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OS GRAFITES-POEMAS DE ANGELA TOLEDO: RESISTÊNCIA E FORMA DE

EXISTIR EM MORRO DE SÃO PAULO-BAHIA.

ADRIANA MARIA DE ABREU BARBOSA1


Doutora em Semiologia (UFRJ)

Pretendo que a poesia tenha a virtude de, em meio ao sofrimento e ao desamparo,


acender uma luz qualquer. Uma luz que não nos é dada, que não desce dos céus,
mas que nasce das mãos e do espírito dos homens
(Ferreira Gullar)
CABE A POESIA NO TURISMO?

Impactada pela poesia de Ângela Toledo grafitada nos muros de Morro de São Paulo
(BA) perguntei-me como já o fizera Nestor Garcia Canclini (2008, p.291) “que sentido
conservam ou renovam, em meio às transformações da cidade, em compensação com os
fenômenos transitórios como a publicidade, os grafites e as manifestações políticas?” O
questionamento sobre o lugar ocupado pelos grafites-poemas da artista ganha mais adensamento
à medida que consideramos o que nos orienta Canclini sobre a normatização moderna que
estabeleceu lugares para o consumo de coisas diversas: as lojas, para as mercadorias; museus,
para objetos do passado e, ainda, museus de arte, para valores estéticos. Desse modo, a cultura
moderna ao organizar lugares também prescreve modos de olhar cenários.

Apropriando-se dos muros com desenhos e poesia nos caminhos que levam o
turista as praias paradisíacas, Ângela divide-nos o olhar, desorientando-nos, em nosso papel de
turista, entre uma loja e outra de souvenir, a maioria delas vendendo mercadorias vindas de
outras cidades e estados do Brasil, ficando reservado aos artesões locais apenas a praça e a
situação de vida empobrecida da qual compartilha a poetisa aqui estudada.
Desse modo, ao colocar sua poesia no caminho do turismo de consumo, a artista
reclama este território e visibilidade perdidos pelo franco investimento comercial e estrangeiro
da ilha e desestrutura as coleções de bens materiais e simbólicos como nos orienta Canclini. O
autor aponta três etapas da evolução do grafite: a de 1968 em Paris com discursos antitotalitários
e macropolíticos; o grafite de Nova York com propósitos micropolíticos de guetos e mais
recentemente o deboche cínico do desencanto utópico na América Latina. Entretanto, Ângela
Toledo nos acena outro caminho-função com seus grafites-poemas, o qual procuramos investigar
neste texto.

1
Carioca, feminista morando em Jequié desde 2006. Professora da cadeira de Teoria da Literatura do Curso de
Letras na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). Professora do Programa de Pós-graduação em
relações étnicas e contemporaneidade na UESB-Jequié. Coordenadora do Grupo de Estudos em Teorias do
Discurso (GETED).
A poesia no MURO QUE FALA (nome do projeto protagonizado pela poetisa com apoio
da AMOSP, associação de artistas por ela fundada) também é transitória como o público que por
ali transita, já que de tempos em tempos os muros recebem novas grafitagens. Eu mesma como
turista tive oportunidade de apreciar novos poemas entre outubro de 2013 e março de 2014, em
duas expedições de trabalho e lazer.
Fluminense de nascimento, a poetisa já é percebida pela comunidade como cidadã de
Morro como atestaram as falas carinhosas dos moradores consultados nesta pesquisa sobre a
pessoa de Ângela e seu ativismo sócio-cultural. Ângela Toledo com identidade hibrida fala de
Morro, assim como da cidade do Rio de Janeiro e também da praça de Maio na Argentina. E faz
essa mistura empenhando-se em se desfazer de uma identidade fixa e tornar-se apenas uma
pessoa qualquer no mundo alinhada ao pensamento sistêmico que lhe permite enxergar e
reconhecer numa praça no bairro periférico de Mangaba, onde mora, todas as praças que
existem, conforme nos sugere a leitura do poema “A praça”
A praça
Amo essa praça cheia de graça
Amor de “Vinicius”. Amor de “Castro Alves”
Nem Copacabana amei assim,
A praça das mães, muito me comove;
Mas é essa pequena e singela praça,
Que me faz feliz. (em Quase Poesia)

Essa pessoa que poderia estar em qualquer lugar fala sobre um cotidiano sonhado pelos
ecologistas, sobretudo pelo Ecofeminismo anunciado por Vandana Shiva, filósofa e física que se
vale dos conceitos da física moderna para aplicar o pensamento sistêmico na vida cotidiana. Essa
foi a minha impressão e também a do poeta e músico Jorge Mautner ao apreciar a obra de
Ângela:
Esta poetisa Ângela Toledo, nos fala de coisas cheias de emoção do
cotidiano! Mas, não é um cotidiano comum, é um cotidiano
extraordinário cheio de religiosidade existencialista. Sim, eu diria que
esta talentosíssima poetisa, é uma sarcedotisa de ser.

Esperançosos como Milton Santos (2013) nas mudanças como interrupções de novas
ações e relações e de novas idéias, abraçamos o projeto “Muro que fala” e gostaríamos de dar a
ele, projeto, e a ela, poetisa, a visibilidade que merecem no intuito de que a prece de Ângela
Toledo, que também é nossa, seja atendida:
Prece para inocentes
Pai supremo de todos os povos!
Pai de toda raça!
Pai de toda gente
Oh! Boníssimo Pai
Desperte os homens a tempo
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de salvar nossas crianças

Frente a toda forma de violência urbana experimentada no século XXI, os poemas da


artista e seu modo de resistir, viver e participar da vida cultural em Morro de São Paulo convida-
nos a desconfiar de toda informação totalitária que causa a confusão de espíritos e levam os
humanos a viverem sob a ética do individualismo pragmático e utilitarismo que faz com que
indivíduos aceitem “dar adeus à generosidade, á solidariedade e à emoção com a entronização do
reino do cálculo e da competitividade” (SANTOS 2013p. 54)
Fundamentados nas discussões de Milton Santos (2013), Humberto Maturana (2004) e no
Feminismos da diferença assim como no Ecofeminismo, revisitamos o conceito de violência em
Freud e analisamos o trabalho realizado pela Artista Ângela Toledo como forma alternativa de
resistir e existir na superação do paradigma da competição e da violência que nos invade a tela
da TV todas as noites no noticiário nacional.

A VIOLÊNCIA COMO REALIDADE OU O MUNDO EM QUE AINDA VIVEMOS

Em O mal estar na civilização (1930), Freud apresenta-nos fortes argumentos para


considerarmos a civilização a responsável por boa parte de nossas misérias humanas. Criada para
proteger o homem da hostilidade da natureza e regulamentar os vínculos entre os homens, a
civilização proclama por direito a substituição do poder do indivíduo (visto como força bruta que
subjuga os mais fracos) pelo da comunidade. Como projeto a civilização seria mais uma
estratégia humana para garantir condições de realização da meta imposta pelo principio do prazer
que orienta o homem para a felicidade (mesmo que inatingível ou ilusão) contemplando seu
conteúdo negativo (segundo Freud) que seria evitar o desprazer e o sofrimento.

Se por um lado, num primeiro momento, a civilização cumpriu bem a sua meta de lidar
com as forças da natureza oferecendo ao homem um lugar mais seguro para viver _ tomando-se
por exemplos a regulação de rios que ameaçam inundar cidades, a condução das águas por canais
que as levam para os lugares que delas necessitam e o cuidado com o solo que permite ao
homem deixar de ser nômade, só para citar alguns_ por outro, o olhar antropocêntrico que deu a
humanidade a característica de ter a natureza como mais um objeto, no sentindo psicanalítico,
transformou esta relação homem-natureza em mais uma relação de dominação com os efeitos
desastrosos já fortemente alardeados pela Ecologia.

Já a vida em comunidade normatizada pela civilização será construída sobre a renúncia


instintual, pois restringe a liberdade individual. Para Freud a humanidade engendrou algumas

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estratégias de sublimação de modo a lidar com a frustração que domina os vínculos sociais entre
homens. O autor nos fala do papel da ciência e das artes como caminhos para tal:

Entre as satisfações por fantasias se destaca a fruição de obras de arte,


que por intermédio do artista se torna acessível também aos eu não são
eles mesmos criadores. Quem é receptivo á influência da arte nunca a
estima demasiadamente como fonte de prazer e consolo para a vida.
Mas a suave narcose em que nos induz a arte não consegue produzir
mais que um passageiro alheamento ás durezas da vida, não sendo forte
o bastante para fazer esquecer a miséria real. (p.37)

Ao pontuar as limitações das sublimações para lidar com a renuncia instintual exigida
pela vida em sociedade Freud reconhece que a hostilidade entre os homens marca o forte
quinhão de agressividade dos dotes humanos instintuais.
Em conseqüência disso o próximo não constitui apenas um possível
colaborador e objeto sexual, mas também uma tentação para satisfazer a
tendência à agressão, para explorar seu trabalho sem recompensá-lo
para dele se utilizar sexualmente contra a sua vontade, para usurpar seu
patrimônio, para humilhá-lo, para infligir-lhe dor, para torturá-lo e
matá-lo. (FREUD, 1930,p.77)

A contradição consiste em ser a civilização criada e é mantida para regular as relações e


evitar agressões, mas a forma como ela, ao regular os vínculos exige a supressão de instintos que
garantem o prazer, acaba por fomentar mais hostilidade. Como exemplos de repressão ao prazer
impostos pela civilização Freud cita a heteronormatividade como padrão a ser seguido, o
casamento monogâmico e a negação da sexualidade infantil entre outros. Para o autor, a
xenofobia fomentadora de pequenas implicâncias, como a hostilidade entre brasileiros e
argentinos ou mesmo entre cariocas e paulistas, seria uma forma de escape frente à dificuldade
humana em renunciar á gratificação experimentada no instinto de agressão
Esse paradoxo é intensificado e ao mesmo tempo contornado pelas duas forças instintuais
humanas que são nomeadas por Freud como Eros, impulso de vida, e Thanatos, instinto de
morte. Afinal “sempre é possível ligar um grande número de pessoas pelo amor, desde que
restem outras para que se exteriorize a agressividade.” (p.80-81). Desse modo o autor acredita
que “a questão decisiva para espécie humana é saber se, em que medida, a sua evolução cultural
poderá controlar as perturbações trazidas à vida em comum pelos instintos humanos de agressão
e autodestruição.” (p122)
A psicanálise nos dá elementos para entender como o cenário de violência que vivemos é
fruto da própria psique humana. Segundo o pai da psicanálise, o inferno não são os outros;
somos todos nós.

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Numa perspectiva geográfico-política, Milton Santos desafia o pensamento único da
globalização apontando sua perversidade. Para o geógrafo somos desinformados pela notícia,
que é informação manipulada; pela mídia para fazermos crer que a globalização nos unifica
quando na verdade nos homogeiniza, impedindo a emergência das diferentes culturas e formas
de existência. Para Santos, informação e dinheiro são vetores da violência a serviço dos
globalitarismos que impõem a competitividade sem compaixão e o consumo despótico. Sendo
assim, a perversidade deixa de ser uma manifestação individual, uma distorção de personalidade,
ou mesmo um escape do instinto agressor segundo Freud, e passa a ser uma perversidade
sistêmica, porque se apóia na competitividade como lei geral da vida social.
O outro, seja ele empresa, instituição ou indivíduo, aparece como um
obstáculo a realização dos fins de cada um e deve ser removido, por isso
sendo considerado uma coisa. Decorrem daí a celebração dos egoísmos,
o alastramento dos narcisismos, a banalização da guerra de todos
contra todos, com a utilização de qualquer que seja o meio para obter o
fim colimado, isto é competir e , se possível, vencer (SANTOS,2013 p.60)
Na leitura de Milton Santos entendemos que os escapes instintuais de hostilidade
(apontados por Freud) foram acolhidos como ferramentas a serviço do processo de globalização
da cultura que, embora prometa agregar diferenças, estimula a competição com vistas à
cooptação e homogeneização já que opera com conceitos de vencer X perder, arruinando a
possibilidade real de integração das diferentes formas de existência. Portanto para ele a
globalização é uma fábula.
A sociedade globalizada se utilizaria da informação manipuladora; do dinheiro em estado
bruto; da ciência a serviço do mercado (já que nem todo progresso técnico-científico é moral,
como nos lembra o autor) e da substituição do cidadão pelo consumidor para nos fazer crer que a
exclusão e divisão social são imutáveis. Essa crença num mundo sem compaixão e sem
solidariedade justificado pela vitória das técnicas, do dinheiro e do consumo, colocando as
pessoas a serviço dos bens, é de fato mais uma forma de violência.
Mais otimista que Freud, para quem a hostilidade era inata e, portanto, de difícil controle,
já que sempre residual, Santos acredita ser a hostilidade atual um erro de percurso da
humanidade que pode ser superada por novas rotas ideológicas. Se a hostilidade em que vivemos
foi produzida no seio da sociedade será esta mesma sociedade,livre das coerções globalizantes,
que poderá (re) humanizar o planeta, já que o autor reconhece que nos chamados anos gloriosos,
após a segunda guerra mundial, em alguns países, houve o exercício de uma cidadania, mesmo
que não fosse plena, mas que valorizava/incentivava indivíduos e coletividades responsáveis.

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Se por um lado os atores hegemônicos se utilizam da técnica de um modo que tem
reduzido o escopo da vida sobre o planeta, a democratização das técnicas e sobretudo da
informática pode favorecer o aparecimento de novas técnicas fomentadas pela criatividade
humana. Além da inventividade, o autor aposta no reconhecimento da escassez e na tomada de
consciência como vetores capazes de motivar o indivíduo a superar sua busca pelo consumo e
entregar-se à busca da cidadania, mudando a rota da história.
Essa tomada de consciência exigiria da chamada nação passiva – maior parte da
população que participa de modo residual da sociedade global – perceber no sotaque
“doméstico” da chamada nação ativa – aquela que comparece eficazmente na contabilidade
nacional e internacional –suas reais intenções não integradoras e promessas de progresso
inatingíveis para todos.

UM NOVO MUNDO É POSSÍVEL?

Os estudos de Humberto Maturana afirmam o papel das emoções e da linguagem que


nomeia tão emoções (o que o autor chama linguajeamento) como rede de conversações que
determinam uma cultura. Para o autor a cultura patriarcal cultivou e cultiva até hoje a agressão,a
guerra, o ódio, o controle, daí nos serem essas formas de viver características da biologia
humana e sim o resultado dessas formas de conversações.
Maturana aponta a experiência-conhecimento produzido pelas culturas matrísticas como
aprendizados necessários para mover-nos da cultura patriarcal com ênfase na dominação-
competição em direção a um mundo no qual o modo de vida seja centrado em uma cooperação
não hierárquica. A escolha do termo matrístico em oposição ao mais conhecido matriarcal deve-
se, segundo o autor, para que não restem dúvidas que uma cultura não é o oposto da outra,
rejeitando assim numa visão que perpetua o conceito de feminino em oposição ao masculino e na
qual sempre haverá um dominante e outro dominado.
A experiência matrística pode ser deduzida, segundo o autor, pelos restos arqueológicos
encontrados na área do Danúbio, nos Bálcãs e no Egeu.
Tais povos não fortificavam seus povoados, não estabeleciam diferenças
hierárquicas entre túmulos dos homens e das mulheres.”(...) Os campos
de cultivo e coleta não eram divididos. Nada mostra que permita falar de
propriedade. As mulheres e os homens se trajavam de modo muito
similar, nas vestes que vemos nas pinturas murais minóicas de Creta.
(MATURANA, 2004, p.39-40).

A memória dessas culturas pré-patriarcais permanece no relacionamento de mãe e filhos


apenas no período da infância, já que na entrada da vida adulta humanos precisam ser treinados

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na competição de modo a abandonarem a solidariedade da coexistência harmônica e o
predomínio do amor e da doação e entrega ao próximo que atrapalha o bom desempenho na
cultura patriarcal. Sendo assim, na cultura patriarcal, o pensamento linear sobrepõe-se ao
pensamento matristico de consciência na interligação de toda a existência. O pensamento
sistêmico matristico é negado pela cultura patriarcal para manutenção de ações de controle,
apropriação e obtenção de resultados particulares e parciais. Se na cultura matrística a agressão e
a competição eram fenômenos ocasionais, já que a vida estava centrada no amor; na cultura
patriarcal, agressão e competição são modos cotidianos de vida.
Em nossa cultura patriarcal, estamos sempre prontos a tratar os
desacordos como disputas e lutas. Vemos os argumentos como armas, e
descrevemos uma relação harmônica como pacífica, ou seja, como uma
ausência de guerra _ como se a guerra fosse a atividade humana mais
fundamental. (MATURANA,2004, p.39)

Para o autor a retomada da cultura matrística, por ele denominada neomatrística,


possibilitaria o pleno exercício da democracia e a superação da destruição promovida pela
cultura patriarcal. Com ênfase na cooperação que reconhece a existência e o valor do outro para
vida no planeta, a cultura matrística reconhece que “Todos os seres vivos e não vivos
pertencemos ao mesmo reino de existência conectados” (MATURANA,2004p.64)
De certo modo, o que propõe Maturana já fora iniciado por uma das vertentes do
Feminismo : o Feminismo da diferença. No Brasil esta vertente foi divulgada e defendida por
Rosiska Darcy Oliveira e Rose Muraro, nas décadas de 70 e 80. Com o título esperançoso “Um
novo mundo em gestação” o livro de Muraro apresenta a experiência de mulheres reunidas em
sindicatos, ONGs e movimentos sociais como ações no mundo público que desconstruíam a
visão patriarcal de gestão. Afinal como nos lembra Muraro, “não se podem construir estruturas
políticas solidárias sem mentalidades solidárias.” (2003,p.43)
Gestões menos verticalizadas, rodízios de lideranças, uso de consenso,
vez e voz para todos os integrantes revelam uma pratica de gestão que
aposta na partilha e na solidariedade. A participação feminina no
mundo público sinaliza, para a autora, que o Patriarcalismo e seu modo
autoritário de gestão começam a dar sinais de seu fim. O feminismo
desautoriza o pensamento patriarcal, no qual há sempre uma relação de
cúpula e base, de dominados e dominantes, e no exercício da dúvida, nos
questiona como seria uma sociedade, na qual os poderes fossem serviços
(e não postos) a serem gestados por todos de forma menos competitiva.
(BARBOSA, 2010,p.171)

As idéias do feminismo da diferença têm muitos pontos em comum com outra vertente
que lhe é contemporânea: o Ecofeminismo. “Uma perspectiva ecofeminista apresenta a
necessidade de uma nova cosmologia que reconhece que a vida na natureza (incluindo os seres

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humanos) mantém-se por meio da cooperação, cuidado e amor mútuos” (MILES & SHIVA,
1993. p.15).
O Ecofeminismo tem na indiana Vandana Shiva (física, filósofa e feminista como a
brasileira Muraro) uma porta-voz internacional. Além de se assemelhar ao feminismo da
diferença brasileiro compartilha da crítica à globalização nos moldes do geógrafo brasileiro
Milton Santos. Para autora a globalização tende a um universalismo ideológico totalitário e
dogmático que acaba por dizimar culturas, conforme nos orienta com um exemplo ilustrativo
sobre os usos do turismo na sociedade pós-industrial:
As culturas locais estão condenadas a só ter valor depois de
fragmentadas e esses fragmentos transformados em bens vendáveis num
mercado mundial. Só quando a comida se torna “comida étnica”, a
música” música étnica”, os contos tradicionais” folclore” e quando o
talento é subordinado à produção de objetos” étnicos” para a indústria
turística, é que o processo de acumulação de capital pode obter lucros
destas culturas locais. (p.23)

Para o Ecofeminismo a cultura machista que negava o direito das mulheres ao próprio
corpo e sexualidade e a também responsável pela devastação da Terra e de seus habitantes já que
fomenta múltiplos sistemas de domínio e do poder de estado para obter o que pretende. Ao
contrario do universalismo proposto pelo patriarcado capitalista, as ecofeministas, apoiadas no
conceito de redes de sustentação da vida, visam relações que garantam a satisfação das
necessidades humanas básicas e comuns a todos:
Estas necessidades fundamentais: de alimentação, abrigo, vestuário; de
afecto, carinho, amor; de dignidade, e identidade; de conhecimento e
liberdade; de lazer e alegria; são fundamentais para todas as pessoas,
independentemente da cultura, da ideologia, da raça, do sistema político
e econômico e da classe. (p.24)

Em “A teia da vida” Fritjof Capra (1996) reconhece o Ecofeminismo como uma das
teorias que se vale do pensamento sistêmico, já que parte da critica da ciência clássica. “o
pensamento sistêmico é contextual, o que é o oposto do pensamento analítico. A analise significa
isolar alguma coisa a fim de entendê-la; o pensamento sistêmico significa colocá-la no contexto
de um todo mais amplo.” (CAPRA,1996, p. 41) Esse olhar sistêmico propõe uma troca de
valores: no lugar do racional, o intuitivo; da expansão: a conservação; da competição, a
cooperação; da dominação, a parceria. O Ecofeminismo e o Feminismo da diferença
reconhecem nesses valores , a saber: intuição, conservação, cooperação e parceria, valores
cultivados pela cultura do feminino associado à natureza. Sabemos que a natureza, as mulheres e
esses valores a elas correspondentes foram vistos como impeditivos da evolução cultural
proposta pelo mito do desenvolvimento na lógica do capital. No lugar do desenvolvimento,

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partindo de uma cultura matrística, Vandana Shiva propõe a subsistência. Partindo de exemplos
históricos (como o Sozialistiche Selbsthilfe Koln (SSK) na Alemanha) a autora reconhece que
embora não haja ainda uma nova utopia matura para uma sociedade ecologicamente sã, há
entretanto um conjunto de mentalidades que devem orientar essa nova sociedade:
1) A atividade econômica deve criar e recriar a vida, atendendo as necessidades
humanas fundamentais;
2) novas formas de relacionamento com a natureza e entre pessoas devem priorizar
respeito cooperação e reciprocidade;
3) Reconhecimento de que o pessoal é político ;
4) A busca de soluções de problemas parte sempre do reconhecimento da inter-relação
de toda a vida da Terra;
5) Abolição das dicotomias e do pensamento linear a partir de um novo paradigma de
ciência inspirado na física moderna ;
6) Foco na felicidade como objetivo de uma vida plena;
7) Promoção da responsabilidade comum dada à consciência do pensamento sistêmico.

Entretanto como nos advertia Santos (2013) o despertar dessa consciência à luz do
pensamento sistêmico não se dará de forma homogênea. Cada um, a seu tempo, com sua
profundidade e coerência pode se apropriar dessa visão sistêmica de modo a rever seu papel
como pessoa nesse mundo. Para o autor, a descoberta individual já é um passo a frente
mesmo que custe a esta pessoa o sofrimento das resistências circundantes a esse novo modo
de pensar.
É desse modo que vemos a presença e atuação de Ângela Toledo e seus grafites-
poemas pelos muros do distrito de Cairu, Morro de São Paulo-BA. Uma voz solitária
enchendo de poesia os caminhos que levam o turista as belezas naturais daquele paraíso, em
meio a um turismo consumista. Em um lugar no qual não passam carros e exige que o turista
seja, de certo modo um flâuner, Ângela captura o olhar de quem passa no seu projeto “muro
que fala” e disputa sua atenção com as vitrines de lojas chiques e nem tão chiques, já que há
mercadorias para todas as classes sociais expostas por ali.

ÂNGELA TOLEDO: PROTAGONISMO FEMININO EM MORRO DE SÃO PAULO-


BAHIA.

Como pesquisadora sai pelo comércio de Morro perguntando por Ângela Toledo, as
respostas foram todas muito carinhosas com a moça do muro que fala. Alguns a descreveram
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com seu chapéu grande para proteger do sol quente da Bahia sentada horas nas calçadas pintando
seus grafites-poemas (essa denominação é desta pesquisadora). Uma amiga de Ângela informa
que as primeiras pinturas da poetisa foram financiadas por ela própria e alguns comerciantes e
amigos, somente neste ano de 2014, a prefeitura de Cairu pagou as tintas.

Ângela Maria Toledo da Silva nasceu em Miracema (RJ), em 10 de outubro de 1963.


Mudou-se para Salvador (BA) em janeiro de 1986 e em Setembro de 1991 foi morar em Morro
de São Paulo, onde desenvolve performances para a divulgação de sua poesia. Ajudou a fundar o
grupo “Ensaio” de teatro infantil, o primeiro da localidade, mas hoje extinto. É sócio-fundadora
da Associação de Artesões e Artistas Moradores de Morro de São Paulo (AMOSP). Ajudou a
fundar a associação de moradores do bairro onde reside, o bairro da Mangaba. Idealizou e
coordenou a Semana da Poesia durante 11 anos, para o qual criou o grupo poema doido com
crianças e adolescentes dentro do Projeto de apoio à criança e à arte. Numa visão do pensamento
sistêmico se reconhece como uma pessoa no mundo sem pertencimentos geográficos e sem
fronteiras, porém, de todo modo, enraizou-se em Morro de São Paulo como sugere sua militância
social e sua poesia.
Seus muros me encantaram como turista em uma viagem em 2010, mas foi em março
deste ano (2014) que a conheci vendendo seus livros e postais na feira de artesanato da praça
principal. Os livros fabricados em papel reciclável e impressos em preto e branco contém os
poemas da autora ilustrados por gravuras dela mesma. Os postais são cartões com poemas ou
frases e ilustrações coloridas da poetisa. O trabalho e semi-artesanal. Aproximei-me da sua
barraca e, ao me ver com Gabriel, (menino negro que estou em processo de adoção mas já
considero meu filho) Ângela me mostrou um poema (sem título) do livro Quase Poesia:
É
Bom
Que
A
Mulher
Pare
De
Parir
Até
Que
Cada
Criança
Tenha
Uma
Mãe

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Esse poema ressignifica o conceito de maternidade. Na sociedade patriarcal, a
mulher que gesta é valorizada, pois assume sua função biológica primeira, segundo o ideário do
patriarcado. Negar a maternidade foi uma das bandeiras feministas que rediscutia uma identidade
de gênero e não apenas sexual. O feminismo propôs que engravidar passasse a ser uma escolha e
não mais um destino biológico. Entretanto, a proposta de Ângela aproxima-se mais do
Ecofeminismo, já que o texto poético propõe não engravidar por uma atitude política do cuidado
com o outro que reconheço como parte minha: numa visão do pensamento sistêmico e suas redes
de interconexões.
Na lírica de Ângela Toledo o papel social do cuidado retoma a maternidade que agora
não é mais nem uma obrigação biológica, nem um capricho pessoal, nem desejo de eternizar-se e
sim uma responsabilidade cidadã. Uma cidadania resgatada pelo sentimento amoroso que vai
além da consangüinidade. Esse amor de doação está outra vez sinalizado numa frase grafitada
em outro muro. A poetisa profere: “um coração generoso sempre encontra uma maneira de doar-
se.” A frase desautoriza toda a violência praticada nas relações utilitaristas contemporâneas e
justificada pelas ideologias que fundamentam o foco no dinheiro e no poder. Parte da nação
equivocadamente chamada passiva, como nos orienta Santos (2013), a poetisa organiza outros
membros da comunidade em ações que permitem experimentar um modo de vida no qual a
cooperação e a cidadania sejam resgatadas, vivendo plenamente um dos princípios do
Ecofeminismo que prevê novas formas de relacionamento com a natureza e entre pessoas que
priorizem respeito cooperação e reciprocidade
O poema sobre a maternidade fora pintado nos muros do bairro Mangaba, onde Ângela
reside, por meninos da comunidade. E foi citado por duas vezes nos meus passeios etnográficos.
A primeira vez fora declamado por uma vendedora da loja Backana (loja de souvenir) quando
perguntada se , como moradora de Morro, lia os muros pintados. A segunda vez pelo garçom de
uma creperia quando perguntado se conhecia o trabalho do muro que fala. Ambos justificam a
lembrança devido à gravidade do problema de crianças abandonadas no país, a vendedora ainda
acrescenta o fato de ela ser mãe e se compadecer porque tem uma filha. Visível aos olhos dos
transeuntes moradores e visitantes a poesia no muro ainda não tem lugar no coração da gestão
pública. Alguns muros estão sendo derrubados para construção de novas lojas.
Sobre o papel social de Ângela como ativista cultural relata-nos Núbia Paiva, também
poetisa e professora da UESB-Jequié:
Conheci Ângela Toledo em Outubro/2005. Estava a passeio em Morro
de São Paulo no feriado do dia dos professores. Fiquei encantada com a
entrega de uma pessoa que dedicava parte do seu tempo em distribuir
poesias à comunidade e visitantes através de um muro. Quem seria essa
pessoa que desenhava suas palavras, florindo a passagem de quem se

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dirigia à praia? Encantador! Lindo, um ato de entrega! Foi o que
pensei!
A noite, no primeiro dia na vila a encontrei vendendo seus livretos
delicadamente feitos à mão, e ela era realmente tudo que vi em poesia,
uma pessoa de entrega! Identifiquei-a, ligando aquela figura às palavras
no muro e conversamos longamente sobre poesia. Falei que também
escrevia e trocamos livros e ela me convidou para participar de um
recital que acontece nesse lugar lindo entre os dias 08 a 14 de março
anualmente, homenageando mulheres e poetas.
Já havia me esquecido ou mesmo achado que não rolar, mas na véspera
da data ela me ligou, acertou tudo e eu fui. Isso era março/2006. O
recital acontece na praça central do Morro do São Paulo, tudo,
exatamente tudo organizado por ela e com o apoio financeiro do
comercio, para pagar passagem e hospedagem dos poetas visitantes. O
comercio lhe disponibiliza vales para alimentação e hospedagem,
geralmente são comerciantes amigos ou mais antenados e envolvidos
com o movimento cultural. O recital aconteceu com poetas convidados
de fora (geralmente 02 ou 03 convidados por dia) além dela e das
crianças com as quais ela trabalha. Isso mesmo, além de tudo ela realiza
semanalmente oficinas de poesia e leitura com as crianças que moram
no morro.
No ano seguinte fui novamente, dessa vez fui com meu filho e realizei
uma oficina com as crianças, criamos textos, contamos histórias e
recitamos poesias. Nesse ano descemos o morro todas fantasiados,
éramos três adultas e cerca de 20 a 25 crianças, vestidas de palhaços,
ciganas, ou quaisquer outras fantasias inventadas com roupas
improvisadas, perucas e maquiagem. Todos esses adereços são
guardados por ela em casa para usar com as crianças nas atividades
realizadas, inventadas, produzidas, para dar vida àqueles meninos e
meninas. Descemos fazendo uma ciranda, essa descida é feita da casa
dela no alto do morro, e a cada momento que parávamos a cantiga,
alguém recitava um poema. As crianças, quase todas elas, muito à
vontade recitando versos, quadrinhas e poemas mais longos. Fomos até
um pouco além do muro das poesias, fizemos um circulo para recitar e
brincar e retornamos para a praça para o recital esperado pelas pessoas
da comunidade. Esse era somente um dos 08 dias do evento, do qual
nunca participei por toda a semana. Ficava normalmente uns 02 ou três
dias.
Nos anos seguintes não consegui ir para o evento. Um evento que
carrega a marca das mãos de Ângela Toledo, todos os cartazes feitos à
mão, pintados em tecido, inclusive o painel principal com o rosto de
Castro Alves. Voltei a vê-la nas outras vezes que fui lá, mas não mais em
março. A última vez que a vi foi em Dezembro/2012, e ela com o mesmo
riso franco e largo me abraçou me apresentou seus livros novos, agora
impressos em gráfica, e tão lindos quanto os manuais.i

Sua atuação cultural é política tendo em vista que suas ações e poesia funcionam
como previa Santos (2013) como manifestação de resistência dada a visão sistêmica da nação
passiva a qual Ângela pertence e lidera em Morro de São Paulo. Fazendo frente ao turismo de

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consumo, num local onde pousadas e hotéis são muito caros o ano inteiro, incluindo, a baixa
temporada, a vida e poesia da artista conclamam comunidade e turistas a questionarem, entre
outras coisas, o conceito de que o outro é o inimigo, e a desconfiança de que o consumo não seja
de fato a saída para a felicidade.
Num longo grafite-poema intitulado “Decreto de poesia” elabora poeticamente regras de
viver e conviver naquele local. Utilizando dos hibridismos de gêneros literários, o grafite que é
poema ainda se transforma em decreto, de modo a dar autoridade/credibilidade ao seu
pronunciamento: “Fica instituído pelos direitos conferidos/ao poema que a partir desta
data/Torna-se obrigatório à todo morador/deste pequeno paraíso”

E logo no primeiro “artigo” toca numa das temáticas mais caras ao pensamento sistêmico
que, como nos lembra Capra, é o termo mais científico para o sinônimo ecológico. Contemplar a
vida em si mesmo, no outro como um amor, e nos outros, como partes da teia que nos enreda.

1) Assistir ao por do sol três vezes


na semana, sendo que um sozinha
para meditar sobre a sua atuação
no mundo e sua relação com demais,
outro com um amor para reforçar a magia e o encantamento,
e o terceiro, com todos para celebrar e
agradecer pelo corpo vivo e em condições
de apreciar.

A lírica evoca um outro diferenciado; não mais o outro como inimigo e alvo de
hostilidades (Freud), nem tampouco o outro como empecilho a algum crescimento individual
(Santos). A poesia de Ângela apresenta Eros em diferentes facetas, celebrando o amor aprendido
e experimentado nas culturas matrísticas (Maturana) e esquecido pela sociedade patriarcal. Um
amor que conclama nossa participação cidadã e reconhece que somos todos um, dado o principio
das interconexões propostas pela física quântica que aponta a fragmentação, tão cara à
Globalização, como ilusão, já que nada existe no mundo que esteja totalmente apartado das
demais coisas vivas. Isso é emotivamente esclarecido pelo artigo sétimo do decreto: “Enxergar
em todas as crianças a face de seu filho/e nessa, sua própria face e muito por isso mesmo/cuidar
com a devida responsabilidade”
E no décimo e último decreto coloca o homem como parte da natureza. Apenas parte e
não mais o centro, já que no pensamento sistêmico as relações são contextuais e logo os papeis
relativos, sendo assim cabe ao homem ter consciência e agir com responsabilidade, pois disso
depende sua própria existência: “Zelar incondicionalmente por toda natureza/todo tempo inteiro,
incluindo o seu humano ser.”

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Outro principio atacado pela artista é a centralidade do dinheiro. O decreto da poesia,
ousadamente, convida o leitor a questionar esta centralidade, evocando o princípio do prazer e
lembrando nosso instinto humano que busca a felicidade. Desse modo, afina-se, mais uma vez,
com o Ecofeminismo, pois foca na felicidade como objetivo de uma vida plena. E tudo isso está
previsto pelo artigo nono: “Ao acordar lembrar-se sempre:/” dinheiro não é tudo” e por isso
mesmo/você pode escolher fazer o que te dar mais prazer.”
O tópico da felicidade reaparece em outro grafite-poema e reafirma que esta felicidade
pressupõe um olhar compartilhado da vida, pois já consegue ver o outro como um par e uma
extensão de si:
Livra-te
do dia e da noite
Seja livre das horas
permaneça em atenção
Cuida de ser feliz
de fazer o bem
de querer o melhor para si
e para todos.
A paz é real, a felicidade existe

A ideia de libertação está prevista no uso dos imperativo “livra-te” e “seja livre” e
pressupõe como sugere o poema que haja um estado de atenção para atingir a felicidade
livrando-se de antigos comportamentos. É como se a poetisa nos lembrasse que é demandada
uma mudança de paradigmas. À revelia das violências que nos rondam; das imposições de
consumo; das rivalidades construídas é possível crer em outro mundo, porque segundo a poesia,
e diferente do que sai nos jornais “a paz é real, a felicidade existe”.

Outro marca poética que chama a atenção e a recorrência da necessidade da “dança”


como rito neste modo livre de coerções de existir. Ela aparece pelo menos em três grafites-
poemas. Um é o artigo terceiro do decreto da poesia: “Arrumar-se demoradamente para ir
dançar/com os amigos pelo menos uma vez na semana/sem hora para voltar.” A poesia proclama
que a dança deve integrar o cotidiano. E de certo modo essa dança relaciona-se com o que o
poeta Mautner sugere ao chamar a poetisa de sacerdotisa do ser e reconhecer na lírica de Ângela
uma religiosidade existencialista. Esse embricamento entre dança e religiosidade está explicitado
em outro grafite-poema como um desejo divino:
Deus é bom!
Deus é demais.
Ele quer que você dance
que você cante, que você tome
banho de mar.
Que você ganhe uma noite inteira

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para olhar as estrelas e aproveite
a lua cheia para namorar.

A divindade anunciada na poesia da artista exalta os sentidos humanos para celebrar a


alegria da vida cotidiana, gozando de prazeres: dançar, contemplar, namorar. De novo uma
felicidade que desafia a sociedade de consumo, pois não remete à compra-venda de bens e fala
do exercício da mais simples humanidade e seu potencial para viver e sentir com o corpo.
Entretanto Deus, na lírica de Ângela, reconhece todas as formas de vida e não apenas a
humana. Anuncia-se um Deus ecológico que reúne as formas de vida num único propósito: o
cuidado. Conforme observamos no grafite poema “Prece para inocentes”:

Oh! Deus de todas as matas!


De todo verde, de todo amarelo,
de todo azul, de todo branco e
de todas as cores ainda com vida.
- Salve nossas crianças!
Criador do Céu, da Terra, dos rios e dos mares.
Criador das carícias, das delícias e de todo
bem viver.
- Rei dos Reis!
- Salve nossas crianças!
Grande protetor dos animais
Dos jacarés, das jaracuçus, das borboletas
e dos tamanduás. Protetor dos elefantes,
dos rinocerontes, dos orangotangos e dos
gambás!
Protetor dos bichos de asas
dos bichos de patas e de todo bicho
que se arrasta.
- Salve nossas crianças!
Pai Supremo de todos os povos!
Pai de toda raça!
Pai de toda gente.
Oh! Boníssimo pai!
Desperte os homens a tempo
de salvar nossas crianças.

Ainda sobre a religiosidade existencialista (sugerida por Mautner) reconhecemos um


despertar da consciência que nos livra das ilusões contemporâneas do dinheiro como vetor e do
outro como inimigo. Esse despertar de uma visão de interdependência que nos tire do
individualismo cego (Santos) em Ângela ganha suporte em uma visão espiritualista. O EU
(grafado em maiúscula) despertado pela dança, como ritual, transformará o modo de estar no
mundo, conforme sugere a poesia:

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“Meu grande esforço é
para não perder o Eu.
o Eu que dança.
Dançar muito para ter
ao menos uma chance
de ser uma pessoa saudável
generosa e justa.”

A dança é apresentada como método de conexão com um eu anterior as coisas do mundo


“civilizado”: um eu inspirado nos princípios da cultura matrística, a generosidade e a justiça. E
ser saudável, neste contexto fragmentado em que vivemos, é recuperar tais princípios perdidos, a
partir de uma visão sistêmico-ecológica.
Religiosidade existencialista porque não sugere uma vida para além da vida, mais a
concretiza em ações do cotidiano como bem observava Shiva (1993,p. 29):
Essa espiritualidade sensual ou sexual, mais do que do outro mundo é
centrada na oposição (abolindo-a, deste modo) entre o espírito e a
matéria, a transcendência e a imanência. (...) O espírito está inerente a
tudo, principalmente à nossa experiência sensorial, porque nós próprias,
com nossos corpos, não podemos separar o material do espiritual.

O Ecofeminismo chama esta visão de aspecto sagrado da vida e chega a afirmar que para
resgatar este aspecto da vida deveríamos, de tempos em tempos ,celebrar o sagrado com rituais
de danças e cânticos. Desse modo, notamos que não apenas estava sugerido nos grafites-poemas
de Ângela mas também na sua atuação cultural nos eventos de poesia por ela organizados que
envolviam performances, cantos e danças, como nos foi relatado por Núbia Paiva.
Toda essa áurea místico-espiritualista-ecológica não descarta uma ação mais direta que
cobra uma responsabilidade social de forma mais objetiva. Sobre o trabalho dos artesãos
colocados à margem (embora na praça principal), já que as lojas e boutiques trabalham em sua
maioria com produtos manufaturados e de outras regiões, a poetisa cutuca a consciência do
transeunte turista:
Para mim as pessoas mais interessadas e interessantes,
visitam a Feira de Artesanato dos lugares donde vão.
É uma simples forma de conhecer um pouco do que
está no coração do povo desse lugar.

Desse modo o grafite dá voz aos “sem espaço” e coloca no meio do caminho dos “com
espaço” uma denuncia de como os grandes grupos concentradores de poder subordinam a arte e a
cultura ao mercado(Canclini), assumindo seu papel de arte transgressora. E fazendo isso nos
enche de ânimo e esperança.

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PISTAS DE SUBSISTÊNCIA, OU A POESIA COMO LUZ DO CHÃO

Dado o cenário terrível de guerra e de peste que tem exterminado tantas vidas, e
mais recentemente, na reedição do conflito entre Palestina e Israel; no ressurgimento da peste
provocada pelo vírus èbola, resultado das condições miseráveis de vida na África, a poesia de
Ângela grafitada nos muros do distrito de Cairu, Morro de São Paulo, nos aponta caminhos
urgentes e locais para um problema global:
Agora
é hora de deixar ir
este fardo, de deixar de lado
o que não for amor.
Agora
é hora de sair por aí
com os pelos eriçados
coração acelerado e o
peito em flor.

Evocando Eros, força de fazer viver, os grafites-poemas suplicam a natureza humana do


cuidado e do amor que lhe é negada na cultura patriarcal. Rememora os valores da cultura
matrística que ainda embalam infâncias ( de alguns ainda afortunados pela presença de alguém
cuidador e amoroso) Um amor a flor da pele, cheio de humanos sentidos, sensações e
sentimentos, parece recobrar no leitor sua capacidade humana de reagir e resistir.
Mais cientes das interconexões da vida na Terra não podemos mais viver na ilusão de que
não fazemos parte de tudo isso. A nossa ignorância ou alienação auxilia nas mortes anunciadas
na TV. Teremos que mudar agora mesmo (como sugere o grafite-poema) mesmo que não
achemos em nos a generosidade perdida, faremos, então, por uma questão de subsistência. Pois,
como disse Ângela “AGORA é hora de sair por aí com o peito em flor”.
Pintando os muros de Morro de São Paulo; fazendo oficinas de poesia com crianças;
vendendo seus livros na praça principal; fundando associações de moradores e artesãos;
organizando eventos que celebram a mulher e a poesia; escrevendo livros semi-artesanais,
Ângela Toledo nos lembra uma das funções da poesia tão bem definida por Ferreira Gullar:
Disso eu quis fazer a minha poesia, dessa matéria humilde e humilhada,
dessa vida obscura e injustiçada, porque o canto não pode ser uma
traição à vida, e só é justo cantar se o nosso canto arrasta consigo as
pessoas e as coisas que não têm voz. (GULLAR, 2011, p.142)

Assim como o projeto “o muro que fala” sensibilizou a mim e a escritora Núbia Paiva,
acreditamos no papel dessa ação político-cultural a que Ângela nega humildemente ao telefone

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comigo, diz ela: escrevo só para expressar tudo o que sinto. Mas ao fazer isso evoca em mim e
em outros o nosso lado mais divino-humano esquecido. A poetisa complementa: “se tem algo
que minha poesia me deu foi o encontro com gente espetacular”. Como um espelho que reflete
sua generosidade no outro, Ângela, mais uma vez, nos deixa esse recado.

BIBLIOGRAFIA

BARBOSA, Adriana Maria de Abreu. Educação e desenvolvimento integral da pessoa humana


um caminho para paz. In: Pressupostos da educação para uma cultura ética de paz. Jorge
Miranda de Almeida (org.). São Paulo: companhia Ilimitada, 2010, p.165-174.

CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas Híbridas. Estratégias para entrar e sair da modernidade.
4ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008(EnsaiosLatino-americanos, 1)

CAPRA, Fritjof. A teia da vida. Uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. Tradução
Newton Roberval Eichemberg. São Paulo: Editora Cultrix, 1996.

FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização, novas conferências introdutórias à psicanálise e


outros textos (1930-1936) Tradução Paulo César de Souza - São Paulo: Companhia das Letras
2010.

GULLAR, Ferreira. Sobre arte Sobre poesia (uma luz do chão). 4ed. Rio de Janeiro: José
Olympio, 2011. (sabor literário)

MATURANA, Humberto. Conversações matrísticas e patriarcais. In: Amar e brincar.


Fundamentos esquecidos do humano. MATURANA & VENDER-ZÖLLER. Tradução de
Humberto Mariotti e Lia Diskin. São Paulo: Palas Athena, 2004, p. 25-115.

MILES, Maria & SHIVA, Vandana. Ecofeminismo. Tradução Fernando Dias Antunes. Lisboa:
Instituto Piaget, 1993.

MURARO, Rose. Um mundo novo em gestação. Campinas: Verus, 2003.

SANTOS, Milton. Por uma outra globalização. Do pensamento único à consciência universal.
23 ed. Rio de Janeiro: Recorde, 2013.

TOLEDO, Ângela. Quase Poesia. Cairu: Casa da poesia, 2010.

18
ANEXO (GRAFITE-POEMA)

19
i
Depoimento gentilmente cedido a esta pesquisadora por email.

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