente acionada para realização política
neste mundo visível e sensível. Bloch exerceu certa influência ponderável sobre a
Teologia da Libertação brasileira - pelo menos entre os mais sofisticados pseudoteólogos.
E a ela emprestou o caráter marcadamente utópico das especulações socialistas
dos nossos padres mais agitados da AP, da CNB do B e do PT. Na perspectiva dogmática
do Catolicismo, porém, constitui a Esperança a expectativa certa que, do outro lado da
morte, haveria um lugar preparado para o homem – conduzido pela Igreja - um lugar
onde não apenas imagens dos deuses como nos velhos tempos do paganismo, mas os
próprios deuses habitariam e tomariam o homem em sua própria e verdadeira comunhão
(synousia).
Eis a crença que já desponta, antes mesmo dos Evangelhos, no admirável relato
da morte de Sócrates segundo a Apologia e o Phaedo de Platão. A “aprendizagem da
Morte” era o que, para Sócrates, resumia o objeto de toda filosofia, de todo “amor da
sabedoria”. Um movimento em direção à Imortalidade, imortalidade como substância
existencial dos amantes da sabedoria, os filósofos - aqueles que buscam no Além os
arquétipos supremos do Belo, do Bem e do Verdadeiro.
O fato é que, muito embora a Esperança seja profética – “um saber além do nãosaber”
– a esperança daquilo que se vê não é a verdadeira Esperança, segundo São Paulo.
O grande Fariseu de Tarso acentuava essa característica de visão interior com a maior
ênfase. É a interioridade ou subjetividade o que basicamente distingue a esperança da
expectativa utópica. Pois nada sei do futuro a não ser que vou morrer, a não ser que saiba
que sou um “Ser para a morte”, no sentido de Heidegger. Esperamos, assim, por algo que
não sabemos o que é. Esperamos a priori. Esperamos sem qualquer prova empírica.
Curiosamente, pensadores de convicções tão diversas quanto Sócrates, Saul de Tarso,
Agostinho, Kant, Nietzsche e Heidegger– de convicções que, certamente, se diria
inconciliáveis – consideraram a virtude de Esperança como esse dom terrível da boceta
de Pandora cujo ímpeto, por força mesmo de nossa Vontade acima de qualquer
motivação racional, nos faz enfrentar o preço da existência como o próprio imperativo da
Razão prática.
O grande gênio literário da Revolução puritana inglesa, a de Cromwell, descreve
Bunyan a vida do converso como uma peregrinação: Christian, o heroí, avança no
“Progresso do Peregrino”. Refletindo esse caráter do trânsito, ele segue daqui e dali os
caminhos mais diversos, evitando os precipícios, escapando das palavras sedutoras da
Ignorância e da Loquacidade, contrariando as apelos do Obstinado com sua falsa
prudência ou falso bom senso, e de outros modos vencendo os empecilhos ao
prosseguimento da jornada peregrina. “Pobre alma minha, recém-chegada, és como um
homem que desejaria correr a todo galope, mas cujo cavalo mal pode trotar”. Partimos no
animal cheios de alegre antecipação para uma cavalgada cujo único destino certo é o
desaparecimento. Ansiamos pela superação do tempo transitório. Contamos com a Vida
Eterna – “e procuramos uma herança que seja incorruptível, impoluta, que não
desapareça ao vento da tarde, e esteja exposta ao Céu, ali em segurança, para ser entregue
no momento asado àqueles que diligentemente a procuram”.
Pois “o presente nunca é nosso objeto objetivo”, pensava Pascal. “Le passé et le
présent sont nos moyens, le seul avenir est notre objet”. Só o futuro é nosso objetivo.
Pascal talvez seja o primeiro grande pensador europeu em ter essa intuição dominante do
futurismo inquebrantável de nossa existência. Só no futuro aquilo se concretiza pelo qual
nos esforçamos por sobrepujar no eterno presente existencial. O sentimento de espera,
bem como a perene expectativa do futuro, sobretudo nos tipos imaginativos e intuitivos –
místicos, poetas, aventureiros, os quixotescos, domjuanescos, os ansiosos introvertidos ou
os agitados extravertidos – traduzem a vida como um experiência transitória, submetida
às possibilidades do futuro, sempre nômades, vivendo na eterna novidade, na permanente
volubilidade de intenções. Mas não somos todos nós descritos, por isso, como viajantes e
peregrinos neste mundo incerto, imperfeito, inacabado? A existência é uma aventurosa
viagem da alma e, deste mundo para aquele que virá, entre perigos e tentações,
empreendemos uma expedição ingenuamente simbólica, no caminho da Cidade Celeste
ante cujas portas douradas nos encontraremos um dia.
Fala-nos Gabriel Marcel no que há de “humilde, tímido, casto na esperança
autêntica”. A aérea, vaporosa, fluida Esperança coincidiria com o próprio princípio
espiritual, o Pneuma, o vento do Espírito que sopra para onde quer. Seria absurdo
falarmos numa “física” da esperança. A Esperança é puro “ar”, sopro, inspiração. Pois se
o poder da ciência se mede por sua capacidade de antecipar fenômenos futuros (um
eclipse da Lua, por exemplo), na base de uma análise dos dados do presente, sujeitos a
leis, assim como do conhecimentos dos dados oferecidos pelo passado, o futuro
realmente não existe no mundo concreto, material, objetivo da física.
A fórmula tradicional da Filosofia Perene sobre a espera que nos transforma,
verdadeiramente, na condição de peregrinos deste mundo, é a da Situação de Viajante – o
status viatoris. Viator, viandante em latim, é o homem. Somos eternos turistas,
bandeirantes, navegantes, vagabundos e, no pensamento religioso, frequente é falarmos
de nossa vida como de um exílio ou um campo de testes. Seria um exílio de que nos
procuramos livrar pela longa viagem de retorno à nossa verdadeira pátria, ao Grund da
realidade eterna “que não é deste mundo”... Escreve Joseph Pieper, o suave pensador
germânico, que o significado do status viatoris, essa consciência que somos meros
transeuntes, sempre caminhando para um fim cuja forma concreta não podemos perceber,
que esse significado não envolve coisa alguma de sentimental, nem mesmo nada de
distintamente religioso ou teológico: “O homem, enquanto existe no mundo, é
caracterizado por uma qualidade interior, como que ontológica, de estar a caminho de
algum lugar”. Podemos avançar de todas as maneiras, continua Pieper. Podemos talvez
mesmo estacionar e quiçá retornar atrás. “Só o que não podemos é deixar de estarmos en
route”. Eis a situação de espera ambulatória no movimento espiritual que Gabriel Marcel
traduziu ao atrever-se em definir o homem, simplesmente, como homo viator, o título de
uma de suas obras.
Também acreditava Sartre que nossa vida é feita apenas de esperas, “mas de
esperas que elas próprias esperam outras esperas”. Entretanto, o que um outro tipo de
existencialista, o cristão, acrescenta a essa continua tarefa do viandante, como própria
razão de ser da existência, é a virtude da Esperança, virtude que Marcel chega a definir,
em Être et Avoir, como a matéria ou quintessência de que seria feita nossa alma.
O que visa então a Esperança? Ela visa, precisamente, à superação do presente
pela imagem de um arquétipo, como meta da jornada. Ela antecipa a recognição, a
reconciliação com as nossos próprias imagens ideais. É a Apokatástasis. Seria como uma
memória do futuro, uma Anamnesis como a de Platão. Melhor ainda: uma saudade
projetada sobre o futuro! Na verdade, uma íntima associação existe entre Esperança e
Saudade. São os dois extremos de um ciclo que se tocam. A Esperança fecha, no futuro, o
movimento de retorno ao passado sugerido pelo sentimento nostálgico. Que esperamos,
senão rever, reaver, reviver aquilo e aqueles que amamos, de modo a transcender o tempo
e fixar na eternidade a imagem amada? Saudade e Esperança. Eis os dois braços, que se
abraçam, de um mesmo gesto de dádiva antecipada.
Efetuando uma análise minuciosa das “esperas” que experimentamos na vida, em
contraste com a Esperança, virtude que as transcende, observa Pieper que as esperas
correspondem às expectativas de certas coisas, de certas posições ou objetivos concretos
no duro mundo pragmático dos objetos exteriores - inclusive a fortuna, o reconhecimento
de prestígio e renome, os títulos simbólicos, o poder, a felicidade, a satisfação dos
desejos. O desapontamento possui assim o papel existencial importante de nos desiludir
de tais expectativas. Aliás, o próprio Nietzsche que, em “Coisas humanas,
demasiadamente humanas” (Menschliches, Allzumenschliches), exaltava o superhumanismo
triunfante da superação, Überwindung, no Superhomem, não deixava de
confessar, certamente por dura experiência pessoal, que “só uma vida cheia de dor e de
renúncia nos ensina como repleta de mel é a existência”... As decepções nos permitem
compreender a verdadeira salvação só pode transcender as contingências materiais da
existência terrena. A Esperança, per se, deve dirigir-se para seu fim verdadeiro, num
processo de libertação temporal de tudo que é material e concreto. Para o espírito puro,
abre-se um espaço muito mais vasto.
Foram decepções, um drama pessoal, talvez uma desilusão amorosa da idade
adulta (o seu “segredo dos homens de 40 anos”...) que levaram Péguy a celebrar a
espérance espérée – essencial ao mistério da “encarnação natural”. Ela ainda o enchia de
espanto diante do portal da Segunda Virtude, Le Porche du Mystère de la Dwuxième
Vertu, como nos versos surpreendentes
Ce qui m’étonne, dit Dieu, c’est l’espérance
Et je n’en reviens pas.
Cette petite espérance qui n’a l’air de rien du tout.
Em seguida, Da Ballade du coeur qui a tanta battu, chega Péguy à sua Oração
na Catedral onde se sente de posse das inefáveis alegrias da Esperança verdadeiramente
mística. A Catedral é a de Chartres. Nela “residindo”, encontra Peguy finalmente a Paz
interior restaurada – paz que doravante o acompanhará até o fim sangrento. Mas a
surpresa é que ele estará então cultuando, com uma falsa esperança, um falso ídolo
terreno, um deus mortal, um ídolo terreno, político, que, em agosto de 1914, será mal
interpretado como símbolo divino nos inomináveis holocáustos dos campos de batalha da
Primeira Guerra Mundial. Os versos são trágicos e patéticos. Um cristão sincero se lança
deliberadamente ao combate, na orgia sangrenta da batalha, com o propósito de matar
alemães e morre metralhado como uma espiga ceifada...
Heureux ceux qui sont morts dans une juste guerre!
Heureux les épis mûrs et les blés moissonés.
De nosso destino incerto, uma só certeza nos fica: a da Morte. Não podemos
prever o que reservam as outras estações do caminho. Quanto serão? Belas e tristes? De
triunfos ou derrotas? De depressão ou mania? Que peripécias e aventuras nos trarão,
felicidades ou tristezas, a exaltação da “realização” ou a modorra do tédio e fracasso? A
realização está sempre a caminho à nossa frente mas a morte também. A expectativa
estimula como cenoura suspensa pela vara na frente do focinho do cavalo, para forçá-lo à
marcha. O que os existencialistas descrevem como a situação do ainda-não é feita de um
misto de expectativa e perplexidade, de dúvida e esperança, de des-espero e de espera
naquilo em que se confia. Nesse sentido, sem dúvida, se segue a Esperança, naturalmente,
à outra virtude sobrenatural, a Fé – e, na verdade, as duas virtudes transcendentes estão
intimamente associadas. Mas podemos entender a azafama suicida de Péguy, quase que
procurando a morte como propósito certo de sua procura mística por meios demoníacos?
Vale ressaltar que toda essa problemática impregna o pensamento do passado
século. Dos católicos aos ateus, dos anarquistas aos marxistas, dos nacionalistas aos
liberais, dos existencialistas aos utópicos, as perguntar sobre espera e Esperança
absorvem a atenção filosófica. O problema da espera, associado proximamente ao da
morte, seria o problema filosófico por excelência. E se o pensamento contemporâneo
parece obcecado com a questão, o fato é que, segundo Paul Ludwig Landsberg, teria sido
Agostinho o fundador da filosofia existencialista quando, tendo apenas dezenove anos e
emocionalmente afetado pela morte repentina de um amigo, surpreendeu-se dela haver
tornado uma grande questão para si próprio – factus eram ipse mihi magna questio...
Em que pesem as fundamentais diferenças de crença, temperamento e perspectiva
histórica, poucos sentiram tão intensamente, em pólos opostos, o problema do conflito da
consciência lúcida com a irreversibilidade do tempo, a ser transcendido pela esperança do
seu arresto na eternidade, quanto Agostinho e Nietzsche. Em sua mórbida exaltação
intelectual, também Nietzsche cogitava que somos viajantes, condenados como Sísifo a
correr sem cessar na roda do Eterno Retorno. Esse de fato é o intransponível paradoxo do
filósofo alemão. Os três conceitos fundamentais de seu pensamento são inconciliáveis – o
Superhomem e a Vontade de Poder, de um lado, o Eterno Retorno do outro. Pois se
podemos conceber a esperança da humanidade de alcançar a superação sobrehumana pelo
exercício daquela Vontade – a crença absurda no Eterno Retorno do Mesmo priva de
qualquer sentido esperançoso o esforço para atingir nosso propósito supremo.
Acreditava Nietzsche, contudo, que vivemos no efêmero para alcançar o Nada –
sem explicar como o niilismo, que ele repudiava, se poderia conciliar com a “vontade de
poder” superar-se em direção ao Homem Superior. Não concluía, porém, que devesse a
constatação niilista ser motivo para desespero ou resignação – a vida teria momentos que
a tornam merecedora do ânimo combativo, quando dançam as Musas na bruma tênue da
Aurora. Assegura-nos Charles Andler, um de seus melhores biógrafos, que “a filosofia de
Nietzsche é um Dom ... que nos dão os gênios libertos que povoam a montanha, a floresta
e a solidão. Guarda na face o reflexo desse mistério do alvor que surpreendeu o filósofo”.
É Nietzsche exaltando a energia vital, ou o que ele justamente chamava a Vontade de
Domínio, Wille zur Macht, aquele que canta
Tu que, com o gládio flamejante,
Partes o gelo de minh´alma,
A qual, mugindo, então se lança
Sobre o mar de suprema Esperança.
Pergunta-se então, como não estaria inebriado com o amor da Eternidade? Como
não esperaria pelo anel dos anéis? “Jamais encontrei a mulher com a qual gostaria de
procriar – a não ser esta mulher que amo: pois te amo, ó eternidade!” – “quando todo
prazer deseja eternidade, profunda, profunda eternidade”:
Doch alle Lust will Ewigkeit –
Will tiefe, tiefe Ewigkeit.
É este, como dissemos, o canto de Esperança de Nietzsche quando nos últimos
meses de sua lucidez, percorria as altas montanhas da Engadine, na Suíça, à procura de
um sentido que lhe proporcionasse a superação da catástrofe já próxima que antecipava.
Don Juan Tenório, o Peregrino de Bunyan, Judas Ashaverus, o Wanderer de
Schumann, o Holandês Voador de Wagner, o Homo Viator de Marcel, o próprio
Nietzsche como “Dom Juan das Idéias” – seriam todos eles variações em torno de um
mesmo leitmotiv arquetípíco. Muitos sabem disso e sobre o tema escreveram. Muitos,
felizes, acreditam que a viagem tem um término de esplêndida plenitude, enquanto
outros, angustiados, perplexos, vertiginosos diante de um Deus Ignotus, um Deus
Absconditus, se perguntam se ela tem um fim. Será a vida uma expedição sem propósito,
sem objetivo definido, sem goal, sem telos? Será uma vela breve, uma sombra andante,
fantasmagórica? O canastrão medíocre de Shakespeare, no “Macbeth”, que pavoneia e se
aflige sobre o palco e do qual nunca mais se ouve falar; e conta uma estória idiota, cheia
de bulha e fúria, sem significado algum:
Life´s but a walking shadow, a poor player,
That struts and frets his hour upon the stage
And then is heard no more;
It is a tale
Told by an idiot, full of sound and fury,
Signifying nothing.
Mergulha a filosofia moderna, como se vê, neste sentimento de espera
como se a história, como se a humanidade na história, como se o próprio mundo arfasse
na espera de um sentido a ser revelado no futuro. Esse sentido estaria implícito na
existência da Humanidade que se esforça por construir um futuro cujo conteúdo ignora –
a “esperança naquilo que não se vê” de S.Paulo. Confiando nesse sentido futurista,
elevamos o edífico da Cultura que nos integra num Tempo crescente de avanço. Dessa
“esperança concreta”, de Bloch, mesmo os agnósticos não escapam.
A teologia moderna reflete esse sentimento profundo. Sua preocupação é com a
Esperança – hoje mais do que com a Fé e o Amor. Entre a Fé e a Compaixão de qualquer
forma, na metaxy, trona a Esperança com que nos alimentamos, ingerindo qualquer
conteudo que nos venha à mente, falso ou verdadeiro, contanto que nos permita ainda
esperar e viver...
Como conclusão deste ensaio, diríamos então que tal seria a Elpis, a Spes, a
autêntica Esperança que nos alimenta. É uma confiança a priori, como diria Kant. É uma
fé sem qualquer base empírica. Tampouco é dogmática. É a última que morre, como diz o
ditado popular. E, de fato, mais uma vez repito Péguy e, como ele, acredito em
Cette petite fille espérance,
Immortelle...
É a esperança da existência de um sentido final, transcendente, em nosso penoso
percurso peregrino por este planeta.

Uma parte mais reduzida desta conferência foi publicado na


Revista da Academia Brasiliense de Letras
Ano XVIII – nº 16 – Brasília 2000

Você também pode gostar