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Capítulo I
A ASPIRAÇÃO HUMANA
Ela marcha em direção à meta daqueles que vão mais adiante, é a primeira na
eterna sucessão de alvoradas por chegar; Usha se expande manifestando tudo o
que vive, despertando alguém que morreu … Qual é seu alcance, quando
harmoniza as alvoradas que já brilharam com as que agora devem refulgir? Deseja
as antigas manhãs e as enche de luz; projetando para diante sua iluminação, entra
em comunicação com o resto do que está por vir.
Kutsa Angirasa – Rig Veda [1]
São triplos aqueles supremos nascimentos desta força divina que está no mundo;
são verdadeiros, são desejáveis; se desloca no Infinito e brilha puro, luminoso e
pleno… O que é imortal nos mortais, e dotado da verdade, é um deus, estabelecido
interiormente como uma energia, que opera em nossos poderes divinos… Torna-te
espiritualmente elevada, oh Força, atravessa todos os véus, manifesta em nós as
coisas de deus.
Vamadeva – Rig Veda [2]
A primitiva preocupação do homem em seus pensamentos despertos, e o que parece sua
inevitável e última inquietude - pois ela sobrevive aos mais prolongados períodos de
ceticismo e retorna após cada banimento— é também a maior preocupação que seu
pensamento pode conceber. Manifesta-se no prenúncio da Divindade, no impulso em
direção à perfeição, na busca da pura Verdade e deleite não misto, no sentido de uma
secreta imortalidade. As antigas auroras do conhecimento humano nos legaram o
testemunho desta constante aspiração; hoje em dia vemos uma humanidade - saciada
mas não satisfeita pela análise vitoriosa das exterioridades da Natureza - preparando-
se para retornar a seus primitivos anelos. A fórmula primitiva da Sabedoria promete
ser a última: Deus, Luz, Liberdade, Imortalidade.
[3] A palavra inglesa é “egoistic” que poderia ser traduzida por “egoística” se estivesse admitida
pela R.A.E., e reservar o termo “egoísta” para sua correspondente inglesa “egoist”, mas os termos
aceitados na língua espanhola, como “egocêntrica” ou “egotista”, não são melhores, o termo
optado para o espanhol: “egoísta”, e há que se ter em conta esta nota, pois o termo aparece
frequentemente.
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Capítulo II
AS DUAS NEGAÇÕES
1
A negação materialista
Notas:
(*) Vanishing-point significa ponto de fuga, se retiramos o traço fica “vanishing point” – ponto de desaparecimento.
Se o autor aplicou-se em colocar o traço, é porque, evidentemente, queria ressaltar a diferença, e não quer dizer,
como sucede em alguma tradução, que o Tempo e o Espaço desaparecem (primeiro dos asteriscos).Preferimos deixar
a tradução literal, já que essa expressão pode sugerir diversas interpretações. Ponto de fuga, para o desenho técnico,
na projeção cônica, é o ponto sobre o horizonte, para o qual se dirigem todas as linhas horizontais, quebrando o seu
paralelismo, para dar a sensação de profundidade, e, ao mesmo tempo, é o ponto-de-vista do observador; seria, ao
mesmo tempo, o zero e o infinito. A contração do campo espaço-temporal parece indicar uma qualidade do mesmo,
como a possibilidade de acelerar a evolução humana, acelerando a chegada do futuro.
“Seu símbolo, o círculo, representa ao mesmo tempo nada e tudo; é o símbolo do infinito ilimitado; e um círculo pode
ser definido como uma única linha não-dividida e não-terminada, ou como um número infinito de linhas
infinitamente curtas. Os finais se encontram, não há nenhuma diferença essencial entre o infinitamente grande e o
infinitesimal. O ponto zero é o ponto de fuga, o laya ou estado neutro. Em matemática, esta é a posição neutra entre
a série de números negativos e positivos. É também o estado neutro da matéria entre dois planos; quando a matéria
física é reduzida a zero ou ao estado laya, ela está pronta a manifestar-se sobre o plano seguinte, mais alto, ou vice-
versa. O mesmo se aplica à consciência e a seus planos.
Damos importância a esta nota porque, nos últimos parágrafos deste capítulo, a expressão “vanishing-point”, que só
aparece três vezes em toda “A Vida divina”,precisamente aparece as citadas vezes na página anterior a esta nota, sem
voltar a ser citada em toda a obra, havendo sido sublinhada pelo tradutor, não aparecendo esse sublinhado no
original.
[1] III.1, 2.
[4] Isso difere do conhecido; também está acima do desconhecido - Kena Upanishad. I.3.
[7] Um dos nomes de Vishnu, que, como o Deus no homem, vive constantemente associado em
unidade dual com Nara, o ser humano.
[10] Svárajya y Sámrájya, o duplo objetivo proposto a si mesmo pelo Yoga positivo dos antigos.
[11] Sálokya-mukti, liberação mediante existência consciente em um mundo do ser com o Divino.
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Capítulo III
AS DUAS NEGAÇÕES
2
A renúncia do asceta
Pois do outro lado da consciência cósmica existe uma consciência ainda mais
transcendente, acessível para nós - transcendente não só para o Ego como também para
o próprio Cosmos - contra a qual o universo parece sobressair-se como uma pequenina
pintura contra um incomensurável fundo. Ela (essa consciência) suporta a atividade
universal - ou talvez apenas a tolera; Isso (ela) abraça a Vida em Sua vastidão - ou então
a rejeita, em Sua Infinitude.
Que justificação, lógica ou experimental, pode ser dada para apoiar um extremo que
não encontra uma lógica convincente e uma experiência igualmente válida no outro
extremo? O mundo da Matéria é afirmado pela experiência dos sentidos físicos, que,
por serem eles mesmos incapazes de perceber algo imaterial ou não-organizado como a
Matéria bruta, iriam persuadir-nos de que o suprassensível é irreal. Este erro rústico
ou vulgar de nossos órgãos corporais não ganha valor por ser promovido ao campo do
raciocínio filosófico. Sua pretensão, obviamente, é infundada. Mesmo no mundo da
Matéria, há existências das quais os sentidos físicos são incapazes de tomar
conhecimento. Mas a negação do suprassensível, considerando-o necessariamente uma
ilusão ou uma alucinação, depende da constante associação sensorial do real com o
materialmente perceptível, o que é também uma alucinação. Presumindo todo o tempo
o que ele procura estabelecer, cai no vício do argumento em círculos e não tem valor
como raciocínio imparcial.
Mas os mundos não são se não molduras para nossa experiência e sentidos, apenas
instrumentos de experiência e conveniências. A Consciência é o grande fato subjacente,
a testemunha universal para a qual o mundo é um campo de ação, e os sentidos,
instrumentos. Para essa testemunha, os mundos e seus objetos apelam por sua
realidade, pois tanto o único mundo como os muitos mundos, não temos outra evidência
de que existam, tanto o físico como o suprafísico. Argumentou-se que isso não é uma
relação peculiar entre a constituição da humanidade e sua perspectiva de um mundo
objetivo, e sim a verdadeira natureza da existência; toda existência fenomênica
consiste em uma consciência observadora mais, e a Ação não pode proceder sem a
Testemunha, porque o Universo só existe na ou para a consciência que observa, e não
tem realidade independente. Foi argumentado, em resposta, que o universo material
desfruta de uma auto-existência eterna; ele estava aqui antes que a vida e a mente
fizessem sua aparição: ele irá sobreviver depois que elas tiverem desaparecido e já não
estejam perturbando - com suas dispustas efêmeras e pensamentos limitados - o ritmo
eterno e inconsciente dos sóis. A diferença, tão metafísica em aparência, é porém de
suprema importância prática, pois ela determina a visão que o homem tem da vida, o
objetivo ao qual se dirigirão seus esforços e o campo no qual ele circunscreverá suas
energias. Pois aí surge a questão da realidade da existência cósmica e, ainda mais
importante, a questão do valor da vida humana.
E no entanto, a questão não pode ser resolvida pelo argumento lógico com base nas
informações de nossa existência física ordinária; pois nessas informações há um hiato de
experiência que torna qualquer argumento inconclusivo. Não temos, normalmente nem
a experiência definitiva de uma mente cósmica ou supramente não-ligada à vida do
corpo individual, nem, por outro lado, nenhum limite firme de experiência que nos
justificaria, supondo que nosso Eu subjetivo realmente depende da moldura física e não
pode nem sobreviver a ela nem alargar-se além do corpo individual. Só por uma
extensão do campo de nossa consciência ou com um inesperado aumento de nossos
instrumentos de conhecimento a antiga querela poderá ser decidida.
Mas este Ser Consciente que é a verdade da infinita Supramente, é mais que o Universo
e vive independentemente em Sua inexpressiva infinitude, bem como nas harmonias
cósmicas. O mundo vive através Dele; Ele não vive através do mundo. E, assim como
podemos entrar na consciência cósmica e ser uno com a existência cósmica, também
podemos entrar na consciência que transcende ao mundo e tornarmo-nos superiores a
toda a existência cósmica. Então ressurge a questão que nos ocorreu em princípio, se
essa transcendência é também, necessariamente, uma renúncia. Que relação tem este
universo com o Além?
Pois, nos portões do transcendente acha-se aquele Espírito simples e perfeito descrito
nos Upanishads, luminoso, puro, sustentando o mundo mas inativo nele, sem fibras de
energia, sem imperfeição de dualidade, sem marcas de divisão, único, idêntico, livre de
toda a aparência de divisão ou de multiplicidade - o puro Eu dos Adwaitins [3], o
inativo Brahman, o transcendente Silêncio. E a Mente, quando passa por estes portões
repentinamente, sem transições intermediárias, recebe um senso de irrealidade do
mundo e da única realidade do Silêncio, que é uma das mais poderosas e convincentes
experiências das quais é capaz a mente humana. Aqui, na percepção desse puro Eu ou
do Não-Ser por trás dele, temos o ponto de partida para a segunda negação ― paralela,
no outro pólo, ao materialista, porém mais completa, mais definitiva, mais perigosa em
seus efeitos sobre os indivíduos ou coletividades que ouvem seu poderoso chamado para
o deserto — a renúncia do asceta.
É essa a revolta do Espírito contra a Matéria que, por dois mil anos — desde o Budismo
perturbou o equilíbrio do velho mundo ariano — dominou crescentemente a mente
indiana. Não que o senso da ilusão cósmica seja o total do pensamento indiano; há
outras afirmações filosóficas, outras aspirações religiosas. Tampouco um ajuste entre os
dois termos foi tentado mesmo pelas filosofias mais radicais. Mas todos viveram na
sombra da grande Renúncia e do término da vida, pois essa é a atitude do asceta. A
concepção da vida foi impregnada com a teoria budista da cadeia do karma e com a
conseguinte antinomia da escravidão e liberação, escravidão por nascimento, liberação
por cessação do nascimento. Por isso, todas as vozes se juntaram num grande consenso:
não é neste mundo de dualidades que acontecerá o nosso reinado celestial, senão no
mais além, nas beatitudes do eterno Vrindavan [4] ou na superior bem-aventurança de
Brahmaloka [5], além de todas as manifestações nalgum inefável Nirvana [6], ou onde
toda a experiência individual se perde na indistinta unidade da Existência indefinível. E
por muitos séculos, um grande exército de brilhantes testemunhas, santos e mestres,
nomes sagrados para a memória da Índia e dominantes na imaginação indiana,
mantiveram sempre o mesmo testemunho e acrescentaram sempre o mesmo sublime e
distante apelo - renúncia como o único caminho para o conhecimento, a aceitação da
vida física seria o ato do ignorante, a cessação dos nascimentos como o uso correto do
nascimento humano, o chamado ao Espírito, o recuo em relação à Matéria.
Para uma era isenta de simpatia para com o espírito ascético — e através de todo o
resto do mundo, a hora do Anacoreta (religioso que vive em solidão) parece ter passado
ou está passando ―é fácil atribuir esta grande tendência à falta de energia vital numa
antiga raça esgotada em razão de seu fardo, sua vasta contribuição ao avanço comum;
exausta por sua multifacetada contribuição ao conjunto do esforço humano e ao
humano conhecimento. Mas vimos que isto corresponde a uma verdade na existência,
um estado de realização consciente que se encontra no verdadeiro ápice de nossas
possibilidades. Na prática, também o espírito ascético é um elemento indispensável da
perfeição humana, e não se pode evitar até mesmo a sua afirmação isolada até que a
espécie tenha, por outro lado, liberado seu intelecto e seus hábitos vitais da sujeição a
um sempre insistente animalismo.
[1] Versos 2, 7.
[2] Súksma indriya, órgãos sutis, existentes no corpo sutil (súksma deha) e o meio da
visão e experiência sutis (súksma drsti).
[3 ] Os Monistas Vedânticos.
[5] O supremo estado da existencia, consciência e beatitude puras, alcançável pela alma
sem a completa extinção no Indefinível.
[6] Extinção, não necessariamente de todo o ser, senão do ser tal qual o conhecemos;
extinção do ego, do desejo, e da ação e mentalidade egoísta.
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Capítulo IV
A REALIDADE ONIPRESENTE
Então, posto que admitimos tanto o clamor do Espírito puro manifestando em nós sua
absoluta liberdade, como o clamor da Matéria universal por ser o molde e a condição de
nossa manifestação, devemos encontrar uma verdade que possa
reconciliar inteiramente estes antagonistas e proceda a ambos sua porção merecida na
Vida e sua merecida justificação no Pensamento, sem privar-lhes de nenhum de seus
direitos, sem negar a soberana verdade da qual mesmo seus erros, mesmo a
exclusividade de seus exageros extraem uma força tão constante. Pois, onde quer que
haja uma afirmação extrema que faça tão poderoso apelo à mente humana, podemos
estar certos de que estamos em presença não de um mero erro, superstição ou
alucinação, mas de um fato soberano, disfarçado, que exige nossa fidelidade e se vingará
se for negado ou excluído. Aqui reside a dificuldade de uma solução satisfatória e a
fonte dessa carência de finalidade que persegue todos os compromissos entre Espírito e
Matéria. Um compromisso é um negócio, uma transação de interesses entre dois
poderes em conflito; não é uma verdadeira reconciliação. A verdadeira reconciliação
procede sempre pela compreensão mútua que conduz a uma espécie de íntima unidade.
Por isso, é através da máxima unificação possível entre Espírito e Matéria que melhor
chegaremos a sua reconciliável verdade, e assim, a uma base mais forte para uma
prática reconciliatória entre a vida interior do indivíduo e sua existência externa.
Na luz desta concepção, podemos perceber a possibilidade de uma vida divina para o
homem no mundo, que irá de imediato justificar a Ciência, revelando um sentido e uma
meta inteligível para a evolução cósmica e terrestre, e irá realizar, pela transfiguração
da alma humana em divina, o grande sonho ideal de todas as religiões elevadas.
E o que dizer desse silencioso Eu, inativo, puro, autoexistente, autossatisfeito, que se
apresente a nós como a permanente justificação do asceta? Aqui também a harmonia, e
não a oposição irreconciliável, deve ser a verdade iluminadora. O silencioso e ativo
Brahman não são entidades diferentes, opostas e irreconciliáveis, uma negando, a outra
afirmando a ilusão cósmica; eles são dois aspectos do mesmo Brahman, o positivo e o
negativo, e cada um é necessário ao outro. É fora do Silêncio que a Palavra que cria os
mundos sempre atua; pois a Palavra expressa aquilo que está semiescondido no
Silêncio. É a eterna passividade que torna possível a perfeita liberdade e a onipotência
de uma eterna atividade divina em inúmeros sistemas cósmicos. Pois as derivações dessa
atividade obtêm suas energias e seu ilimitável poder de variação e harmonia, do
imparcial sustentáculo do Ser imutável, de seu consentimento a esta infinita
fecundidade de sua própria dinâmica Natureza.
Mas novamente verificamos que estamos sendo iludidos por palavras, enganados pelas
vigorosas oposições de nossa mentalidade limitada, com sua tendência a confiar em
distinções verbais, como se elas representassem perfeitamente verdades básicas, e na
interpretação de nossas experiências supramentais nos termos dessas intolerantes
distinções. Não-Ser é apenas uma palavra. Quando examinamos o fato que ela
representa, já não estamos mais seguros de que a não-existência absoluta tenha
qualquer chance, assim como o infinito Eu, significar, com esse Nada, algo além do
último termo ao qual podemos reduzir nossa mais pura concepção e nossa mais abstrata
ou sutil experiência de ser real como o conhecemos enquanto neste universo. Esse Nada,
então, é alguma coisa além da concepção positiva. Erigimos uma ficção do nada com o
intuito de ultrapassar, pelo método da exclusão total, tudo o que podemos conhecer e
que conscientemente somos. Na realidade, quando examinamos de perto ao Nihil de
certas filosofias, começamos a perceber que ele é um zero que é Tudo ou um indefinível
Infinito que aparece, à mente, como um vazio, pois a mente só capta construções finitas,
mas ele, de fato, a única Existência verdadeira [3] .
E quando dizemos que do Não-Ser surgiu o Ser, percebemos que estamos falando em
termos de Tempo, sobre algo que está além do Tempo. Pois o que era aquela portentosa
data na história do eterno Nada em que o Ser nasceu dele, ou quando virá essa data
igualmente formidável em que um irreal tudo irá recair no eterno vazio? Sat e Asat, se
ambos têm de ser afirmados, devem conceber-se como obtidos simultaneamente. Eles
permitem um ao outro, mesmo se recusam misturar-se. Ambos, já que devemos falar
em termos de Tempo, são eternos. E quem irá persuadir o Ser eterno de que ele não
existe e que só o eterno Não-Ser eterno?
O puro Ser é a afirmação, pelo Incognoscível, de Si mesmo como base livre de toda
existência cósmica. Damos o nome de Não-Ser a uma afirmação contrária de Sua
liberdade em relação a toda existência cósmica - liberdade, quer dizer, em relação a
todos os termos positivos da existência real nos quais a consciência pode formular-se no
universo, inclusive o mais abstrato e o mais transcendente. Não os nega como real
expressão de Si mesmo, mas nega Sua limitação mediante todo ou qualquer tipo de
expressão. O Não-Ser permite o Ser, bem como o Silêncio permite a Atividade. Através
dessa negação e afirmação simultâneas, que não são mutuamente destrutivas, mas sim
complementares como todos os contrários, uma à outra como todos os contrários, a
simultânea compreensão do auto-Ser como uma realidade e do Incognoscível, que está
além, como a mesma Realidade, torna-se possível para alma humana desperta. Assim é
que foi possível para Buda atingir o estado do Nirvana e atuar poderosamente no
mundo, impessoal em sua consciência interna, em sua ação a mais poderosa
personalidade que sabemos ter vivido e produzido resultados sobre a Terra.
Quando ponderamos sobre essas coisas, começamos a perceber quão débeis, em sua
violência auto-afirmativa, e quão confusa, em sua enganosa diferenciação, são as
palavras que usamos. Começamos também a perceber, que as limitações que impomos
ao Brahman surgem de uma estreiteza de experiência da mente individual, que se
concentra em um só aspecto do Incognoscível e age diretamente no sentido de negar ou
denegrir todo o resto. Também tendemos a traduzir demasiado rigidamente o que
concebemos ou sabemos do Absoluto, nos termos de nossa própria e particular
relatividade. Afirmamos o Único e Idêntico discriminando apaixonadamente e fazendo
valer o egoísmo de nossas próprias opiniões e experiências parciais contra as opiniões e
experiências parciais de outros. É mais prudente esperar, aprender, crescer, e, já que
somos obrigados, em atenção à nossa auto-perfeição, a falar destas coisas que a fala
humana não pode expressar, buscar a mais ampla, a mais universal afirmação possível,
e estabelecer com ela a máxima e mais compreensiva harmonia.
Reconhecemos, então, que é possível para a consciência do indivíduo entrar num estado
em que a existência relativa parece dissolver-se e mesmo o Eu parece ser uma concepção
inadequada. É possível tombar num Silêncio além do Silêncio. Mas isto não é a
totalidade de nossa experiência definitiva, nem a simples e totalmente excludente
verdade. Pois descobrimos que este Nirvana, essa auto-extinção, ao mesmo tempo que
concede paz absoluta e liberdade à alma, no seu interior, consiste, na prática, em uma
ação isenta mais efetiva. Essa possibilidade de uma impessoalidade inteiramente imóvel
e de uma Calma vazia o interior, realizando exteriormente o trabalho das verdades
eternas - Amor, Verdade e Retidão - foi talvez a real essência da doutrina de Buda - essa
superioridade com respeito ao ego e à cadeia de trabalhos pessoais e à identificação com
a forma mutável e a idéia, e não o insignificante ideal do escape à aflição e ao sofrimento
do nascimento físico. Em todo caso, como o homem perfeito combinaria em si o silêncio
e a atividade, assim também a alma completamente consciente voltaria a alcançar a
absoluta liberdade do Não-Ser sem por isso perder seu poder sobre a Existência e o
universo. Assim ela reproduziria em si mesma, perpetuamente, o eterno milagre da
divina Existência no universo, porém indo além dele e até mesmo - como se estivesse -
além de si mesma. A experiência oposta só poderia ser uma concentração da
mentalidade do indivíduo sobre a Não-existência, e o resultado seria um esquecimento a
retirada pessoal da atividade cósmica, ainda e sempre agindo na consciência do Ser
Eterno.
Se dessa forma aceitamos uma base positiva para nossa harmonia - e em que outra
harmonia poderia ser fundada?— As diversas formulações conceituais do
Incognoscível, cada uma representando uma verdade além do conceito, devem ser
compreendidas, na medida do possível, em sua relação mútua e em seu efeito sobre a
vida, não em separado, não exclusivamente, não formuladas para destruir ou minimizar
indevidamente todas as outras afirmações. O Monismo real, o verdadeiro Adwaita, é
aquele que admite todas as coisas como o uno Brahman e não procura dividir Sua
existência em duas entidades incompatíveis, uma eterna Verdade e uma eterna
Falsidade, Brahman e Não-Brahman, Eu e Não-Eu, um Eu real e um irreal porém
perpétua Maya. Se, é verdade que o Eu isolado existe, também deve ser verdade que
tudo é o Eu. E se esse Eu, Deus ou Brahman não é um estado de desamparo, um poder
amarrado, uma personalidade limitada, sendo o Todo autoconsciente, deve haver
alguma boa e inerente razão para a manifestação, e para descobri-la devemos
prosseguir na hipótese de alguma potência, alguma sabedoria, alguma verdade do ser
em tudo que se manifesta. A discórdia e o aparente mal do mundo devem ser admitidos
em sua esfera, mas não aceitos como nossos conquistadores. O mais profundo instinto
da humanidade busca sempre, e sabiamente, a sabedoria como a última palavra da
manifestação universal, não uma eterna zombaria e uma ilusão - um secreto e
finalmente triunfante bem, não um mal todo-criador e invencível - uma vitória
definitiva e a realização, não o recuo desapontado da alma frente a sua grande
aventura.
Pois não podemos supor que a Entidade isolada é compelida por algo fora dela ou outro
que não Ela, porque tal coisa inexiste. Tampouco podemos supor que Ela se submete
contra a vontade a algo parcial, dentro de si, que é hostil a seu Ser inteiro, negado por
Ela e demasiado forte para Ela; pois isto só serviria para criar, em outra linguagem, a
mesma contradição de um Todo e algo diferente do Todo. Mesmo se afirmamos que o
universo só existe porque o Eu em sua absoluta imparcialidade, tolera todas as coisas
sem distinção, encarando com indiferença todas as realidades e todas as possibilidades,
há, no entanto, alguma coisa que quer a manifestação e a mantém, e por isso só pode ser
o Todo. Brahman é indivisível em todas as coisas, e, o que quer que tenha sido desejado
no mundo, foi desejado definitivamente por Brahman. É apenas nossa consciência
relativa, que, alarmada ou frustrada pelos fenômenos do mal, da ignorância e da dor no
cosmos, procura livrar o Brahman da responsabilidade por Si e por suas obras criando
algum princípio oposto, Maya ou Mara, o mal consciente ou auto-existente princípio do
mal. Só existe um Senhor e Eu; os muitos são apenas Suas representações e derivações.
Começamos, então, com a concepção de uma Realidade onipresente da qual nem o Não-
Ser de um lado, nem o universo do outro, são negações que anulam; eles são ao invés
disso, diferentes estados da Realidade, afirmações de verso e reverso. A mais elevada
experiência desta Realidade no universo mostra que ela não é apenas uma Existência
consciente, mas também uma Inteligência e Forças supremas, e uma Bem-Aventurança
auto-existente. Por isso, estamos certos em supor que, mesmo as dualidades do universo,
quando interpretadas, não como agora, por nossos conceitos sensórias e parciais, mas
por nossa inteligência e experiência liberadas, serão também resolvidas nesses termos
elevados. Enquanto ainda trabalharmos sob a tensão da dualidade, essa percepção
deverá, sem dúvida, basear-se num ato de fé, mas uma fé que a mais elevada Razão e a
mais ampla e mais paciente reflexão não negam, antes afirmam. Na realidade essa
crença é dada à humanidade para apoiá-la em sua jornada, até que ela chegue à um
estágio de desenvolvimento em que a fé se transformará em conhecimento e a perfeita
experiência e a Sabedoria verão suas obras justificadas.
[1] II, 6.
[2] No começo tudo era o Não-Ser. Foi então que o Ser nasceu. Taittiriya Upanishad, II,
7.
[3] Outro Upanishad rejeita o nascimento do Ser a partir do Não-Ser como uma
impossibilidade; o Ser, diz ele, só pode nascer do Ser. Mas se tomamos o Não-Ser no
sentido, não de um inexistente Nihil mas de um x que supera a nossa idéia de
experiência da existência, - sentido este aplicável ao Brahman absoluto do Adwaita bem
como ao vazio ou zero dos Budistas—a impossibilidade desaparece, pois Aquilo pode
muito bem ser a fonte do ser, seja por uma conceitual ou formativa Maya, seja como
uma manifestação ou criação a partir de si mesmo.
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Capítulo V
O DESTINO DO INDIVÍDUO
Mas esta unidade é, por natureza, indefinível. Quando procuramos enxergá-la com a
mente, somos compelidos a proceder através de uma infinita série de conceitos e
experiências. E, no entanto, no final, vemo-nos obrigados a negar nossos mais amplos
conceitos, nossas experiências mais abrangentes, para afirmar que a Realidade excede
todas as definições. Chegamos à fórmula dos Sábios védicos, net neti: "Ela não é isto,
Ela não é aquilo", não há experiência pela qual possamos delimitá-la, não há conceito
pelo qual, Ela possa ser definida.
Tão fortemente era essa verdade percebida nos antigos tempos, que os Videntes
Vedânticos, mesmo após chegar à idéia coroadora, a convincente experiência de
Satchitananda que seria a mais elevada experiência positiva da Realidade, para nossa
consciência, erigiram em suas especulações, ou atingiram em suas percepções, um Asat,
um Não-Ser além, que não é a existência definitiva, a pura consciência, a infinita bem-
aventurança da qual todas as nossas experiências são a expressão ou a deformação. Se
for uma existência, uma consciência, uma bem-aventurança, então está além da mais
alta e mais pura forma positiva dessas coisas que aqui podemos possuir, e é por isso
outra coisa, diferente daquilo que aqui conhecemos por esses nomes. O budismo,
considerado pelos teólogos, um tanto arbitrariamente, uma doutrina não-Védica porque
rejeita a autoridade das Escrituras, retorna, porém, esta concepção essencialmente
vedântica. Apenas a doutrina sintética e positiva dos Upanishads contemplava Sat e
Asat (Ser e Não-Ser) não como opostos destruidores um do outro, mas como a última
antinomia através da qual admiramos o Incognoscível. E nas transações de nossa
consciência positiva, até mesmo a Unidade tem de levar em conta com a Multiplicidade,
pois os Muitos também são Brahman. É através de Vidiya, o conhecimento da Unidade,
que conhecemos a Deus; sem ele Avidya, a consciência relativa e múltipla, é uma noite
de escuridão e uma desordem de Ignorância. Porém, se excluímos o espaço dessa
Ignorância, se nos livramos de Avidya como se ela fosse algo inexistente e irreal, então o
próprio Conhecimento se torna uma espécie de obscuridade e uma fonte de imperfeição.
Tornamo-nos como homens ofuscados pela luz de tal forma, que não podemos ver o
espaço que essa luz ilumina.
Tal é a doutrina, calma, sábia e clara, dos nossos mais antigos mestres. Eles tinham a
paciência e a força para encontrar e para saber; tinham também a clareza e humildade
para admitir a limitação do nosso conhecimento. Percebiam as fronteiras que ele tem de
passar para ir além de si mesmo. Ele era uma impaciência posterior de coração e mente,
atração veemente por uma bem-aventurança definitiva ou pelo alto império da pura
experiência e uma inteligência aguda, que buscava o Uno para negar os Muitos, e
porque tinha recebido o sopro das alturas, desprezado ou renegado pelo segredo das
profundezas. Mas o olho firme da sabedoria antiga percebeu que, para conhecer
realmente Deus, deve-se conhecê-lo em todo lugar igualmente e sem distinção,
considerando e valorizando, porém não dominado pelas oposições através das quais Ele
brilha.
Poremos de lado, então, as sutis distinções de uma lógica parcial que afirma que, porque
o Uno é a realidade, os Muitos são uma ilusão, e porque o Absoluto é Sat, a existência
una, o relativo é Asat e não-existente. Se nos Muitos perseguimos insistentemente o Uno,
é para retornar com a benção e a revelação do Uno confirmando-se nos Muitos.
Além da renúncia à vida física, há outro exagero do impulso ascético que esse ideal, de
uma manifestação integral, corrige. A complexidade da Vida é a relação entre três
formas gerais de consciência: a individual, a universal e a transcendente ou supra-
cósmica. Na distribuição ordinária das atividades vitais, o indivíduo se vê como um ser
separado incluído no universo, e ambos, como dependentes daquilo que transcende
tanto o universo como o indivíduo. É a essa Transcendência que damos usualmente o
nome de Deus, que, assim, torna-se, para nossa concepção, não tanto supracósmico
como extracósmico. A minimização como a degradação tanto do indivíduo como do
Universo são a consequência natural dessa separação: a cessação tanto do cosmos como
do indivíduo pela obtenção da Transcendência seria então a suprema conclusão lógica.
A visão natural da unidade do Brahman evita essas consequências. Assim como não
precisamos abandonar a vida corporal para alcançar o mental e o espiritual, também
podemos chegar a um ponto-de-vista em que a preservação das atividades individuais
não é mais incompatível com a nossa compreensão da consciência cósmica ou a
obtenção, por nós do transcendental ou supracósmico. Pois o Mundo-Transcendente
abarca o Universo, é uno com ele e não o exclui, assim como o Universo abarca o
indivíduo, é uno com ele e não o exclui. O indivíduo é o centro de toda a consciência
universal; o Universo é uma forma e definição que é ocupado pela inteira imanência do
Informe e Indefinível.
Esta é sempre a verdadeira relação, velada a nós por nossa ignorância ou nossa
consciência errada das coisas. Quando alcançamos o conhecimento ou a consciência
certa, nada essencial na eterna relação é mudado, mas apenas a visão interna e a visão
externa a partir do centro individual são profundamente modificadas, e,
consequentemente, também o espírito e o efeito de sua atividade. O indivíduo ainda é
necessário para a ação do Transcendente no universo, e essa ação nele não cessa de ser
possível por sua iluminação. Ao contrário, como a manifestação consciente do
Transcendente no indivíduo é o meio pelo qual o coletivo, o universal também se
tornará consciente de si mesmo, a continuação da ação do indivíduo iluminado no
mundo é uma necessidade imperativa do jogo-do-mundo. Se a sua inexorável remoção
através do próprio ato de iluminação for a lei, então o mundo está condenado a
permanecer eternamente o cenário de uma irredimida escuridão, de morte e sofrimento.
E tal mundo só poderá ser um implacável ordálio ou uma ilusão mecânica.
É assim que a filosofia ascética tende a concebê-lo. Mas a salvação individual pode não
ter real sentido se a existência no cosmos é ela mesma uma ilusão. Na visão Monística, a
alma individual é una com o Supremo e a sensação de desligamento é uma ignorância, a
fuga da sensação de desligamento e a identidade com o Supremo é a sua salvação. Mas
quem, tira proveito dessa fuga? Não o Eu supremo, pois este é considerado sempre e
inalienavelmente livre, calmo, silencioso e puro. Não o mundo, pois esse permanece
constantemente na escravidão e não é libertado pela fuga de nenhuma alma individual
da Ilusão universal. É a própria alma individual que realiza seu bem supremo
escapando à tristeza e à divisão na paz e a bem-aventurança. Parece haver, então, algum
tipo de realidade da alma individual, distinta do mundo e do Supremo, até mesmo no
caso da liberdade e da iluminação. Mas para o Ilusionista, a alma individual é uma
ilusão e é inexistente, exceto no inexplicável mistério de Maya. Então, chegamos à idéia
da fuga de uma ilusória, inexistente alma, de uma ilusória, inexistente escravidão, num
ilusório, inexistente mundo, como o supremo bem que essa alma inexistente tem de
alcançar! Pois essa é a última palavra do Conhecimento. “Não há grilhão, não há
ninguém libertado, ninguém tentando ser livre”. Vidya se transforma numa parte do
Fenomêno tal qual Avidya; Maya encontra-nos mesmo em nossa fuga e ri da lógica
triunfante que parece cortar o nó de seu mistério.
Essas coisas, dizem, não podem ser explicadas; são o milagre primeiro e insolúvel. São,
para nós, um fato consumado e têm de ser aceitas. Temos de escapar de uma confusão
através de outra confusão. A alma individual só pode cortar o nó egoico por um ato de
supremo egoísmo, um apego exclusivo à salvação individual que equivale a uma
afirmação absoluta de sua existência separada em Maya. Somos levados a ver as outras
almas como se fossem invenções da nossa mente, e como se sua salvação não tivesse
importância, e a nossa alma, unicamente, como inteiramente real, e a sua salvação, a
única coisa que importa. Eu vejo minha fuga pessoal da escravidão como algo real
enquanto as outras almas, que são igualmente eu mesmo, permanecem atrás, na
escravidão!
Porém nós podemos atingir o mais elevado sem sermos eliminados da extensão cósmica.
Brahman preserva sempre Seus dois termos, o de liberdade dentro e o de formação
fora, o de expressão e o de libertação da expressão. Nós também, sendo Aquilo,
podemos atingir a mesma divina autopossessão. A harmonia das duas tendências é a
condição de toda a vida que pretende ser realmente divina. A liberdade buscada pela
exclusão da coisa excedida leva ao caminho da negação, da recusa daquilo que Deus
aceitou. A atividade buscada pela absorção no ato e na energia leva a uma afirmação
inferior e à negação do mais Elevado. O que Deus combina e sintetiza, por que o homem
insiste em separar-se? Ser perfeito como Ele é perfeito é a condição para a Sua
realização integral.
Capitulo VI
O HOMEM NO UNIVERSO
Swëtaswatara Upanishad[1]
A progressiva revelação de uma grande, uma transcendente, uma lumi nosa Realidade,
--com as múltiplas relatividades deste mundo que vemos e esses outros mundos que não
vemos como meio e ma terial, condição e campo--, pareceria então ser o significado do
universo, já que tem significado e objetivo e não se trata de uma ilusão sem finalidade
nem de um acidente fortuito. Pois o mesmo ra ciocínio que nos permite concluir que o
mundo-(existente não é uma enganosa armadilha da Mente, igualmente justi fica a
certeza de que não se trata de uma cega e desvalida massa auto-existente de separadas
existências fenomênicas- aderindo-se e lutando entre si, o melhor que podem, em sua
órbita através da eternidade-, nem de uma auto-criação e auto-impulsão tremendas de
uma ignorante Força sem nenhuma Inteligência secreta em sua interior sabedora de seu
ponto de partida e de sua meta, e guiando seu processo e seu movimento. Uma
existência, totalmente auto-conhecedora e, portanto, inteiramente dona de si mesma,
possui ao ser fenomênico no que está envolta, se realiza na forma, se desenvolve no
indivíduo.
Esse Emergir luminoso é o amanhecer que veneraram os ante passados arianos. Sua
cumprida perfeição é o mais alto escalão de Vishnu penetrando-o-mundo, ao que
aqueles contemplaram como se fosse um olho cuja visão se estendesse nos puríssimos
céus da Mente. Pois existe ainda como todo-reveladora e todo-guiadora Verdade das
coisas, que vela sobre o mundo e atrai ao homem mortal, -(primeiro sem o
conhecimento de sua mente consciente, mediante a marcha geral da Natureza, mas ao
final conscientemente através de um despertar e um auto-engrandecimento
progressivos)-, para sua ascensão divina. A ascensão à Vida divina é a viagem humana,
o Trabalho dos trabalhos, o Sacrifício aceitável. Só isto é a tarefa real do homem no
mundo e a justificação de sua existência, sem a qual seria unicamente um inseto
arrastando-se entre outros insetos efêmeros sobre uma superfície insignificante de barro
e água que se formou em meio das aterradoras imensidades do universo físico.
Esta Verdade das coisas que há de emergir das fenomênicas contradições do mundo,
está chamada a ser uma Bem-Aventurança infinita e Existência auto-consciente, a
mesma por toda parte, em todas as coisas, em todos os tempos e mais além do Tempo,
sabedora de sua presença detrás de todos estes fenômenos, por cujas mais intensas
vibrações de atividade ou por cuja grande totalidade, jamais pode expressar-se por
completo, e de nenhum modo resultar limitada pelas mesmas; pois é auto-existente e
para o despertar de seu ser não depende de suas manifestações. Estas a representam
mas não a esgotam; a assinalam, mas não a revelam. Só é revelada a si mesma dentro de
suas formas. A existência consciente involu ída na forma chega, na medida que evolui, a
conhecer-se por intuição, por auto-visão, por auto-experiência. Conhecendo-se, chega a
ser ela mesma no mundo; se conhece a si mesma através do processo de chegar a ser ela
mesma. Dona, dessa maneira, de si mesma interiormente, concede também a suas
formas e modos o consciente deleite de Satchitananda. Este afloramento da infinita
Bem-Aventurança- Existência-Consciência na mente, na vida e no corpo, —pois existe
independente deles eternamente—, é a transfiguração ansiada e a utilidade da
existência individual. Através do indi víduo se manifesta em suas relações assim como
por si mesma existe em identidade.
Por outra parte, é por meio do Universo que o indivíduo está impelido a realizar-se.
Aquele é não só seu fundamento, seu meio, seu campo, o material da Obra divina, senão
que, -dado que a concentração da Vida universal que o indivíduo é, tem lugar dentro de
uns limites e não se parece à intensa unidade do Brahman livre de toda concepção de
limite e prazo-, necessariamente deve uni versalizar-se e impersonalizar-se a fim de
manifestar o Todo divino que é sua realidade. Inclusive reclama-lhe que preserve, -
ainda quando se estenda mais na universalidade da consciência-, um misterioso algo
transcendente do qual seu sentido da personalidade lhe dá uma representação obscura e
egoísta. Por outra parte, ele há equivocado sua meta, o problema que se apresentou-lhe
não foi resolvido, a obra divina para a qual aceitou nascer não há sido feita.
O Universo vem ao indivíduo como Vida, -(um dinamismo cujo segredo total há de
dominar e uma massa de resultados em colisão, um torvelinho de energias potenciais
das que há de liberar alguma ordem suprema e alguma harmonia ainda não realizada)-.
Este é, depois de tudo, o real sentido do progresso do homem. Não é simplesmente, uma
repetição, em termos levemente diferentes, do que já cumpriu a Natureza física. Nem o
ideal da vida humana pode ser simplesmente o animal repetido em uma escala superior
de mentali dade. Do contrário, qualquer sistema ou ordem que assegurasse um tolerável
bem-estar e uma moderada satisfação mental houvesse estancado nosso progresso. O
animal se satisfaz com pouco forçosamente; os deuses se contentam com seus
esplendores. Mas o homem não pode descansar permanentemente até que alcance
algum bem supremo. É o maior dos seres viventes porque é o mais descontente, porque
é ele que mais sente a pressão das limitações. Só ele; talvez, é capaz de ser tomado pelo
divino frenesi de um ideal remoto.
Desperto a um, mais profundo auto-conhecimento que o de sua primeira idéia mental
de si mesmo, o Homem começa a conceber alguma fórmula e a perceber alguma
aparência da coisa que há de afirmar. Mas se lhe apresenta como se equilibrasse-se
entre duas negações de si mesma. Se, mais além de seus atuais dotes, percebe ou é
tocado pelo poder, a luz, a bem-aventurança da infinita existência auto-consciente e
traduz seu pensamento ou sua experiência em termos convenientes a sua mentalidade, -
(Infinito, Onisciência, Onipotência, Imortalidade, Liberdade, Amor, Beatitude, Deus)-,
todavia este sol de sua visão parece brilhar entre uma dupla Noite, -(obscuridade abaixo
e uma maior obscuridade mais além)-. Pois quando luta por conhecer isso
completamente, parece ingressar em algo que nenhum destes termos nem a soma deles
pode representá-lo em sua totalidade. Sua mente, finalmente nega a Deus por um Além,
ou ao menos parece descobrir a Deus que transcende a Si mesmo, negando-se a sua
própria concepção. Aqui também, no mundo, nele mesmo, e a seu redor, é encontrado
sempre pelos opostos de sua afirmação. A morte está sempre com ele, a limitação investe
seu ser e sua experiência, o erro, a inconsciência, a debilidade, a inércia, a pena, a dor, o
mal, são constantes opressores de seu esforço. Aqui também é conduzido a negar a
Deus, ou ao menos o Divino parece negar-se ou ocultar-se em alguma aparência ou
resultado que difere de sua realidade verdadeira e eterna.
E os termos desta negação não são, como essa outra e mais remota negação,
inconcebíveis e, portanto, naturalmente miste riosos, incognoscíveis em sua mente,
senão que parecem ser cognoscíveis, conhecidos, definidos, -e ainda misteriosos-. Não
sabe que são, por que existem, como chegaram a ser. Vê seus processos tal como o
afetam e se lhe apresentam; não pode sondar sua realidade essencial.
Talvez sejam insondáveis, talvez sejam também realmente incog noscíveis em sua
essência? Ou, pode ser, que não tenham realidade essencial, -sejam uma ilusão, Asat,
Não-Ser-. A Negação superior se apresenta-nos às vezes como Nihil, Não-Existência;
esta negação inferior pode ser também, em sua essência, Nihil, não-existência. Mas
assim como já temos rechaçado esta evasão da dificuldade com respeito à negação
superior, de igual maneira a descartamos para este Asat inferior. Negar por completo
sua realidade ou buscar uma fuga dela como mera ilusão desastrosa, é fazer a um lado o
problema e esquivar nosso trabalho. Para a Vida, estas coisas que parecem negar a
Deus, ser os opostos de Satchitananda, são reais, inclusive se são considerados como
temporais. Elas e seus opostos, bem, conhecimento, alegria, prazer, vida, sobre, força,
poder, crescimento, são o material mesmo de suas obras.
Pois fora destas falsas relações e com sua ajuda há de encontrar-se a verdade. Pela
Ignorância temos de cruzar sobre a morte. Assim, também o Veda fala criticamente de
energias que são como mulheres más no impulso, errantes no caminho, danando a seu
Senhor, que com tudo, ainda que falsas e infelizes, constroem ao fim “esta vasta
Verdade”, a Verdade que é a Bem-aventurança. Seria, então, -(não quando ele tenha
alojado o mal em sua Natureza fora dele mesmo por um ato de cirurgia moral, ou tenha
apartado a vida por um retiro detestável, senão quando ele tenha convertido a Morte
em uma vida mais perfeita, tenha elevado as pequenas coisas da limitação humana para
dentro das grandes coisas da imensidade divina, tenha transformado o sofrimento em
beatitude, convertido o mal em sua própria bondade, traduzido o erro e a falsidade em
sua verdade secreta)-, que o sacrifício será cumprido, a viagem feita e o Céu e a Terra
igualadas dêem-se a mano na alegria do Supremo.
Mas estes contrários como podem passar um ao outro? Mediante que alquimia este
pomo da mortalidade é convertido nesse ouro do Ser divino? É que são contrários em
sua essência? É que não são manifestações de uma só Realidade, idêntica em
substância? Então certamente uma transmutação divina chega a ser concebível.
Temos visto que o Não-Ser mais além bem pode ser uma exis tência inconcebível e talvez
uma inefável Bem-aventurança. Ao menos o Nirvana do Budismo que formulou um
mais luminoso esfor ço do homem por alcançar e descansar nesta suprema Não-Existên
cia, se representa na psicologia dos liberados todavia sobre a terra como uma
impronunciável paz e alegria; seu efeito prático é a extin ção de todo sofrimento através
da desaparição de toda idéia ou sensação egoístas e o mais próximo que podemos
acercar-nos a uma concep ção positiva disso, existe uma inespressável Beatitude (se
pode aplicar-se nome ou denominação alguma a uma paz tão vazia de conteúdo) na que,
inclusive a noção de auto-existência, parece ser deglutida e desaparecer. Trata-se de um
Satchitananda ao que já não nos atrevemos a aplicar sequer os termos supremos de Sat,
de Chit nem de Ananda. Pois todos os termos são anulados e toda experiência cognitiva
é superada.
Por outra parte, temos nos aventurado sugerir que, dado que tudo é uma só Realidade,
esta negação inferior também, esta outra con tradição ou não-existência de
Satchitananda não é outra coisa que Satchitananda mesmo. É capaz de ser concebido
pelo intelecto, percebido na visão, inclusive recebido através das sensações tão
verazmente como o que precisamente parece negar, e assim ocorreria sempre a nossa
experiência consciente se as coisas não fossem falsificadas por algum grande erro
fundamental, alguma possessiva e compulsiva Igno rância, Maya ou Avidya. Neste
sentido haveria que buscar uma solução, talvez não uma satisfatória solução metafísica
para a mente lógica, —pois estamos no campo do incognoscível, do inefável, e
esforçando nossa vista mais além—, senão uma suficiente base de experiência para a
prática da vida divina.
Para fazer isto devemos animar-nos a ir debaixo das claras superfícies das coisas nas
que a mente ama habitar, tentar o vasto o obscuro, penetrar as insondáveis
profundidades da consciência e identificar-nos com estados de ser que não são os
próprios. A lin guagem humana é uma pobre ajuda nessa busca, mas ao menos podemos
encontrar nele alguns símbolos e figuras, retornar com algumas sugestões apenas
expressáveis que ajudarão a iluminar a alma e projetar sobre a mente algum reflexo do
inefável desígnio.
[1] [1] I, 6.
[2] [2] “Médium”, pode traduzir-se por “meio”, mas o autor utiliza “means” para
referir-se a algo que é utilizado como meio para outra coisa. E “middle” para algo que
está em meio.
--------------------------------------------------------------------O---------------------------------------------------------------Capitulo VII
O EGO E AS DUALIDADES
Swetaswatara Upanishad[1]
Para Satchitananda, -que se estende em todas as coisas em sua mais vasta generalidade
e imparcial universalidade-, a morte, o sofrimento e a limitação só podem ser, como
muito, termos inversos, sombrias-formas de seus luminosos opostos. Tal como sentimos
estas coisas, são signos de uma discórdia. Formulam separação onde deveria haver
unidade, incompreensão donde deveria haver compreensão, uma tentativa de chegar a
independentes harmonias onde deveria haver uma auto-adaptação do todo orquestal. A
totalidade absoluta, -inclusive se só estivesse em um esquema das vibrações universais,
inclusive se só fosse uma totalidade da consciência física sem possuir tudo o que está em
movimento mais além e detrás-, deve ser até esse ponto uma reversão em prol da
harmonia e uma reconciliação de chocantes opostos. Por outra parte, o Satchitananda
transcendente das formas do universo já não podem aplicar-se justamente os termos
duais mesmos, inclusive assim entendidos. A transcendência transfigura; não reconcilia,
senão que melhor transmuta os opostos em algo que os sobrepassa eliminando suas
oposições.
Ao princípio, no entanto, devemos trabalhar para relacionar o indivíduo outra vez com
a harmonia da totalidade. É necessário para nós, -do contrário o problema não tem
solução-, compreender que os termos com que nossa atual consciência interpreta os
valores do universo, -ainda que praticamente justificados aos fins da experência e o
progresso humanos-, não são os únicos termos pelos que é possível interpretá-los e não
podem ser as fórmulas completas, corretas e últimas. Precisamente assim como pode
haver órgãos sensoriais ou formas de capacidade sensorial que vejam o mundo físico de
modo distinto e ainda melhor, pois o fariam mais integralmente, que nossos órgãos
sensoriais e nossas capacidades sensitivas, de igual maneira pode haver outras
perspectivas mentais e supramentais do universo que sobrepassem a nossa. Existem
estados da cons ciência nos que a Morte é só uma mudança em Vida imortal, a dor um
violento refluxo das águas do deleite universal, a limitação um vazio do Infinito sobre si
mesmo, o mal um rodeio do bem entorno de sua própria perfeição; e isto não só em uma
abstrata concepção, senão também na visão real e na expe riência constante e
substancial. Atingir a estes estados da consciência pode ser, para o indivíduo, um dos
mais importantes e indispensáveis passos de seu progresso até a auto-perfeição.
Certamente, os valores práticos que nos brindam nossos sentidos e nosso dualístico
sentido-mente podem manter-se em seu campo e aceitar-se como modelo da vida-
experiência ordinária até que esteja pronta uma harmonia maior na que possam
ingressar e transfor mar-se sem perder el domínio das realidades que representam.
Aumentar as faculdades-sensórias sem ter em conta o conhecimento que brindariam os
antigos valores sensoriais a sua correta interpretação desde o novo ponto de vista,
poderia conduzir à sérias desordens e incapacidades e não adequar-se à vida prática
nem ao uso ordenado e disciplinado da razão. Igualmente, um alargamento de nossa
consciência mental, fora da experiência das dualidades próprias do ego, dentro de uma
não-regulada unidade com alguma forma de consciência total, poderia facilmente
produzir confusão e incapacidade para a vida ativa da humanidade na ordem
estabelecida das relatividades do mundo. Esta, sem dúvida, é a raiz do mandato imposto
no Gita ao homem que tem o conhecimento, não para perturbar a vida-base nem o
pensamento-base dos ignorantes; pois, impulsionados por seu exemplo, mas incapazes
de compreender o princípio de sua ação, perderiam seu próprio sistema de valores sem
chegar a um fundamento superior.
Essa vida e poder novos do humano integral, devem necessariamente repousar sobre
uma realização das grandes verdades que traduza dentro de nosso modo de conceber as
coisas a natureza da existência divina. Isto deve suceder através de uma renúncia do ego
a seu falso ponto de permanência e a suas falsas certezas, através de seu ingresso em
uma relação e harmonia corretas com as totalidades das que forma parte e com as
transcendências das que é um descenso, e através de sua perfeita auto-abertura a uma
verdade e a uma lei que excedem suas próprias convenções, uma verdade que será sua
realização e uma lei que será sua liberação. Sua meta deve ser a abolição daqueles
valores que são criações da visão egoísta das coisas; seu cume deve ser a transcendência
da limitação, da ignorância, da morte, do sofrimento e do mal.
A transcendência, a abolição não são possíveis aqui na terra e em nossa vida humana se
os termos dessa vida estão necessariamente ligados a nossa atual valorização egoísta. Se
a vida é em sua natureza, um fenômeno individual e não a representação de uma
existência universal e o hálito de uma poderosa Vida-Espírito; se as dualidades que são
a resposta do indivíduo a seus contatos não são meramente uma resposta senão a
essência e condição de todo o vivente; se a limitação é a inalienável natureza da
substância com a que estão formados nossa mente e corpo; se a desintegração na morte
é a primeira e última condição de toda vida, seu fim e seu princípio; se o prazer e a dor
são a inseparável matéria dual de toda sensação; se a alegria e o pesar são a luz e
sombra necessárias de toda emoção; se a verdade e o erro são os dois pólos entre os
quais todo conhecimiento deve espargir eternamente, então a transcendência é só
acessível mediante o abandono da vida humana em um Nirvana além de toda existência
ou mediante a conquista de outro mundo, um céu constituído de modo muito diferente
ao deste universo material.
Não é muito fácil para a cotidiana mente do homem, sempre apegada a suas associações
passadas e presentes, conceber uma existência todavia humana, mas que radicalmente
tenha modificado aquelas circunstâncias que previamente considerávamos imóveis.
Com respeito a nossa possível evolução superior estamos em grande medida na posição
do Macaco original da teoria darwiniana. Haveria sido impossível a esse Macaco, -que
levava sua arbórea vida instintiva nos bosques pri mitivos-, conceber que um dia
haveria sobre a terra um animal que utilizaria uma nova faculdade chamada Razão
sobre os materiais de sua existência interna e externa, que dominaria mediante esse
poder seus instintos e hábitos, transformaria as circunstâncias de sua vida física,
construiria casas de pedra, manipularia as forças da Natureza, navegaria os mares,
voaria pelos ares, desenvolveria códigos de conduta, evoluiria métodos conscientes para
seu desenvolvimento mental e espiritual. E se essa concepção houvesse sido possível
para a mente simiesca, todavia houvesse-lhe sido difícil imaginar que por qualquer
progresso da Natureza ou prolongado esforço da Vontade e a tendência, ele mesmo
poderia evoluir até esse animal. O homem, devido a que adquiriu razão e mais ainda
porque satisfez seu poder imaginativo e intuitivo, é capaz de conceber uma existência
superior à sua própria e inclusive ver sua elevação pessoal mais além de seu estado
atual dentro dessa existência. Sua idéia do estado supremo é um absoluto de tudo
quanto é positivo, para seus próprios conceitos e desejável, para sua própria aspiração
instintiva, o Conhecimento sem sua negativa sombra de erro; a Bem-aventurança sem
sua negação de experimentar sofrimento; o Poder sem sua constante negação pela
incapacidade; a pureza e a plenitude do ser sem o sentido oposto do defeito e a
limitação. É assim como concebe seus deuses; assim é como construiu seus céus. Mas
não é assim como sua razão concebe uma terra possível e uma humanidade possível.
Seu sonho de Deus e Céu é em realidade um sonho de sua própria perfeição; mas
descobre igual dificuldade em aceitar sua realização prática aqui em ordem a seu fim
último, tal como o Macaco ancestral se lhe demandasse que acreditasse em si mesmo
como o Homem futuro. Sua imaginação, suas aspirações religiosas podem sustentar esse
fim diante ele; mas quando sua razão se faz valer, rejeitando a imaginação e a intuição
transcendente, qualifica isso como uma brilhante superstição contraria aos fatos sólidos
do universo material. Isso se converte então unicamente em sua inspirada visão do
impossível. Tudo quanto é possível é um condicionado, limitado e precário
conhecimento, felicidade, poder e bondade.
De fato, perseguimos como ideal, tão longe como podemos, a eliminação de todos estes
fenômenos negativos ou adversos. Buscamos constantemente minimizar a causa do erro,
da dor e do sofrimento. A ciência, a medida que aumenta seu conhecimento, sonha com
regular o nascimiento e com prolongar indefinidamente a vida, ou mais ainda, com
alcançar a inteira conquista da muerte. Mas devido a que visamos só as causas externas
e secundárias, só podemos pensar em suprimi-las até uma distância e não em eliminar
as raízes reais disso contra o que lutamos. E dessa maneira estamos limitados porque
trabalhamos até percepções secun dárias e não até o conhecimento-raiz, porque
conhecemos os processos das coisas mas não sua essência. Assim chegamos a uma mais
poderosa manipu lação das circunstâncias, e não ao controle essencial. Pois se
pudéramos apreender a natureza essencial e a causa essencial do erro, do sofrimento e
da morte, poderíamos esperar chegar a um domínio sobre eles que não seria relativo
senão completo. Poderíamos esperar inclusive, eliminá-los por completo e justificar o
instinto dominante de nossa natureza mediante a conquista desse bem, bem-
aventurança, conhecimento e imortalidade absolutos que nossas intuições percebem
como o último e verdadeiro estado do ser humano.
Capítulo VIII
Este Eu secreto de todos os seres não é aparente, senão que é visto por
meio da razão suprema, a sutil, por aqueles que têm a visão sutil.
Katha Upanishad[1]
Mas qual é, então, o trabalho deste Satchitananda no mundo e mediante que processo
das coisas são as relações entre aquele e o ego que o figura, primeiro formadas, e depois
levadas a sua consumação? Pois dessas relações e do processo que sigam depende a
filosofia e prática totais de uma vida divina para o homem.
A razão humana tem uma dupla ação, mista ou dependente e pura ou soberana. A
razão aceita uma ação mista quando se limita ao círculo de nossa experiência sensível,
admite sua lei como verdade final e se preocupa somente do estudo do fenômeno, vale
dizer, das aparências das coisas em suas relações, processos e utilidades. Esta ação
racional é incapaz de conhecer o que é, só conhece o que aparenta ser, carece de medida
com a que poder sondar as profundidades do ser, só pode explorar o campo do
acontecer. A razão por outra parte, afirma sua ação pura, quando aceita nossas
experiências sensíveis como ponto de partida mas recusa estar limi tada por elas; olha
detrás das mesmas, julga, trabalha com sua própria lei e luta por alcançar conceitos
gerais e inalteráveis que se aderem, não às aparências das coisas, senão ao que está
detrás de suas aparências. Pode alcançar seu resultado mediante apreciação direta
passando de imediato da aparência ao que está detrás dela e nesse caso, o conceito ao
que se elevou pode parecer resultado da experiência sensória e dependente dela ainda
que em realidade se trate de uma percepção da razão atuando com sua própria lei. Mas
as percepções da razão pura podem também —e esta é sua mais característica ação—
usar a experiência da que partem como mera recusa e deixá-la muito atrás antes de
chegar a seu resultado, tão distante que o resultado pode parecer o contrário direto do
que nossa experiência sensória deseja ditar-nos. Este movimento é legítimo e
indispensável, devido, não só a que nossa experiência normal unicamente cobre uma
pequena parte do fato universal, senão a que também, dentro dos limites de seu próprio
campo, usa instrumentos que são defeituosos e nos dão falsos pesos e medidas. Nossa
experiência normal deve ser superada, mantida a distância, e sua insistência negada a
menos se temos de alcançar mais adequadas concepções da verdade das coisas. Corrigir
os erros do Sentido-mente mediante o uso da razão é um dos mais valiosos poderes
desenvolvidos pelo homem e a causa principal de sua superioridade entre os seres
terrestres.
O completo uso da razão pura nos leva finalmente do conhecimento físico ao metafísico.
Mas os conceitos do conhecimento metafísico não satisfazem em si mesmos plenamente
a demanda de nosso ser integral. Em verdade, são inteiramente satisfatórios para a
razão pura, porque são a substância mesma de nossa existência. Mas nossa natureza vê
as coisas sempre através de dois olhos, pois os vê duplamente, como idéia e como
acontecido, e portanto, todo conceito é incompleto para nós, e para uma parte de nossa
natureza, quase irreal até que sucede uma experiência. Mas as verdades que estão agora
em questão, são de uma ordem não sujeita a nossa experiência normal. Estão, em sua
natureza, "muito além da percepção dos sentidos mais apreensíveis pela percepção da
razão”. Portanto, é necessária alguma outra faculdade da experiência pela que possa ser
conquistada a demanda de nossa natureza e isto só pode chegar, dado que estamos
tratando com o suprafísico, mediante uma extensão da experiência psicológica.
Em certo sentido, toda nossa experiência é psicológica, dado que inclusive o que
recebemos mediante os sentidos carece de significado e valor para nós até que é
traduzido nos termos do sentido-mente, o Manas da terminologia filosófica hindu.
Manas, dizem nossos filósofos, é o sexto sentido. Mas nós inclusive podemos dizer que é
o único sentido e que os outros, vista, ouvido, tato, olfato, gosto são meramente
especializações do sentido-mente, o qual, ainda que normalmente usa os órgãos-
sensórios como base de sua experiência, ainda os supera e é capaz de uma experiência
direta ajustada a sua própria ação inerente. O sentido-mente, como resultado da
experiência psicológica, - igualmente que as cognições da razão-, é capaz no homem de
uma dupla ação, mista ou dependente e pura ou soberana. Sua ação mista tem lugar
comumente quando a mente busca chegar a ser consciente do mundo externo, do
objeto; a ação pura, quando busca chegar ao conhecimento de si mesmo, do sujeito. Na
primeira atividade, é dependente dos sentidos, e forma suas percepções de acordo com
suas evidências; na última, atua em si mesma e é consciente das coisas diretamente por
uma sorte de identidade com elas. Dessa maneira somos conscientes de nossas emoções;
somos conscientes da ira, -como agudamente se disse-, porque chegamos a ser a ira.
Assim somos conscientes de nossa própria existência, e aqui, a natureza da experiência
como conhecimento por identidade, se torna aparente. Em realidade, toda experiência é,
em sua natureza secreta, conhecimento por identidade; mas seu verdadeiro caráter nos
é ocultado pois temos nos separado do resto do mundo por exclusão, por distinção de
nós mesmos como sujeito e todo o demais como objeto, e nos vemos compelidos a
desenvolver processos e órgãos pelos que novamente possamos entrar em comunicação
com tudo quanto temos excluído. Temos de substituir o conhecimento direto através da
identidade consciente por um conhecimento indireto que parece ser causado por contato
físico e simpatia mental. Esta limitação é uma criação fundamental do ego e uma
mostra da maneira em que há procedido em tudo, partindo de uma falsidade original e
cobrindo a correta verdade das coisas com falsidades contingentes que para nós chegam
a ser as verdades práticas da relação com o mundo exterior.
Mas sempre a experiência mental e os conceitos da razão foi sustentado por esta, para
ser, inclusive no mais alto, um reflexo das identificações mentais e não a suprema
identidade auto-exis tente. Temos de ir mais além da mente e a razão. A razão ativa de
nossa consciência em vigília é só uma mediadora entre o Todo subconsciente do que
provimos em nossa evolução ascendente e o Todo supraconsciente até o que estamos
impulsionados por essa evolução. O subconsciente e o supraconsciente são dois
diferentes formulações do mesmo Todo. A palavra mestra do subconsciente é Vida, a
palavra mestra do supraconsciente é Luz. O subconsciente, o conhecimento ou
consciência está envolvido na ação, pois a ação é a essência da Vida. No supraconsciente
a ação reingressa na Luz e envolvido no conhecimento pois este está contido em uma
consciência suprema. O conhecimento intuitivo é aquele que é comum a ambos, e a base
do conhecimento intuitivo é a identidade consciente ou efetiva entre aquilo que conhece
e aquilo que é conhecido; é aquele estado da auto-existência comum no que conhecedor
e conhecido são um através do conhecimento. Mas no subconsciente a intuição se
manifesta na ação, na efetividade, e o conhecimento ou identidade consciente está
inteiramente ou mais ou menos oculto na ação. No supraconsciente, pelo contrário, -
sendo a Luz a lei e o princípio-, a intuição se manifesta em sua verdadeira natureza
como conhecimento emergindo da identidade consciente, e a efetividade da ação é,
melhor dizendo, o acompanhamento ou necessária consequência e já não uma máscara
como o fato primário. Entre estes dois estados a razão e a mente atuam como
intermediárias que capacitam o ser para liberar o conhecimento fora de seu
aprisionamento dentro do ato e prepará-lo para reassumir sua essencial primazia.
Quando o auto-conhecimento da mente se aplica, tanto ao continente como ao contido,
ao próprio-eu e ao outro-eu, exalta-se na luminosa identidade auto-manifesta, a razão
também se converte na forma do intuitivo[3] conhecimento auto-luminoso. Este é o
supremo estado possível de nosso conhecimento quando a mente se realiza no
supramental.
Sat Brahman, Existência pura, indefinível, infinita, absoluta, é o último conceito ao que
eleva-se a análise Vedântica em seu critério do universo, a fundamental Realidade que a
experiência Vedântica descobre detrás de todo o movimento e formação que constituem
a realidade aparente. É óbvio que quando propomos esta concepção, vamos por inteiro
além do que nossa consciência ordinária, nossa experiência normal contêm ou
representa. Os sentidos e o sentido-mente nada sabem acerca de alguma existência pura
ou absoluta. Tudo o que nos refere dela nosso sentido-experiência é forma e movimento.
As formas existem, mas com uma existência que não é pura, senão sempre mista,
combinada, agregada, relativa. Quando nos internamos em nós mesmos, podemos
desfazer-nos da forma precisa mas não do movimento, da mudança. A idéia da Matéria
no Espaço, a idéia da mudança no Tempo parecem ser a condição da existência.
Certamente podemos dizer, se nos agrada, que isto é existência e que a idéia de
existência em si mesma corresponde a uma realidade não descobrível. Ao mais, no
fenômeno do auto-conhecimento ou detrás dele, às vezes captamos um vislumbre de
algo imóvel e imutável, algo que percebemos vagamente ou imaginamos que somos,
além de toda vida e morte, além de toda mudança, formação e ação. Aqui está a única
porta em nós que às vezes se abre o esplendor de uma verdade além e, antes que se feche
outra vez, deixa que um raio nos toque, uma luminosa intimação que, se temos força e
firmeza, podemos manter em nossa fé e convertê-la em um ponto de partida para outro
despertar da consciência, diferente do sentido-mente, para o despertar da Intuição.
Pois a Intuição, pela natureza mesma de sua ação no homem, trabalhando como o faz
desde detrás do véu, ativa principalmente em suas partes menos iluminadas, menos
articuladas, e servida diante do véu, na exígua luz que é nossa consciência em vigília, só
por instrumentos que são incapazes de assimilar plenamente suas mensagens, é incapaz
de brindar-nos a verdade naquela forma ordenada e articulada que nos sa natureza
exige. Antes que possa efetuar algum tipo de integração do conhecimento direto em nós,
teria que organizar-se em nosso ser superficial e tomar possessão ali da parte diretiva.
Mas em nosso ser superficial não está a Intuição, está a Razão, a qual está organizada e
nos ajuda a ordenar nossas percepções, pensamentos e ações. Portanto a idade do
conhecimento intuitivo representado pelo mais jovem pensamento Vedântico dos
Upanishads, teve de ceder seu lugar à idade do conhecimento racional; a Escritura
inspirada cedeu lugar à filosofia metafísica, tal como depois a filosofia metafísica cedeu
seu lugar à Ciência experimental. O pensamento intuitivo, que é um mensageiro do
supraconsciente e pelo tanto nossa suprema faculdade, foi suplantado pela pura razão
que é uma forma de suplente e pertence às alturas médias de nosso ser; a pura razão,
por sua vez, foi suplantada, durante um tempo, pela ação mista da razão que vive em
nossas dobras e suaves elevações e não pode em sua visão exceder o horizonte da
experiência que a mente física e os sentidos, -ou aqueles auxílios que possamos inventar
para eles-, possam aportar-nos. E este processo que parece ser um descenso, é em
realidade um círculo de progresso. Pois em cada caso a faculdade inferior é compelida a
absorver tanto como possa assimilar do que a superior já havia dado, e tentar
reestabelecê-lo mediante seus próprios métodos. Mediante dito intento alarga-se em sua
perspectiva e eventualmente chega a uma mais flexível e ampla auto-acomodação às
faculdades superiores. Sem esta sucessão e intento de assimilação separada, nos
veríamos obrigados a permanecer sob o domínio exclusivo de uma parte de nossa
natureza, enquanto o resto ficaria deprimido ou indevidamente submetido, ou separado
em seu campo e, portanto, pobre enquanto a seu desenvolvimento. Com esta sucessão e
separada tentativa o equilíbrio é ajustado; uma mais completa harmonia de nossas
partes de conhecimento se prepara.
E contudo, a razão humana exige seu próprio método de satisfação. Portanto, quando
começou a idade da especulação racionalista, os filósofos da Índia, respeitosos da
herança do passado, adotaram uma dupla atitude até a Verdade que buscavam.
Reconheceram no Sruti, os primevos resultados da Intuição, ou como preferiram
chamá-lo, da inspirada Revelação, uma autoridade superior à Razão. Mas ao mesmo
tempo partiram desde a Razão e comprovaram os resultados que esta lhes deu,
sustentando como válidas só aquelas conclusões que eram apoiadas pela suprema
autoridade. Desse modo evitaram, até certo ponto, o acossador pecado da metafísica, a
tendência a batalhar entre nuvens devido a que se trata com palavras como se fossem
fatos imperativos em lugar de símbolos que sempre serão cuidadosamente examinados e
devolvidos constantemente ao sentido do que representam. Suas especulações tenderam
ao princípio a acercar ao centro à mais elevada e profunda experiência, e procederam
com o consentimento unido das duas grandes autoridades, Razão e Intuição. Não
obstante, a tendência natural da Razão de fazer valer sua própria supremacia triunfou,
em efeito, sobre a teoria de sua subordinação. Daí o surgimento de conflitantes escolas,
cada qual fundada na teoria do Veda, utilizando seus textos como arma contra as
demais. Pois o supremo Conhecimento intuitivo vê as coisas em sua totalidade, em sua
grandeza e detalhes só lados da totalidade indivisível; sua tendência se orienta até a
imediata síntese e a unidade do conhecimento. A Razão, pelo contrário, procede
mediante análise e divisão, e acumula seus feitos para formar um todo; mas nesse
conteúdo assim formado existem opostos, anomalias, lógicas incompatíveis, e a
tendência natural da Razão consiste em afirmar alguns e negar outros que estejam em
conflito com suas escolhidas conclusões de modo que possa formar um sistema
impecavelmente lógico. A unidade do primeiro conhecimento intuitivo se quebrou dessa
maneira e o engenho dos lógicos sempre foi capaz de descobrir artifícios, métodos de
interpretação, modelos de valor variável, pelos que os textos inconvenientes da
Escritura puderam ser anulados na prática, adquirindo uma inteira liberdade para sua
especulação metafísica.
Não obstante, as principais concepções do mais remanescente Vedanta permaneceram
em parte nos diversos sistemas filosóficos e, de tanto em tanto, fizeram-se esforços por
recombiná-las dentro de alguma imagem da antiga universalidade e unidade do
pensamento intuitivo. E detrás do pensamento de tudo, diversamente apresentado,
sobreviveu como a concepção fundamental, Purusha, Atman o Sat Brahman, o puro
Existente dos Upanishads, muitas vezes racionalizado dentro de uma idéia ou estado
psicológico, mas todavía por tando algo de seu antigo carregamento de inexpressável
realidade. Qual seja a relação do movimento do devir -que é o que chamamos o mundo-,
com esta Unidade absoluta, e como o ego – seja já causa ou consequência do
movimento-, pode retornar a esse verdadeiro Ser-em-si, Divinidade ou Realidade
declarada pelo Vedanta, estas foram as questões especulativas e práticas que sempre
ocuparam o pensamento da Índia.
Capítulo IX
O PURO EXISTENTE
Chhandogya Upanishad[1]
Quando retiramos nosso olhar fixo de suas preocupações egoístas com limitados e
breves interesses, e contemplamos o mundo com desapaixonados e curiosos olhos que só
buscam a Verdade, nosso primeiro resultado é a percepção de uma ilimitada energia de
existência infinita, de infinito movimento[2] , de infinita atividade difundindo-se no
Espaço sem limites, no Tempo eterno; uma existência que supera infinitamente nosso
ego ou qualquer ego de qualquer colectividade de egos, em cujo equilíbrio os grandiosos
produtos de eones não são senão o pó de um momento e em cuja incalculável soma as
inumeráveis miríades só contam como um insignificante enxame. Instintivamente
atuamos, sentimos e tecemos nossos pensamentos vitais como se este estupendo
movimento do mundo trabalhasse à nossa volta, como se fossemos o centro, e para nosso
beneficio, para nossa ajuda ou para nosso dano, ou como se a justificação de nossos
laços egoístas, emoções, idéias, modelos, foram seu próprio negócio quando em
realidade, são nossa própria preocupação principal. Quando começamos a ver,
percebemos que existe para si mesma, não para nós, que tem seus próprios objetivos
gigantescos, sua própria idéia complexa e ilimitada, seu próprio vasto desejo ou deleite,
que busca realizar, suas próprias normas imensas e formidáveis, e olha nossa
insignificância com uma sorte de indulgente e irônico sorriso. Com tudo não passemos
ao outro extremo e formemos uma idéia demasiado positiva de nossa insignificância.
Isso também seria um ato de ignorância e fechar nossos olhos aos grandes feitos do
universo.
Pois este ilimitado Movimento não nos considera sem importância para ele. A Ciência
nos revela quão minucioso é o cuidado, quão sagaz é o mecanismo, quão intensa é a
absorção com que se entrega tanto à mais ínfima de suas obras como à máxima. Esta
poderosa energia é uma mãe igual e imparcial, saman Brahma, no grande termo do
Gita, e sua intensidade e força de movimento é a mesma na formação e elevação de um
sistema de sóis que na organização da vida de um formigueiro. É a ilusão do tamanho,
da quantidade, a que induz-nos a considerar a um como grande, ao outro como
pequeno. Se pelo contrário tomamos em consideração não a massa da quantidade senão
a força da qualidade, diremos que a formiga é maior que o sistema solar que habita e
que o homem é maior que toda a Natureza inanimada reunida. Mas isto outra vez é a
ilusão da qualidade. Quando olhamos detrás e examinamos só a intensidade do
movimento, do qual a qualidade e a quantidade são aspectos, compreendemos que este
Brahman mora igualmente em todas as existências. Igualmente participando de tudo
em seu ser, e nos sentimos tentados a dizer, por igual distribuído a todos em sua energia.
Mas isto também é uma ilusão de quantidade. O Brahman mora em todos, indivisível,
mas como se estivesse dividido e distribuído. Se olhamos outra vez com uma
observadora percepção não dominada por conceitos intelectuais, senão informada pela
intuição e que culmine no conhecimento por identidade, veremos que nossa consciência
mental é diferente da consciência desta Energia infinita, a qual é indivisível e dá, não
uma parte igual de si mesma, senão seu ser íntegro em um só e mesmo tempo ao sistema
solar e ao formigueiro. Para o Brahman não há todo e partes, senão que cada coisa é
tudo em si e se beneficia pelo todo do Brahman. A qualidade e a quantidade diferem, o
ser é igual. A forma, maneira e resultado da força da ação variam infinitamente, mas a
energia eterna, primária e infinita, é a mesma em tudo. A potência da fortaleza que faz
o homem forte não é nem um piscar maior que a potência da debilidade que faz o débil.
A energia gasta é tão grande na repressão como na expressão, na negação como na
afirmação, no silêncio como no som.
Portanto, o primeiro cálculo que temos de agregar é esse, entre este Movimento infinito,
esta energia da existência que é o mundo e nós mesmos. Atualmente levamos uma conta
falsa. Somos infinitamente importantes para o Todo, mas para nós o Todo é
insignificante; só nós somos importantes para nós mesmos. Este é o signo da ignorância
original que é a raiz do ego, que só pode pensar em si mesmo como centro, como se ele
fosse o Todo, e do que não é ele mesmo só aceita aquilo que mentalmente está disposto a
admitir, aquilo ao que se vê forçado a reconhecer pelas mudanças extremas do entorno.
Inclusive quando começa a filosofar, não afirma que o mundo só existe em e por sua
consciência? Seu próprio estado de consciência ou seus modelos mentais são para ele a
prova da realidade; tudo o que esteja fora de sua órbita ou ponto de vista se torna falso
ou inexistente. Esta auto-suficiência mental do homem cria um sistema de falso
cômputo que nos impede extrair o valor correto e pleno da vida. Existe um sentido no
que estas pretensões da mente e o ego humanos repousam sobre uma verdade mas esta
verdade só emerge quando a mente aprendeu sua ignorância e o ego se submeteu ao
Todo e perdido nele sua separada auto-afirmação. Reconhecer que nós, -ou melhor, os
resultados e aparências que chamamos nós mesmos-, somos só um movimento parcial
deste Movimento infinito e que é esse infinito o que temos de conhecer, ser
conscientemente e realizar fielmente, é o começo da vida verdadeira. Reconhecer que
em nossos verdadeiros seres somos um com o movimento total e não menores nem
subordinados é o outro lado da conta, e sua expressão na maneira de nosso ser,
pensamento, emoção e ação é necessária para a culminação de um verdadeiro ou divino
viver.
Para retirar da conta temos de conhecer o que é este Todo, esta energia infinita e
onipotente. E aqui chegamos a uma nova complicação. Pois nos afirma-o a pura razão e
parece também que o Vedanta, que, assim como somos subordinados e um aspecto deste
Movimento, de igual maneira o movimento é subordinado e um aspecto de algo distinto
a si mesmo, de uma grande atemporalidade, de Estabilidade inespacial, sthanu, que é
imutável, inestinguível e inesgotável, que não atua ainda que contenha toda esta ação,
não energia, senão pura existência. Aqueles que só vêem este mundo-energia podem
certamente declarar que tal coisa não existe; nossa idéia de uma eterna estabilidade,
uma pura existência imutável é uma ficcão de nossas concepções intelectuales que
partem desde uma falsa idéia do estável, pois não há que seja estável; tudo é movimento
e nossa concepção do estável é só um artifício de nossa consciência mental pela que
asseguremos um ponto de apoio para tratar praticamente com o movimento. É fácil
demonstrar que isto é certo no movimento mesmo. Nada há ali que seja estável. Tudo o
que parece ser estacionário é só um bloco de movimento, uma formulação de energia
que trabalha, afetando de tal modo nossa consciência que parece estar quieta, do mesmo
modo como o planeta parece-nos estar quieto; algo assim como um trem no qual
viajamos que parece estar parado em meio de uma paisagem fugaz. Mas é igualmente
verdade que subjacente a este movimento, sustentando-o, não há nada que seja imóvel e
imutável? É verdade que a existência só consiste na ação da energia? Ou melhor, que a
energia é um resultado da Existência?
Vemos ao mesmo tempo que se essa Existência é como a Energia, deve ser infinita. Nem
a razão, nem a experiência, nem a intuição, nem a imaginação, nos atestam a
possibilidade de um termo final. Todo fim e princípio pressupõe algo além do fim ou do
princípio. Um fim absoluto, um princípio absoluto, é não só uma contradição de termos,
senão uma contradição da essência das coisas, uma violência, uma ficção. O infinito se
impõe sobre as aparências do finito por sua inestinguível auto-existência.
Mas isto é infinito com respeito a Tempo e Espaço, uma duração eterna, uma extensão
interminável. A Razão pura vai mais além e, olhando o Tempo e o Espaço sob sua
incólume e austera Luz própria, assinala que estas duas são categorias de nossa
consciência, condições sob as quais organizamos nossa percepção do fenômeno. Quando
olhamos a existência em si mesma, o Tempo e o Espaço desaparecem. Se existe alguma
extensão, não é espacial senão psicológica; e então é fácil ver que esta extensão e esta
duração só são símbolos que representam à mente algo não traduzível em termos
intelectuais, uma eternidade que parece-nos o mesmo sempre-novo momento todo-
reunidor, um infinito que parece-nos o todo-penetrante ponto todo-reunidor sem
magnitude. E este conflito de termos tão violento, ainda que minuciosamente expressivo
de algo que percebemos, demonstra que a mente e a linguagem transpassaram além,
seus naturais limites e lutam por expressar uma Realidade na que suas próprias
convenções e necessárias oposições desaparecem em uma identidade inefável.
Mas esta é uma observação certa? Não pode ser que o Tempo e o Espaço desse modo
desapareçam meramente porque a existência que estamos contemplando é uma ficção
do intelecto, um fantástico Nihil criado pela linguagem, que nós trabalhamos por erigir
em realidade conceitual? Contemplamos outra vez essa Existência-em-si-mesma e
dizemos: Não. Há algo detrás do fenômeno não só infinito senão indefinível. Podemos
dizer que no Absoluto não há nenhum fenômeno, nenhum da totalidade dos fenômenos.
Inclusive se reduzimos todos os fenômenos a um só fenômeno fundamental, universal e
irreduzível do movimento ou da energia, obtemos unicamente um fenômeno indefinível,
não o Absoluto. A concepção mesma de movimento leva consigo a potencialidade de
repouso e se dilata como atividade de alguma existência; a idéia mesma da energia em
ação leva consigo a idéia da energia abastecendo-se da ação; e uma absoluta energia que
não está em ação é existência simples e puramente Absoluta. Temos só estas duas
alternativas: uma pura existência indefinível ou uma indefinível energia em ação e, se só
a última é verdade, sem nenhuma causa ou base estável, então a energia é um resultado
e um fenômeno gerados pela ação, o movimento que só é. Então não temos Existência,
ou temos o Nihil dos budistas com a existência como só um atributo de um fenômeno
eterno, da Ação, do Karma, do Movimento. Isto, -(afirma a pura razão: deixa
insatisfeitas minhas percepções, contradiz minha visão fundamental, e portanto não
pode ser). Pois nos leva a um último escalão pondo um abrupto final de uma ascensão
que deixa toda a escada sem apoio, suspendida no Vazio.
Mas tudo isto, pode dizer-se, é só válido na medida que aceitemos os conceitos da razão
pura e permaneçamos sujeitos a ela. Mas os conceitos da razão não têm força
obrigatória. Devemos julgar a existência não pelo que mentalmente concebemos, senão
pelo que vemos que existe. E a forma mais pura e livre de intuição da existência tal
como é, não nos mostra nada, salvo movimento. Duas coisas somente existem:
movimento no Espaço, movimento no Tempo; o primeiro objetivo, o último subjetivo. A
extensão é real; a duração é real; Espaço e Tempo são reais. Ainda que possamos olhar
detrás da extensão no Espaço, -(e percebê-lo como um fenômeno psicológico, como uma
tentativa da mente para tornar manipulável a existência, distribuindo o indivisível todo
em um Espaço conceitual)-, ainda não podemos ir detrás do movimento da sucessão e
mudança do Tempo. Pois essa é a matéria mesma de nossa consciência. Nós somos e o
mundo é um movimento que continuamente progride e aumenta pela inclusão de todas
as sucessões do passado em um presente que se representa diante de nós como o
princípio de todas as sucessões do futuro, -um princípio, um presente que sempre nos
ilude por que não é, pois pereceu antes de nascer-. O que é, é a eterna, indivisível
sucessão do Tempo, levando em sua corrente um progressivo movimento da consciência
também indivisível[3] . A duração, pois -o movimento eternamente sucessivo e o câmbio
no Tempo-, é o único absoluto. O devir é o único ser.
Então o puro existente é um fato e não um mero con ceito; é a realidade fundamental.
Mas, apressemo-nos a acrescentar, o movimento, a energia, o devir, são também m fato,
também uma realidade. A intuição suprema e sua correspondente experiência podem
corrigir esta outra realidade, podem ir mais além, podem suspendê-la mas não aboli-la.
Portanto, temos dois fatos fundamentais da existência pura e do mundo-existência, um
fato do Ser, um fato do Devir. É fácil negar um ou outro; reconhecer os fatos da
consciência e averiguar sua relação é a sabedoria verdadeira e proveitosa.
Mas como não podemos descrever nem pensar no Absoluto em si mesmo, além da
estabilidade e do movimento, além da unidade e da multiplicidade, não é assunto nosso
— devemos aceitar o fato duplo, admitir a ambos, a Shiva e a Kali[4] , e procurar saber
o que é este imedível Movimento no Tempo e o Espaço, com respeito a essa pura
Existência, atemporal e inespacial, única e estável, à que são inaplicáveis a medida e a
ausência-de-medida. Temos visto o que a Razão pura, a intuição e a experiência têm que
dizer acerca da Existência pura, acerca de Sat; o que têm a dizer acerca da Força,
acerca do Movimento, acerca de Shakti?
[1] VI, 2, 1.
[4] Shiva e Kali na tradição hindu são esposos, o autor considera aqui sua relação,
similar à de Purusha e Prakriti, Shiva seria o passivo absoluto um e estável e Kali sua
ativa e móvel energia operante; o autor dá um passo mais e cita seguidamente o termo
superior Sat-Shakti.
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Capitulo X
A FORÇA CONSCIENTE
Swetaswatara Upanishad[1]
Katha Upanishad[2]
Todas as formas da Matéria que conhecemos, todas as coisas físicas até as mais sutis,
estão conformadas mediante a combinação destes cinco elementos. Deles também
depende toda nossa experiência sensível; pois por recepção da vibração vem o sentido
do olfato; por contato com coisas num mundo de vibrações da Força, o sentido do tato;
pela ação da luz nas formas idealizadas, delineadas, sustentadas pela força da luz e o
fogo e o calor, o sentido da vista; pelo quarto elemento, o sentido do gosto; pelo quinto, o
sentido do olfato. Tudo é essencialmente resposta aos contatos vibratórios entre força e
força. Deste modo os antigos pensadores construíram uma ponte sobre o abismo entre a
Força pura e suas modificações finais, e satisfizeram a dificuldade que impede à
ordinária mente humana compreender como todas estas formas que são, para seus
sentidos tão reais, sólidas e duráveis, podem ser em verdade somente fenômenos
temporários, e uma coisa como a energia pura, -inexistente, intangível e quase incrível
para os sentidos-, pode ser a única realidade cósmica permanente.
O problema da consciência não está resolvido com esta teoria, pois não explica como
o contato de vibrações da Força há de fazer surgir as sensações conscientes. Os
Sankhyas ou pensadores analíticos colocaram, portanto, detrás destes cinco elementos,
dois princípios que chamaram Mahat e Ahankara, princípios que são realmente
imateriales; pois o primeiro não é senão o vasto princípio cósmico da Força e el outro o
princípio divisional do Ego-formação. Não obstante, estes dois princípios igualmente
que o princípio da inteligência, se tornam ativos na consciência não em virtude da Força
mesma, senão em virtude de uma inativa Consciente-Alma ou almas, nas que suas
atividades se refletem e, mediante o reflexo, assumem a matiz da consciência.
Tal é a explicação das coisas oferecida pela escola de filosofia da Índia que mais se
aproxima às modernas idéias materialistas e que levou a idéia de uma mecânica ou
inconsciente Força na Natureza tão longe como foi possível para a seriamente reflexiva
mente indiana. Quaisquer que sejam seus defeitos, sua principal idéia foi tão
indiscutível que veio a ser geralmente aceitada. No entanto, o fenômeno da consciência
pode explicar-se, - seja já a Natureza um impulso inerte ou um princípio consciente-,
certamente como Força; o princípio das coisas é um formativo movimento de energias,
todas as formas nascem do encontro e mútua adaptação entre forças sem forma, toda
sensação e ação é uma resposta de algo em forma de Força aos contatos de outras
formas de Força. Este é o mundo tal como o experimentamos e desde esta experiência
devemos sempre partir.
A análise física da Matéria por parte da Ciência moderna chegou à mesma conclusão
geral, ainda que perdurem umas poucas dúvidas últimas. A intuição e a experiência
confirmam esta concordância de Ciência e Filosofia. A razão pura acha nela a satisfação
de suas próprias concepções essenciais. Pois inclusive na visão do mundo como
essencialmente um ato da consciência, um ato está implícito, e no ato o movimento de
Força, o desdobramento de Energia. Isto também, -quando examinamos desde dentro
nossa própria experiência-, prova ser a naturaleza funda mental do mundo. Todas
nossas atividades são o jogo da tripla força das antigas filosofias, conhecimento-fuerza,
desejo -força, ação-força, e todas elas provam ser realmente três co rrentes de um só
Poder original e idêntico, Adya Shakti. Inclusive nossos estados de repouso são somente
um estado de igualdade ou de equilíbrio do despertar de seu movimento.
A resposta mais aceita pela antiga mente da Índia foi a de que a Força é inerente à
Existência. Shiva e Kali, Brahman e Shakti são um e não dois separáveis. A Força
inerente à existência pode estar em repouso ou em movimento, mas quando está em
repouso, existe no entanto e não é suprimida, diminuída nem de nenhum modo
essencialmente alterada. Esta resposta é tão inteiramente racional e de acordo com a
natureza das coisas que não necessitamos titubear para aceitá-la. Pois é impossível,
devido ao contraditório da razão, supor que a Força é uma coisa alheia à única e
infinita existência, e entrou nela desde fora ou era não-existente e surgiu nela em algum
ponto do Tempo. Inclusive a teoria ilusionista deve admitir que Maya, o poder de auto-
ilusão de Brahman, é potencialmente eterna no Ser eterno e então a única questão é sua
manifestação ou não-manifes tação. O Sankhya também afirma a eterna coexistência de
Prakriti e Purusha, Natureza e Alma-Consciente, e os alternativos estados de repouso
ou equilíbrio de Prakriti e de movimento ou perturbação do equilíbrio.
Mas dado que dessa maneira a Força é inerente à existência e que constitui a natureza
da Força ter esta dupla ou alternativa potencialidade de repouso e movimento, vale
dizer, de auto-concentração em Força e de auto-difusão em Força, não surge a questão a
respeito de como do movimento, sua possibilidade, impulso iniciador ou causa
impulsora. Pois então podemos conceber facilmente que esta potencialidade deve
traduzir-se como um ritmo alternativo de repouso e movimento sucedendo-se um ao
outro no Tempo ou como uma eterna auto-concentração da Força na existência
imutável com um superficial despertar de movimento, cambio e formação como a
ascensão e queda das ondas na superfície do oceano. E este despertar superficial pode
ser coexistente com a auto-concentração e em si mesmo também eterno, -falamos
necessariamente com imagens inadequadas-, ou pode começar e terminar no Tempo e
resumir-se por uma sorte de ritmo constante; então não é eterno na continuidade senão
eterno na recorrência.
É preciso então examinar interiormente a relação entre Força e Consciência. Mas que
queremos dizer com o último termo? Comumente significamos com ele nossa óbvia
idéia primária de uma consciência mental em vigília tal como se a possuísse o ser
humano durante a maior parte de sua existência corporal, quando não está dormido,
aturdido ou de algum outro modo privado de seus físicos e superficiais métodos de
sensação. Neste sentido está suficientemente claro que a consciência é a exceção e não a
regra na ordem do universo material. Nós mesmos não sempre a possuímos. Mas esta
vulgar e superficial idéia da natureza da consciência, ainda que todavia impregna
nossos pensamentos e associações ordiná rios, deve agora desaparecer definitivamente
do pensar filosófico. Pois sabemos que em nós há algo que é consciente quando
dormimos, quando estamos aturdidos ou drogados ou desvanecidos, em todos os estados
aparentemente inconscientes de nosso ser físico. Não só isso, senão que agora podemos
estar seguros que os antigos pensadores estavam certos quando declaravam que,
inclusive em nosso estado de vigília, o que chamamos então nossa consciência é só uma
reduzida seleção de nosso inteiro ser consciente. É uma superfície, mas não a totalidade
de nossa mentalidade. Detrás dela, mais vasta que ela, há uma mente subliminal ou
subconsciente que é a maior parte de nós mesmos, e contêm cumes e profundidades que
nenhum, homem há medido nem sondado todavia. Este conhecimento nos brinda um
ponto de partida para a verdadeira ciência da Força e suas obras; nos livra
definidamente de estar circunscritos pelo material e da ilusão do óbvio.
Mas não há razão para supor que a gama da vida e a consciência fala e se detém no
que nos parece puramente mate rial. O desenvolvimento da investigação e do
pensamento recente parece apontar a uma sorte de obscuro princípio de vida e talvez
uma sorte de consciência inerte ou suspendida no metal e na terra e em outras formas
“ina nimadas”, ou ao menos a matéria prima do que em nós chega a ser consciência
pode estar ali. Ainda quando só na planta podemos obscuramente reconhecer e
conceber a coisa que chamei consciência vital, a consciência da Matéria, da forma
inerte, resulta certamente difícil para nós entendê-lo ou imaginá-lo, e o que achamos
difícil de entender ou imaginar consideramo-nos com dereito a negá-lo. Não obstante,
quando um há seguido a tanta profundidade à consciência, resulta inacreditável que
possa existir este súbito abismo na Natureza. O pensamento tem dereito a supor uma
unidade onde essa unidade está confessada por todas as outras classes de fenômenos e
em uma só classe unicamente, não negada, senão meramente mais oculta que as demais.
E se supomos que a unidade se acha interrompida, então alcançamos à existência da
consciência em todas as formas da Força que trabalha no mundo. Ainda que não
houvesse consciente ou supraconsciente Purusha morando em todas as formas, contudo
existe naquelas formas uma força consciente do ser da qual inclusive suas outras partes
aberta ou inertemente participam.
Necessariamente, com esse critério, a palavra consciência muda de significado. Já não é
sinônimo de mentalidade senão que indica uma auto-consciente força da existência da
que a mentalidade é termo médio; debaixo da mentalidade se funde nos movimientos
vitais e materiais que para nós são subconscientes; acima, se eleva no supramental que
para nós é o supraconsciente. Mas em tudo está a única e mesma coisa organizando-se
diferente mente. Esta é, uma vez mais, a concepção indiana de Chit que, como energia,
cria os mundos. Essencialmente, chegamos a essa unidade que a ciência materialista
percebe desde o outro extremo quando assevera que a Mente não pode ser outra força
que a Matéria, mas deve ser meramente desenvolvimento e resultado da energia
material. O pensamento indiano, em sua máxima profundidade, afirma, por outra
parte, que Mente e Matéria são, melhor dizendo, diferentes graus da mesma energia,
diferentes organizações de uma Força consciente da Existência.
Mas que dereito temos a dar, é claro, que a consciência seja a descrição justa para esta
Força? Pois a consciência implica algum tipo de inteligência, intencionalidade, auto-
conhecimento, inclusive ainda que não tomem as formas habituais para nossa
mentalidade. Inclusive desde este ponto de vista tudo apoia muito mais que contradiz a
idéia de uma universal Força consciente. Vemos, por exemplo, no animal, operações de
uma intencionalidade per feita e de um conhecimento exato, cientificamente minu cioso,
que estão muito além das capacidades da mentalidade animal e que o homem mesmo só
pode adquirir mediante uma prolongada educação e ainda então as usa com muito
menor rapidez e segurança. Estamos facultados a ver neste fato geral a prova de uma
Força consciente que trabalha no animal e no inseto que é mais inteligente, mais
intencionada, mais conhecedora de seu propósito, suas finalidades, seus meios e suas
condições, que a suprema mentalidade manifestada em qualquer forma individual sobre
a terra. E nas operações da Natureza inanimada achamos a mesma característica plena
de uma suprema inteligência oculta, “oculta nas modalidades de suas próprias obras”.
O único argumento contra uma fonte consciente e inteligente para esta intencionada
obra, este trabalho da inteligência, da seleção, da adaptação e a busca, é esse grande
elemento das operações da Natureza ao que damos o nome de desperdício. Mas
obviamente esta é uma objeção baseada nas limitações de nosso humano intelecto que
busca impor sua particular racio nalidade, bastante boa para os limitados fins
humanos, nas operações gerais do Mundo-Força. Vemos só parte do propósito da
Natureza e tudo o que não serve a essa parte o chamamos desperdício. Inclusive nossa
própria ação humana está cheia de um aparente desperdício, tão evidente desde o ponto
de vista individual que contudo, podemos estar seguros, serve bastante bem para o
grande e final propósito das coisas. Essa parte de sua intenção que podemos detectar, a
Natureza consegue fazê-la seguramente bastante apesar de seu aparente desperdício,
talvez realmente em virtude desse aparente desperdício. Bem podemos confiar nela no
resto que ainda não detectamos.
[1] I, 3.
[2] V, 8.
[3] É agora corrente a curiosa especulação de que a Vida ingressou na terra não
proveniente de outro mundo, senão de outro planeta. Para o pensa dor isso nada
explicaria. A questão essencial é como a Vida entra na Matéria e não como entra na
matéria desde um particular planeta.