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GAGNEBIN, Jeanne Marie. “Após Auschwitz”. In: Lembrar, escrever, esquecer.

São Paulo:
Editora 34, 2209. p. 59-81
Rememoração, em Benjamin, memória ativa que transforma o passado
Em Dialética do Esclarecimento: Antítese  mito-esclarecimento (Mythos-Aufklärung): propor
uma reescrita da história da razão ocidental e metafísica: começa com a Odisseia e culmina com
o terror nazista
“O recurso desenfreado do nazismo, a pseudovalores míticos, clássicos e patrióticos, e sua
recusa da razão moderna e cosmopolita (para não falar de antemão, judia), denunciada como
abstrata e superficial, são as duas faces inseparáveis da mesma construção ideológica. Para lutar
contra essa ideologia, não basta rechaçar o mito e defender a voz da razão. Deve-se, segundo
Adorno e Horkheimer, identificar no próprio desenvolvimento da razão os momentos de
dominação que solapam seu ideal de emancipação e assemelham a racionalidade à coerção
mítica.” (p. 64-65)
O pensamento mítico tem o mérito de reconhecer que algo escapa do seu domínio conceitual;
que ele, como sistema de representações, não pode nem explicar nem representar tudo.
“[...] a eficácia dos elementos míticos anexados pela ideologia nazista se deve à componente
mimética, isto é, identificatória, desses elementos.” (p. 66) construção de identidade própria
Mito impõe modelos a serem imitados por um individuo que, assim, apreende e identifica a si
mesmo. Instrumento mimético
Ressurgimento de comportamentos míticos, miméticos e identificatórios, de comportamentos
irracionais e acríticos
Mimesis  defesa do sujeito fraco e amedrontado contra os inimigos exteriores. Na tentativa de
escapar do inimigo, o homem se assimila, torna-se semelhante ao meio ambiente para abolir a
diferença e a distância que permitem o outro reconhece-lo; ou então, veste a máscara
semelhante ao deus aterrorizante para apaziguá-lo pela sua imagem e semelhança. (p. 68)
ineficaz, pois o indivíduo perde sua própria identidade, para salvar a si mesmo, perde-se a si
mesmo.
“Porém, essas práticas mágico-miméticas, mesmo que ineficazes e regressivas, contêm um
momento especial de prazer, ligado ao êxtase da dissolução dos limites do próprio eu.” (p. 68)
O pensamento esclarecido tem horror à mimesis pois faz ressurgir essa ameaça imemorial do
prazer ligado à dissolução dos limites claros e fixos do ego.
“Enrijecimento do eu” mimesis da mimesis– “A educação social e individual reforça nos homens
seu comportamento objetivo enquanto trabalhadores e impede-os de se perderem nas flutuações
da natureza ambiente.” (adorno, p. 169. p. 69)
“Para se proteger dos perigos e dos encantos da mímesis originária, o sujeito se assemelha a um
modelo rígido e seguro, um ideal tanto mais infalível quanto ele, o eu, se sente fraco e
desamparado. Nesse mecanismo de identificação, mais precisamente, nessa vontade de
identificação, jazem, segundo Adorno e Horkheimer, as sementes do fascismo e do totalitarismo.”
(p. 69)
“[...] Ao tentar se livrar do medo, ao rejeitar os feitiços e os encantos (Zauber) da magia, da
religião e do mito, o homem fortalece seu domínio sobre a natureza, sobre seus semelhantes e
sobre si mesmo. Mas só consegue se constituir como sujeito, no sentido forte da autonomia
ilustrada, pelo recalque dessa dimensão mortífera e prazerosa, ligada a Eros e a Thanatos, que
as práticas mágicas e miméticas encarnam. Essa (de)negação se vinga com o retorno violento do
recalcado, ou seja, com a necessidade de uma identificação muito mais absoluta que as
encenações primitivas, pois tem agora como tarefa assegurar e manter uma identidade sem
fraquezas nem angústias nem recaídas nas delícias do infantil e do indeterminado. Assim, a
mímesis recalcada volta sob a forma perversa e totalitária da identificação ao chefe único.” (p. 70)
o inimigo deve ser facilmente identificável
“O sujeito esclarecido cumpre, uma segunda e perversa vez, o mecanismo originário de defesa
mimética de que zombava nos rituais primitivos: para se manter em vida, faz de conta que está
morto, ‘a vida paga o tributo de sua sobrevivência, assimilando-se ao que é morto’ [D do Escl. P.
168]. A vida abdica de sua vitalidade e de sua vivacidade em favor de sua conservação, a vida se
assemelha à morte e a morte contamina o vivo.” (p. 70-71)
Gagnebin sobre a citação de Adorno: “[...] tal sentença ressalta muito mais a urgência de um
pensamento não harmonizante, mas impiedosamente crítico – isto é, a necessidade de cultura
enquanto instância negativa e utópica, contra sua degradação a máquina de entretenimento e de
esquecimento (esquecimento, sobretudo, do passado nazista recente nessa Alemanha em
reconstrução).” (p. 72)
No ensaio Engagement (1962) e em Dialética negativa (1967), Adorno amplia: “Não é somente a
beleza lírica que se transforma em injúria à memória dos mortos na Shoah, mas a própria cultura,
na sua pretensão de formas uma esfera superior que exprima a nobreza humana, revela-se um
engodo, um compromisso covarde, um ‘documento da barbárie’, como disse Walter Benjamin
“Toda cultura após Auschwitz, inclusive a crítica urgente a ela, é lixo” (Adorno). Gagnebin: lixo 
aquilo que fede e apodrece e, também, aquilo que sobra, de que não se precisa, o que pode ser
jogado fora. “A inverdade da cultura, portanto, estaria ligada à sua pretensão de ‘autarquia’, de
existência e soberania. Não que ela seja perfumaria inútil, como o afirmam tanto comunistas
obtusos quanto positivistas de várias proveniências. Mas ela tão pouco constitui um reino
separado, cuja ordem se deveria a uma verdade intrínseca. Quando a cultura consagra a
separação entre ‘espírito e trabalho corporal’, quando se fortalece pela ‘oposição à existência
material’ – em vez de acolher dentro dela esse fundo material, bruto, animal, no duplo sentido de
bicho e de vivo, esse fundo não-conceitual que lhe escapa – então, segundo Adorno, a cultura se
condena ‘ideologia’.” (p. 73)
Auschwitz instaura na reflexão moral uma ruptura essencial com a tradição ética clássica
em busca de princípios universais e trans-históricos. Devemos nos contentar com as sobras
dessa tradição, que provou sua impotência diante do nazismo. “Devemos, antes de mais nada,
construir éticas históricas e concretas orientadas pelo dever de resistência, afim de que
‘Auschwitz não se repita, que de semelhante aconteça’. (p. 75)
Não há mais possibilidade de um imperativo categórico que transcenda a história, nem a
possiblidade de uma fundamentação discursiva última do deve moral de resistência.
“O pensamento de Adorno sobre Auschwitz o leva a tematizar uma dimensão do sofrer humano
pouco elaborada pela filosofia, mas enfaticamente evocada nos relatos dos assim chamados
sobreviventes: essa corporeidade primeira, no limiar da passividade e da extinção da consciência,
que uma vontade de aniquilação, esta sim clara, precisa, operacional, se esmera em pôr a nu
para melhor exterminá-la. Forma-se aqui esse pacto sinistro entre uma racionalidade rebaixada à
funcionalidade da destruição e uma corporeidade reduzida à matéria passiva, sofredora, objeto de
experiências nos campos da morte como ratos ou sapos nos laboratórios da ciência. E a violação
desse corpo primeiro (Leib), passivo e tenaz, vivo e indeterminado, acarreta a violação do corpo
como configuração física singular de cada sujeito individual (Körper).” (p. 77)
“A mais nobre característica do homem, sua razão e sua linguagem, o logos, não pode, após
Auschwitz, permanecer o mesmo, intacto em sua esplêndida autonomia. A aniquilação de corpos
humanos nessa sua dimensão originária de corporeidade indefesa e indeterminada como que
contamina a dimensão espiritual e intelectual, essa outra face do ser humano. Ou ainda: a
violação da dignidade humana, em seu aspecto primevo de pertencente ao vivo, tem por efeito a
destituição da soberba soberania da razão.” (p. 77)  consequência para a produção artística
“Criar em arte – como também em pensamento – ‘após Auschwitz’ significa não só rememorar os
mortos e lutar contra o esquecimento, tarefa por certo imprescindível mas comum a toda tradição
artística desde a poesia épica. Significa também acolher, no próprio movimento da rememoração,
essa presença do sofrimento sem palavras nem conceitos que desarticula a vontade de coerência
e de sentido de nossos empreendimentos artísticos e reflexivos.” (p. 78)
Rememoração estética sem figuração
Transformar em imagem  vergonha constrangedora
Estética do irrepresentável  sublime, o sublime agora habita um território que pertence ao
homem, pois homens sofreram o mal que outros homens lhe impuseram
Adorno tenta pensar as duas exigências paradoxais dirigidas à arte após Auschwitz: “lutar contra
o esquecimento e o recalque, isto é, lutar igualmente contra a repetição e pela rememoração;
mas não transformar a lembrança do horror em mais um produto cultural a ser consumido; evitar,
portanto, que o ‘princípio de estilização artístico’ torne Auschwitz representável, isto é, com
sentido, assimilável, digerível, enfim, transforme Auschwitz em mercadoria que faz sucesso.” (p.
79)
“A transformação de Auschwitz em ‘bem cultural’ torna mais leve e mais fácil sua integração na
cultura que o gerou, afirma Adorno algumas linhas abaixo. Desenha-se assim uma tarefa
paradoxal de transmissão e de reconhecimento da irrepresentabilidade daquilo que,
justamente, há de ser transmitido porque não pode ser esquecido. Um paradoxo que estrutura,
aliás, as mais lúcidas obras de testemunho sobre a Shoah (e também sobre o Gulag),
perpassadas pela necessidade absoluta do testemunho e, simultaneamente, por sua
impossibilidade linguística e narrativa.” (p. 79)
“A descrição da lírica celaniana retoma essa ideia de um comportamento mimético verdadeiro
porque tenta se aproximar, com sobriedade e respeito, daquilo que lhe escapa e que,
simultaneamente, se configura nas bordas da ausência: o sofrimento e a morte sem nome nem
sentido.” (p. 80)
Mimesis da morte  assimilação ao morto. “Mas não se trata mais de preservar a própria vida
como acontecia na paralisia pelo medo, no ritual mágico, ou, então, na rigidez do sujeito racional
que garante sua dominação pela renúncia à vivacidade da vida. A mímesis não serve mais aos
fins de autopreservação do sujeito, mas indica seu movimento de entrega à morte do outro,
uma morte que lhe escapa e de que deve, porém, dar testemunho. Não há mais aqui nem
representação nem identificação, mas somente uma aproximação atenta daquilo que foge tanto
das justificações da razão quanto das figurações da arte, mas que deve, porém, por elas ser
lembrado e transmitido: a morte sem sentido algum, morte anônima e inumerável que homens
impuseram a outros homens – e ainda impõem.” (p. 81)

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