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A falta de respostas na vida: revolta e rebelião podem ser a resposta ao sentimento do

absurdo!

Em seu livro “O Mito de Sísifo”, o filósofo Albert


Camus escreveu o seguinte sobre a rotina de muitas pessoas nos dias modernos:
Levantar-se, bonde, quatro horas de escritório ou fábrica, refeição, bonde, quatro horas de
trabalho, refeição, sono, e segunda, terça, quarta, quinta, sexta e sábado no mesmo ritmo

Este estilo de vida, embora muitas vezes cansativo e miserável, é seguido pela maioria dos
indivíduos, na maioria das vezes sem questionar. No entanto, de vez em quando uma
experiência perturbadora pode nos tirar deste sono acordado: seja um sentimento de
isolamento dos outros e desconexão da realidade, uma consciência da natureza passageira
do tempo ou uma vívida compreensão da morte que aguarda em algum momento futuro.

Tais experiências criam sentimentos de ansiedade, alienação e


insatisfação com a vida, nos levando a confrontar as questões relacionadas à natureza e ao
propósito da existência humana.

Um dia apenas o “porque” desponta e tudo começa com esse cansaço tingido de espanto.

(O Mito de Sísifo)
Arte sacra do Pastafarianismo (meio Michelangelo)

O Anseio

Foi isso que Camus passou a chamar de “anseio por unidade”, que pode ser pensado como
um desejo de compreender a natureza do universo e um impulso de unir-se à vida e,
assim, reparar o sentimento generalizado de separação que está no centro da condição do
ser humano.

O desejo profundo do próprio espírito em seus procedimentos mais evoluídos vai ao


encontro da sensação inconsciente do homem diante do universo: ele exige familiaridade,
tem fome de clareza. (…) Essa nostalgia da unidade; esse apetite de absoluto ilustra o
movimento essencial do drama humano.

(O Mito de Sísifo)

No passado, essa nostalgia da unidade era alimentada por


vários sistemas míticos, religiosos e filosóficos que justificavam a existência terrena e lhe
davam sentido. Entretanto, nascido em uma época que lidava com a morte de Deus, Camus
não podia acreditar na validade de qualquer destas visões metafísicas do mundo.

Se fosse necessário escrever a única história significativa do pensamento humano, seria


preciso fazer a dos sucessivos arrependimentos e das impossibilidades.

(O Mito de Sísifo)
Contrariando muitas visões de mundo filosóficas e religiosas, que exaltam a divindade da
razão humana, Camus não acreditava ter a capacidade de prender-se a qualquer verdade ou
significado transcendente.

Não sei se esse mundo tem um sentido que o ultrapasse. Mas sei que não conheço esse
sentido e que, por ora, me é impossível conhecê-lo.

(O Mito de Sísifo)
Isso configura um problema inquietante para Camus: reconhecer que a existência humana
é um vaivém fútil e sem fim (exceto a morte) estimula o apetite pela clareza, o desejo de
entender a verdade máxima e o propósito por trás do universo – mas a nossa razão é
limitada pelas evidências da nossa experiência. E quando se trata do conforto espiritual que
desejamos, não existem nenhumas certezas.
‘We inhabit the corrosive littoral of habit’ (James Gleeson)

O Absurdo

Somos como Tântalo, que está condenado por toda a eternidade a ficar em um vale de água
embaixo de frutas penduradas, que se afastam cada vez que ele quase as alcança.

Nossos anseios mais profundos para ir além, para justificar esta existência terrena
permanecerão eternamente insatisfeitos e sob o fluxo da existência cotidiana nós nos
sentiremos como estranhos em um universo estranho. Por esse motivo, Camus concluiu
que a existência humana é absurda:

Nesse ponto de seu esforço, o homem se vê diante do irracional. Sente dentro de si o desejo
de felicidade e de razão. O absurdo nasce desse confronto entre o apelo humano e o
silêncio despropositado do mundo.

(O Mito de Sísifo)
Não é que o universo em si seja absurdo, em vez disso, o absurdo surge da nossa relação
com o universo. Ele existe dentro da tensão entre o nosso anseio pela unidade e a
indiferença do universo por esse anseio. Nas palavras de Camus: “o absurdo depende tanto
do homem quanto do mundo”.

O que se deve fazer diante da constatação de que a existência humana é absurda? Em “O


Mito de Sísifo” Camus apresentou duas estratégias preliminares para lidar com essa
consciência: suicídio físico e suicídio filosófico.

Algumas pessoas cometem suicídio físico ao


perceberem que a vida é absurda, acreditando que, se a vida não tem sentido, não vale a
pena. Enquanto o suicídio físico é uma solução, a maior parte das pessoas tende para o que
Camus chamou de suicídio filosófico: na tentativa de fugir da consciência inquietante do
absurdo da vida, fogem por meio da fé e da esperança, apesar de não terem evidências.

Tais pessoas adotam a crença de que além dessa existência terrena existe harmonia
absoluta, Nirvana, significado ou Deus. Camus encarava os dois tipos de suicídio, físico e
filosófico, como respostas possíveis à consciência de que a vida é absurda.

Se sua absurdidade [da vida] exige que se lhe escape pela esperança ou pelo suicídio, eis o
que se precisa clarear, perseguir e ilustrar, afastando tudo o mais. É o absurdo que
domina a morte.

(O Mito de Sísifo)
Admitindo o suicídio como uma possível resposta ao
absurdo, Camus concluiu que aqueles que optam por cometer suicídio físico ou
filosófico não conseguem entender que manter uma consciência do absurdo sem optar
pela morte representa uma conquista, um estado supremo de consciência. Estar ciente do
absurdo e do destino aflitivo que nos espera é, para Camus, tornar-se superior a ele. Quem
consegue ter essa consciência e evitar ambos os tipos de suicídio, Camus passou a
chamar de “herói absurdo”.

A Revolta

A manutenção de uma consciência lúcida do absurdo da vida tende naturalmente a


estimular a revolta, um sentimento de indignação e protesto contra a condição trágica da
vida e uma recusa desafiadora de se deixar vencer por ela.

Ela [a revolta] é um confronto permanente do homem com sua própria obscuridade. É


exigência de uma impossível transparência. E, a cada segundo, questiona o mundo de
novo. (…) Ela não é aspiração, não tem esperança. Essa revolta é apenas a certeza de um
destino esmagador, sem a resignação que deveria acompanhá-la.

(O Mito de Sísifo)
Revoltar-se é dizer não à sua existência absurda e, no processo, dizer sim a alguma outra
existência mais desejável. Esta afirmação implícita na revolta leva à rebelião, que é a
tentativa de remodelar a existência humana através dos próprios esforços.
Prise de la Bastille (Jean Pierre Louis Laurent Houel)
Em toda revolta se descobrem a exigência metafísica da unidade, a impossibilidade de
apoderar-se dela e a fabricação de um universo de substituição. A revolta, de tal ponto de
vista, é fabricante de universos.

(O Homem Revoltado)
Apesar de sua motivação inicial ser saudável, uma rebelião nem sempre leva a mudanças
construtivas. Na verdade, Camus acreditava que formas destrutivas – ou o que ele chamou
de formas niilistas de rebelião – eram comuns, especialmente na era moderna. Camus, que
viveu em meio a alguns dos piores genocídios dos regimes totalitários do século XX,
acreditava que eles eram formas de rebelião contra o absurdo. Após reconhecerem que não
há nada além para justificar a existência, esses movimentos expressaram um ódio à vida e
um desejo de desempenhar o papel tanto de deus como de diabo em um universo sem
deuses.

Derrubado o trono de Deus, o rebelde reconhecerá essa justiça, essa ordem, essa unidade
(…) cabendo-lhe agora criá-las com as próprias mãos e, com isso, justificar a perda da
autoridade divina. Começa então o esforço desesperado para fundar, ainda que ao preço
do crime, se for o caso, o império dos homens.

(O Homem Revoltado)
Todas as formas de rebelião niilistas justificam o assassinato e a destruição que impõem
ao mundo alegando que, num universo absurdo, se nada é verdade e não há valores morais,
então tudo é permitido.

Se não se acredita em nada, se nada faz sentido e se não podemos afirmar nenhum valor,
tudo é possível e nada tem importância.

(O Homem Revoltado)

Camus acreditava que as rebeliões niilistas eram


tentações constantes que apelavam ao anseio universal por unidade comum a todos. Os
grandes movimentos socialistas do século XX, por exemplo, partindo da consciência do
absurdo e da perda da fé no divino, voltaram-se para a História buscando salvação,
defendendo a busca por uma utopia.

Sob esse ângulo, o socialismo é assim um empreendimento de divinização do homem e


assumiu algumas características das religiões tradicionais.

(O Homem Revoltado)
Quando verdade, justiça, harmonia, ou seja, uma utopia é vislumbrada no futuro, a
concretização desta utopia – situada no fim da história – torna-se o único parâmetro de
valor. E todos os meios que pareçam contribuir para a sua concretização são justificados,
seja a negação da liberdade individual, tortura, ou até mesmo genocídio.

Se está garantido que o reino chegará, que importa o tempo.? O sofrimento nunca é
provisório para quem não acredita no futuro. Mas cem anos de sofrimento não são nada
para quem afirma, para o centésimo primeiro ano, a cidade definitiva.

(O Homem Revoltado)
Tais rebeliões niilistas são caracterizadas pelo que Camus chamou de exigência de
totalidade: buscando alcançar o impossível, erradicando completamente o absurdo da
existência humana e implementando uma utopia, eles causam destruição, caos e sofrimento
no mundo em nome de uma ilusão.

Totalidade, com efeito, não é mais que o antigo sonho de unidade comum aos crentes e aos
revoltados, mas projetado horizontalmente sobre uma terra privada de Deus.

(O Homem Revoltado)

A Rebelião

Em contraste com as rebeliões niilistas que poluem o significado original e autêntico da


rebelião, Camus defende o que ele pensava ser uma forma genuína de rebelião, que
reconhece a necessidade de valores comunitários compartilhados e tenta trazer
solidariedade, liberdade individual e uma relativa harmonia entre os seres humanos.

Se os homens não conseguem referir-se a um valor comum, reconhecido por todos em cada
um deles, então o homem se torna incompreensível para o próprio homem.

(O Homem Revoltado)
Camus acreditava que tais valores comuns
poderiam ser alcançados por meio do reconhecimento de que todos os seres humanos são
filhos do absurdo. É o nosso trágico destino comum e o nosso protesto contra essa
condição que nos une e nos envolve em uma constante solidariedade. “Eu me revolto”,
escreveu Camus, “logo existimos”.

Com a compreensão de que o absurdo da existência humana não pode ser completamente
erradicado, a verdadeira rebelião não busca a implementação de uma utopia por meios
destrutivos, como as rebeliões niilistas, mas reconhece a dignidade e os direitos dos
outros e tenta implementar a unidade entre os indivíduos.

O revoltado exige sem dúvida uma certa liberdade para si mesmo; mas em nenhum caso,
se for conseqüente, reivindicará o direito de destruir a existência e a liberdade do outro.
Ele não humilha ninguém. A liberdade que reclama, ele a reivindica para todos; a que
recusa, ele a proíbe para todos. Não se trata somente de escravo contra senhor, mas
também de homem contra o mundo do senhor e do escravo.

(O Homem Revoltado)
Unidos por uma luta compartilhada dentro de
uma condição absurda, Camus imaginou uma comunidade se levantando e se rebelando
contra os males e injustiças do mundo. Mas Camus não estava muito otimista sobre tal
situação se concretizar. Em seu livro “A Queda”, ele explorou a possibilidade de um
mundo no qual ninguém assume o desafio de lutar contra a injustiça e onde a solidariedade
e, portanto, a paz e harmonia relativas nunca eram alcançadas.

A preocupação de Camus era fundamentada: atualmente a liberdade da vida está


diminuindo em muitos aspectos e os governos no mundo todo estão incentivando pessoas
a sacrificarem suas liberdades pessoais pela promessa de harmonia e segurança futuras.
Se essa tendência continuar, Camus tinha um conselho precursor para aqueles que se
recusam a andar nesta linha e preferem a liberdade:

A única forma de lidar com um mundo sem liberdade é tornar-se tão absolutamente livre
que sua mera existência seja um ato de rebelião.

(frase atribuída a Albert Camus)

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