Você está na página 1de 3

DEMOCRACIA E POÉTICA DA RAÇA

Achille Mbembe

MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. Lisboa: Antígona Editores Refractários, 2017,
pp. 289-291; 297.

O camaronês Joseph-Achille Mbembe (1957) é professor de História e de Ciência Política


na Universidade de Witwatersrand (Joanesburgo) e tem lecionado (como professor
visitante e/ou professor-pesquisador) nas universidades de Berkeley, Yale, Duke e
Harvard (EUA). Autor de De la postcolonie – Essai sur l’imagination politique dans
l’Afrique contemporaine (2000) e de Sortir de la grande nuit – Essai sur l’Afrique
décolonisée (2010).

Estamos portanto a anos-luz de viver numa era pós-racial onde as questões de memória,
justiça e reconciliação deixaram de ter fundamento. É possível, no entanto, falar de uma
era pós-Césaire? Sim se, dito por outras palavras, abraçarmos intimamente o
significante negro, não com o objectivo de nos compadecermos, mas para melhor o
turvar e assim melhor nos afastarmos, para melhor o desviar e para melhor afirmar a
dignidade inata de cada ser humano, a própria ideia de uma comunidade humana, de
uma mesma humanidade, de uma semelhança e de uma proximidade humana
fundamental. Encontramos as fontes mais profundas destes trabalhos de ascese no
melhor das tradições políticas, religiosas e culturais afro-americanas e sul-africanas. É o
caso, por exemplo, da religião profética dos descendentes de escravos ou ainda da
função utópica, tão comum na criação artística. Para as comunidades cuja história foi
sobretudo a do aviltamento e de humilhação, a criação religiosa e artística representou,
muitas vezes, a derradeira fortaleza contra as forças de desumanização e de morte. Esta
dupla criação marcou profundamente a práxis política. No fundo, sempre foi o seu
invólucro metafísico e estético, sendo uma das funções da arte e da religião
precisamente a de entreter a esperança de sair do mundo tal como ele foi e como é, de
renascer para a vida e de continuar a festa.
A obra de arte nunca teve por função principal simplesmente representar, ilustrar ou
narrar a realidade. Sempre esteve na sua natureza turvar e mimetizar tudo, as formas e
as aparências originais. Enquanto forma figurativa, é um facto que mantém relações de
semelhança com o original. Mas, ao mesmo tempo, duplica constantemente o próprio
original, na sua deformação, afastamento e, sobretudo, na sua conjuração. De facto, na
maior parte das tradições estéticas negras, só havia obras de arte com um acto prévio
de conjuração, descobrindo-se a função óptica, a função táctil e o mundo das sensações
reunidos num mesmo movimento de revelação do duplo do mundo. Assim, o tempo de
uma obra seria a encenação da vida quotidiana liberta das regras convencionais, sem
entraves nem culpas.
Na verdade, se existe um traço característico da criação artística é que, na origem do
acto de criação, está sempre em jogo uma violência, um sacrilégio e uma transgressão
mimada, com capacidade, assim se espera, de fazer com que o indivíduo e a sua
comunidade se desloquem do mundo tal como ele foi ou é. A esperança de libertação
das energias escondidas ou esquecidas, a esperança de um possível regresso das forças
visíveis e invisíveis, o sonho secreto de ressurreição dos seres e das coisas são o
fundamento antropológico e político da arte negra clássica. No centro encontra-se o
corpo, peça essencial do movimento dos poderes, lugar privilegiado da desconstrução
de tais poderes e símbolo por excelência da dívida de todas as comunidades humanas,
herdada involuntariamente e que nunca podemos totalmente apurar.
A dívida é outro nome para a vida. Digo isto, porque o objeto central da criação artística,
ou mais exactamente o espírito de sua matéria, tem sido a crítica da vida e a mediação
das funções de resistência à morte. Devo ainda explicar que nunca se tratou de uma
crítica da vida no abstracto, mas sempre de uma mediação nas condições que fazem da
luta para viver, manter a vida, sobreviver, isto é, levar uma vida humana, a questão
estética – e portanto política – por excelência. Assim, quer se trate da escultura, da
música, da dança, da literatura oral ou do culto das divindades, relaciona-se com acordar
potências adormecidas, reconduzir a festa, este canal que privilegia a ambivalência, o
teatro provisório do luxo, do acaso, da energia, da actividade sexual, e metáfora de uma
história que há-de vir. Nunca terá havido nada de tradicional nesta arte, apenas porque
sempre foi organizada de maneira a manifestar a extraordinária fragilidade da ordem
social. É, portanto, uma arte que nunca deixou de reinventar os mitos, de desviar a
tradição, de miná-la no próprio acto que parecia instituí-la e ratifica-la. Sempre se tratou
de uma arte por excelência do sacrilégio, do sacrifício e da despesa que multiplica os
feitiços para a desconstrução generalizada da existência – precisamente através do jogo,
do lazer, do espectáculo e do princípio da metamorfose. A crítica radical da raça poderia
trazer à democracia um tal contributo, tão utópico e metafísico como estético.
[...]
Enquanto persistir a ideia segundo a qual só se deve justiça aos seus e que existem raças
e povos desiguais, e enquanto se continuar a fazer crer que a escravatura e o
colonialismo foram grandes feitos de “civilização”, a temática da reparação continuará
a ser mobilizada pelas vítimas históricas da expansão e da brutalidade europeia no
mundo. Neste contexto, é necessária uma dupla abordagem. Por um lado, é preciso
abandonar o estatuto de vítima. Por outro, é preciso romper com a “boa consciência” e
a negação da responsabilidade. Será nesta dupla condição que é possível articular uma
política e uma ética novas, baseadas na exigência de justiça. Dito isto, ser africano é,
primeiro, ser um homem livre ou, como problematizou Frantz Fanon, “simplesmente
um homem entre outros homens”1. Um homem livre de tudo e, portanto, capaz de se
auto-inventar. A verdadeira política de identidade consiste em incessantemente
alimentar, actualizar e reactualizar as suas capacidades de auto-invenção. O afro-
centrismo é uma variante hipostasiada do desejo das pessoas de origem africana de não
terem de prestar contas senão a si próprias. É verdade que o mundo é antes de mais
uma relação consigo mesmo. Mas não há nenhuma relação consigo mesmo que não
passe pela relação com o Outro. O outro mais não é do que a diferença e o semelhante
reunidos. O que teremos de imaginar será uma política do semelhante, mas num
contexto onde, é verdade, o que partilhamos em conjunto seja as diferenças. E são elas
que precisamos, paradoxalmente, de pôr em comum. Tudo isto passa pela reparação,
isto é, por uma ampla concepção da justiça e da responsabilidade.

COMENTÁRIOS:
(Afonso Medeiros)

1
Frantz Fanon, Pele Negra..., p. 106.
As artes tradicionais das culturas negras exigem aportes estéticos/epistêmicos diversos
daqueles que nos foram legados pelas culturas europeias. Por exemplo, a teoria
platônica sobre a mimese, da arte como mera imitação/simulacro distante da verdade
e das essências das coisas é de pouca ou nenhuma serventia. Em primeiro lugar, porque
as artes tradicionais das culturas negras muito raramente usaram a imitação de caráter
realista como estratégia de revelação do invisível. Em segundo lugar, porque a
imanência (a forma visível do ser) não se opõe à transcendência (a forma invisível do
ser), não é dicotomia entre aparência e essência. Em terceiro lugar, porque a natureza
é humanizada e o humano é naturalizado; humana natureza e natureza humana são
elementos de um único fluxo da vida.
Mas outros aportes podem servir como, por exemplo, a teoria mimética de Aristóteles
que, contradizendo Platão, entendeu a mimese como pedagogia, como aprendizado do
sentir/pensar o humano e sua relação com o mundo, e também como comoção (a teoria
da catarse). Na estética expressa por Mbembe em seu texto Democracia e poética da
raça, há um quê aristotélico: “De facto, na maior parte das tradições estéticas negras,
só havia obras de arte com um acto prévio de conjuração, descobrindo-se a função
óptica, a função táctil e o mundo das sensações reunidos num mesmo movimento de
revelação do duplo do mundo” (Mbembe, 2017, p. 290).
Entretanto, o próprio Mbembe se distancia dessa percepção aristotélica da arte ao
afirmar que “Na verdade, se existe um traço característico da criação artística é que, na
origem do acto de criação, está sempre em jogo uma violência, um sacrilégio e uma
transgressão mimada, com capacidade, assim se espera, de fazer com que o indivíduo e
a sua comunidade se desloquem do mundo tal como ele foi ou é” (Mbembe, 2017, p.
290), ou seja, o ato de criação é um ato de distanciamento transgressor do
objeto/referente, seja este a divindade, a natureza ou o próprio humano. E por que
violento, sacrílego, transgressor? Justamente porque o artista quer, ainda que
inconscientemente, deslocar-se “do mundo tal como ele foi ou é”, isto é, o ato criador
como devir ou, como prefere Mbembe, como há-de vir.
Como Frank Willett (2017) e Kwame Anthony Appiah (1997), Achille Mbembe refuta a
supervalorização da noção de “tradição congelada” nas artes africanas, como se estas,
da antiguidade à contemporaneidade, exibissem características imutáveis nos tempos e
nos espaços, uma atemporalidade ou anacronismo constante e, portanto, se lhes
pudesse negar quaisquer indícios de modernidade caso não tivessem sido atravessadas
pelas estéticas europeias via colonialismo.
Willett, Appiah e Mbembe têm razão. A suposta imutabilidade da arte tradicional
africana resulta de um mercado colecionador euro-americano sequioso pela valorização
das peças “genuínas” e “primitivas” de suas próprias coleções e, portanto, deve
descartar qualquer noção de autoria e de estilo, qualquer coisa que a aproxime do
modus operandi da arte ocidental.

Você também pode gostar