Você está na página 1de 21

HERMENEUTICA PLURAL

Possibilidadesjusfilosoficas em
contextos imperfeitos

Organizadores
CARLOS EDUARDO DE ABREU BOUCAULT
JOSE RODRIGO RODRIGUEZ

Martins Fontes
Sao Paulo 2002
Nota de abertura
Pensaro Direito: umconvite...

Relembra comigo: 0 céu de Paris, o imensolirio, prémio do


{outono...
Compramoscorag6es na moga dasflores:
eram azuis e floresciam n’dgua.
Comegoua choverno nosso cantinho
€ 0 nosso vizinho veio, Monsieur Le Songe, umseco
[homenzinho.
Jogamoscartas, perdi até os olhos da cara;
me emprestaste os teus cabelos, perdi-os, ele nos derrotou.
Saiu pela porta, a chuva o seguiu.
Estavamosmortos e podiamosrespirar.

(Paul Celan, Lembranga da Franga,trad. Flavio R. Kothe)

Houve um tempo em que o mundotinha umsentido obje-


tivo. Um tempo em queera possivel falar sobre o homem, sobre
a liberdade, sobre o amor sem perder-se numateia de contradi-
¢des insolitveis. Ou ao menos era possivel pensar a possibili-
dade de um solo seguro para apoiar os conceitos filos6ficos;
perguntar-se sobre o homem,a liberdade e 0 amornaexpecta-
tiva de obter aiguma resposta. Afinal, nesse tempo, Deus ain-
da existia.
A dissolugao das sociedadestradicionais resultou na mor-
te histérica de Deus, que perde seu lugar de fundamento do pen-
sar. E uma histéria bastante conhecida, que se desdobrou em
rocessos variados, todos resultandoni

é (entre outras coisas) esta supressao de qualquer insténcia de


validade exterior 4 imanéncia humana. A partir de entao, fica
nas maos dos homensa possibilidade de forjar uma objetivida-
de qualquer. Moral, direito e politica, se possuem algum fun-
damento, é umfundamento artificial.
Este estado de coisas é figurado por Hegel, em sua forma
mais radical e degenerada, com. ©de forma
XVII HERMENEUTICA PLURAL NOTA DE ABERTURA XIX

extrema da subjetividade absoluta'. Nesta figura da razdo, a pelo esfacelamentoda tradicdo. Ha outros que, abragando com

2|
mode sua criatura que pode, a sua vontade, criar ou aniquilar.
fervor esta impossibilidade histérica de construgéo de um sen-
tido, buscam tornda-la transcendental, elevando-a a principio
Num estado de coisas comoeste fundamentalda atividade do pensar.
subjetividade, que declara sua autarquia sobre todas Nossaposicao é outra. Acreditamos que ainda exista es-
paco para u possivel nesse contexto de desen-
as inst@ncias: o elemento essencial de sua decisao sobre o que
cantamento. Sera umi
éa verdade, o direito, o bem é “‘a propria contingéncia de que
esta deciso poderia ser igualmente outra”>. Nao ha nenhuma
garantia, nenhum fundamentosdlido para os juizos a
Para os saudosos da mentalidade pré-moderna, resta mer- Pois se nao for possivel pensar nada exterior a subjetivi-
gulhar em um profundo desamparo e saborear a melancolia dade, nada de objetivo capaz de constrangé-la, a unica objeti-
vidadepassivel de ser pensada € a objetividade da propria es-
colha subjetiva. E uma escolha situada nestas condigdes de va-
1. HEGEL, G. W.F. Enciclopédia dasciénciasfilosdficas em compéndio
(1830.) Trad, Paulo Menezes. Sao Paulo: Loyola, 1995, vol. Ill: A filosofia do es- zio fundamental pode ter qualquer contetido: serd igualmente
pirito, § 512, p. 294; Principes de la philosophie du droit. Trad. Jean-Louis legitimo escolher 0 bem ou escolher o mal, isso ndo faz a me-
Viellard-Baron. Paris: Flammarion, 1999, §§ 129 ss., pp. 192-219. Acompanha- nordiferenga.
mos aqui a anilise de MULLER, Marcos Lutz. “A dialética negativa da moralida-
de e a resolugao especulativa da contradigao da consciéncia moral moderna”. Dis-
Nesta ordem irénica de razées, a propria idéia de humani-
curso. S&o Paulo: Discurso Editorial, n° 27, 1996, pp. 83-116. dade perde sentido, dissolvida em subjetividades autarquicas
2. “Cette subjectivité, en tant qu'autodétermination abstraite et pur certitude que no reconhecem nada que seja exterior a seus desejos. O
ne portant que sur elle-méme, volatise du méme coup toute déterminité du droit,
estabelecimento histérico de umasituag&o comoessa pode ser
du revoir et de l’existence en soi, en tant qu'elle est la puissande qui juge, capable
de déterminer, seulement d'elle-méme, pour un contenu, ce qui est bon, et en mé- predicado como um estado de liberclade absoluta® do sujeito,
me tempsla puissance a laquele le Bien, d’abord seulement représenté et devant completamente auténomo e, portanto, incapaz de compreen-
étre, est redevable d'une réalité effective. " Hegel, Principles de la philosophie du der critérios exteriores a si mesmo.
droit, § 138, p. 200.
3, “Nainstauragiio reflexiva dessa subjetividade-medida,a ironia se afir-
ma simultaneamente comoestando acimada medida recém-estabelecida e, por
isso mesmo, solta de todo vinculo que ela mesmacria. Ela reconhece a medida 5. Sobre este ponto,HABERMAS,Jiirgen. Direito e democracia: entre fac-
recém-estabelecida somente comovalida para os outros e, assim, valida parasi ticidade e validade. Trad. Flavio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Bra-
tHio-s6 no ato em que ao mesmo temporeafirma o seu poder de ir mais longe do sileiro, 1997, vol. I, pp. 35-47.
que os outros, de desprender-se dela ¢ estabelecer uma outra medida. (...) A uni- 6. “O espirito assimesta presente como liberdade absoluta: € a consciéncia-
ca objetividade que resta para a ironia € a propria atividade negativa de dissolu- de-si que se compreende de modo quesua certeza de si mesma ¢ a esséncia de to-
go universal de todo contetdo na forma do retorno reflexivo a pura intuigao do das as ‘massas’ espirituais, quer do mundo real, quer do supra-sensivel; ou, inver-
eu=eu, para o qual toda exterioridade e toda efetividade desapareceu.” MUL- samente, de modo quea esséncia e a efetividade so o saber da consciéncia sobre
LER, ob. cit., p. 99. si mesma. Ela é consciente de sua pura personalidade, e nela de toda realidade
4. “A ironia instaurard reflexivamente — 0 quea ética da convicgao absoluta espiritual: e toda a realidade é s6 espiritual. Para ela, o mundo é simplesmente sua
naoo fizera — a certeza de si mesma como0 principio que decide formalmente so- vontade, ¢ essa é vontade universal. E, sem ditvida, n&o é 0 pensamento vazio da
bre a natureza da verdade, do direito e do dever, colocando-se acima e desvinculan- vontade que se p6eno assentimento tacito ou representado, mas é a vontade real-
do-se absolutamente dessasinstancias, nao mais as reconhecendo implicitamente mente universal, vontade de todos os Singulares enquanto tais.” HEGEL, G. W. F.
como ainda fazia a ‘insinceridade inconseqiiente da convicgao absoluta.” Jdem, Fenomenologiado espirito, parte 11. Trad. Paulo Menezes. Petrépolis: Vozes, 1992,
ob. cit., p. 98. p. 94, com o perdaopela (dis?)torgdo dos conceitos...
REX HERMENEUTICA PLURAL NOTA DE ABERTURA XXI

Dai a famosa afirmagao de Theodor Adorno: é escandalo- permitir que tudo se precipite num pensamento dogmatico, me-
so explicar a barbaridade do holocausto’. Se formos incapazes ramentefinalistico!”.
de entender por que o holocausto € algo mau, talvez a ironia ja
tenha tomado completamente as consciénciase a barbarieja te-
nha se instalado no mundo. O holocausto deve ser encarado mundo. Renunciara esta possibilidade significa abragar uma
como umponto zero a partir do qual necessario construir uma posicao positivista radical, que concebe o Direito como mera
humanidade engajada na tarefa de evitar sua repeticdo. Ele ¢ técnica a servigo de um a/go que nao pode e nao deve ser pen-
umpadrdo, uma medida. sado!'. Nesse sentido, 0 positivismo juridico é a negagdo mes-
Nao é por acaso que Hanna Arendt caracteriza Diteito” ma da Filosofia do Direito. .
Todos os autores presentes nesta selegdo de textos parti-
Ilham desta recusa a deslegitimacao do pensamento filosdfico,
subjacente a algumas(infelizes) formulagdes do conceito de
modernidade. Independentementede seuhorizonte tedrico, to-
encarnagao historica da Lei, usou dos eles abragam a feoria como lembranga ou atualizacio da
e seu movimento na diregdo da concre- Gewpto grega que significa,literalmente, visdo do espetaculo.
tizacdo de seus objetivos, que se confundiam, na opiniao de Se apdés Kantnao é mais possivel para 0 sujeito pensar a si
seus protagonistas e defensores, com realizagao da justiga na mesmo como fora de um mundo que se oferece objetivamente
terra’. para a contemplagao humana, é possivel aind

sta tradicao de -
sa-se a pensar 0 Direito como mero instrumento, mera fecnolo- idéia de uma ordemsocial naturalizada em sua desrazao.
giaaservigo de objetivos quaisquer. Na consagradaterminolo-
gia de Tércio Sampaio Ferraz Jr., € 0 pensamento da filosofia
10. FERRAZJR., Tercio Sampaio.Introdugdo ao estudodo direito: tecnico,
que informa e sustenta a separacao entre dogmatica e zetética decisao, dominagdo. Sio Paulo: Atlas, 1991; Fungdo social da dogmdticajuridi-
como dois horizontes possiveis e necessdrios da reflexado, sem. ca. Sao Paulo: Revista dos Tribunais, 1980.
11. KELSEN, Hans, Teoria pura dodireito, Trad. Joao Baptista Machado.
Coimbra: Armenio Amado, 1976.
12. “Qualquer meditagio sobre a liberdade prolonga-se na concepgao de sua
7. “A exigéncia de que Auschwitz nao se repita € primordial em educagao.
possivel producdo, conquanto esta meditacao nao esteja sujeita pelo freio pratico e
Ela precedetanto a qualquer outra, que acredito nao deva, nemprecise justifica-la.
nemrecortada sob medidapara seus resultados encomendados. Entretanto, assim
Nao consigo entender comose temtratado téo pouco disso até hoje. Justifica-la
se tenha, comoa separacao sujeito-objeto nao é imediatamente revogavelpela decis&o auto-
teria algo de monstruoso, ante a monstruosidade do que ocorreu. Que
como ritdria do pensamento, do mesmo modo, tampouco existe unidade imediata entre
porém, tomado t&o pouca consciéncia emrelagdo a essa exigéncia, assim
teoria e praxis: ela imitaria a falsa identidade entre sujeito e objeto e perpetuaria o
das interrogagdes queela suscita, mostra que as pessoas nao se compenetraram do
concerne principio de dominagao,instaurador da identidade, cuja derrota é do interesse da
monstruoso sintoma de que a possibilidade de repeticdo persiste no que
ao estado de consciéncia e inconsciéncia destas.” ADORNO, Theodor W. “A edu-
verdadeira praxis. O contetido de verdade do discurso sobre a unidade de teoria e
praxis ligava-se a condigéeshistéricas, Em pontos nodais do desenvolvimento, de
cacao apés Auschwitz”. Palavras e sinais: modelos criticos 2. Trad. Maria Helena
ruptura qualitativa, podemreflexio e agao detonar-se mutuamente; mas nem mes-
Ruschel. Petropolis: Vozes, 1995, p. 104.
8. ARENDT,Hanna.Asorigens do totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. Sao mo entao sdo ambas a mesmacoisa.” ADORNO,TheodorW.“Notas marginais so-
Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 514. bre teoria e praxis”. Palavras e sinais: Modelos criticos 2. Trad. Maria Helena
9. Idem, ob.cit., p. 515. Ruschel. Petropolis: Vozes, 1995, p. 210.
XXII HERMENEUTICA PLURAL
PRIMEIRA PARTE

Hermenéutica juridica:
a configuracao de um conceito

Em nossa opiniao, todos nés, estudantes e professores de


filosofia, estamossituados neste fora artificial que mais pare-
ce umarefraciio, um desvio, uma parada: a contemplagio da
paisagem estatica, que se refaz assim que come¢amosa tentear
Novos passos.
Este é um lugar estranho. Um exterior interno ao mundo,
feito de palavras pouco confortaveis em figurar uma épica, que
rememora e que celebra a sua propria impoténcia. Uma ilusdo
extemporinea detotalidade, perdida em um mundo despeda-
cado. No entanto, permanecemosnesse lugar e convidamosto-
dosos leitores a nos fazer companhia.
Nosso convite é marcado pela ambigitidade, misto de amor
e crueldade; um convite para a divida e para o impasse. E diri-
gido para todos nds, amantes do Direito e da Justica, guardiaes
zelosos da certeza e da seguranga, da imobilidade... Pessoas
acostumadas a lidar com dogmas e com permanéncias, estra-
nhos a ambigitidade e a contradigao.
Plantar um ponto de interrogag&o na mente daqueles que
deveriam ter apenas certezas... Certamente, éuma maneira um
pouco atroz de convidar pessoas como nés para vivenciarmos
nossas angustias e perplexidades. Mas ¢ um convite sincero,
vindo de pessoas apaixonadaspelos quadrantes do humano... €
pelas suas contradigSes.

José Rodrigo Rodriguez

13. Idem, ob. cit., p. 226.


276 HERMENEUTICA PLURAL

WEBER, Max.“Rejeigdesreligiosas do mundo ¢ suasdireges”. En- Controlar a profusao de sentidos:


saios de sociologia. Org. e intr. H. H. Gerthe C. Wright Mills. Trad. a hermenéutica juridica como negacao
Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: LTC, 1982, 5? ed.
WOLFF, Francis. Dizer 0 mundo. Col. “Classicos ¢ Comentadores”.
do subjetivo!
Trad. Alberto Alonso Mufioz. Sao Paulo: Discurso Editorial, 1999.
José Rodrigo Rodriguez*

Para meu querido professor NelsonFerreira de Carvalho (in me-


moriam)

Poetas, fildsofos e juizes

Ojuiz, assim como0 poeta ¢ 0 fildésofo, é um habitante do


mundo das palavras. Como seus companheiros de cidade, ele
precisa aprendera lidar com a profusdo de significados que
nascem dessa convivéncia com seus companheiros no proces-
so de comunicacao. Mas seu papel nos dominios do sentido,
apesar de guardar semelhangas, nao se confunde como dos ou-
tros dois.
O poeta, livre dos entraves das leis da associagao’, pode se
dedicar a construir significados numa atividade relativamente
livre de quaisquer entraves externos 4 poesia. Pode gozar dos

* Professoruniversitario.
I. Nasceuda leitura em conjunto da obra de Ronald Dworkin, O império do
direito, realizada no Subgrupo de Teoria do Direito, parte do projeto coletivo da
pesquisa de Direito, morale politica: uma investigagdo a partir da obra de Jitr-
gen Habermas financiado pela Fapesp e sediado no Cebrap.
2. “A imaginagiio(...) é, com efeito, muito poderosa na criag&o como que de
uma outra natureza, com a matéria que Ihe da a natureza efetiva. Entretemo-nos
com ela onde a experiéncia nos parece demasiado prosaica; ¢ também naodeixa-
mosdetransformar a esta: decerto ainda segundoleis analégicas, mas no entanto
também segundoprincipios que esto mais altamente situados narazao(...); nisso
sentimos nossa liberdadeface 4 lei da associagao(...) de tal modo que, segundo a
elaborada
mesma, decerto emprestamos a materia da natureza, mas esta podeser
tornar-sealgo inteiramente outro, a saber, aquilo que transcende a na-
por ndspara
tureza.” KANT, Kant (IZ): textos selecionados.
HERMENEUTICA PLURAL A HERMENEUTICA JURIDICA E SEU SUJEITO 279
278

beneficios da autonomia da arte emrelacdo as outras esferas deslize sobre todas as coisas, constituindo seusignificado em
da sociedade: a arte deixa de ser parte de umatotalidade em harmonia com 0 movimento de suas fantasias.
que se integram de maneira indiferenciavel religido, politica, O filésofo® parece ocupar umlugar semelhante ao do poe-
direito, etc. para formar um espaco separado, dotadode crité- ta, desenvolvendo umaatividade marcadapela liberdadede cria-
rios proprios. cdo de sentidos encerrada a esfera da cultura. Caso o diagnds-
A autonomia da arte deve ser compreendida como parte tico weberianoesteja correto, pensar filosoficamente significa
do processo de separagao das esferas de valor, resultado do avan- pensar sem compromisso com a realizag&o de objetivos prati-
co da racionalizacao? que dissolveu as sociedadestradicionais cos: verdadepela verdade, arte pela arte; ou seja, grande liber-
dominadas pelo pensamentoreligioso. A sociedade passa a ser dadecriativa acompanhada deirrelevancia pratica’.
concebida como cindida em diversas esferas de valor regidas O juiz ocupa um lugar sui generis nésta paisagem do pen-
porleis proprias. samento. Sua atividade de criador de sentidos (ou de atualiza-
dor do sentido dos textos, pouco importa) ndo pode serlivre.
O desenvolvimento do intelectualismo e da racionalizagao
Sua fungao é conter a profusdo de significados para conformar
da vida modifica essa situagao. Nessas condigées, a arte torna-
se um cosmo devalores independentes, percebidos de forma cada
0 sentido dos textos juridicos aos esquadros do Estado de Di-
vez mais consciente, que existem por si mesmos. A arte assume reto, E, na concepgao corrente dasteorias sobrea interpretagao
a funco de umasalvacao neste mundo, nao importa como isso juridica, deve fazé-lo por meio de uma atividade interpretativa
possa ser interpretado. Proporciona umasalvagaodasrotinas da que reprima sua subjetividade. E preciso excluir, se possivel,
vida cotidiana, e especialmente das crescentes press6es do racio- todo e qualquer subjetivismo na apreciacgao dos casos concre-
nalismo teérico e pratico.* tos que se Ihe apresentam. A fungaiojurisdicional 6 vista como
espaco recortado pelas normasjuridicas, delimitado de modo
Num mundoestruturado desta forma, o poeta pode ocu-
par o papel de criador de sentidos novos sem que isso afete
. diretamente o funcionamentodas outras esferas sociais: a arte sbarazzata dellafunzioneliturgica che aveva avitoe poi delle imitazioni di ques-
é relativamente irrelevante para a economia,para a politica, para ta, viveva dell'idea di umanitd. L ‘autonomia percio vennetanto pit sconvolta
quanto meno umana diventava la societa.” ADORNO, Teoria estetica, p. 4. Wal-
a religiao', e 0 artista tem liberdade para deixar que seu desejo
ter Benjamin, numdiagnéstico diverso, acredita encontrar potenciais emancipato-
rios na arte: BENJAMIN,Obras escolhidas: magia técnica, arte e politica.
6. Excluimos deste comentario o papel da Filosofia do direito dos juristas,
3. “Webersees cultural rationalization in modern science andtechnology, no conceito de Norberto Bobbio. Paraeste autor, € preciso diferenciar este tipo de
in autonomousart, andin a religiously anchoredethic guidedbyprinciples. He Filosofia do Direito daquela praticada pelosfildsofos. A Filosofia do Direito dos
designates as rationalization every expansion ofempirical knowledge,ofpredicti- juristas nasce da atividade pratica que consiste emlidar com o direito positivo: é
ve capacity, of instrumental and organizational masteryofempirical processes.” um pensamentofilosdfico sobre 0 direito que nasce de problemas colocados pela
HABERMAS, The Theory of Communicative Action: Reason and Rationalization pratica. Nessa formulagio,este tipo de pensamento enquadra-se na hermenéutica
ofSociety, p. 159. objetivista de que falaremosa seguir. BOBBIO, Giusnaturalismo e positivismo giu-
4, WEBER,Textos selecionados, p. 252. ridico, pp. 40 ss.; LAFER, A reconstrugaodosdireitos humanos, pp. 48 ss.
5. Theodor Adorno dira que o prego da liberdade absoluta na arte € sua com- 7. A separagio entre as esferas nao é umproblema exclusivamente tedrico.
pleta irrelevancia social, o que ameaga seudireito de existéncia: “Infatti, restando Jana formulacao de Weber,tal conceito, um tipo ideal, pretende servir para com-
l'operad’arte pur sempre un fatto particolare, l’assoluta liberta che c’é in essa preendera sociedade. Portanto, saber se arte ¢ filosofia sao completamenteirrele-
entra in contraddizione col perennestato diilliberta vigente neltutto. Nel tutto il vantes significa, entre outras coisas, fornecerevidéncias sociolégicas que compro-
vema separacdo dasesferas devalor.
posto dell'arte é diventato incerto. L'autonomia che essa consegut dopoess'
A HERMENEUTICA JURIDICA E SEU SUJEITO 281
280 HERMENEUTICA PLURAL

estrito, que sera ocupado por um sujeito que precisa Jivrar-se é residual!!, Diante de uma pretensdoresistida, as pessoas sao
de sua singularidade para desenvolversua atividade conforme obrigadas a levar sua demanda aos tribunais por meio de agdes
umarigida metodologia. judiciais.
O monopodlio da jurisdi¢ao por parte do Estado estabele-
ceu a previsibilidade da produgio, execugao e aplicagao das
Controlar a profusao de sentidos: o Estado de Direito normasjuridicas, aumentando a seguran¢a juridica. O juiz €
pega-chave no funcionamento do Estado, pois é 0 responsavel
O juiz no pode ser livre porque o Direito nao é umaesfe- por dar uma resposta aquelas pessoas que se sentem injustiga-
ra separada dasoutras: a sentenga judicial serve a objetivos pra- das porterem tido seusdireitos violados. O monopélio da ju-
ticos, esta ligada a uma praxis, que ¢ a necessidade de decidir risdic’io deixa apenas um caminho para 4 busca de umasolugao
conflitos sociais dos mais diferentes tipos com o fim de manter para os conflitos'?. Por esta razo, 0 juiz esta obrigado a julgar,
a paz social®. Para que possa realizar esse objetivo, ¢ preciso nao podedeixar de entregar umaresposta para as questdes que
que o juiz disponha de umalinguagem quepossibilite sua co- Ihe sejam apresentadas sob pena de colocar em risco a paz so-
municac&o comas outras esferas sociais, caso contrario seria cial. Despojados do direito de resolver seus conflitos por si
impossivel decidir conflitos com o fim dedisciplinar condutas mesmos, os cidadaos dispdemapenas do recurso aos tribunais
no campoda economia,da politica e da cultura. para buscar uma solugao para suas desavengas. Priva-los dessa
Este entravea liberdade do juiz esta inscrito nas estruturas possibilidade significa colocar em risco 0 monopdlio estatal
do Estadode Direito. O estabelecimento do monopdlio da vio- da jurisdicdo, abrindo espago para umretrocesso em diregao a
léncia pelo Estadoretirou das pessoas o poder de recorrer a au- autotutela.
totutela’, 4 justiga de mao propria. Para que possam resolver Nos limites do Estado de Direito, 0 juiz esta obrigado, de
seus conflitos elas precisam recorreraos tribunais do Estado: a uma maneira oude outra, a realizar a vontade das normas juri-
possibilidade de exercer0 direito de acdo em sentido material!?
dicas que nascem das fontes de direito reconhecidas e autori-

8. O Direito deve também ser entendido como decisdo e, portanto, a exces-


em sentido material seja substituida pelo exercicio do direito de agao perante o
siva abertura para a variagao de sentido das normas, um excesso zetético, compro-
Poder Judiciario, Nesse sentido: PONTES DE MIRANDA, Tratado das agdes¢ Tra-
meteria o funcionamento da dogmatica juridica em seu carater tecnoldgico de ins- vol. 37,
tado de direito privado; SILVA, Revista Brasileira de Direito Processual,
trumento destinado a solugao de conflitos, FERRAZ JR., Fungdo social da dog- Frun-
pp. 103 ss. Sobre a idéia de posig&ojuridica ¢ relagdo juridica: HOHFELD,
matica juridica e IntrodugGo ao estudo do direito. s as Applied in Judicial Reasoning; LUMIA,Linea-
damental Legal Conception
9. GRINNOVER,Teoria geral do processo. do direito.
menti di teoria e ideologia del diritto,; CARNELUTTL, Teoria geral
10. Umapessoa6 titular de posigdes juridicas ativas em relagdo ao sujeito titu-
11. Por exemple, 0 artigo 502 do Cédigo Civil brasileiro permite que
passivo de umarelagio juridica, Estas posig6esjuridicasativas so derivadas ou de ou ameagado de violagao aja de suas prdéprias for-
lar do direito subjetivo violado
normas de conduta ~ 0 poder de exigir um comportamentoou a abstengao de um
cas em caso de turbacfo ou esbulho.
comportamento de umsujeito passivo (direito subjetivo emsentido estrito) — ou de
12. Atualmente, assistimos a um processo que poderiamos chamar, ironica-
normas de competéncia — 0 poder de modificara esfera juridica do sujeito passivo
mente, de fuga da jurisdigdo estatal por parte de empresas multinacionais ¢ outros
semsua anuéncia (direito potestativo). A resisténcia ao direito subjetivo em senti-
atores do processode globalizagio da economia. Outros meios de solugao de confli-
doestrito faz nascera pretensio de exigir que 0 sujeito passivo realize ou deixe de arbitragem na-
tos esto sendo desenvolvidos ¢ aperfeigoados como,por exemplo, a
realizar a conduta prescrita ou proibida pela normajuridica. A existéncia da pre-
cionale internacional. Para repensaro papel do juiz de forma completa sera necessa-
tensdo faz nascer a acaio em sentido material, possibilidade de constranger 0 sujei- uma
rio passar porestas questies,as quais nao sao objeto de andlise neste artigo. Para
to passivoa realizar a conduta imposta pela norma.Simplificando o problema, que
discussdo destes problemas, ver: FARIA,O direito na economia globalizada.
exigiria maiores especificagdes conceituais, nosso sistema juridico exige que a ago
283
HERMENEUTICA PLURAL A HERMENEUTICA JURIDICA E SEU SUJEITO
282
de com-
a) um modelo operacional que tipifica uma ordem
rtame ntos
zadas!? pelo ordenamento juridico. Resumidamente, o Direito peténcia, ou disciplina uma classe de compo
moderno configura-se da seguinte maneira: possiveis;
ordenamento
b) devendo ser interpretado no conjunto do
1. Any norm maybe enactedas law with the claim and ex- juridico;
nte, 0 cons-
pectation that will be obeyed byall those whoare subject to the c) a partir dos fatos e valores que, originariame
authority of the political community. tituiram.'°
2. The law as a whole constitutes a system ofabstractrules,
o como
which are usually the result of enactment, and the administra- MesmoFrangois Geny, que normalmente é citad
dade total para in-
tion ofjustice consists in the application of these rules to parti- precursorda idéia de que 0 juiz deveter liber
adic al da idéia
cular case. Governmental administration is likewise bound by terpretar os textos juridicos, era um defensorr
rules of law and conducted in accordance with generally formu- fica servir ao Estad o de Direito. Ao exam!-
de queserjuiz signi
és que se or-
lated principles that are approvedorat least accepted. nar a atuacao do juiz Magnaud, magistrado franc
3. The people who occupypositions of authority are not interpretar o direito para além
gulhava de sua liberdade para
personalrulers, but superiors who temporaryly hold an office by ament o, fazen do justiga
das normas reconhecidas pelo orden
virtue of which they possesslimited authority. poder osos, Geny
para os humildes e punindo os abusos dos
4. The people who obeythe legally constituted authority
afirmou:
do so ascitizens, notas subjects, and obey the “law”rather than
the official who enforcesit.' certant, c’est
Mais, ce qui est plus grave et vraiment décon
de Chateau-Thierry,
que les jugements, ayant jllustré le Tribunal
Juizes nao sao legisladores: nao detém um mandatoeleti- uns favorables aux misé-
si on les prend dans leur ensemble, les
vo que os legitimem comorepresentantes da vontade popular. reux, les autres sévéres aux prétendus
privilegiés, ressentent, a
Por definigio, sua atividade, por mais criativa e inovadora que et laissent échapper
peu prés tous, um esprit de basse politique,
possaser, deve se enquadrar nos limites ditados pelo direito orale , qui troub le étrangement la
un relent delittérature élect
positivo e pelas estruturas de organizagao do poder do Estado. de la justice (grifo meu). Et, Vattitude de
sereine atmosphere
que pour se
Naspalavras de MiguelReale: leur auteur, qui n’a quitté son siége de magistrat,
pas, faite pour atte-
poserenpoliticien démagogue, n’est, certes
d on analy se, en vue
Destarte, alterada a visio da experiéncia normativa, que nuercette impression. Bien mieux. Quan
fique , les décis ions pri-
deixou de corresponder a mera estrutura légico-formal, para ser d’en caractériser au fond 1a portée spéci
y relév e d’ étran ges dispara-
entendida em termos retrospectivos defontes e prospectivos de cipales du Président Magnaud, on
cionl a sincer ité oula pondé -
modelos, isto 6, em razao da estrutura histérica concreta, 0 pro- tes, qui tendraient 4 mettre en suspi
blema hermenéutico deve passar a ser resolvido, partindo-se do ration de leur auteur.'®
pressuposto de que toda normajuridica ¢:

13. BOBBIO,O positivismojuridico: ligdes de filosofia do direito, pp. 161- um novo paradigma herme-
15. REALE, Fontes e modelos dodireito: para ;
79. Na opiniao de Bobbio, 0 juiz nao pode ser fonte originaria de direito, mas pode ee
néutico, p. 109. essai
ser fonte derivada nos casos em que, por exemplo, esteja autorizado a julgar por 16. GENY, Méthoded'interpretation et sources en droit privé positif:
eqiiidade. critique, p. 291.
14. BENDIX, Max Weber: An Intelectual Portrait.
ee
285
284 HERMENEUTICA PLURAL A HERMENEUTICA JURIDICA E SEU SUJEITO

no das
Toda interpretacao juridica é um objetivismo tivismo, independentemente de sua matriz tedrica: gover
leis, e nao governo dos homens. Por via de conseqiiéncia, como
busca de
O modode proceder do juiz Magnaud, na opiniao de Geny, a interpretagdo juridica ¢ vista como um processo de
ode-
caracteriza-se pela preponderancia da “apreciag&o subjetiva” um sentido objetivo para as normas juridicas, esse sentid
verser independente da vontad e do sujeito da interpr etagao.
que dominae animatodo o processo deseus julgamentos.
Afirmarque a interpretagao juridica, no contexto do Esta-
ca negar
Celui-ci prétend voir, lui-mémeet du premiercoup, le mo- do de Direito, ¢ essencialmente objetivista nao signifi
a existéncia da dualid ade vontad e da lei/von tadedo legis lador
tif de la décision. Et, sil fat intervenir la loi, c’est pour enesti-
o juridic a. Na verdad e, 0 que estam os
merla valeurs a son jugementpropre. Aussi, critique-t-il, de haut na teoria da interpretagi
tentando demonstrar é que esta dualid ade estd assent ada sobre
et sans ménagements,la jurisprudenceétablie, qui ne répondrait
o inter-
pas a ses vues personnelles.!” um elemento que no pode ser questionado: tanto para
e da lei como critéri o de interp re-
prete que acredita na vontad
que defend e a vontad e do legisla dor,
Genyidentifica o subjetivismo do juiz Magnaud com a ar- tag4o quanto para aquele
bitrariedade na interpretacdo do direito, em defesa da seguran- trata-se de interpretar um conjunto de textos reconhecidos como
as
ga juridica. Este valor da seguranga juridica e 0 combate ao juridicos por um sistema de fontes de direito. Para ambas
esta 0 juiz burocr ata, que deve
subjetivismo do juiz sao idéias comuns a praticamente todos posicées, em primeiro plano
os tedricos do direito. interpretar os textos de modo objetivo, sem misturar sua subje-
, em
Por exemplo, falar em direito natural, seja numa socieda- tividade nas sentengas, sem se deixar levar por si mesmo
i-
de tradicional, seja num contexto moderno,significa buscar busca de um ideal de imparcialidade em que juiz é conceb
do, primordialmente, como funcio nario da justiga .
algo de estavel e objetivamente pensavelpara servir de funda-
mento para o Direito e, por via de conseqiiéncia, para as deci-
s6es judiciais que lidam diretamente com o direito positivo. Da
Kelsen e os “transbordamentos
mesma maneira, 0 paradigma da filosofia do direito, nascido
de um subjetivismo excessivo”
da erosdo do paradigma do direito natural, “é a busca de um
saber confidvel em matéria de Direito, provocadopela fratura Colocado lado a lado com a exposigao que fizemos aci-
da crenga do Direito Natural”!’, ou seja, a busca de uma obje- o juridi-
ma, o diagndéstico de Hans Kelsen sobre a interpretaga
publi-
tividade que, no 4mbito de decisao judicial, devera servir de ca, exposto no capitulo final da Teoria pura do direito,
limite a interpretacao do juiz. cada em 1960, é completamente descon certan te:
- Nesse sentido, parece razodvel afirmar que todo pensa-
outra
mento modernosobre o direito tem comofinalidade buscar al- A interpretagio juridico-cientifica nao pode fazer
gum conhecimento objetivo sobre o direito, ou seja, é um obje- ceras possiv eis significag6e s de uma norma
coisa senaoestabele
pode to-
juridica. Como conhecimento do seu objecto, ela nao
es por si mesma reve-
mar qualquer decisdo entre as possibilidad
que, segundo a
17. Idem, ibidem, p. 299. ladas, mas tem de deixartal decisdo ao orgao
18. LAFER,ob. cit., p. 41. Segundo Celso Lafer, a erosao do paradigma do ordem juridica, é competente para aplicar 0 Direito.
direito natural teve como causas a secularizagdo do Direito concebido comosepa-
rado da Teologia, sua sistematizagdo realizada pelos Cédigos; a positivagdo do o ma-
Direito que passa a ser concebido comodireito positivoe, finalmente, a percep¢aio interpretagiiojuridico-cientifica tem de evitar, com
de que uma norma juridi ca apenas per-
do Direito como fendmenohistdrico e, portanto, algo contingentee variavel. ximo cuidado, a ficgo
287
286 HERMENEUTICA PLURAL A HERMENEUTICA JURIDICA E SEU SUJEITO

mera
mite, sempre e em todos os casos, uma s6 interpretacio: a inter- hermenéutica. E ademais nao explica a diferenga entre a
pretacdo <<correta>>. Isto é umaficgao de que seserve a juris- opini&o, nao técnica, sobre 0 contetido da lei, exarada por alguém
nador
prudéncia tradicional para consolidar 0 ideal de segurangaju- que sequer tenha estudado Direito, e a opiniao do doutri
ridica. Em vista da plurissignificagdo da maioria das normas que busca, comos meios da razao juridic a, o sentido da norma.
nte politica.
juridicas, este ideal somente é realizdvel aproximativamente. A diferenca, em termos de aceitagao, resta merame
filoso-
Nao se pretende negar que esta ficcao de univocidade das Ouseja, para Kelsen, ¢ possivel denunciar de um Angulo
co), os limites da hermenéutica, mas nao € possive l
normas juridicas, vista de uma certa posicao politica, pode ter fico (zetéti
grandes vantagens. Mas nenhumavantagem politica podejusti- fundar umateoria dogmatica da interpretag’o.”°
ficar que se faga uso desta ficc&o numaexposic¢ao cientifica do |
|
Direito positivo, proclamando como tnicacorrecta, de um pon- O diagnéstico kelseniano parece se confirmar quando
do fe-
to de vista cientifico objectivo, uma interpretacdo que, de um i acompanhamos a argumenta¢ao de Geny em sua analise
ponto de vista politico subjectivo, é mais desejavel do que uma |
némeno Magnaud. Frango is Geny nos conta que, apesat de ter
outra, igualmente possivel do pontode vista légico. Neste caso, o juiz Magna ud nao chego u
conquistado muitos admiradores,
com efeito, apresenta-se falsamente como verdadecientifica aqui- como um fendm eno iso-
lo que é tao-somente um juizo devalorpolitico.!°
a formar umaescola, permanecendo
caracteris-
lado. Este desfecho, segundo Geny, deveu-se a duas
ticas do sistema juridico francés:
Kelsen afirma que a ciéncia do Direito nfo tem meios para
garantir que a interpretacdo do direito tenharesultados wnicos. dos
a) os magistrados sio capazes de percebera inconsisténcia
A profusao de sentidos nao podeser controlada cientificamen- d, bem como suas
procedimentos de umjuiz como Magnau
te: a ciéncia juridica sé tem poder para apontar a variedade de incoeréncias;
/
interpretagdes sem estabelecer critérios para decidir por qual dor,li-
b) a hierarquia judiciariainterviria em seu papel modera
delas devemosoptar. mitando e fazendo com que parass em de acontec erestes irans-
Mais do que isso, a opcao por umadas interpretacdes é bordamentos de umsubj etivis mo excessi vo (les débordements
politica. Deve estar fundadana anilise do direito positivo, mas d’un subjectivisme outrancier).”"
nao ha meios para afirmar que ela é a melhorinterpretacao en-
tre todas as interpretagdes possiveis. Nao hacritério cientifico Na analise de Geny, as instituigdes judiciarias francesas
ape
para decidir sobre qual caminho seguir: a opgao do juiz é sub- disporiam apenas de sua propria tradigao e dos tribunais
ordame nto do sujeito da interpr eta-
jetiva, arbitraria. Ele pode escolher entre diversas interpreta- riores para conter 0 transb
juridico
ges possiveis, igualmente coerentes como ordenamento juri- c&o judicial em suas sentengas. Nada no pensamento
dico positivo. As conseqiiéncias desta visdo so surpreenden- poderia atuar comofreio ao poderjurisdicional. —
so-
tes para os principios de um Estado de Direito moderno: O desenvolvimento posterior do pensamento juridico
uma res-
bre a interpretagdo juridica pode ser pensado como
eitura,
Esta coeréncia de Kelsen comseus principios metédicos, posta a este problema colocado por Kelsen. Em nossal
e ha-
porém,nos deixa sem armas. Sua renuncia pode ter um sentido trata-se de responder a seguinte questao: visto que sempr
tex-
herdico, de fidelidade 4 ciéncia, mas deixa sem fundamento a vera diversas possibilidades interpretativas de um mesmo
maiorparte das atividades dogmaticas, as quais dizem respeito a

20. FERRAZ JR., IntroducGo ao estudo do direito, p. 238.


19. KELSEN,Teoria pura do direito, pp. 472-3. 21. GENY, ob. cit., p. 306.
289
288 HERMENEUTICA PLURAL A HERMENEUTICA JURIDICA E SEU SUJEITO

to juridico, como controlar a escolha do juiz garantindo que ela Raz4o pratica comocontrole do subjetivismo
seja 0 mais Coerente possivel com 0 ordenamentojuridico? Em neo
outras palavras, como podemos nos defender da vontade do Em linhas gerais, o pensamento juridico contempori
ldgica forma l como métod o por ex-
sujeito da interpretagao, impondolimites a sua subjetividade caracteriza-se por negar a
co. Em seus desen volvi mento s
arbitraria? celéncia do pensamento juridi
compl etame nte aband onada a
Pressupomos nesta andlise que o controle relativo das in- mais recentes, parece ter sido
juridi co consis tiria apena s
terpretagées possiveis, que se deve ao fato de o intérprete es- idéia de que interpretar um texto
co, para es-
tar necessariamente situado nos limites de um Estado de Di- | em aplicaro raciocinio dedutivo, 0 silogismo juridi
gerals € casos concre-
reito, € insuficiente para garantir seguranca juridica. Seria fa- | tabelecer uma mediac4o entre normas
cil demonstrar, em qualquer ramo dodireito, como é possivel || tos?°, No excelente resumo de Alexy:
criar e recriar interpretagdes absolutamente contraditdrias | that the
“tt can [...] no longer be seriously maintained
com o mesmomaterial juridico, bem como é possivel qualifi- l subsu mp-
application of laws involves no more than a logica
car juridicamente”*, de formas as mais diversas, os mesmos es. This obser va-
tion underabstractly formulated major premis
fatos, modificando 0 regime juridico ao qual eles devem es- the few points of agreem entin
tion by Karl Larenz marks one of
In many cases,
tar submetidos. Pois a clareza da norma, como observa Pe- contemporary discussionsoflegal methodology.
relman, muitas vezes nao passa de falta de imaginagio do in- tive statem ent which expres ses a judgment
the singular norma
térprete”’. a legal disput e is not a logica l conclu sion derived
resolving
valid taken toge-
Além disso, a tradigaéo das interpretagdes repetidas pelos from formulationsof legal normspresupposed
assume dor prove n to be
tribunais nao é freio suficiente para o juiz arbitrario, pois, em ther with statements of fact which are
reason s forth is: (1) the vague ness of
nosso sistema juridico, 0 magistrado tem o poder de decidir true. Thereare at least four
possibility ofconf lict betwe en norms , (3)
também sobreesta tradigao”*. Ele pode inovara interpretacdo, legal language,(2) the
ent which do
the fact that there are cases requiring a legal statem
deixandode ladoa reiteragdo constante de julgamentosunifor- y (4) the possi-
notfall under any existing valid norm, and finall
mes e, por esta razdo, podemosdizer que a jurisprudéncia nao which is contra ry to the
bility, in special cases, of a decision
é dotada de umacoercibilidade necesséria”>. wording ofa statute?’

a
Mesmo entre os J6gicos juridicos ha consciéncia de que
in-
22. A qualificagao juridica é a “operagdo que consiste em confrontar dois logica formal nao pode dar conta de todos os problemasda
sistemas conceituais, um que descreve umasituag&o de vida (Lebensverhdiltnis, terpretacio juridica:
Fatti di vita umana) e outro que confere a essa situagao a sua qualificagao juridi-
sas sao
ca”. Prossegue o autor: “Contrariamente a umaopiniao bastante difundida junto A Logica somente garante 0 seguinte: se as premis
aos enunc iados descri tivos) ou vdli-
aos juristas, a operagao de qualificag&o nao € uma passagem do fato ao direito, verdadeiras (no que tocam
sendo entao o fato entendido como um simplesdado existencial, umafactualida-
de emestadobruto. Para serem apreendidos pela normajuridica, os fatos devem
ser introduzidos em um aparelho conceitual, o da linguagem. Por mais elaboradas filosofia de la interpre-
que possamparecer, as definiges juridicas se referem, em ultima instancia,a lin- 26. REALE,ob. cit.; RECASENS-SICHES, Nueva
Z, Metodo logia da ciéncia do direitos ENGISH, In-
guagem‘usual’, ‘corrente’.”, RIGAUX,“Qualificagdo”, pp. 655-6; ver também A tacion del derecho; LAREN
geral do direito; pes
lei dos juizes. trodugdo ao pensamento juridico; BERGEL, Teoria
a: problemas fundamentais, além de outros autores, alguns
23, PERELMAN,Logica juridica, p. 51. Metodologia juridic
24. HART, O conceito de direito, p. 17. deles citados adiante.
2
25. REALE,ob.cit.; BOBBIO,ob.cit. 27. ALEXY, A Theory ofLegal Argumentation, p.
290 HERMENEUTICA PLURAL A HERMENEUTICA JURIDICA E SEUSUJEITO 291

das (no que tocamas proposigGes prescritivas) ¢ 0 processo in-


zos®'. Klaus Gunther, aparentemente também situado nos do-
ferencial-dedutivo esta sintaticamente correto (congruéncia na
minios da razfo pratica, busca uma teoria que garanta a coe-
relagéo conseqiiencial, em sentido husserliano), entdo a conclu-
sao ousentenga (a proposigao prescritiva em que se verte a deci- réncia e a justificacao das decisdes judiciais”.
sao judicial) ¢ verdadeira ouvalida, respectivamente. A abordagem da interpretagao a partir da idéia de umara-
Masa Logica mesma é impotente para escolher a premis- Zao pratica é evidentemente um avango emrelagao 4 posigado
sa maior, isto é, a proposigdo normativa geral. Nao é potente de Hans Kelsen. Mas, para 0 problema que buscamosabordar,
para esta selecao justamente porque ndo tem meios para decidir elas continuam a ocupar 0 mesmo ponto de vista em relagdo
sobre o conteudo normativo da proposi¢do juridica.® ao sujeito da interpretacdo, negando sua subjetividade. Umsu-
jeito da interpretac&o como 0 juiz, pessoa com nome e sobre-
As propostas tedricas atuais procuram buscar maneiras de nome, responsavelfinal pela interpretagao juridica, nao ¢ te-
controlar a op¢ao valorativa que 0 juiz pode fazer ao interpre- matizadoporessasteorias da interpretagao.
tar uma norma juridica. E um pressuposto amplamenteaceito O estudotedrico da interpretagao tem buscado descobrir
que a interpretagao é sempre necessaria, ndo existe norma sem quais sio os contornos do lugar que o juiz ocupa no quadro
interpretacdo, e que as interpretagdes possiveis de uma norma institucional, qual a extensdo e a configuragao de seu espago
num ordenamentosao variadas. Assim, para que se possa falar para julgar. Mas o sujeito que ira ocupareste espaco nao é ob-
numa racionalidade da atividade jurisdicional contra Kelsen, jeto de estudo. E comose ele fosse dedutivel das regras que
a atividade do juiz passa a ser concebida como uma modalida- governam razao pratica, assim como 0 juiz positivista era de-
de de razao pratica” sujeita a regras e, portanto, passivel de dutivel da maquina formal do silogismojuridico. Por meio des-
controle. tas abordagens, s6 temos acesso ao juiz racional em geral, ¢
Nesse sentido, Robert Alexy fala em diversas propostas no ao sujeito real que tem diante de si um caso concretoreal,
de “objetivagao do problemadosjulgamentosde valor’? antes ambosirrepetiveis e irredutiveis a qualquer regra da razao ou
de apresentar sua teoria da argumentagdo juridica que é conce- conceito juridico abstrato*>.
bida como umaespécie de discurso racional pratico. Chaim E evidente que as normas juridicas selecionam aspectos
Perelman, negando a idéia de que os juizos de valor sejam com- dos casos concretos que devem ser examinados tendo em vista
pletamente arbitrarios, afirma que seu projeto é desenvolver os critérios estabelecidos previamente pelo ordenamento juri-
umafilosofia pratica que dé conta da racionalidade dessesjui-

31, PERELMAN, ob. cit., p. 137


28. VILANOVA,Asestruturaslégicas e 0 sistema do direito positivo, p. 317. 32. GUNTHER, Uma concep¢ao normativa de coeréncia para uma teoria
29. Salvo engano, a retomada daraz4o pratica para pensar o Direito se da discursiva da argumentacao juridica.
por duas vias: Aris{dteles e 0 conceito de prudéncia, como em ChaimPerelman e 33. GUNTHER,Klaus (ob. cit.) e DWORKIN, Ronald (O império do direi-
Recaséns-Siches; e /mmanuel Kant, caso de Robert Alexy e, numahipotese a ser to) desenvolvemsuas teorias da interpretagao do ponto de vista do juiz, recons-
comprovada, Klaus Gunther (também o caso de Jiirgen Habermas e John Rawls, truindo a partir dai as necessidades de coeréncia e justificagao das sentengas, ao
mas nenhumdos dois dedicou-se especificamente a pensar a Teoria do Direito). contrario de Habermas(capitulo V de Direito e democracia), que aponta para a
Fique claro que esta avaliagdo estd longe de ser precisa. Seria necessdrio funda- necessidade de uma hermenéutica construida a partir da insergao da jurisdigdo no
menta-la melhor, examinando exaustivamenteas teorias que se apresentamno ce- conjunto dasinstituigdes, abordandoa atividadejurisdicional, por assimdizer, “de
nario filoséfico contemporaneo. No prefacio de 1963 de sua Filosofia do direito, cima”. Preferimos a abordagemdos dois primeiros autores, pois acreditamos que
Carl J. Friedrich faz afirmagao semelhante a nossa. Ver FRIEDRICH, La filosofia 0 juiz est4 mais proximo do mundo da vida do que os mecanismosinstitucionais
del derecho, p. 10. do Direito. Além disso, nosso objetivo é apontarpara a necessidade de tematizaro
30. ALEXY, ob. cit., p. 7. autor da interpretagao judicial.
292 HERMENEUTICA PLURAL A HERMENEUTICA JURIDICA E SEU SUJEITO 293

dico. Mesmo numa interpretagdo das mais simples, destinada a O quesignifica ser autor de uma interpretacdo?
solucionar um caso pouco complexo, os fatos nfo sdo relevan-
tes em sua totalidade para o Direito: sera considerado fato juri- Até porfidelidade ao nosso problema, eu gostaria de relatar
dico apenas aquelaparte do fato real que seja subsumivel a uma umaexperiéncia pessoal que nasceu da convivéncia com meu
normajuridica**, pai, Antonio Rodriguez, na época juiz no Estado de Sao Paulo,
Masparece também evidente que as normas juridicas Titular da 3" Vara Civel do Foro Regional de Santo Amaro.
nao podem interpretar a si mesmas. Para haverselecao dos fa- Um deseus tltimos casos julgados emprimeira instancia
tos relevantes é preciso que o autor da interpretacdo olhe, pelo tratava de um pedido de indenizagdo por danos materiais e
menos uma vez, para 0 conflito em suatotalidade, sob todos morais dirigido a umaclinica de tratamento psicologico. Um de
os seus aspectos singulares, sem os dculos dos textos juridi- seus pacientes havia cometido suicidio enquanto estavainter-
cos, e decida como devera qualifica-lo juridicamente e, con- nado sob os cuidados médicosda clinica, enforcando-se dentro
seqiientemente, quais serdo os textos normativos relevantes para de seu quarto. A esposa do paciente propusera a agao buscando
sua disciplina. Além disso, 0 juiz tem o dever de guiar os responsabilizar civilmente a clinica pela morte de seu marido.
debates nointerior de um processo, dirigindo a instrugdo pro- Meupaificou particularmente perturbado com esse caso.
cessualpara obtertodos os elementos relevantes para a forma- Naoera a primeira vez que eu o via perder 0 sono pensando
cao de sua convicgao. numasolucdo para um processo. Apesarde diversas tentativas,
Aofime ao cabo, independentemente da teoria hermenéu- nunca consegui identificar temas ou areas do direito que fos-
tica que 0 juiz adote, independentemente dasestruturas do Es- sem especialmente sensiveis para ele. Seu esforgo pessoal em
tado de Direito, o que temos diante de nds numainterpretacio
realizar umaboa instrug4o processual e em esmiucar paciente-
juridica é um sujeito singular diante de um conflito humano
mente cada elemento do caso concreto nao fazia distingdes.
igualmente singular.
Durante muito tempo, imaginei que meu pai, bem no fun-
Essas singularidades, do juiz e do caso concreto, devem
do, devido a suahistéria de vida, convicgdes politicas e filosd-
ser colocadasno primeiro plano num estudo sobrea interpre-
ficas, tivesse escolhido a magistratura para fazer justiga aos
tacdo juridica. Normalmente, estes dois aspectos do proble-
mais pobres e punir a arrogdncia dos mais fortes. Mas essa im-
ma sdo abordados mediatamente, deduzidos das regras gerais
presso foi se desfazendo conforme eu avangava no estudo do
da racionalidade, dedutiva ou pratica, pouco importa: em am-
Direito e passava a ter condiges de compreender suas senten-
bos os casos, 0 juiz ¢ 0 burocrata que tem deveres em relacao
gas. Suas inquietagdes eram de outra ordem. Nao decorriam de
ao Estado de Direito e deve limitar sua subjetividade em no-
me doprincipio da legalidade. E preciso que contenha seus um desejo maniqueista de instrumentalizar a ordemjuridica em
nome dajustiga social.
impulsos singulares, que limite seu poderde interpretar cria-
tivamentepara evitar qualquer transbordamento subjetivo ex- Em todos os julgamentos que presenciei, especialmente
ceSsstvo. nas audiéncias de instrug&o em que meu pai deparava com os
sujeitos envolvidos na disputa, nunca o senti completamente a
vontade, completamente trangiiilo com o desenrolar dos acon-
tecimentos. Sua condugaéo da audiéncia era processualmente
rigorosa, mas sempre senti em seu modode agir e de lidar com
34. PONTES DE MIRANDA,ob.cit. os conflitos uma frustracao antecipada pela decisdo que iria
295
HERMENEUTICA PLURAL A HERMENEUTICA JURIDICA E SEU SUJEITO
294
sido internado, na-
um historico de tentativas de suicidio ¢ tinha
proferir. Mesmo apés umainstrugio extremamente detalhada, ntativas frus-
quela ocasiao, devido a uma de suas inumeraste
mesmoapos esforgos incessantes em busca dos mais diversos
tradas da acabar com a propria vida.
meios de prova, apés interrogatérios minuciosos, eu sentia em O que mais me incomodou em todo esse episddio,
do pon-
seu olhos umasensacio de impoténcia que se traduzia em sen- to de vista pessoal, era a incapacidade de meu
pai em vestir de
tencas enormes, as quais se estendiam, quase sempre, por mais s magis trado s
modo altivo e orgulhoso, como o fazem muito
de trinta e, as vezes, por mais de cem paginas. E mesmo assim, o sujeito em um
que conheci, uma segunda pele que dissolve
nao raro, eu ficava com a sensagao de que meupai ainda acha- o proprio e trejeitos caracteristicos,
burocrata, com vocabulari
va que algumacoisa tinha escapadoao seu exame. julgamento s. Por que se incomo-
e garante a padronizagao dos
O julgamento do caso desuicidio foi particularmente difi- dicamente bastan-
dar tanto com tantos casos, muitos deles-juri
cil para ele. A primeira vez em que me contou os fatos que lagao positiva ao
te simples, se 0 que bastava era aplicar a legis
examinava, dentre inimeras outras que se seguiram, meu pai dominante dostri-
caso concreto, ou seguir a interpretagaéo
caso concre-
olhava constantemente para 0 chio e alisava com freqiiéncia bunais? Sua consciéncia da singularidade de cada
pouco usualseus cabelosgrisalhos, Estava visivelmente angus- to era completa. Como nos ensina Engish:
tiado e ansioso. Depois de discutir durante um bom tempo al-
trata-se prima-
guns detalhes do caso comigo, pediu que eu obtivesse alguns Na subsunsio, tal como agora a encaramos,
idual a hipdtese ou
livros que discutissem 0 tema do suicidio para que ele pudesse tiamente da sotoposigaéo de um caso indiv
dinag do ou enqua dramen-
estudar. tipo legal e nao directamente da subor
uma espécie de casos . Em segundo
Demorei um pouco para conseguir os livros devido a mi- to de um grupo de casos ou
nte que, como ja acent uamos , nos re-
nha ignorancia no assunto ¢ 4 dificuldade de encontrar alguns lugar, devemoster prese
ngdéo como wma subsu ngao nova, uma sub-
deles, com edigdes esgotadas. Claramente angustiado, meu pai presentamos a subsu
nto, como simples
sungao a fazerpela primeira vez, e ndo, porta
me cobroudiversas vezes a obtengdodas obras. Tenho todos os vezes foram fei-
repeticiio rotincira de subsungoes que ja muitas
livros que consegui reunir diante de mim, no momento em que
tas para casos do mesmo tipo.
escrevoestas linhas, dentre eles, o trabalho classico de Durk-
heim,O suicidio, assim comoa tradugao da colegdo “Os Pen- mento de
O que meparece mais perturbador no comporta
sadores” de O mal-estar na civilizagdo, de Freud, e Eros X Ta- um determinado
meupai era que, mesmo quando a soluco de
natos, além de O homemcontra si mesmo, de Karl Menninger. a menos So-
caso era relativamente simples, isso nao significav
Gostaria que ele ainda estivesse vivo para ler o livro de Pierre era softimento , agora ja nao tenho
. frimento (aos meus olhos
Fédida, Depressdo. doteo r do caso, suas caract eristi-
amente, anotando e tanta certeza). Dependendo
Meupaileu todos os livros apaixonad de um esforgo
cas e das pessoas envolvidas, eu era espectador
sublinhando diversas passagens, sem fazer nenhum comenta- juridicos, mul-
monstruoso de estudo e interpretagaio dos textos
rio comigo. Nao tive coragem ainda, quatro anos depois de sua e frustr acéio com o resultado
tas vezes seguidos de insatisfagao
morte, de examinar os livros para ver quais trechos ele subli- nte adequado e, nao ra-
final que, a meusolhos, era perfeitame
nhou, quais as passagens que mais Ihe chamaram a atengao. ras vezes, brilhante.
Aofinal de umas trés semanasdeleitura ininterruptas e encer-
radaa instrugio processual, ele se sentiu em condi¢ées de pro-
ferir sua sentenca que, comoera de esperar, condenavaa clini-
35. ENGISH,ob. cit., pp. 94-5.
ca por culpa in vigilando devido ao fato de que 0 paciente tinha
297
296 HERMENEUTICA PLURAL A HERMENEUTICA JURIDICA E SEU SUJEITO
as, conceitos.
Sempre me incomodei com a dificuldade de meu pai em ca a servico de categorias, silogismos, esquem
Quan-
Quanto mais préximos dos homens, mais Juristas somos.
vestir a pele do juiz burocrata, o que certamente faria dele uma catego rias ¢ dos concei tos,
to mais proximos da logica ¢ das
pessoa maistranqiiila, mas com certeza muito menosinteres- nao somos menosd o que isso.36
mais rabulas somosnés, se
sante. Talvez nao tivesse morrido de infarto aos 56 anos, mas,
poroutro lado, talvez nuncativesse sido levado a ler Freud ¢ a gas da
A variabilidade das interpretagdes nasce das mudan
ouvir as pessoas com tanta atengao e cuidado, a olhar os casos aficos,
concretos com a angustia de quem sabe que nunca chegara ao sociedade, do movimento dahistéria, de dados geogr
as inter-
conhecimento completo do problema que se estende diante de das circunstAncias do caso concreto. Mas, além disso,
do que
seus olhos. pretagdes variam porque seus autores variam: supon
procedimentos interpretativos ao
Paraele, ser autor de uma sentenga significava, quase sem- fosse possivel impor regras ¢
i-
pre, decidir uma questao importante e grave. Ele tinha cons- juiz (e isto esta muito longe de ser uma realidade’*”), a subjet
a tradi-
ciéncia plena do poder diabdlico da sentenga judicial que, para vidade iré sempreaflorar, seja para conformar-se com
figoxosamente
usar a conhecida maxima, pode “fazer do redondo, quadrado”. co, seja para dar novos contornos a dedugoes
conflito \
Suas decis6es eram pensadas e moldadas ao caso concreto, no formalistas, seja para variar 0 peso de principios em
s da ar
qual buscava penetrar com paixfo, mesmo que aparentemente Positivismo, pos-positivismo, logica do razoavel, teoria
da interpretagao os respo nsave is
a solugao juridica fosse das mais Obvias. Intmeras vezes, apds gumentagao: serao os autores
mecontar um de seus casos, eu rapidamente ensaiava uma so- por acolher, qualificare apreciar um pedido.
lugdo e ele sempre me repreendia da mesma forma: “Calma ra-
paz, pense um pouco!” Um olhar disciplinado para o detalhe,
para a nuance, para a singularidade. O juiz como autor de um “romance em cadeia”:
A convivéncia com meu pai levou-me a imaginar que a Ronald Dworkin
abordagem tradicional da hermenéutica adota um ponto de
volver
vista excessivamente objetivista. E evidente que o juiz ocupa Em minha opinio, o ponto de partida para desen
uma posigao como orgio de poder do Estado ¢. deveguiar seu dé conta da efetiv ida-
umateoria hermenéutica que realmente
pensamento e seu desejo pelos caminhos do Estado de Direito. do sujeito da
de do processo de tomada de decisdes devepartir
Mas 0 momentocrucial da interpretagao nao é a descrigdo das evide ncias
interpretagdo. Esta opiniao, que esta baseada nas
regras e procedimentos de uma metodologia juridica. O mo- itar
tedricas e nos pressupostos filosdficos que busquei explic
mento dramatico da interpretagado é¢ a apropriagdo destas re- efle-
acima, ainda esta longe de atingir, a0 menos na minhar
gras e procedimentos por um sujeito singular que, nao devemos ta desenvolver
esquecer, ira assinar seu nome no final do termo da sentenga, xo, a condic4o de um conceito que me permi
deixandoali marca de sua personalidade.
de Processo Ci-
Os momentos culminantes da atividade do jurista séo aque- 36. CALMON DEPASSOS, J. J. Comentarios ao Cédigo =r
is, 1984, p. 18. '
vil, vol. X, tomo I. Séo Paulo: Revista dos Tribuna
les em que ele se defronta com situagao-obstaculoposta a li- 37. Sobre este ponto, ENGISCH, ob. cit., demons
tra que, até hoje, a ciéneia
berdade de alguém e o da solugao que ele encontra para remové- de que 0 intésprete seguisse
do direito nunca conseguiu demonstrar a necessidade
os diversos métodos de inter-
la. Ea partir do fato, que se pretende juridicizar, e no momento determinado procedimento necessario, ordenando
em que o fato se faz direito, juridicizando-se, que 0 jurista se Go juridica.
CANOTILHO, Direito
justifica e se realiza. Toda a atividade dogmatica intermediaria ¢ ree.ALEXY, Teoria de los derechos fundamentales;
; SARME NTO,A ponder a¢do de interess es na Constituigdo Federal.
mero instrumento a servico da vida e a servigo dos homens, nun- constitucional
HERMENEUTICA PLURAL A HERMENEUTICAJURIDICA E SEU SUJEITO 299
298

umateoria de interpretagao comestas feigdes. Na falta desses


sio da adequacio, ouseja, sua decisio deve respeitar a logica
conceitos, e buscando me aproximar deles, chamou-mea aten- estabelecida pela tradi¢ao.
Alémdisso, a metafora pde em evidéncia que o juiz, além
cio a formulacio da interpretagao de Ronald Dworkin em O
império do direito, entendida como um“romance em cadeia”:
de reproduzir a légica institucional, é também seucriador. Ele
a constréi a cada nova decisao; refaz a légica das instituigdes
Os juizes, porém,sao igualmente autorese criticos. Umjuiz quandoprofere suas sentengas. A metafora nos dé a dimensao
que decide 0 caso McLoughlin ou Brown introduz acréscimos na da imediatidadedeste trabalho construtivo das decises judiciais
tradig&o que interpreta; os futuros juizes deparam com uma nova que, mesmo quando sejam conservadoras ¢ repetitivas, inovam
tradigdo que inclui o que foi feito por aquele. E claro que a criti- nesta repeticao aoreiterar uma mesmaIdgica.
ca literaria contribui para as criagéesartisticas em que trabalham Caso sejam sentencas inovadoras, caso tenham de lidar
os autores; a natureza e a importancia dessa contribuigao confi- com casos dificeis, estas sentengas precisam estar ancoradas
guram, em si mesmas, problemasdeteoria critica. Mas a contri- em certos principios*!, que, por serem coletivamente accitos €
buic&o dos juizes é mais direta, ¢ a distingao entre autor ¢ intér- inscritos nas instituigdes, podemgarantir a ligagdo destas sen-
prete é uma quest&o de diferentes aspectos do mesmo processo. tencas com o passado e, ao mesmo tempo, reproduzir, ao me-
Portanto, podemos encontrar uma comparagao ainda mais fértil nos em parte, uma mesma Logica institucional.
entre literatura e direito ao criarmos um géneroliterario artificial E o juiz ¢ umatorprivilegiado no processo de reprodugao
que podemos chamarde “romance em cadeia”™. institucional” e totalizacfo simbdlica de uma sociedade cindi-
da em esferas mais ou menos independentese formada por uma
Continua o autor, numtrecho crucial: pluralidade de grupos sociais, cada um senhor de uma tabua
diferente de valores.
Emtal projeto, um grupo de romancistas escreve um ro- Evidentemente, para dar conta de umatarefa enorme como
mance em série; cada romancista em cadeia interpreta os capitu- esta, que implica um dominio completo dos principios que in-
los que recebeu para escrever um novocapitulo, que ¢ entdo formam o ordenamento juridico e de toda a tradigao, sera ne-
acrescentado ao que recebeu para escrever um novo capitulo,
cessario recorrer a um semideus, Hércules, transformado em
que € acrescentado ao que recebe 0 romancista seguinte ¢ assim
juiz. O juiz-Hércules dworkiniano,filho de Jupiter e Alcmene,
por diante, Cada um deve escrever seu capitulo de modo a criar
da melhor maneira possivel o romance em elaboragao, e a com-
tem apenas umtrabalho, mas quevale pelos doze de seu irmao
plexidade da tarefa reproduz a complexidade de decidir um caso grego: reproduziro todo social por meio do Direito, garantin-
dificil de direito com integridade.” do sua unidade e inovando quandonecessario, ouseja, quando
deparar com casos dificeis.
Dworkin faz questao de esclarecer, nao sem ironia, que o Para mim,a ironia daimagem evocada por Dworkiné evi-
romance em cadeia nao deve ser confundido com umasérie de dente. Por isso as criticas 4 solid&o do juiz-Hércules diante de
televisao: seus autores devem se esforgar para produzir um ro-
mance da melhor qualidade possivel. Esta saborosa metafora
41. Concordamos comascriticas a Dworkin reunidas por Habermas no ca-
pretende mostrar como o juiz singular, ao lidar com um caso pitulo V do livro Direito e democracia. Apesardisso, acreditamos que elas nao dio
concretd, deve preocupar-se em decidir respeitando a dimen- conta deste ponto que estamos procurando evidenciar.
42. Numasociedadepluralista, desprovida de qualquer fundamento tradi-
cional que lhe dé unidade, o direito assume um papel central na reprodugao social.
39. DWORKIN,O império do direito, p. 275. Ver HABERMAS, Direito e democracia; GARAPON, juiz e a democracia: o
40. Idem, ibidem. guardido das promessas.
300 HERMENEUTICA PLURAL A HERMENEUTICA JURIDICA E SEU SUJEITO 301

sua tarefa herctilea devem ser bem interpretadas. Dworkin esta fato de que vivemos numa sociedade relativamente descentra-
dizendo: é preciso um semideus para dar conta da tarefa que lizada emdiversas esferas e diversos processos de integragao
coloco em suas mios; portanto, nao é possivel criticar Dworkin social funcionam simultaneamente para reproduzir 0 todo so-
acusando-o de ignorar a dificuldade da tarefa que o Poder Ju- cial, afirmar a centralidade do Direito implica atribuir-lhe al-
diciario tem diante de si em sociedades complexas pluralis- gum grau de protagonismo neste processo. Significa também
tas. A critica deve, ou negar este papel ao Direito, mostrando que, ao buscarelevara interpretacAo judicial individual no pla-
que a reprodugdosocial passa por outros caminhosque retiram no dos conceitos, depararemos necessariamente com as de-
do juiz a centralidade que parte da Teoria do Direito atual Ihe mandasinterpretativas de cada caso conereto”’ e com a figura
atribui*?, ou concordar com este papel central ocupado pelo do juiz; mais do que isto, com o sujeito singular que veste sua
Direito, buscando dotar 0 juiz-Hércules de meios mais eficien- pele institucional. .
tes para realizar sua tarefa. Se o que estou dizendo ¢ correto, e 0 que acho que estou
Em minhaopiniao, se concordarmos que o Direito é cen- dizendo é que o juiz ocupa um papel estratégico no atual pro-
tral para a reproducao social, o Poder Judiciario, automatica- cesso de reprodugao social, uma abordagem da hermenéutica
mente, assume papel fundamental neste processo, e€ 0 juiz, seu deve ter 0 juiz, e nao o sistema social como objeto central de
agente, fica colocado no centro do problema. Mesmoassumin-
suas preocupacoes. As exigéncias dosprincipios do Estado de
do como correta critica A solid&o do juiz-Hércules™e a difi- Direito e as regras racionais praticas devem ser abordadas a
partir do pontode vista do sujeito que precisa incorpora-las e,
culdade de suprir sua necessidade de umateoria confiavel para
realizar sua tarefa, ndo podemos questionar sua posigao. repetidamente, reafirma-las em sua pratica cotidiana. Nao te-
A teoria de Dworkin pode ser acusada de excesso de cons- mos 0 direito de reprimir nosso medo do anarquismo do juiz
Magnaud; precisamos acolhé-lo ¢ leva-lo ao plano dos concei-
trutivismo: 0 juiz singular seria responsavel por realizar uma
tos, incorporar o individuo no pensamento sobre o Direito e
tarefa excessivamente dificil para suas possibilidades limita-
nao nega-lo, deduzindo a figura do juiz das necessidadesinsti-
das, seus conhecimentos sempre parciais do ordenamentojuri-
dico e da realidade social, bem comopeloslimites necessarios
tucionais ou das regras do discurso racional.
ao tempo de duracao dos processos judiciais. Mas, em minha
opinido, seu ponto de vista ¢ o mais adequadopara pensarteo-
A hermenéutica comoteoria da liberdade dojuiz:
ricamente a interpretagdo juridica*>.
uma teoria deseres reais e pensantes
Mesmo assumindo que a reprodugo social nao esta mais
(juiz-pai, juiz-Hércules)
restrita as estruturas do Estado*®, mesmo concordando com o
Toda interpretacdo de uma normajuridica elaborada por
43. Nesse sentido LUHMANN, Sociologia do direito, TEUBNER,O direi- um juiz singular ¢ original e unica. Ao julgar um caso concre-
to como sistema autopoiético; NEVES, 4 constitucionalizagao simbélica, GUERRA to, mesmo que sua decisdo repita o texto de inimeras outras
FILHO, “O direito comosistema autopoiético”.
44, HABERMAS, Direito e democracia, capitulo V. decisdes proferidas anteriormente, mudando apenasas partes
45, GUNTHER,Klaus assume 0 mesmoponto devista. E umahipdtese a envolvidase as datas dos acontecimentos, 0 juiz esta inovando
ser comprovada se ele estaria sofisticando a teoria da interpretagéo da Ronald o sistema juridico. Esta introduzindo um elemento novo numa
Dworkin. Ver GUNTHER,ob. cit.
46. Textos fundamentais sobre esta visio da sociedade, além dos trabalhos
de Habermas(algunsdeles citados neste artigo), estio reunidos em SOUSA,De-
mocracia hoje: novos desafios para a teoria democrdtica contemporanea. 47. Ponto ressaltado por GUNTHER,ob.cit.
302 HERMENEUTICA PLURAL A HERMENEUTICA JURIDICA E SEU SUJEITO 303

tradigao de decisées que se desenrola, se renova ou se repete, Os casosdificeis néo se apresentam naturalmente a cogni-
com seu ato. O conflito examinado é tinico, e a decisao que bus- cao do juiz. A dificuldade de um caso nao é um dado, mas uma
cara resolvé-lo deve ser igualmente unica, elaborada por um su- criagdo interpretativa. Um exemplo conhecido do que estou
jeito singular que assina sua obra. dizendo é a construgao genial da jurisprudéncia da “sociedade
O juiz precisa serlivre para dar conta dessa originalidade. de fato entre concubinos”™, origemde todas as demandasatuais
Os sujeitos que levam suas demandas ao Poder Judiciario nao dos homossexuais por direitos decorrentes de sua convivéncia.
desejamser tratados comocasos particulares de umaregra ge- A qualificagao juridica como“sociedade de fato” da convivén-
ral. Seu sentimento de injustiga demanda umaresposta unica, cia de um homem e uma mulher que vivem como se fossem
pensadapara as peculiaridades de cada caso concreto”. casados, instituto sem qualquer relagéo com o Direito de Fami-
O juiz precisa buscar aicangaras peculiaridades da situa- lia, permitiu que se indenizasse a concubina por sua colabora-
gao que se descortina diante de seus olhos. Sem algum grau de ¢4o na construgaéo do patriménio comum docasal.
liberdade, sem algo de original e irredutivel 4s regras da racio- No ambito do Direito de Familia brasileiro nao havia so-
nalidade pratica que constitui o pensar do julgador, ele nunca lugdo juridica possivel para satisfazer o interesse da concubina
seria capaz de encontrar a decisio mais adequada para casos em participar do acervo de bens construido pelo casal, pois a
sempre Unicos, mesmo que sua solucaoseja a de repetir um jul- incidéncia das normas sobre o regime de bens do matriménio
gamento semelhante a outros tantos proferidos em situagdes pressup6ea existéncia do estado de casado. A disciplina juridi-
parecidas. Pois mesmo umadecisaio conservadora deve ser mo- ca do Cédigo Civil nao seria aplicavel neste caso. Ou seja,
olhado do ponto devista do Direito de Familia, o conflito seria
tivada pela convicgao de que aquele caso concreto original me-
juridicamente inexistente, as normas deste ramo do direito nao
rece ser julgado desta mesma forma.
incidiriam sobre os fatos levados a juizo. A mudanga na quali-
Além disso, sem esta abertura para o novo, o juiz nao sera
ficagdo juridica, obra evidentemente coletiva, de advogados e
capaz de, caso isso seja necessario, reconhecer a novidade de
de juizes que decidiram acolher seus pedidos, é que permitiu
casos dificeis*? que desafiam a capacidade dorepertério do or- que 0 conflito social fosse qualificado como juridico e se tor-
denamento juridico de fornecer uma solugao adequada. Sua : nasse uma questio jurisdicional passivel de ser objeto de urna
racionalidade abstrata tendera a reduzir 0 caso aos padrdes que agao judicial.
determinam seu raciocinio, sem que possa percebera origina- Admitir que o juiz é relativamente livre significa também
lidade radical que o casodificil propde. admitir que suas sentencas podem ser controladas. Se a coe-
réncia e a justificagao das decisées judiciais decorressem natu-
ralmente dasregras estruturais do sistema, sem nenhumaativi-
48. Poderiamospensar uma hermenéuticaque fosse inserida numalégica de
conflito social a partir da perspectiva dos atores sociais e que, a partir deste ponto dade construtiva por parte do juiz, seria contraditério admitir
de vista, pudesse dar conta das necessidades de reproducio do todosocial, contra- que esta decisdo é racionalmente criticavel. Para que seja pos-
posta a um pensarmento hermenéutico que pensa os conflitos sistemicamente, a sivel discutir uma sentenga, questionando a motivacao do juiz
partir das necessidades de reprodugao social ja contidas na légica imanente dos
sistemas sociais. Nesse sentido, estamos examinado atualmente os seguintes tex-
singular, é preciso admitir que ela poderia ter sido diferente.
tos: RANCIERE,O desentendimento; MOOREJR., Injustiga. As bases sociais da Se 0 ato do juiz fosse completamente redutivel a logica sisté-
obediéncia e da revolta, HONNETH, The Struggle for Recognition. The Moral
Grammaros Social Conflicts; MCCARTHY,Ideals andIllusions. Reconstruction
and Deconstruction in Contemporary Critical Theory. 50. Sobre a evolugao da jurisprudéncia neste tema, WALD, O novodireito
49. DWORKIN, Levandoos direitos a sério. de familia, pp. 215 ss.
304 HERMENEUTICA PLURAL A HERMENEUTICA JURIDICA E SEU SUJEITO 305

mica, aos procedimentos jurisdicionais do Estado de Direito, CARNELUTTI, Francesco. Teoria geral do direito. Sao Paulo: Lejus,
sem que fosse atribuida a ele nenhuma margem de discricao, 1999.
seria impossivel mesmo caracterizar seu procedimento cogni- DWORKIN, Ronald. Levando osdireitos a sério. Sao Paulo: Martins
tivo comodirigido por uma raz&opratica. Fontes, 2002.
Em minha opiniaéo, o ponto de partida da hermenéutica ———. O império do direito. Sio Paulo: Martins Fontes, 1999.
ENGISH,Karl. Introdugdo ao pensamento juridico. Lisboa: Funda-
deve ser a tentativa de levar ao nivel de conceito este encontro
¢4o Calouste Gulbekian, 1988.
de singularidades; 0 juiz que assina a sentenga,sujeito da inter-
FARIA, José Eduardo. O direito da economia globalizada. Sao Pau-
pretagao, e o caso concreto, para buscar uma compreensdo lo: Malheiros, 1999.
mais adequadado ato de julgar, construindo umaracionalidade FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Fungdio social da dogmaticajuridica.
a partir deste algo que nao se repete. O centro do problemaesta So Paulo: Revista dos Tribunais, 1978. -
na liberdade do juiz, necessaria para fazer frente As novidades ———.Introducéo ao estudo do direito: técnica, decisdo, domina-
propostaspelosconflitos de interesse que sao trazidosa justiga: ¢Go. Sao Paulo: Atlas, 1990.
omo se Constlitul esta berdade, como Cla deve O ir, como FRIEDRICH, C. J. La filosofia del derecho. México: Fondode Cul-
ela pode ser controlada democraticamente, em conex§oestrei- tura Econdémica, 1997.
ta com 0 caso concreto e comas necessidades da reprodugao GARAPON, Antoine. Ojuiz e a democracia: 0 guardiao das promes-
social, vistas deste ponto de vista, a partir de baixo. sas. Rio de Janciro: Revan, 1999.
GENY,Francois. Méthode d’interpretation et sources en droit privé
positif: essai critique. Tome Second. Paris: Librairie Génerale de
Droit et Jurisprudence, 1919.
Bibliografia
GRINNOVER,Adaet alii. Teoria geral do processo. Sao Paulo: Ma-
Iheiros, 1992.
ADORNO,Theodor. Teoria estetica. Turim: Eunaudi, 1975.
GUERRA FILHO, Willis S. “O direito como sistema autopoiético”.
ALEXY,Robert. A TheoryofLegal Argumentation. Oxford: Clarendon
In: Revista Brasileira de Filosofia, n° 163, Sao Paulo, 1991, pp.
Press, 1989.
—. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Es- 185-96.
tudios Constitucionales, 1997. . GUNTHER, Klaus. Uma concepgdo normativa de coeréncia para
BENDIX, Reinhard. Max Weber: An Intelectual Portrait. Berkeley: uma teoria discursiva da argumentagdo juridica. Trad. revista e
University of California Press, 1978. inédita de Leonel Cesarino Pesséa. Umatradugdo anterior deste
BENJAMIN, Walter. “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade texto foi publicada em Cadernos de Filosofia Alemd, n? 6, Sdo
técnica”. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e politica, Sio Pau- Paulo: Humanitas, agosto de 2000, pp. 85-102.
lo: Brasiliense, 1986. HABERMAS, Jiirgen. Direito e democracia: entre facticidade e va-
BERGEL,Jean-Louis. Teoria geral-do direito. Sao Paulo: Martins Fon- lidade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.
tes, 2001. . O discurso filoséfico da modernidade. Sio Paulo: Martins
BOBBIO, Norberto. Giusnaturalismoe positivismo giuridico. Milao: Fontes, 2000.
Ed. di Comunita, 1972. . The Theory of Communicative Action: Reason and Rationa-
—. O positivismojuridico.lig6es defilosofia do direito. Sio Pau- lization ofSociety. Cambridge: Polity Press, 1991.
lo: Icone, 1995. HART, Herbert. O conceito de direito. Lisboa: Fundacdo Calouste
CALMONDEPASSOS, J. J. Comentarios ao Cédigo de Processo Gulbekian, 1986.
Civil, vol. X, tomo I. Sao Paulo: Revista dos Tribunais, 1984. HOHFELD, Wesley Wheeler. Fundamental Legal Conceptions as
CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Direito constitucional. Coim- Applied in Judicial Reasoning. New Haven: Yale University Press,
bra: Almedina, 1993. 1919.
306 HERMENEUTICA PLURAL A HERMENEUTICA JURIDICA E SEU SUJEITO 307

HONNETH. Axel. The Strugglefor Recognition. The Moral Grammar SILVA,Ovidio A. Baptista da. “Dircito subjetivo. Pretensdo de direito
of Social Conflicts. Cambridge: MIT Press, 1996. material e agdo”. Revista Brasileira de Direito Processual, vol. 37.
KANT, Immanuel. “Daarte e do génio. Critica do juizo”, paragrafo SOUSA, Jessé (org.). Democracia hoje: novos desaftos paraa teoria
49. In: Kant (Il): textos selecionados. Trad. Rubem Rodrigues Tor- democrdtica contempordnea. Brasilia: Universidade de Brasilia,
res Filho. Sdo0 Paulo: Abril Cultural, 1980. 2001.
KELSEN, Hans.Teoria pura do direito. Coimbra: Armenio Amado, TEUBNER,Gunther. O direito como sistema autopoiético. Lisboa:
Fundagao Calouste Gulbenkian, 1993.
1976.
LAFER,Celso. A reconstrugdo dos direitos humanos. Sao Paulo: Com- VILANOVA,Lourival. As estruturas logicas e o sistema do direito
panhia das Letras, 1991. positivo. Sao Paulo: Max Limonad, 1997.
LARENZ,Karl. Metodologiada ciéncia do direito. Lisboa: Fundagao WALD, Arnoldo. O novodireito de familia. Sio Paulo: Revista dos
Tribunais, 2000. ‘
Calouste Gulbekian, 1978.
LUHMANN,Niklas. Sociologia do direito, vols. Le II. Rio de Janei- WEBER,Max. “Rejeigdes religiosas do mundo ¢ suas diregées”. Tex-
tos selecionados. S30 Paulo: Abril Cultural, 1985.
ro: TempoBrasileiro, 1983/1985.
LUMIA,Giuseppe. Lineamentidi teoria e ideologiadeldiritto. Milao:
Giuffré, 1981.
MCCARTHY,Thomas. /deals andIllusions. Reconstruction and De-
construction in Contemporary Critical Theory. Cambridge: MIT
Press, 1993.
MOOREJR., Barrington. Injustiga. As bases sociais da obediéncia e
da revolta. S80 Paulo: Brasiliense, 1987.
NEVES, A. Castanheira. Metodologiajuridica: problemas fundamen-
tais. Coimbra: Coimbra Editora, 1993.
NEVES, Marcelo C. P..A constitucionalizagdosimbélica. Sd0 Paulo:
Académica, 1994.
PERELMAN, Chaim. Logica juridica. Sio Paulo: Martins Fontes,
2000.
PONTES DE MIRANDA.Tratado das ag6es, vol. 1. Sao Paulo: Re-
vista dos Tribunais, 1970.
. Tratado de direito privado, vols. 1, V e VI. Sio Paulo: Re-
vista dos Tribunais, 1983.
RANCIERE, Jiacques. O desentendimento. Sao Paulo: Editora 34, 1996.
REALE, Miguel. Fontes e modelos do direito: para um novo para-
digma hermenéutico. Sao Paulo: Saraiva, 1994.
RECASENS-SICHES, Luiz. Nuevafilosofia de la interpretacién del
derecho. México: Porrua, 1973.
RIGAUX, Francois. “Qualificag&o”. In: ARNAUD, Andre-Jean ef alii
(orgs.). Diciondrio enciclopédicode teoria e sociologia dodireito.
Rio de Janeiro: Renovar, 1999.
. A lei dos juizes. Sao Paulo: Martins Fontes, 2000.
SARMENTO, Daniel. A ponderagdo de interesses na Constituigdo
Federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000.

Você também pode gostar