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MIL LITROS DE PRETO: a maré está cheia - A Performance

ROMÃO, Lucimélia
Bolsista IC - PROPE
PIBIC DEACE/UFSJ

SANTOS, Juliana Reis Monteiro


Orientadora – DEACE/UFSJ

O presente texto aborda uma performance/instalação de minha autoria, apresentada nos


seguintes períodos e espaços em Minas Gerais: entre 17 e 19 de Janeiro de 2019, no Centro
Cultural da UFSJ em São João del Rei, aprovada para a galeria principal no Edital
04/2018/UFSJ/PROEX PROPOSTAS ARTÍSTICAS; no Taculas - Fórum de Performance de
Mulheres Negras em Belo Horizonte, no dia 25 de Maio de 2019 e na Mostra VERBO de
Performance em São Paulo, no dia 12 de Julho.
MIL LITROS DE PRETO: A MARÉ ESTÁ CHEIA é uma performance [1] e instalação [2]
negra, uma prática fruto da minha iniciação científica. A pesquisa desde o começo só me fazia
sentido se junto eu conseguisse montar um produto teórico-prático, porque enquanto
pesquisadora acredito que a teoria não anula a prática e vice e versa os dois são algo que se
complementa, um tornando coerente o outro. Instigada pelos livros como O genocídio do negro
brasileiro: processo de um racismo mascarado de Abdias Nascimento e o Racismo estrutural
do Silvio Almeida gero esse produto artístico no momento em que percebo o quanto ainda é
atual a eliminação de jovens negros e periféricos.
Como diz Leda Maria Martins em entrevista concedida para a iniciação "há uma morte
simbólica. Apaga-se no sujeito seus índices a sua humanidade. Considerar inferiores,
desqualificados. O que justificaria seu quase extermínio. Não podem exercitar sua língua, sua
religião sua forma de organização, sua arte, seus rituais. No entanto esse apagamento não
1. Ervin Goffman Uma performance pode ser definida como toda e qualquer atividade de um determinado
participante em uma certa ocasião, e que serve para influenciar de qualquer maneira qualquer dos participantes.
Tomando um participante em especial e sua atuação como ponto básico de referência, podemos nos referir a
aqueles que contribuem para as outras performances como o público, os observadores, os outros participantes. O
padrão pré--estabelecido da ação desenvolvida durante uma performance e que pode ser apresentada ou
encenada em outras ocasiões pode ser chamada de “parte” ou de “rotina”. Estes termos situacionais podem
facilmente ser relacionados com casos de estrutura convencional. Quando uma pessoa ou um ator executa o
mesmo papel para o mesmo público em ocasiões diferentes, quase que surge uma relação social. Definir papel
social como encenação de direitos e deveres de um certo status, podemos dizer que um papel social envolverá
um ou mais dos papéis, e cada um destes papéis diferentes podem ser executados pelo performer em uma série
de ocasiões, para os mesmos tipos de público ou para um público das mesmas pessoas.1959, The presentation of
self in everyday life, 15-16

2. O termo “instalação” foi incorporado surge nas artes visuais na década de 1960, designado ambiente construído
em espaços de galerias e museus. Durante o modernismo suas primeiras experimentações são estabelecidas por
Kurt Schwitters (Merzbau, 1923) e Marcel Duchamp (16 milhas de fio, 1942). Na contemporaneidade, sua força
expressiva toma forma com as linguagens da Land Art, Minimal Art, Work in Progress e Intervenções Urbanas.
A Instalação é uma forma de arte que utiliza a ocupação de ambientes que são transformados em cenários. Pintura,
escultura e outros materiais são usados conjuntamente para modificar o espaço arquitetônico e proporcionar ao
espectador uma vivência ativa da obra e, portanto, não somente como apreciador.
consegue ser total e absoluto. Como em 500 anos as culturas negras e as indígenas
sobrevivem".

O genocídio da juventude preta é a política base do estado para com os negros brasileiros
desde a escravidão. O extermínio é iminente. Tática de guerra travada contra um povo que
nunca teve direito e condições de lutar de igual para igual. Matam-se crianças, adolescentes e
jovens. Diminui-se a expectativa de vida. Estupram-se mulheres, crivam de balas seus filhos.

Os órgãos e instituições do poder público no Brasil, o governo, os legisladores,


o sistema de justiça criminal, a polícia, os intelectuais, a imprensa e etc…
lançam uma guerra contra os negros sem nenhuma piedade ou compaixão; uma
guerra nunca de direta confrontação, mas sutil e indireta, perseguição
persistente e sem pressa dessas vítimas do destino, pervertendo ou negando a
eles seus direitos civis, subvertendo seu direito à educação, negando-lhes
assistência pública ou qualquer tipo de apoio oficial para custeio de educação
ou subsistência. (Nascimento, Abdias. 1978, p.113)

Na busca de um modelo de teatro negro e ou performance negra, fiz entrevistas com vários
grupos para descobrir uma forma que fosse a arte afro ideal. Descobri por meio dessas
entrevistas que o teatro negro é plural, que não existe um ideal e muito menos uma fórmula. O
teatro negro não é excludente, ele contempla várias existências e várias possibilidades.
Podemos perceber a pluralidade do teatro negro quando observamos as variedades estéticas e
pesquisas entre o espetáculo Medea Mina Jeje de Rudinei Borges, interpretado pelo ator Kenan
Bernardes de SP e o espetáculo Belorizontino Madame Satã dirigido por João das Neves.
Ambos os espetáculos têm no foco o negro. Medea Mina Jeje é um solo, que lança mão da
tragédia grega de Medea criando uma relação com a exploração do ciclo do ouro em Minas
Gerais no século XVIII. No espetáculo a escrava Medeia sacrifica o próprio filho,
diferentemente da personagem de Eurípides, ela não busca vingança. Uma mãe que quer
libertar seu filho do destino e das torturas comuns nas minas Brasileiras. O ator se apropria da
dramaturgia recorrendo a alguns elementos do Teatro Japonês para a sua interpretação. Ele
remonta a história de um povo massacrado transitando em personagens complexos como a
Medeia e o traidor Jasão, na peça um capitão do mato. A ambientação cênica, no entanto, tem
poucos elementos porém preciosos, e é reforçada pela luz e pela sonoplastia, que juntas
seduzem o espectador, a valorizando o discurso, tornando-o provocador.
Madame Satã também um trabalho poético sobre a luta de invisíveis. Porém o grupo se
debruça na biografia de João Francisco dos Santos um transformista brasileiro conhecido na
vida noturna e marginal da Lapa carioca na primeira metade do século XX. Personagem sem
defeito para dialogar com questões que permeiam a crítica contra o racismo e a homofobia.
Com trilha sonora original, se delicia da linguagem do teatro musical e suas possibilidades. O
espetáculo é entrecortado por textos ora poéticos, ora combativos, e lança luz não apenas a
biografia de Satã, mas ilumina às pessoas à margem da sociedade que não se enquadram na
hegemonia vigente. Ambos espetáculos se apropriam do teatro contemporâneo e são teatros
negros mas se aprofundam em linguagens teatrais distintas para compor o seu espetáculo.
Qualquer idéia tem que se materializar em carne, sangue e realidade emocional: tem que ir
além da imitação, para que a vida inventada seja também um vida paralela, que não se possa
distinguir da realidade em nível algum. (Brook, p.8, ) Partindo dessa premissa desenvolvi a
performance e instalação MIL LITROS DE PRETO: A MARÉ ESTÁ CHEIA, com o objetivo
principal de descortinar e desnaturalizar o genocídio da população negra no Brasil. Através da
performance e instalação visei criar uma arte acessível, de fácil compreensão e ao mesmo
tempo tocar o sensível de quem consumisse, sem deixar a complexidade do tema abordado
esvair.
Através da performance foi apontado uma das várias injustiças, crueldades e toda esse velho
novo sistema de esmagar e punir gente preta que está cansada e revoltada. Tornando palpável
o que é a máquina de extermínio dos jovens negros brasileiros . Desenvolvendo uma forma de
sensibilizar as pessoas por meio da arte contemporânea de que o racismo estrutural é um
problema nacional. Tentei subverter o inconsciente coletivo brasileiro de que todo preto é
bandido e evidenciar o verdadeiro campo de guerra em que tem se constituído o caminho para
o progresso e a cidadania dos negros descendentes no país.
Uma performance que ecoa dias, uma instalação que perpetua. MIL LITROS DE PRETO.
É uma performance e instalação. Durante os 3 primeiros dias acontece a performance e a
instalação irá se constituindo a partir das ações da performance.
A INSTALAÇÃO: consiste em uma piscina (será disposta segundo a planta baixa anexa)
de 1000 litros, retangular, com largura de 130 cm, 42 cm de altura e profundidade de 189 cm;
143 baldes pretos de 7 litros cada (quantidade exata de litros de sangue que habita em um corpo
adulto) espalhados pelo espaço, etiquetados com nomes de vítimas do genocídio da população
negra; 994 litros de líquido vermelho, feito de água e corante alimentício, alocado em cada
balde. Depois que a performance acontecer, ficará exposto por 40 dias a piscina com o líquido
vermelho, os baldes pretos vazios e imagens da performance serão projetadas na parede.
A PERFORMANCE: a cada 25 minutos um alarme soa, 7 litros de líquido vermelho que
contém o balde preto é despejado pela performer na piscina, isso ocorre até os 143 baldes
estarem vazios. Em aproximadamente 59 horas a piscina estará completa com 1000 litros de
sangues de jovens negros . Durante as 60h primeiras horas, a performer irá realizar essa ação
que poderá ser acompanhada pelo público ou não (a depender da escolha do público). A ação
será gravada e projetada depois durante a exposição.Um saco de dormir estará no local, abaixo
do projetor, para descanso do performer que permanecerá 3 dias no local, realizando a ação.
Essa performance / instalação possui uma capacidade de adaptação memorável. Inicialmente
teve duração de 60 horas, mas na sua segunda versão ela tem 30 minutos, e vem sendo realizada
com 57 baldes e uma piscina de 400 litros o que tem possibilitado ela de ser apresentada em
diversos festivais de performance.
O trabalho que foi apresentado tanto para a comunidade periférica belorizontina que vivencia
diariamente de dentro essa realidade abordada, quanto para a elite paulistana que vivencia com
um maior distanciamento, tem a mesma reação ao ver a ação. Os diversos espectadores ficam
horrorizados com a dimensão do genocídio, após o impacto muitos conversam sobre o
problema apresentado e expõe saber sobre o assunto mas que não tinham noção da dimensão
do crime praticado pelo estado, muitos até então revelam não saber que a mortandade era uma
violência gerada pelo racismo estrutural. A partir deste trabalho, foi estabelecido com
estudantes de escolas públicas e espectadores diálogos e possíveis reflexões acerca do tema
abordado que, por sua vez, é ainda nebulosa na arte e na nossa sociedade.
Fig. 1 - Apresentação na Mostra VERBO em São Paulo/ SP, Brasil. Fotografia da Mylenne Signe
Fig.2 - Apresentação na Mostra VERBO em São Paulo/ SP, Brasil. Fotografia da Marcelo
Prudente

Fig. 1 Fig.2

REFERÊNCIAS

NASCIMENTO, Abdias. O genocídio Do Negro Brasileiro: Processo De Um Racismo


Mascarado. São Paulo: Perspectiva, 2016, p.113.
NASCIMENTO, Abdias. Teatro Experimental do Negro: trajetória e reflexões. In.: Estudos
Avançados. Vol. 18. N.º 50. São Paulo: 2005, p. 210.
ALMEIDA, Silvio. O Que É Racismo Estrutural? Belo Horizonte: Letramento, 2018, p.31.
ALEXANDRE, Marcos. O Teatro Negro Em Perspectiva: Dramaturgia E Cena Negra no
Brasil É Em Cuba. Rio de Janeiro: Malê, 2017, p.30, 31.
BROOK, Peter. A Porta Aberta. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999, p. 08.
HUYSSEN, Andreas. Mapeando o pós-moderno. In: HOLANDA, Helena Buarque de. Pós
Modernismo e política. Rio de Janeiro: Rocco, 1991, p. 15-80.
KOUYATÈ, Sotigui. Falas. In MONTEIRO, Juliana. Encontrar – protocolo de
aprendizado. Santo André: Cadernos da ELT – Ano III. Número 2. 2005, p. 32-37.
TEN Disponível em: http://www.palmares.gov.br/?p=40416
Acesso: 08 de maio de 2018.
LIMA, Evani Tavares. Por uma história negra do teatro brasileiro. Urdimento, v.1,

n. 24, p92-104, julho 2015. DOI: http://dx.doi.org/10.5965/1414573101242015092.

Disponível em:

<http://revistas.udesc.br/index.php/urdimento/article/view/1414573101242015092>.

Acesso: 30 de abril de 2018.

MONTEIRO, Juliana. Encontrar – protocolo de aprendizado. Santo André:


Cadernos da ELT – Ano III. Número 2. 2005, p. 32-37.
QUILICI, Cassiano Sydow. O ator-performer e as poéticas da transformação de
si. SP: AnnaBlume, 2015.

Websites visitados

<http://www.segundapreta.com/>
<http://www.questaodecritica.com.br/2018/03/teatro-negro-em-perspectiva/>
<https://www.teatronegroeatitude.com/>
<https://www.brasildefato.com.br/2016/05/13/surgido-da-dor-maes-de-maio-se-tornam-
referencia-no-combate-a-violencia-do-estado/>
<https://www.maesdemaio.blogspot.com/?fbclid=IwAR0ANhrh7vDh0VdGk7ZsaT0YRVu0v
zrRYlE2KR7z5vpjnUOGE3_n6-kaRGc>

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