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Teatro do Oprimido e comunicação das subalternas


Teatro
  do Oprimido e comunicação das subalternas
Theater of the Oppressed and communication of the subalterns
· Comba Campoi García
Universidade de Santiago de Compostela

DOI: http://dx.doi.org/10.15304/ricd.2.5.3603
Fecha de recepción: 17-10-2016
Fecha de aceptación: 03-01-2017

Resumen
Na década de 1970 o dramaturgo brasileiro Augusto Boal desenvolveu uma teoria teatral a partir das suas
experiências de teatro militante. Contrariamente às formas de teatro político dirigidas "para" as
comunidades oprimidas, Boal defendia dar aos sujeitos oprimidos o protagonismo no processo de
criação. A partir das ideias de Paulo Freire, Boal desconstrói a figura de atores e espetadores: a emissão e
receção da mensagem teatral são partilhadas pelo coletivo, protagonista completo do processo.
A experiência e as ideias de Boal, seguidas hoje por inúmeros coletivos em todo o mundo, servem para
defender a potência do teatro como meio de comunicação das subalternas, um meio no que a situação e
os corpos dos participantes constituem o único instrumento necessário para a transmissão da mensagem.
A partir da discussão da noção da subalternidade, o artigo questiona a viabilidade atual do sistema do
Teatro do Oprimido, a começar pela sua própria denominação, substituída pela de teatro das oprimidas
pelos próprios sujeitos envolvidos no processo comunicativo.

Abstract
The brazilian playwright Augusto Boal created in the 1970s a theatrical theory from his experience on
activist theatre. Unlike agit-pro theatre, addressed “to” oppressed communities, Boal intended that
subalterns take part in the creative process. Inspired by Paulo Freire’s pedagogy, Boal deconstructs the
role of both actors and audience: the group has the leading role in the theatre process, the group either
transmits and receives the message.
Boal’s experience and ideas, followed by organisations all over the world, confirm the power of theatre as
a subaltern’s medium. Just the setting and the participants’ bodies are enough to make possible the
message transmission in this medium.
In this essay it will discussed the concept of subalternity and how this can affect the validity of Theatre of
the Oppressed as a means of communication for social change in present days.

Palabras clave
Teatro do oprimido, subalternidade, comunicação para a mudança social

Keywords
Theatre of the oppressed, subaltern, communication for social change

© 2017. Revista Internacional de Comunicación y Desarrollo, 5, 77-87, ISSN e2386-3730 77


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Comba Campoi García

Sumario
1. Introducão
 
2. Oprimidos e subalternas
3. Teatro popular, meio de comunicação das subalternas
4. Teatro do oprimido: retorno á horizontalidade
5. Atualidade e dilemas do teatro das oprimidas
6. Conclussões
7. Referências

Contents
1. Introduction
2. Opressed and subaltern
3. Popular Theatre, Media of the subalterns
4. Theater of the Oppressed: Return to Horizontality
5. Present and Current Dilemmas of the Theater of the Oppressed
6. Conclusions
7. References

Nota biográfica
Comba Campoi García es periodista, productora, actriz y profesora de la Universidade de Santiago de
Compostela. Miembro investigador del grupo Cidadanía e Comunicación, dirigido por el profesor
Marcelo Martínez, ha colaborado como activista e investigadora a la recuperación del teatro popular de
marionetas como medio de comunicación de las subalternas. combecha@yahoo.com

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alienação da consciência de si. É, portanto, uma
1. INTRODUCÃO situação de ordem estrutural, mas que se
manifesta no plano individual, no plano da
  consciência do “homem” oprimido, que esconde
O dramaturgo brasileiro Augusto Boal
o opressor em si. No outro lado do tabuleiro, os
desenvolveu na década de 1970 um sistema
opressores oprimem, exploram e violentam em
teatral que aspirava a disponibilizar uma
razão do seu poder. Para o pedagogo o binómio
ferramenta para as pessoas oprimidas
opressores-oprimidos, em relação dialética
transformarem a sua realidade. O Teatro do
indissolúvel (os uns não haviam existir sem os
Oprimido pretendia ir além do teatro militante ao
outros) constituem as duas caras duma mesma
colocar as subalternas no centro do processo
moeda a ilustrar a desumanização do mundo.
criativo e comunicativo. A partir da revisão
Cabe, contudo, aos oprimidos a grande tarefa
teórica de distintos textos e autores discutir-se-á
humanística e histórica de libertarem-se e
se essa metodologia teatral, desenhada por
libertar os opressores de si próprios: “la lucha de
“inteletuais orgânicos”, tem sido
los oprimidos contra los opresores sólo tiene
verdadeiramente apropriada pelos coletivos
sentido cuando los oprimidos, en la búsqueda
subalternos. Começar-se-á pela discussão do
de recuperar su humanidad, no se sienten
próprio termo com que o sujeito desta forma
opresores de los opresores sino restauradores
teatral foi designado, isto é, o oprimido,
de la humanidad de ambos” (Freire, 1970,
inicialmente em masculino singular e que na
p.39). Para poder realizar essa tarefa, o
atualidade tende a ser substituído pelo de
oprimido (sempre referido no masculino) deve
“oprimidas”. Esta evolução terminológica
passar por um processo de tomada de
adapta-se melhor ao carácter diverso e
consciência, primeiro da sua situação de
heterogéneo do sujeito do processo
opressão, para posteriormente expulsar as
comunicativo teatral, e encontra nos estudos
pautas interiorizadas prescritas pelos
subalternos um apoio teórico atualizador. Aliás,
opressores e encher esse vazio com o conteúdo
fundamentar-se-á a afirmação do teatro como
da sua autonomia. Entende Freire que os
sendo um meio de comunicação, que pode
oprimidos, “al reconocer el límite que la realidad
emanar das subalternas para veiculizar o seu
opresora les impone, tengan, en ese
universo simbólico, a sua visão do mundo, o seu
reconocimiento, el motor de su acción
registo oculto. Um meio, porém, que parece com
libertadora” (1970, p.45). A tomada de
que tenha perdido o seu peso social na
consciência constitui, pois, o ponto de partida
atualidade, vista a omnipresença das NTIC na
fundamental para a ação transformadora da que
vida cotidiana, mesmo nas camadas mais
os sujeitos oprimidos deverão ser impulsores.
marginalizadas das várias periferias. No entanto,
Freire parte, portanto, da viabilidade do oprimido
algumas iniciativas em marcha na atualidade
como sujeito histórico, como ator social com
parecem indicar a vigência, embora discreta e
capacidade de intervenção na sua realidade.
apenas visível, das formas de comunicação não
Acredita em que o oprimido, se bem que parte
massivas como ativadoras da agência das
duma situação de privação da palavra (Freire,
subalternas, o que implica reafirmar a potência
1970), pode chegar a falar, pode instituir-se em
do teatro do oprimido, ao que nós preferiremos
sujeito de enunciação, a usarmos da
denominar teatro das oprimidas1
terminologia de Spivak (2009). Esta constatação
suporta a sua pedagogia, tal como o sistema
2. OPRIMIDOS E SUBALTERNAS teatral desenhado por Boal.
No contexto da modernidade, as
O nome que Augusto Boal lhe deu ao sistema
classificações de tipo binário parece com que
teatral por ele desenhado encerra uma
homenagem à pedagogia que Paulo Freire havia tenham ficado desfasadas. Falarmos de Sul e
Norte resulta problemático se o facto de os dois
desenvolvido a partir das suas experiências de
pontos cardinais se acharem presentes e
alfabetização no Brasil e no exílio chileno. A
multiplicados por toda a geografia não é, por
conceção freiriana dos oprimidos situa-se num
contexto histórico marcado por diversos sinal, referido, em jeito de uma malha de
micropoderes foucaultiana. Já a tradicional
movimentos revolucionários na América Latina e
divisão entre oprimidos e dominados, presente
incide na condição de oprimido como uma
na lógica fundacional do Teatro do Oprimido,
tem sido problematizada desde numerosas
perspetivas. Desde a própria Escola de Estudos
Subalternos, fundada por uma série de
1
No presente texto serão usadas indistintamente as
denominações em masculino e em feminino.

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historiadores índios para se colocarem na que vive, na que “ser es parecer y parecer es
premeditadamente no lugar do subalterno, essa asemejarse al opresor” (Freire, 1970, p.41) .
questão tem sido amplamente discutida.
  Na consequência dessa dualidade, o
Justamente, o grupo fundado por Guha por volta
oprimido interioriza os valores do opressor e
da década de 1980 incide na heterogeneidade
aspira a devir, ele próprio, opressor. Sofre
como qualidade definitória do sujeito
daquilo que Freire (1970) denomina “medo à
subalterno2. Embora o termo “oprimidos” tenha
liberdade”. Assim, a consciência subalterna
sido deslocado para um uso apenas esporádico,
seria uma consciência negativa, fundada a partir
associado a um contexto histórico e a uma luta
da consciência dominante. No grupo dos
militante concreta, na definição que desse
Estudos Subalternos, consagrado à história das
sujeito propõe Freire detetam-se bastantes
lutas subalternas na Índia, essa problemática
elementos a emparentarem-no com a noção de
revela-se nas fontes historiográficas: para
subalternidade proposta pelos Subaltern
ficarmos a par das ações dos subalternos, torna-
Studies.
se necessário recorrer aos registos da sua
Tal e como tem analisado criticamente repressão.
Gayatri C. Spivak (2008), o grupo de estudos
O problema para aceder á consciência
subalternos centra o seu projeto em “investigar,
subalterna, aquela que Freire e Boal tentam
descubrir y establecer la conciencia campesina
ajudar a emergir com os seus métodos, reside
o subalterna” (p.42) para assim tratar de
precisamente nessa definição negativa,
responder à proposta de Marx de perseguir a
centrada na diferença, dada a impossibilidade
prática desalienada dos seres humanos, o que
de definir uma identidade unívoca para um
seguindo Gramsci, poderia ser traduzido em
sujeito marcado pela heterogeneidade.
como alcançar a autoconsciência. O esforço
teórico que segue baseia-se numa determinada Isto levaria á inviabilidade de qualquer
noção da consciência, que conduz ao que projeto que se pretendesse alinhar com os
Spivak (2008) entende como uma série de sujeitos subalternos. Mas, segundo entende
“fracassos” epistemológicos inelutáveis. Por um Spivak (2008), o senso da consciência
lado, e seguindo a lógica hegeliana, a alienação subalterna que prevalece nos trabalhos da
é irredutível a qualquer ato de consciência. A escola dos Subaltern Studies é estreito, tal que
menos que o sujeito se separe de si próprio para autoconsciência, e entende a consciência
compreender o objeto, não há cognição, não há coletiva ou de classe como uma “comprensión
pensamento nem juízo (Spivak, 2008). Porém, o unificante artificial y estratégica” (p.45), na que
grupo de estudos subalternos assume o risco de ocorrem, de jeito inevitável, discrepâncias com a
irredutibilidade de alienação quando enfrenta a consciência dos seus sujeitos. Assim, tanto
sua de descrição da consciência subalterna. Freire como Boal aspirariam à construção, por
parte dos próprios sujeitos oprimidos ou
Em princípio, o grupo defende que se produz
subalternos, dessa consciência artificial e
uma certa reflexão unívoca a partir da qual a
instrumental, dirigida a possibilitar a alteração
ação subalterna reflete uma única consciência
das condições que originam a sua situação de
subjacente. No entanto, tal e como analisa
subalternidade.
Spivak, aqui a consciência não se entende como
“conciencia-en-general” (2008, p.42), mas como O pedagogo pernambucano e, seguindo os
uma forma política historizada da mesma. Este seus passos, o dramaturgo carioca, tratarão de
carácter histórico leva a constatar como a estabelecer os mecanismos psicológicos que
consciência subalterna sempre está submetida impedem o oprimido de “falar”, de colocar
à influência da elite; nunca é completamente enunciados que sejam ouvidos no plano
recuperável, ao ponto de que “se borra incluso institucional. Os oprimidos podem chegar a falar,
cuando es revelada” (Spivak, 2008, p.42). Este isto é, a serem ouvidos, se conseguem tomar
carácter negativo da consciência subalterna consciência da sua situação de opressão e da
está também presente na teoria freiriana, que sua capacidade de agência. Mas, e a questão
de facto sustenta o seu projeto pedagógico em remete, mais uma vez, para Spivak, entende-se
ajudar o sujeito oprimido a descobrir a dualidade que para poderem falar devem adotar a
linguagem dos opressores, da cultura
dominante. Freire consagrou a sua vida a
2
alfabetizar as massas subalternas da América
Tal e como as define Guha, as clases subalternas representam a
diferença demográfica entre a povoação índia total e aqueles
Latina. Embora tivesse fundamentado o seu
aos que designamos por elites. (Citado por Spivak, 2008, p. sistema pedagógico no diálogo e na
43). problematização da realidade dos oprimidos, o

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seu sistema envolvia o emprego da língua realidade subalterna e a apropriação dum
escrita, um código próprio da cultura dominante, código novo através da que poderem expressar-
com o que o universo simbólico original dos se. O oprimido, a subalterna, poderá falar só
 
“oprimidos” ficava exposto ao risco do numa determinada fase do processo, desde que
esquecimento ou da incorporação. Freire parece se implique no processo alfabetizador ou teatral.
não ponderar a possibilidade duma cultura Dado que na atual realidade desumanizada os
subalterna, dado que o oprimido é um ser oprimidos estão privados da consciência de si,
alienado e, em tal estado, aparentemente só através dum processo revolucionário
incapaz de gerar um universo simbólico orientado pelos líderes aderidos aos grupos
distintivo. De facto, considera “el mundo mágico subalternos é que poderão reconstruir uma
o mítico en que se encuentra la conciencia consciência que lhes permita lutar para a
oprimida, sobre todo la campesina” (Freire, transformação da sua realidade. Só nesse
1970, p. 63) um indício da cultura opressora momento é que se constituirão como sujeitos e
introjetada. Esse aparente miserabilismo poderão falar empregando os códigos nos que
contrasta com a confiança do pernambucano na foram capacitados no processo educativo. Um
capacidade dos oprimidos de se liberar e liberar desses códigos será o teatral.
aos opressores, optimismo que funda o seu
sistema pedagógico e que havia contagiar Boal. 3. TEATRO POPULAR, MEIO DE
Para Freire, os códigos e as tecnologias COMUNICAÇÃO DAS SUBALTERNAS
gerados pelos grupos dominantes são
apropriáveis pelos oprimidos: “la ciencia y la A ideia de Freire de que as tecnologias e os
tecnología, en la sociedad revolucionaria, deben códigos são suscetíveis de se pôr ao serviço da
estar al servicio de la revolución permanente, de revolução (1970, p. 208) liga-se á conceção que
la humanización del hombre” (1970, p. 208). aqui se defenderá do teatro como “meio de
Por outro lado, outorga um papel decisivo comunicação”. Entender o meio apenas como
àquelas pessoas provenientes das classes sendo um “facilitador” da comunicação
opressoras que, num determinado momento da humana 3 , implica atender prioritariamente os
sua experiência vital, decidem passar para o sujeitos para compreender qualquer fenómeno
lado das oprimidas. Essas pessoas comunicativo (e portanto, social). Assumir a
comprometidas com os oprimidos poderão importância dos sujeitos na compreensão do
exercer um liderado que contribua para a sua processo comunicativo implica compreender os
libertação (Freire, 1970, p. 213). Freire fala de canais de que usam para transportarem as
“síntese cultural” como resultado da distintas mensagens. No caso do teatro,
comunicação entre esses líderes e as massas deparamos com uma mistura de canais naturais
oprimidas: “sólo a través de la síntesis cultural (gesto, palavra, música) e artificiais (cenografia,
se resuelve la contradicción existente entre la iluminação, objetos animados, no caso das
visión del mundo del liderazgo y aquella del marionetas) que fazem com que falemos de um
pueblo, con el consiguiente enriquecimiento de “artefacto” facilitador ou amplificador (embora
ambos” (1970, p. 240). Portanto, embora diga não na distância) de “capacidades sensoriais
respeito a um sistema horizontal e dialógico, a previas”, a usarmos a terminologia de Pasquali
pedagogia e, analogamente, o teatro do (2007).
oprimido, contam com a liderança de uma série
Esta conceção pressupõe uma certa
de atores, provenientes das classes dominantes,
capacidade de intervenção para a
mas solidários com as dominadas, para se
transformação da realidade social. Montalbán,
poderem realizar. Serão aquelas pessoas que
em Historia y comunicación social, refere
lancem o processo educativo dialógico
explicitamente o teatro como “el medio de
desenhado por Freire, as que dinamizem as
comunicación más peligroso: por la capacidad
oficinas de teatro do oprimido.
de representación simbólica del actor y por la
De certo modo, podemos afirmar que tanto audiencia indiscriminada de un público de todos
Freire quanto Boal coincidem com Spivak los sectores sociales” (Vázquez-Montalbán,
quando conclui que o subalterno, a subalterna, 1997, p. 22). Esse potencial subversivo do
não pode falar. Não pode falar desde a sua
realidade oprimida, a menos que se estabeleça
uma mediação exercida por uns educadores ou 3
Entendemos a comunicação como troca de mensagens entre
facilitadores, provenientes das classes seres racionais, independentemente dos aparelhos
dominantes, que lançam o processo dialógico intermediários empregues para facilitar a relação à distância.
que promoverá a tomada de consciência da sua (Pasquali, 2007)

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teatro seria ainda maior no caso do teatro pode entender-se nesse quadro dinâmico. O
popular, isto é, o realizado por e para as classes teatro é um meio de comunicação, desde que
subalternas. Assim, os autores adscritos às entendido como agência, ferramenta
 
teorias da Comunicação para o desenvolvimento facilitadora, e não como mediação entendida
(Valbuena, 2008, p. 579) defenderam desde a como ação propagandística, propagadora
década de 1970 o uso do teatro popular e unidirecional de ideologia (Williams, 1985,
outros “meios folclóricos” (folk media), como p.205-6). Essa é também a conceção defendida
ferramentas para o empoderamento das por Boal quando propõe devolver o teatro às
comunidades do Sul. Porém, essa consideração comunidades. Ao erigir as subalternas em
do teatro popular como meio de comunicação sujeitos do teatro das oprimidas, a mediação
popular assenta numa vontade instrumental, do teatral deixa de ter senso. Não se lhe dá voz a
meio entendido como sendo um canal através quem não a tem falando dele, o teatro é a
do que viabilizar conteúdos que os agentes da linguagem mesma de que se devem munir às
cooperação (com frequência, alheios à oprimidas (Vicente 2013, p. 275).
comunidade) consideram que irão permitir á
comunidade avançar no seu desenvolvimento 4. TEATRO DO OPRIMIDO: RETORNO Á
(um critério alvo de acesas discussões). Essas HORIZONTALIDADE
premissas estavam encaminhadas a
fundamentar uma série de ações nas
A capacidade das distintas formas de
comunidades consideradas “subdesenvolvidas”
representação (entre elas o teatro) para
ou “atrasadas” nas que o teatro, entre outras
favorecer a agência transformadora das pessoas
formas da cultura popular, foi e continua a ser
era clara nos seus estádios originais, onde
empregue como ferramenta de conscientização
apareciam associadas ao rito. Os rituais, como
e de aprendizagem. (Colletta, 1980).
“memórias codificadas em ações”, facilitavam a
Este uso do termo folk media tem o gestão de situações conflituosas a nível
problema de pressupor uma intervenção top- individual e comunitário. Através da
down, e em definitiva uma conceção dos meios representação é possível vir a experimentar
de comunicação perigosamente próxima das aquilo que não é permitido. Quem participa do
teorias da agulha hipodérmica da sociologia ritual e da representação move-se numa
norte-americana da comunicação de massas. realidade paralela à do quotidiano, uma
Essas ideias, atualmente já foram ultrapassadas realidade onde se pode ser “outro”. Deste jeito,
pelas teorias da Comunicação para a Mudança as pessoas são transformadas de modo
Social (Gumucio, 2008, p. 23), nas que se provisório ou permanente (Shechner, 2002, p.
defende a necessidade de um envolvimento 45). A representação (fosse ritual ou não,
ativo das comunidades na transformação da sua considerada “arte” ou não) permitiria a
própria realidade 4 . As técnicas do Teatro do transformação da realidade social dos seus
Oprimido, hoje renomeado por diversos coletivos participantes. Não só do ponto de vista
como teatro das oprimidas, são empregues, individual (como nos rites de passage estudados
entre outras, como ferramentas de comunicação por Van Gennep) mas também coletivo.
participativa para a mudança em distintas ações Incidindo no mesmo, Augusto Boal salienta o
de intervenção social (Fernandez-Aballí, 2014). potencial gnosiológico da representação. Para o
Tais propostas parecem mais próximas de uma brasileiro, o teatro nasce no momento em que o
definição do meio de comunicação teatral como ser humano descobre que pode observar-se a si
ferramenta de uso autónomo das comunidades, próprio e, dessa maneira, começa a idealizar
em que os sujeitos e os conteúdos trocados são outros possíveis comportamentos distintos. A
tão importantes quanto o próprio canal. olhar-se, o ser humano compreende aquilo que
é, aquilo que não é, e aquilo que poderá vir a
Portanto, assumimos uma conceção do meio ser-se. É o único animal quem de se olhar num
teatral como dispositivo complexo, no que se
espelho imaginário, aquilo que Boal chama de
congregam uma série de interações, de técnicas
espaço estético. Pode ser espetador de si
e a agência de uns sujeitos autónomos, e que só
próprio sem deixar de ser ator. O espaço estético
tem a capacidade de estimular o conhecimento,
4 libertando a memória (sensações e ideias
Curiosamente, na sua recolha de práticas de comunicação para
a mudança social, o próprio Gumucio Dagron (2001) enumera previamente experimentadas) e a imaginação (a
só experiências em que o teatro é utilizado como meio “para” memoria transformada pelo desejo). Isso tudo
as comunidades, mas sem envolver a sua participação direta. A através dos sentidos e das emoções; não
barreira entre atores/atrizes e “audiências” (o uso do termo é apenas da razão (Boal, 2005, pp. 25-26).
sintomático), permanece intata em todas elas.

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Assim, o facto teatral nasce com a relação circular presente nas formas teatrais
Humanidade. Nas primeiras expressões teatrais primigénias. De facto, como vimos, considera
ator e espetador eram a mesma pessoa, como que o teatro nasceu quando o ser humano foi
 
acontecia no coro ditirâmbico primordial. Num quem de se visualizar a si próprio, e portanto,
momento posterior, alguns indivíduos representar outras realidades possíveis (Boal,
especializam-se como atores, mas isso, defende 2005, p.25). Todos os seres humanos estão,
Boal, não impede o resto dos seres humanos de defende, dotados das qualidades necessárias
conservarem a sua capacidade criativa. para fazer teatro. A divisão entre profissionais da
cena e espectadores acontece só muito depois,
A evolução das formas canônicas da arte
já na Grécia clássica. Nalgum momento, o teatro
teatral no Ocidente tendeu a acentuar a
se separou do povo e se colocou ao serviço da
diferença entre atores e espetadores, reduzindo
dominação. Para chegar a essas conclusões, o
os segundos para uma atitude passiva e acrítica
brasileiro passou por anos de experiência a
a respeito daquilo que era representado no
fazer teatro militante no Brasil e tomou contato
palco. Boal considera que as formas teatrais
com a pedagogia de Paulo Freire. Pedagogia e
dominantes (as controladas pelo poder),
teatro das oprimidas partem da mesma base: a
devieram um ritual imobilista, em que a relação
oprimida deve manter unha relação ativa com as
que se produz entre a cena e a plateia é de
mensagens, e para isso essas devem
osmose, de invasão de ideias e de valores. O
apresentarem-se-lhe problematizadas e não
público passivo é confrontado com imagens em
repetir o instituído, não reproduzir a ideologia.
que não tem qualquer opção de intervir. A
Da sua experiência no teatro militante, o
osmose implica uma relação desigual, de sujeito
dramaturgo tira a conclusão de que só uma
a objeto. Porém, assume Boal, ninguém é um
prática teatral distinta pode explorar os conflitos
objeto absoluto. Toda pessoa oprimida é unha
existentes nas relações sociais e políticas,
subversiva submetida. Por isso o seu método
revelando-os como produtos das contradições
teatral aspira a desmascarar esse
entre as normas, que geram as situações de
submetimento e libertar dele a oprimida (Boal,
opressão. Tal como o pedagogo, Boal pensa que
2004, p.63). O teatro das oprimidas enquadra-
a consciência da realidade provém da vida
se nos movimentos conducentes à prática de
quotidiana, mas desborda as situações vividas.
um teatro político empreendidos desde o século
E a pessoa oprimida introjeta a sombra dos
XIX. Augusto Boal, dramaturgo e diretor do
opressores, interioriza os valores deles. Para
Teatro da Arena de Rio de Janeiro, desenhou
transformar a sua realidade não bastará com
este sistema na década de 1970, a partir da
mudar a mentalidade das oprimidas, mas a
inquietação sobre o que pode fazer a peça
própria situação que as oprime. Na prática
artística pela realidade. A reposta é que o teatro
cénica, isso significa estabelecer as condições
é uma experiência do porvir, “un relato de
que lhes permitem descobrirem-se, verem-se em
anticipación que permite equivocarse en un
situação. O teatro, para Boal, não representa
lugar, la ficción, del que se puede salir, para
nem apresenta situações dramáticas que haja
actuar, después, correctamente en la realidad”.
que resolver; o teatro funciona como sendo a
(Vicente, 2013, p.338). O teatro constitui unha
realidade. Importa é não que a ação seja fictícia
estrutura de possibilidades, funciona como se
ou real, mas o facto de ela ser uma ação. Não se
fosse a realidade, revelando as condições de
representa, age-se. O objeto do teatro das
uma situação conflitual para a interferir e
oprimidas é uma situação de opressão (isto é,
contradizer. Desde premissas teóricas
na que alguém emprega seu poder e status para
semelhantes às de Brecht, o autor carioca
submeter alguém) que é analisada e
desenvolveu um conjunto de práticas cénicas
transformada numa situação de libertação.
que, segundo Carlos de Vicente, “constituye una
Constitui uma poética materialista para restituir
revolución total que, al contrario que otras
os meios de produção teatrais ao povo, do
estéticas, no deja indemne la estructura del
mesmo jeito que Freire tinha apelado para a
teatro” (2013, p.346). Para este autor, Boal foi
apropriação dos meios de produção de
além de Bertolt Brecht, pois, se bem que o
conhecimento ou Mario Kaplún (2002) dos
alemão tentou abolir as barreiras entre o palco e
meios de produção da informação. De espetador
o público e a relação conflitual entre atores e
passivo, o povo passa para ator, sujeito da
espetadores, já o brasileiro introduziu as
transformação da ação. Pretende-se transformar
inovações estruturais necessárias para que não
a espetadora em protagonista, que não se limite
existam nem atores nem público, mas atuantes
a reflexionar sobre o passado, mas a preparar o
e observadores ativos e ativas. A proposta
futuro. Como explica o próprio Boal (2005, pp.
metodológica de Boal aspira a restabelecer a
12-13):

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Primeiro se destrói a barreira entre atores e pelos elementos que respeitam ao dispositivo
espectadores: todos devem representar, todos cénico (iluminação, cenografia, figurinos...). Ao
devem protagonizar as necessárias erigir as subalternas em sujeitos do teatro das
  transformações da sociedade (...). Depois, destrói- oprimidas, a mediação teatral deixa de fazer
se a barreira entre os protagonistas e o Coro:
todos devem ser, ao mesmo tempo, coro e
sentido. Não se lhe dá voz a quem não a tem
protagonistas (...). Assim tem que ser a “Poética falando dele, o teatro é a linguagem mesma de
do Oprimido”: a conquista dos meios de produção que se devem munir as oprimidas (Boal, 2005,
teatral. p.275). Esse método teatral acaba com o teatro
como aparelho de dominação, de produção de
O conjunto de práticas cénicas proposto por sentido nas mãos do poder. O teatro das
Boal assenta na rejeição da poética aristotélica, oprimidas dinamiza a componente subversiva
tal como tinha feito Brecht. Ao contrário da inerente a todo sujeito submetido.
relação vicária que constitui a empatia (pela que
as emoções nos penetram) própria do teatro Nesse sentido, além de supor a eliminação
tradicional, Boal defende uma relação simpática da divisão do trabalho imperante até ao
(nós guiamos), pela qual a oprimida cria momento na cena, o teatro das oprimidas
(ativamente) as imagens das suas opressões. Se representa um regresso para formas
no teatro de base aristotélica as emoções parateatrais.
alheias nos invadiam por osmose, neste novo
teatro somos nós, como espetadoras, a 5. ATUALIDADE E DILEMAS DO TEATRO
projetarmos as nossas próprias emoções na DAS OPRIMIDAS
cena. Aquilo que Boal denomina metaxe (a
pertença simultânea a dois mundos), constitui a Surgido no Brasil na década de 1970, o
reação gnosiológica que se pretende gerar no teatro das oprimidas (TO, nas suas siglas) faz
teatro das oprimidas. A metaxe consistiria na parte de um conjunto de movimentos que, por
criação por parte do indivíduo das imagens da toda a América Latina, tratavam de restituir as
sua própria realidade oprimida (Boal, 2005, vozes dos povos face à colonialidade e aos
pp.64-65). A espetadora cria a imagem da sua governos autoritários. A vontade de recuperar as
opressão, como transubstanciação artística da formas teatrais primigénias inspirou
sua realidade. Ao contrário do dirigismo coetaneamente movimentos como o teatro de
convencional, onde a espetadora é conduzida criação coletiva na Colômbia ou o Teatro
pela ação, já no teatro das oprimidas é a Comunitário na Argentina, que pretendiam
espetadora a “mover” a cena. quebrar a unidireccionalidade própria do modelo
O pressuposto de base do teatro das ocidental de comunicação cénica. Augusto Boal,
oprimidas consiste nisso: é a própria oprimida (e que tinha começado por desenvolver formas
não uma atriz ou ator no seu nome) a próximas do agit-pro com o seu Teatro de Arena,
desencadear uma ação (realizada na ficção chegou à conclusão, no seu encontro com
teatral) que lhe dá a capacidade de se auto- públicos subalternos, de que as pessoas em
ativar para realizar essa mesma ação na vida cena deviam estar disponíveis para correrem os
real (Boal, 2004, p.68). A diferença do mesmos riscos que os protagonistas das
esvaziamento das emoções da espetadora histórias encenadas (Boal, 2004). Durante o seu
durante o espetáculo que provoca a catarse, exílio no Chile e no Peru realizou distintas
aqui trata-se de a empoderar para que aja e experiências de alfabetização a partir das ideias
transforme a realidade dela. . Em palavras de de Paulo Freire que lhe serviram para
Vicente (2013, p.16): desenvolver e experimentar com comunidades
subalternas a viabilidade do seu método. A
[Boal] liquidó la práctica artística e ideológica de
primeira das técnicas desenvolvidas foi a do
la interpretación burguesas y del sujeto de la
interpretación (el actor) para establecer las bases teatro fórum, onde se animava ao público a
de una práctica vital y liberadora con un sólo intervir ativamente na cena representada,
sujeto de la interpretación (el ser humano en interpretando a solução proposta ao conflito
situación). apresentada. Posteriormente, e ao longo de
distintas oficinas em numerosos países de
A proposta de Boal constitui aliás uma América Latina e Europa, outras técnicas iriam
rejeição da mediação, “en una época surgindo: teatro legislativo, teatro imagem,
justamente en que las mediaciones (desde la teatro invisível, arco íris do desejo...
televisión hasta la burocracia estatal) resultan
las veraderas productoras de la realidad” Este tipo de ferramentas aspiram a ser
(Vicente, 2013, p.349). Por isso não se interessa apropriadas por todas as subalternas em todas

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artÍculos

Teatro do Oprimido e comunicação das subalternas


as periferias do mundo (nos distintos “suis”) De entre as experiências em que o método
como meio de comunicação. Porém, a sua está a cumprir os seus objetivos caberia
aplicação é minoritária, restrita para contextos destacar a de Jana Sanskriti, organização
 
militantes, a práticas de organizações não assentada na Bengala Ocidental e que na
governamentais ou instituições de tipo atualidade conta com mais de 25 equipas de
assistencial. Julian Boal, fundador do grupo de homens e mulheres a praticar o teatro das
teatro das oprimidas de Paris, tem analisado a oprimidas. Sanjoy Ganguly, diretor artístico e
deriva do movimento, alertando para o facto de fundador do projeto, achou nas ideias de Boal
a expansão e diversificação atual5 ter provocado uma resposta ao questionamento que, por volta
uma desativação do seu potencial subversivo. de 1990, ele próprio começou a fazer do seu
Mesmo se tem produzido, nalgum caso, uma trabalho artístico como orientador dum grupo de
incorporação do TO à dominação, ao colocar as teatro militante no rural bengali. Consciente da
técnicas ao serviço dos interesses de relação vertical que se estabelecia no processo
corporações e de instituições dominantes. Uma criativo entre os ativistas chegados da cidade e
das críticas de Julian Boal à prática atual do TO os habitantes das aldeias, Ganguly procurou
na França, diz respeito ao idealismo: a conceção implicar ativamente as subalternas na própria
de uma natureza humana “essencial” faz com criação dos roteiros, além de propiciar, durante
que as atitudes dos personagens em cena as representações, a participação ativa do
dependam de circunstâncias morais, resolúveis público. O Teatro do Oprimido disponibilizou as
a nível individual e não materiais ou coletivas. técnicas precisas para tanto, e Jana Sanskriti
Por outro lado, a profissionalização de muitos atingiu um grande sucesso em toda a região.
destes grupos leva atrizes e atores a tornarem a Entre as problemáticas abordadas pelas
ser esse elemento neutro que se limita a distintas equipas salientam-se todas aquelas de
traduzir na cena as opressões de outros, que sofrem as mulheres do rural e que as
incumprindo um dos preceitos básicos do tornam duplas subalternas: pela condição de
método. Mais grave é o facto de alguns grupos precariedade económica em que vivem e pela
virem a servir os agentes da opressão. Boal opressão patriarcal interiorizada. Jana Sanskriti,
refere casos em que as instituições encarregam coletivo impulsado por militantes de origem
aos grupos de Teatro do Oprimido que ponham burguesa aderidos –em termos de Paulo Freire-
em cena os problemas que lhes preocupam às às classes subalternas, já atingiu o objetivo
instituições, e não tanto os problemas que formulado por Boal: a apropriação da
afetam e preocupam às pessoas usuárias das ferramenta teatral pelos próprios sujeitos
mesmas. “On passe d’un outil qui se voulait oprimidos e o seu empoderamento graças à
révolutionnaire à une entreprise privée de conscientização que a encenação dos seus
déminage social”. (Boal, 2007, p. 225). Em conflitos quotidianos desencadeia. O caminho
geral, o filho do dramaturgo lamenta como para chegar até aí, seguindo o relato de Ganguly
muitos desses grupos caíram na reglorificação (2010), precisou dum lento processo de
da arte em detrimento das lutas concretas, conscientização do grupo impulsor, que passou
sendo poucas as companhias que mantêm viva duma atitude paternalista respeito daqueles a
a ideia de que o teatro fórum deve ser um quem pretendiam libertar para uma admiração
ensaio da revolução. No entanto, este tipo de pela força com que resistem a dureza da sua
derivas têm a sua causa na própria natureza do existência e o seu talento e criatividade.
método, formulado como sistema vazio que
A opressão de género, que Boal detetou
cabe às subalternas encher com as suas
como estando omnipresente, juntamente com
vivências e problemáticas. Esta mesma
outras opressões, no seu trabalho com grupos
característica que, como reconhece Julian Boal,
de teatro das oprimidas de todo o mundo
permitiu alguns grupos empregar o método com
(Spychaj, 2014, p. 47), centra na atualidade
finalidades espúrias, segue a fazer possível o
algumas experiências nas que o método
seu uso por numerosos grupos no mundo que
continua a mostrar a sua viabilidade. Os
fazem um trabalho “precioso e insubstituível”
Laboratórios Madalena (ou Magdalena, nos
(Julian Boal, 2007, p. 227).
territórios de língua espanhola), surgidos do
Grupo de Teatro do Oprimido do Rio de Janeiro e
posteriormente estendidos a outros países de
Europa e América Latina, constituem um espaço
5
O site www.theatreoftheoppressed inclui um diretório com exclusivo de mulheres onde estas experimentam
mas de 140 grupos de teatro das oprimidas em todo o mundo, coletivamente com seus corpos para tomar
mas provavelmente um número muito maior operam sem consciência das opressões depositadas neles. O
estar recenseados.

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artÍculos
Comba Campoi García

corpo feminino, depois de ter permanecido o nome do que praticavam, tendo em vista que o
guardado por séculos, protegido e censurado foco de nosso trabalho era justamente entender
pelo corpo masculino, passou hoje a cumprir um as relações de gênero no mundo contemporâneo
 
papel protagonista quer seja na comunicação (...). Passou a ser estranho, portanto, criticar em
nossas atividades a dicotomia do mundo entre
social, quer no nosso imaginário, convertido no “homens” e “mulheres” e, ao mesmo tempo, dizer
melhor veículo para vender qualquer produto. que fazíamos “teatro do oprimido”, assim, no
Por isso nos laboratórios Madalena a pesquisa masculino. Coringas que iniciaram grupos apenas
abordada coletivamente se centra no corpo. de mulheres, passaram a chamá-los de Teatro da
Segundo a sua criadora, Alessandra Vannucci, Oprimida, sendo esta uma das estratégias de
os laboratórios socorrem-se do arsenal de questionamento do que por muito tempo parecia
técnicas do TO para analisar as opressões naturalizado.
vividas por mulheres que sejam percetíveis nos
seus corpos, além de procurar alternativas para 6. CONCLUSSÕES
resolver essas opressões (Spychak, 2014, p.
50). O trabalho exclusivo com mulheres Os dois exemplos descritos, Jana Sanskriti e
possibilita a criação dum espaço livre da olhada Madalena, tornam evidente o viço do teatro das
masculina, que permite às participantes criarem oprimidas tal que ferramenta de comunicação
um espaço de identidade e facilita a sua dos sujeitos subalternos. Nos dois casos, a
autorrepresentação. Numa segunda fase, o presença das mulheres, com as suas múltiplas
grupo encena peças de teatro fórum perante um opressões, tem contribuído a redefinir a
grupo misto de “especta-atores”. A experiência subalternidade em termos mais inclusivos. Um
dos laboratórios Ma(g)dalena, na atualidade passo fundamental para a consecução da
constituídos em rede internacional, vêm mostrar tomada de consciência pelas próprias
a capacidade do sistema do Teatro do Oprimido subalternas da sua situação de opressão,
para adaptar-se às várias formas e perceções da objetivo último do método.
subalternidade. De jeito eloquente, os distintos
grupos de Ma(g)dalenas focam-se no Apesar das suas limitações e das derivas
descobrimento das participantes como denunciadas, pode-se concluir que o sistema
mulheres, do seu “eu” enquanto mulheres. O desenvolvido por Augusto Boal mantém a
feito de manterem adormecida a sua condição viabilidade como ferramenta, ou meio de
de género favorece a interiorização da opressão comunicação dos grupos subalternos a nível
e mesmo a sua posição como opressoras. global. É um meio de comunicação, no sentido
de facilitador das interações entre sujeitos que
O desenvolvimento de experiências diversas foi defendido acima. A ferramenta foi desenhada
de trabalho com o “arsenal metodológico” para recuperar a horizontalidade da
proposto por Augusto Boal tem contribuído na comunicação, embora também são possíveis
atualidade para a problematização da própria aplicações espúrias.
definição da subalternidade. Se o próprio
dramaturgo descartou a dicotomia opressores- Evidentemente, as experiências aqui
oprimidos, assumindo nalgum momento da sua referidas têm, pelo geral, uma abrangência
trajetória o pressuposto foucaultiano de que limitada. O teatro, como meio de comunicação
qualquer pessoa é um opressor em potência não mediado tecnologicamente, só pode chegar
(Spychak, 2014, p.24), já algumas das práticas àquelas pessoas que participam no momento e
atuais do seu sistema teatral centram-se no lugar da representação. Além do peso que
justamente em detetar essas opressões pode manter nalguns contextos, como o rural
introjetadas nas próprias oprimidas. A questão bengali onde opera Jana Sanskriti, o teatro
de género perpassa ainda outras formas de constitui uma expressão cultural minoritária,
opressão (racial, económica) e foi sentida como reservada para elites burguesas ou coletivos
central por algumas subalternas que militantes. É inegável que o teatro deixou de ser
encontraram no TO uma fórmula de um meio de comunicação habitual entre as
autorrepresentarem-se a partir da olhada de subalternas do mundo, mais habituadas a
outras subalternas com vivências semelhantes. participarem em chats do que em encenações
Não por acaso, foi desde os grupos de dramáticas. Num mundo em que as tecnologias
Ma(g)dalenas que se promoveu uma mudança atravessam já a experiência subalternizada,
no próprio nome do sistema teatral, tal e como recuperar ferramentas não mediadas
explica Nunes (2015, p.34): tecnologicamente resulta, certamente,
controvertido. É improvável os sujeitos
Era previsível que em algum momento feministas, subalternos apropriarem-se, de sua iniciativa
praticantes do Teatro do Oprimido, questionariam
própria, um meio como o teatral, que hoje lhes é

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artÍculos

Teatro do Oprimido e comunicação das subalternas


alheio. A resposta parece passar por uma § Nunes, A. (2015). Poéticas Combativas: Teatro da
complementaridade de meios e de linguagens, Oprimida e Feminismo Negro (Tese de Mestrado
de forma que as novas tecnologias inédita). Instituto de Artes, Unesp, São Paulo.
 
(nomeadamente a Internet) venham a colaborar § Pasquali, A. (2007) Comprender la comunicación.
com o processo comunicativo teatral. Mas isto Barcelona: Gedisa.
deve ser feito respeitando o aqui e agora, a
relação comunicativa que se produz no § Kaplún, M. (2002). Una pedagogía de la
presente, condição necessária na comunicação comunicación. El comunicador popular. La Habana:
teatral. A imediatez que a Internet possibilita faz Caminos.
com que vejamos possível essa colaboração § Schechner, R. (2002) Performance studies. An
entre a comunicação social. Portanto, a Introduction. London: Routledge.
validade do teatro das oprimidas como meio das
§ Schechner, R e Appel, W. (eds.) (1989) By means of
subalternas passa necessariamente por essa
Performance. Intercultural studies of theatre and
aliança com as novas formas de comunicação
ritual. Cambridge University Press.
em rede, horizontal e distribuída, para conseguir
que as subalternas se apropriem § Spivak, G. (2008). Estudios subalternos.
verdadeiramente do meio. Deconstruyendo la Historiografía. Em Mezzadra
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fundamentales (pp. 33-69). Madrid: Traficantes de
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