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Artigo 31

A noção de inautenticidade em Heidegger e Sartre

On Heidegger and Sartre’s conception of unauthenticity

Arlindo F. GONÇALVES JR.


Faculdade de Filosofia – PUC-Campinas

Resumo

Este artigo situa o problema da inautenticidade na perspectiva do pensamento existencial, em particular nas considerações
apresentadas por Heidegger e Sartre. A inautencidade como contraposição à ação verdadeiramente moral, é o modo impessoal
em que o homem projeta sua existência anonimamente, no sentido de não ser o autor responsável e autônomo pelas suas
realizações. No plano das relações concretas da co-existência autêntica, encontram-se as noções de liberdade e alteridade
interligadas com o existir projetivo.
Palavras-chave
alavras-chave: Sartre, Heidegger, autenticidade, inautenticidade.

Abstract

This paper places the problem of unauthenticity from the point of view of the existintial thought, in particular in the considerations
presented by Heidegger and Sartre. Unauthenticity like objection to the action really moral, is the impersonal manner in which
the men projects his existence anonymously, in the direction not to be the responsible and independent author by their
achievements. In the plan of the concrete relations of the authentic coexistence, are the concepts of freedom and dependent
with existing to it projective.
Keywords
eywords: Sartre, Heidegger, authenticity, unauthenticity.
A NOÇÃO DE INAUTENTICIDADE EM HEIDEGGER E SARTRE

Introdução A inautenticidade, por outro lado, conver-


te o homem em algo diluído e sem face - estrangei-
O que caracteriza uma ação humana au- ro a si - denominado aqui de impessoal. O que
têntica - num sentido moral - está no fato dela pres- surge desta situação é o projeto humano naufraga-
cindir das convencionalidades ou de heteronomias do na dimensão definida pelo nós. O nós, então,
como guias imperativos. Em última análise é um agir submete o homem à coletividade. O habitual, o
fundamentalmente livre, e neste sentido, comprome- costumeiro, se dá impedindo o diálogo e
tido com um projeto humano que inclui suas circuns- massificando o homem-sujeito. Dessa inautentici-
tâncias - facticidades; bem como, sua responsabilida- dade teremos o surgimento do homem-massa, pro-
de de fazer-se mediante a co-existência. duto daquilo que chamaremos de publicidade.

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Nosso exame terá seu lastro em uma con- nem à frente de mim, mas unicamente em mim”.
cepção de homem enquanto prospecção, e, por- Neste sentido é que Sartre (1987) define o pró-
tanto, sem uma natureza constitutiva, sem algum à prio homem como liberdade.
priori que lhe oriente, e forçado a executar suas O motivo legítimo e verdadeiro que impul-
decisões. Um dos vetores concretos que objetivam siona determina a atitude humana é uma opção
essas decisões, e que constituem uma necessidade original absolutamente livre. Como nota Olson
da condição de ser-com , são as relações de (1970, p. 141): “a única causa genuína do com-
alteridade. Pode-se dizer que este aspecto é um portamento humano é o projeto fundamental de
dado fundamental e que impulsiona o homem a ser do indivíduo. E esse projeto é uma opção, não
definir-se precisamente na relação com o outro. um estado”. Este projeto fundamental denota a
Neste sentido, buscaremos fazer um esboço das singularidade do humano que se apossa do criar a
noções de liberdade e alteridade segundo o pen- si.
samento existencial, com o escopo de definirmos
os fundamentos das ações autênticas e inautênticas; A consciência responsável pela escolha de
e depois, apresentarmos as contribuições de um projeto fundamental não se confunde com a
Heidegger e Sartre para a compreensão do consciência reflexiva ou deliberativa. Sendo aque-
paradigma da impessoalidade. la anterior, pode-se denominá-la de consciência
pré reflexiva ou não reflexiva - a fonte de toda
deliberação voluntário que só surgirá à luz da op-
1. A liberdade e a alteridade no pen- ção original.
samento existencial Olson (1970, p. 143-145) destaca três
argumentos indicando que, para Sartre a conduta
Conceito fundamental no existencialismo, do individuo é totalmente decorrente de uma es-
embora sistematizado fundamentalmente por Sartre, colha livre e pré reflexiva: o sentimento duplo da
a liberdade se insere numa perspectiva criadora e angústia e da responsabilidade que se manifestam
indeterminada da condição humana. Faz parte da na superfície da consciência; as conversões radi-
constituição do ser como atributo necessário e ge- cais que redirecionam meu projeto original e que
rador. Considerada sempre como minha liberdade não comportam explicações; o fato de haver um
pessoal, diz respeito à vida concreta e ao projeto valor ou desejo que guie o processo de delibera-
individual. ção. Neste sentido os motivos do existir humano
Contra as posições deterministas (biológi- naquilo que se refere às suas decisões, estão subor-
cas, psíquicas, históricas, sociais, etc.), Sartre dinados a um desígnio primeiro do próprio ser in-
dividual enquanto totalidade.
recoloca o humano à frente das suas decisões, cons-
truindo assim uma moral definitivamente laica. “O homem está condenado a ser livre”,
Comprometido plenamente com o seu projeto, o como já foi dito por Sartre (1987, p. 09), e
homem está lançado no mundo das possibilidades nessa condição o homem é tragicamente entregue
sem indicativos à priori que o conduzam no existir. àquilo que será o grande paradoxo: por um lado a
Segundo Etcheverry (1964, p. 84): “sob os liberdade nos traz o peso e a ameaça da fatalida-
passos do homem, nenhuma via está previamente de (juntamente com o sentimento de angústia e de
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traçada. Compete-lhe descobrir de livre vontade responsabilidade) e por outro o impulso criador e
os seus próprios fins”; segue apontando a decisão autônomo. Segundo Etcheverry:
espontânea como “uma possibilidade indetermi- Para o homem, existir é escolher-se; nis-
nada que se situa não atrás de mim, nem acima, so consiste a liberdade, sob a condição,

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todavia, de evitar comprometer-se e ali- Como destacado anteriormente, a concep-


enar-se nesta escolha, renunciando a ção existencial atenta para as relações entre o ho-
ultrapassá-la. O compromisso deve ser mem e o mundo tornando-as fundamento para a
livre, mas nunca definitivo [...] A esta condição de sua existência. Dentre essas relações
liberdade absoluta é impossível abordaremos aquela que, no nosso entender, pre-
eximirmo-nos porque pertence à estru- valece como a mais significativa: o mundo inter-
tura humana, de resto, recusar-se a optar, humano.
é ainda optar (1964, p. 84). O pressuposto é que a existência humana
Contrapondo-se e submetendo esta liber- traz em si radicada, a simultaneidade com outrem.
dade absoluta estão as chamadas facticidades. Ou seja, por existência entende-se um estar no
Nelas Sartre identifica a contingência a que a li- mundo com o outro - é dirigir-se e ser tocado por
berdade humana é subjugada. Como diz ele.
Etcheverry: “embora transcenda o universo pela li- Os existencialistas concordam com a pos-
berdade, o homem é, contudo, de certo modo, tura freudiana frente às relações interpessoais onde
um objeto entre outros. O ser por si é incessante- a hostilidade é inevitável. Porém a abordagem de
mente contaminado pelo ser em si, a liberdade tal desarmonia é feita sob uma nova perspectiva,
submerge-se na facticidade” (1964, p. 95). As superando as aporias em que a psicanálise coloca
facticidades, ou seja, aqueles dados aos quais não o homem. É precisamente na noção de individua-
podem ser prescindidos pela consciência, posto lismo, em oposição ao impessoal, que a Filosofia
ser aí a realização do existir manifestam-se nas cha- da Existência elabora seus argumentos que com-
madas situações. Estas condicionam a liberdade põem o quadro das relações, assim chamadas, au-
seja pelas circunstâncias do meio, pela hereditarie- tênticas .
dade, no sentimento do passado comprometendo Para Olson (1970, p. 191-193) a in-
o futuro, seja pelo próprio corpo, ou pela morte. dividualidade “não consiste, comumente, em vi-
Porém estas situações são absorvidas pelo homem. ver sozinho ou isolar-se dos demais. O individua-
O autor conclui que “a própria situação não exis- lista deve definir-se pela maneira como se relacio-
te senão pela liberdade. Cada um escolhe-se em na com os outros”. Ou seja, no exercício existir, o
situação, porque confere livremente às coisas um homem tem que garantir a sua individualidade
significado pessoal sem o qual se reduziriam ao pessoal co-habitando num mundo entre outras in-
estado amorfo de existentes br utos” dividualidades. Neste sentido, sugere também que A NOÇÃO DE INAUTENTICIDADE EM HEIDEGGER E SARTRE
(ETCHEVERRY, 1964, p. 86). “não há absolutamente nenhuma razão lógica para
Concluímos que a liberdade no contexto se admitir a impossibilidade de alguém reter sua
existencial está radicada na noção de relação - com individualidade no sentido de não permitir que os
o ser e com a transcendência. Desprovida da ne- outros ditem suas opções, ao mesmo tempo em
cessidade de significações substanciais e abstratas, que mantém contatos físicos e espirituais válidos
nem a razão objetiva e tampouco a razão subjetiva com outros”. No primado do individual sobre o
por elas próprias, podem ser fundamentos possí- impessoal conclui, por sua vez, Bollnow:
veis da liberdade. O homem lançado no mundo - só mediante uma fuga consciente, prati-
ser-aí - é plenamente responsável pela apropriação cada perante esse tipo de existir [im-
das situações. Por ser indeterminada, ser o lastro pessoal], é que pode atingir-se a au-
das escolhas, e comprometer-se com as facticidades, tenticidade. A ‘existência’ é sempre,
a liberdade define a própria natureza humana. portanto, necessariamente, destacan-

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do-se do plano da vida da comunida- O terceiro e último grupo está exem-


de. [...] a conquista da verdadeira ‘exis- plificado no modelo do social engineer, o
tência’ só pode dar-se na solicitude da planificador estatal, o técnico em propaganda e o
alma individual. (1946, p. 67) cientista do comportamento. O contra-argumento
existencialista evidencia que a consciência livre do
A impessoalidade expressa aqui o sentido
outro não pode ser totalmente subtraída.
da inautenticidade. Nela dilui-se o homem na
publicidade da maioria, torna-se o “homem-mas- Há uma determinação do outro para o
sa” situado, segundo Heidegger, no universo do surgimento do eu. Somente através do desvelamento
“se” (man), bem como o faz Jaspers na expressão do outro - e isto se dá exclusivamente no existir -
“nós-todos” (wir alie). Deste modo o eu como posso experienciar a consciência do eu. Este eu é
identidade mistura-se e esgota-se no ser-social. constituído pelo olhar do outro, e a partir de então,
Bollnow sintetiza da seguinte maneira: “na coleti- “para o outro, e consequentemente para mim, não
vidade anônima desta total impessoalidade absor- sou mais apenas um ponto de vista sobre mim. Es-
ve-se e morre toda a particularidade individual; tou agora consciente de mim como espectador do
tudo resulta uniforme sob a ação deste poder invi- mundo diante do outro”. (OLSON, 1970, p.
200)
sível e irresistível. O homem deixa de ser ele-pró-
prio para nele viver apenas esse ‘se’”. (1946, p. 70) Sendo assim, uma questão se faz presente:
Se o outro exerce um papel constitutivo do meu
A singularidade do indivíduo não pode,
ser, como posso simultaneamente não ser o outro?
por sua vez, ser confundida com um solipsismo.
Pois que, meu ser-para-mim é constituído por meu
Sartre já anunciava que nosso ser-para-outrem é tão ser-para-outrem e neste sentido eu sou aquilo que
fundamental como o nosso ser-para-nós, ambos têm o ou-tro faz de mim. Olson responde da seguinte
igual dignidade. Não há possibilidade de renun- maneira, à luz de uma terminologia sartreana: “As-
cia deste outro que nos interpela. O reconheci- sim como eu sou meu passado mas não sou meu
mento desta tensão ambivalente entre a especifi- passado, porque minha liberdade me projeta cons-
cidade do eu e o apelo do outro, designa um tante-mente no futuro, assim também eu sou o que
comprometimento autêntico do existir. Olson os outros fizeram de mim, mas não sou o que os
(1970, p. 194-195) destaca três grupos que outros fizeram de mim porque devo sempre trans-
se orientam pela eliminação do conflito daquela cender meu ser-para-outrem” (1970, p. 203).
ambivalência através da fusão com o outro:
Nota-se, portanto, o lugar privilegiado em
O primeiro constitui-se naqueles que dese- que o Pensamento Existencial coloca o outro. Este
jam fundir suas individualidades em uma só: os é um ponto de similaridade com as chamadas Filo-
humanistas e nacionalistas extremos; místicos reli- sofias da Vida (vitalistas), que, ao seu modo atri-
giosos que almejam a identificação com Deus. buem uma dignidade na relação com o outro. Po-
O segundo grupo é representado de modo rém o Existencialismo se destaca na sua valoriza-
apropriado no conformismo norte-americano, que ção à individualidade. A solidão humana, e com
foge à responsabilidade quanto à opção indivi- ela o sentimento de angústia e de responsabilida-
dual, em nome de um “público geral” ou impes- de, recebe um tratamento que denota a originali-
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soal. Contra isso, os existencialistas argumentam dade do Pensamento Existencial. Faz desta soli-
que o indivíduo não pode suprimir a responsabili- dão, momento de escolha fundamental, a saber,
dade individual, posto ter sido ele próprio quem quando o homem é impelido a escolher a si de
escolheu tal empreendimento. forma autêntica.

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2. Heidegger e Sartre: contribuições te como: dimensão ontológica e dimensão ôntica


para a compreensão da inautentici- de seu ser.
dade Sendo assim, resume Olson: “tanto para Sartre
como para Heidegger, [...] o homem autêntico é o
A expressão autenticidade na filosofia exis- que reconhece a dualidade radical entre o humano e
tencial denota o modo de ser do homem que se o não-humano, que reconhece que o homem deve
funda numa consciência autônoma. Em um sentido viver no mundo e que também reconhece que estar-
amplo, de acordo com Olson “a vida autêntica é no-mundo não implica estar-no-meio-do-mun-
a que se baseia numa apreciação exata da condi- do”(1970, p. 158). Com base nessas premissas
ção humana” (1970, p. 157). Já Zilles extrai vejamos como são apresentadas as teorias sobre a
da compreensão da existência como possibilida- autenticidade/inautenticidade em cada um deles
de à alternativa entre o modo de ser autêntico e o em particular.
inautêntico: “a existência autêntica é a de quem re- Na teoria heideggeriana da inautenticidade
conhece e escolhe a possibilidade mais própria do o estar-no-meio-do-mundo é denominado por es-
seu ser” (1988, p. 17). A inautenticidade, por tado de queda ou decadência. Corresponde, se-
outro lado, é uma existência cotidiana que segundo gundo Carneiro Leão “à expressão alemã
o mesmo autor, estaria distante das responsabilidades Verfafallen, inclusive nas conotações morais e
pessoais, levada pela mediocridade das massas. desabonadoras que Ser e Tempo exclui. Trata-se
Heidegger foi quem introduziu este termo, de um termo que remete à estrutura ontológico-
sendo posteriormente retomado por Sartre - com- existencial que é a presença (ser-aí) e não a uma
portando significados diferentes para ambos. As qualidade ou modalidade” (HEIDEGGER ,
teorias da autenticidade e inautenticidade foram 1995, p. 324). Podemos entender como sinô-
por eles formuladas à luz de temas que expressam nimas as expressões: decadência e inautenticidade.
semelhanças e diferenças que se dão nas suas con- Tal estado, de inautenticidade, tem dois pólos:
cepções da condição humana. Como mostra um subjetivo e outro objetivo.
Olson (1970, p. 157-158) são três os grandes O pólo subjetivo é o que Heidegger cha-
temas: ma de das Man. Seu correspondente em portu-
O primeiro refere-se à desigualdade entre o guês equivale a expressão a gente, como assinala a
humano e o não-humano. O termo existência fica- nota explicativa de Carneiro Leão: “o Man expri-
ria restrito apenas ao homem. O centro dessa me uma impessoalidade diferenciada, pois diz que A NOÇÃO DE INAUTENTICIDADE EM HEIDEGGER E SARTRE
disparidade é a própria consciência - o que é aceito ocorreu uma despersonalização de pessoas”
por ambos. Discordam apenas nas categorias bási- (HEIDEGGER, 1995, p. 319).
cas da existência humana. Heidegger as denomina O pólo objetivo desta decadência é o
de exitentialia, que são precisamente: sentimento mundo artificial construído pelo homem, o mundo
ou afetividade, entendimento e linguagem. transformado pela tecnologia humana. Pode-se di-
O segundo designa a idéia de que o ho- zer que é também o mundo público, ou mundo
mem está diretamente presente ao mundo. Aceito que grupos de seres humanos partilham em comum.
por ambos e designado por Heidegger como Dasein Heidegger parte do pressuposto que a exis-
(ser-aí). tência - modo de ser do Dasein - é um poder-ser,
Em terceiro lugar há a distinção entre o es- o que implica em projeto e transcendência. A
tar-no-mundo e o estar-no-meio-do-mundo-do-ho- realidade do ser-aí, Dasein, se dispõe em dois pla-
mem, pelos quais são categorizados respectivamen- nos: ôntico e ontológico. O primeiro entende-se

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pela queda do homem ao nível das coisas do mun- clui que “quanto mais este modo de ser não causar
do. Compreende o chamado plano existenciário, sur-presa para a própria pre-sença (ser-aí) cotidia-
ou seja, o que pode ser conhecido de imediato. na, mais persistente e originária será sua ação e in-
Já o segundo - ontológico - compreende o plano fluência” (1995, p. 178), o que significa que é
chamado existencial, que remete às estruturas que o modo de ser cotidiano do ser-aí mais vigente.
compõem o ser do homem a partir da existência O ser-aí, encontra-se no cotidiano, segun-
em seus desdobramentos advindos da presença do as determinações anteriores, em submissão - ou
(Dasein). sob tutela - dos outros. Seu ser-próprio é apossa-
Enquanto ser-no-mundo o existir humano do, suscitado pelo outro. Esse outro do arrebata-
refere-se à inúmeras maneiras que lhe possibilitam mento na convivência é, por sua vez, indefinido.
viver, seja relacionando-se com entes não huma- De acordo com Heidegger: “os outros não são
nos, seja com outros homens. O Dasein origina e determinados [...]. o decisivo é apenas o domí-
fundamenta, enquanto categoria ontológica, o ser- nio dos outros que, sem surpresa, é assumido sem
com. Este é o atributo que designa a relação junto que a presença (ser-aí), disso se dê conta. O im-
ao outro, necessária para sua realização, que em pessoal pertence aos outros e consolida seu po-
última análise corresponderá a vida social. Exis- der” (1995, p. 179). Ou seja, a face deste
tem, porém, maneiras desse relacionar-se - modos outro está sempre encoberta, como o próprio au-
básicos do viver com os outros. Dentre esses está o tor conclui: “o quem não é este ou aquele, nem o
que Heidegger denomina de das Man, ou “a gen- próprio do impessoal, nem alguns e muito menos a
te”. soma de todos. O quem é o neutro, o impessoal
O das Man, como já mencionado, é ca- (a gente)” (1995, p. 179).
racterizado, pelo anonimato em que o indivíduo O ser-com-outros é o a gente, embora in-
se dispersa na coletividade e se aliena no impessoal definido, da pulverização e absorção do ser-aí (na
- nas exigências públicas. É porém, considerado no convivência) como também do próprio outro con-
modelo heideggeriano, num plano ontológico à me- creto e singular. Fazemos parte das multidões que
dida que possibilita a vida comunitária. De acordo se aniquila no conviver, mantendo-se na impessoali-
com Spanoudis o a gente “é a maneira fundamental dade. Heidegger caracteriza da seguinte maneira
de se viver com os outros que possibilita tanto o viver este modo de conviver: “[este] dissolve inteira-
em comunidade, onde cada um compartilha numa mente a própria pre-sença (ser-aí) no modo de ser
maneira própria e autêntica, quanto o viver dissolvi- dos outros e isso de tal maneira que os outros de-
do e diluído na massificação, absorvido no coletivis- saparecem ainda mais em sua possibilidade de
mo, tornando-se uma peça, um objeto manipulável” constatação [....] O impessoal (a gente), que não
(1981, p. 21). Este é tema examinado por é nada determinado mas todos são, embora não
Heidegger no capítulo de Ser e Tempo intitulado: O como soma, prescreve o modo de ser da
cotidiano Ser-si-mesmo e o A Gente. cotidianidade” (1995, p. 179).
Ao relacionar-se, ocupar-se com os outros, Existem modos particulares, características
seja qual for o desígnio, está presente um aspecto
básicas de ser que compõem este a gente: espaça-
fundamental que é a diferença - um intervalo. O
mento (afastamento), medianidade, nivelamento,
ser-aí mesmo na aproximação é impelido radical-
A.F. GONÇALVES JR.

desencargo de ser, publicidade e consistência.


mente a estabelecer esse intervalo sem perturbar os
limites do ser-próprio de cada um. Heidegger de- A medianidade, fundada no espaçamento
nomina esse aspecto do ser-com-outros de representa um caráter essencial do a gente. Inscre-
abständigkeit - afastamento, espaçamento -, e con- ve-se nela a publicidade que no homem o torna

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abertamente exposto e conhecido, retirando o as- cia o conceito de má-fé, bem como o de inauten-
pecto de primazia, originalidade e de excepciona- ticidade, à opção de corrupção da pessoa consi-
lidade do ser-aí. Por conseguinte, surge desta ten- go própria.
dência outro modo de ser do a gente que visa a A má-fé inclui-se como uma das categorias
uniformidade das suas possibilidades chamada de específicas de atitudes negativas que o homem toma
nivelamento. Estas características do a gente cons- em relação a si. Ao nos aproximarmos de uma de-
tituem a die Offtenlichkeit, massificação e medio- finição, inicialmente tenderemos a discriminá-la do
cridade, ou, a publicidade. Esta é a responsável conceito usual de mentira, para considerá-la como
pelo controle de como ser-aí e o mundo serão in- mentira a si próprio. O ato de mentir, e essência,
terpretados. compreende uma dupla negação consciente: “afirmasse
Através do desencargo de ser o a gente em si a verdade, negando-se em suas palavras e ne-
exime, desobriga o ser-aí de qualquer responsabi- gando para si mesmo esta negação” (SARTRE, 1976,
lidade. Ao assumir para si todo julgamento e de- p. 93), e pela sua disposição intencional refere-se a
cisão o a gente priva o ser-aí na cotidianidade de uma condição transcendente de objetos fora da cons-
assumir seu ser-próprio pelo fato de que pode res- ciência. O pressuposto para sua realização é a exis-
ponsabilizar-se por tudo, como mostra Heidegger: tência do outro em suas dimensões estruturais de
Na cotidianidade da pre-sença (ser-aí), relação que permite, pela abertura à interlocução,
a maioria das coisas é feita por alguém de ser depositário desta realidade ocultada e delibe-
quem se deve dizer que não é ninguém rada a que está submetido.
[...]. O impessoal (a gente) tira o encar- Mas, se na dimensão da mentira o lastro é
go de cada pre-sença (ser-aí) em sua a co-existência, na condição do ser-com (mit-sein),
cotidianidade [...]. Todo mundo é outro já não é o mesmo ocorrido na má-fé, uma vez que
e ninguém é si próprio. O impessoal (a não há a dualidade enganador/enganado, mas an-
gente), que responde à pergunta quem da tes, e somente, uma única consciência afetada por
presença (ser-aí) já se entregou na convi- si mesma. Nesta sua essência unitária a má-fé traz
vência de um com o outro”(1995, em si um projeto pré-reflexivo da consciência (de)
181). si, e neste sentido, percebe-se tenuamente que há
Segundo a abordagem sartreana o motivo uma verdade conhecida e suprimida por uma inten-
verdadeiro que impulsiona e determina a atitude ção em mim mesmo. Porém, se ao mentir-me parto de
humana é uma opção original absolutamente livre. um fundo consciente, poderia evidenciá-la como A NOÇÃO DE INAUTENTICIDADE EM HEIDEGGER E SARTRE
Este projeto fundamental denota a singularidade do corrupção voluntária da boa-fé, o que não ocorre,
humano que se apossa da criação de si. Opondo-se já que:
a noção de gratuidade gideana, esta opção funda-
mental expressa a totalidade de seu impulso em dire- se tento, deliberada e cinicamente mentir
ção ao ser. A consciência responsável pela escolha a mim mesmo, fracasso completamente: a
de um projeto fundamental não se confunde com a mentira retrocede e desmorona ante o olhar;
consciência reflexiva. Sendo aquela anterior, pode-se fica arruinada, por trás, pela própria cons-
denominá-la de consciência pré reflexiva. É a fonte ciência de mentir-me, que se constitui im-
de toda deliberação que só surgirá à luz da opção placavelmente mais aquém de meu proje-
original. Ao falsear esta atitude radicada como cons- to como sendo sua condição mesmo. Tra-
ciência (de) si estamos agindo de má-fé e ta-se de um fenômeno evanescente que só
inautenticamente. Em sua obra O Ser e o Nada, existe na e por sua própria distinção”
encontramos argumentos descritivos em que asso- SARTRE, 1976, p. 95).

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Apesar desta fragilidade de apreensão - o mim”; “ele se tornou que era” (SARTRE, 1976,
que pertence à sua condição mesma - a má-fé per- p.103). Já no segundo caso a duplicidade se
tence a um gênero fecundo e que pode ter lugar refere à conduta própria como aparência versus a
até mesmo como modo normal de vida. perspectiva do outro sobre esta realidade verda-
Uma outra abordagem na tentativa de deira que suponho: “a idêntica dignidade de ser
compreendê-la está na sua perspectiva psicanalíti- que meu ser tem para o outro e para mim permite
ca, na qual se encontra à luz de uma dinâmica uma síntese perpetuamente desagregadora e per-
instintiva entre Id e Ego. A Psicanálise: “substitui a pétuo jogo de evasão entre para-si e para-outro”
noção de má-fé pela idéia de uma mentira sem (SARTRE, 1976, p. 104).
mentirosos” (SARTRE, 1976, p. 97), e isso Dessas desagregações o intento recai na bus-
porque o sujeito da mentira está fora da consciên- ca de extração de um princípio de identidade
cia - um outro que atua como impulso originado que possa estabelecer uma contrapartida ao pro-
no Id. Tal concepção reduz o Ego aos fenômenos cesso de evanescência, oposto à má-fé. O protó-
psíquicos, ou seja, ao universo do enganado como tipo deste princípio sintético é o conceito de sin-
única verdade, e o Id o outro alheio, determinante ceridade como intento constante de adequação,
e impenetrável pela via autônoma. Logo, a má-fé exploração e realização do que se é. Mas o que
estaria restringida topograficamente ao inconscien- significa esta realização de consonância com o ser?
te. O seu estabelecimento enquanto dissociado A grosso modo, as possibilidades que escolhemos
ao sujeito é insustentável como assinala Sartre: “não nada mais são que representações e, portanto, dis-
se pode mais recorrer ao inconsciente para expli- tanciadas do ser tomadas pelo dever-ser, como
car a má-fé: ela está aí, em plena consciência, com assinala Sartre: “não há medida comum entre o ser
suas contradições todas” (1976, p. 98). Exem- da condição e o meu. A condição é uma represen-
plo disto é o que pode ser desvelado no próprio tação para os outros e para mim, o que significa que
ato psíquico da censura que tem capacidade de só poso sê-la em representação. Porém, precisamen-
discernir impulsos reprimíveis: é consciência (de) te, se represento, já não o sou: acho-me separado da
si como tendência à reprimir, mas “para não ser cons- condição tal como o objeto do sujeito - separado
ciência disso” (SARTRE, 1976, p. 98). O que por nada, mas um nada que dela me isola, me impe-
significa dizer que a censura é de má-fé e contém o de de sê-la, me permite apenas julgar sê-la, ou seja,
ingrediente consciente - consciência (de) si - seu imaginar que a sou” (SARTRE, 1976, p. 107).
reconhecimento e o esforço em negá-lo. Neste sentido não se pode ser à maneira do ser-
Numa análise estrutural permite-se estabe- em-si sem a corrupção do que sou.
lecer com mais clareza as condições em que se dá Manifestações com maior propriedade de
a má-fé, sobretudo pelo exame de binômios da unidade intencional que revelaria a forma de ser o
realidade humana que as sustenta: transcendência/ que se é, estaria presente, por exemplo, em aspectos
facticidade; ser-para-si/ser-para-outro. No primei- emocionais como a tristeza. Estar triste significa um
ro caso temos a formulação da ambigüidade que modo repleto de ser, quase inseparável da própria
encerra a má-fé em se fazer ao mesmo tempo consciência do estar triste sem, contudo, se identificar
transcendência e imanência. Essa duplicidade pode com a consciência. Logo, o ideal de sinceridade é
ser notada através de contradições implícitas de irrealizável, por mais próximo e envolvido que se
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condutas que indicam uma possível realização além mostre. Sinceridade e má-fé, deste modo, possuem
do que está a se afirmar. Como exemplo Sartre mesmos objetivos, “uma vez que o homem sincero se
destaca algumas célebres frases, tais como: “O amor faz o que é para não sê-lo” (SARTRE, 1976, p.
é bem mais que amor”; “sou grande demais para 112).

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Se, como vimos, através das desagregações também que o nós não é uma consciên-
na realidade humana compreende-se a dinâmica cia intersubjetiva, nem um novo ser que
da má-fé, cabe examinar outra consequência desta transcenda suas partes como um todo
duplicidade: a inautenticidade. Existem três for- sintético [...] o nós é experimentado por
mas de inautenticidade para Sartre: a primeira é uma consciência particular [...] o nós é
resultado do não reconhecimento da dualidade uma experiência particular que se pro-
entre nosso ser-para-nós e nosso ser-para-outro: a duz, em casos especiais, sobre o funda-
segunda refere-se à relação entre nosso estar-no- mento do ser-para-outro em geral
mundo e nosso estar-no-meio-do-mundo e a ter- (SARTRE, 1976, p. 513).
ceira decorre do não reconhecimento de nossa
ambigüidade como ser-para-si. Abordaremos um Esta experiência particular do Nós, segun-
aspecto particular da primeira forma de inauten- do Sartre, ocorre de duas maneiras fundamental-
ticidade que é a experiência do Nós. mente opostas entre si: o nós-objeto e o nós-sujei-
to. Quando relacionados à questão do olhar pode-
Tomando por base a realidade humana como
-se dizer respectivamente: eles-nos-olham e nós-
para-si e para-outro, Sartre faz um exame fenome-
os-olhamos. Enquanto da primeira maneira pode-
nológico do encontro. Esse encontro concreto,
mos extrair aspectos constitutivos da condição de
momento de desvelamento deste outro, surge numa
inautenticidade, a segunda, é remetida simples-
experiência concomitante do eu como sujeito e
objeto. A consciência que me interpela, o para-si mente a significações de ordem psicológica.
alheio que me recoloca em aderência com meu O nós-objeto tem sua origem na relação com
próprio em-si, faz-me também outro. Isto se dá face o outro, mas transcendida por um terceiro que nos
a um contato intersubjetivo. O ser-para-outro será toma por vez como objeto. Há o fato da necessida-
o lastro para a emergência deste ser-com-outro (mit- de do outro na consolidação do eu-sujeito, pois so-
sein) no qual ocorrerá a experiência real do Nós. mos em simultaneidade, em situação, em relação.
O Nós, nesta perspectiva sartreana, não é Nota-se que esta relação, se apresentou em singulari-
apresentado como estrutura original, ontológica. dade, ou seja, na especificidade da presença de um
Esgota-se como consciência particular sendo pre- único outro. Sartre introduz uma outra possibilidade
cedido e fundamentado pelo para-outro. Sendo experimentada por nós como argumenta:
assim, Sartre vai contra a concepção heideggeriana minha relação com esse Outro, que ex-
do mit-sein, mas não põe em suspenso a realidade
perimentava o eu como fundamento de meu
do Nós: “Só faremos notar aqui que nunca nos A NOÇÃO DE INAUTENTICIDADE EM HEIDEGGER E SARTRE
ser-para-outro e a relação do Outro comi-
ocorreu por em dúvida a experiência do nós. Temo-
nos limitado a mostrar que esta experiência não go, pode a cada instante, segundo os
podia ser o fundamento de nossa consciência do motivos que intervenham, ser experimen-
próximo”(1976, p. 513). Esta recusa ao senti- tada como objeto para os outros. Isto se
do original e irredutível desta experiência é basea- manifestará claramente no caso da apari-
da no pressuposto que se segue: ção de um terceiro (SARTRE, 1976, p.
514).
Está claro, com efeito, que não pode
constituir uma estrutura ontológica da O que significa que no surgimento deste
realidade humana: temos provado que terceiro, que nos toma por objeto, experimento
a existência do para-si em meio aos ou- junto ao outro minha alienação e minha objetivida-
tros era em sua origem um fato metafísico de. Portanto, são aspectos vividos apenas na co-
e contingente [...] ademais, está claro munidade com o outro.

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Ao experienciar o nós-objeto, o outro e eu esse Nós: sua aparição coincide, ao contrário, com
somos modificados, simultaneamente. O que an- o desmoronamento do Nós: o para-si se despren-
tes se esgotava em uma situação contida unica- de e põe sua ispeidade contra os Outros”
mente nas possibilidades da relação com o outro, (SARTRE, 1976, p. 519).
passa a uma nova situação; segundo Sartre nesta Esta experiência do para-si, do Nós, não é
situação emergente “experimento que minhas pos- só no âmbito particular como sugere Sartre, ao
sibilidades estão alienadas e descubro que as pos- apontar este terceiro como a totalidade humana
sibilidades do Outro são morti-possibilidades” (captada igualmente como objeto) e neste senti-
(SARTRE, 1976, p.517). Essas transformações do conclui que “corresponde a uma experiência
que ocorrem na particular situação que tenho com de humilhação e de impotência: o que se experi-
o outro se dão, portanto, através desta terceira menta como constituindo um Nós com os outros
perspectiva que se constitui em meio a um terceiro homens que se sente enviscado entre uma infinida-
mundo. Aí o Nós será objeto de julgamento e de de de existências estranhas, está alienado radical-
transcendência; eu e o outro seremos abarcados mente e sem apelação” (SARTRE, 1976, p.
em igualdade, como conclui: “já não há estrutura 520). Disto deriva a noção de coletividade e em
de prioridade que vá de mim ao outro ou, inversa- sentido específico enquanto modalidade do Nós,
mente, do Outro a mim, posto que nossas possibi- temos a consciência de classe. Sartre faz alusão à
lidades são igualmente, para o terceiro, morti-pos- Psicologia das massas ao abordar esta modalidade
sibilidades” (SARTRE, 1976, p. 517). que resulta em uma realidade de classes subjugadas
A experiência que sofro ao ser percebido e indica ainda uma descrição dos mecanismos ma-
por este terceiro olhar me foge à reflexão e me põe soquistas que permeiam a chamada massa:
como equivalente e solidário ao Outro. Sartre [...] a coletividade se precipita à servi-
denomina tal experiência de ser-afora: “o que ex- dão e exige ser tratada como objeto. Se
perimento é um ser-afora, em que estou organiza- trata [...] dos múltiplos projetos indivi-
do com o Outro em um todo indissolúvel e obje- duais dos homens na massa: a massa tem
tivo, um todo em que não me distingo já origina- sido constituída como massa pelo olhar do
riamente do Outro, mesmo que, solidariamente com chefe ou do orador; sua unidade é uma
este, concorro a constituir” (SARTRE, 1976, p. unidade-objeto que cada um de seus mem-
518). Nesta massa homogênea - consubstanciada bros lê no olhar do terceiro que a domina,
- nos submetemos ao ponto do nivelamento. O e cada um faz então o projeto de per-
que se pode dizer de uma radical alienação do der-se nessa objetividade, de renunciar por
para-si no comprometimento do estar afora. Se- inteiro à sua própria ipseidade para não
gundo Sartre: “do comprometimento que levo ser mais que um instrumento em que quer
adiante sem captá-lo, esse livre reconhecimento de fundir-se não é já seu puro e simples para-
minha responsabilidade enquanto inclui a respon- o-outro pessoal, senão a totalidade - ob-
sabilidade do Outro, é a experiência do nós-ob- jetiva - massa (SARTRE, 1976, p. 522).
jeto” (1976, p. 518). Neste sentido, podemos falar que a com-
Tal nivelamento, ocultação de toda pleta exterioridade do homem que privilegia a
alteridade, se expressa no fato de que para o ter- dimensão do público, a heteronomia, falsifica seu
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ceiro reduzimo-nos ao unificante Eles (objeto). O destino. Aquele que renuncia ao projeto de ter-
que resulta subjetivamente na fala impessoal do que-ser acaba por ser infiel ao fundo autêntico da
Nós, por sua vez inapreensível pela razão enquan- existência e com isso revela-se amoral. O proble-
to tal: “a consciência reflexiva não poderia captar ma encerra-se, então, no conhecimento existencial

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da vocação, da missão. Um conhecimento que pode HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Rio de Janeiro:
e deve ir crescendo, perfilando-se em detalhes, con- Vozes, 1995.
forme se vai avançando na vida e recebendo a fecun- OLSON, Robert G. Introdução ao existencialismo. SP:
dação e o estímulo da luta pela existência, e uma
Brasiliense, 1970.
fidelidade total ao ser que se é e se tem que ser.
SARTRE, Jean Paul. El ser y la nada : ensayo de
ontología fenomenológica. Buenos Aires: Losada,
Referências Bibliográficas 1976.

BOLLNOW, Otto F. Filosofia existencial. Coimbra: . Existencialismo é humanismo . SP:


Armênio Amado, 1946. Nova Cultural, 1987.

GILES, Thomas Ransom. História do existencialismo e SPANOUDIS, Solon. Todos nós...ninguém : um


da fenomenologia. São Paulo: EPU/EDUSP, 1975. enfoque fenomenológico do social. SP: Moraes, 1981.
ETCHEVERRY, Auguste.. O conflito atual dos ZILLES, Urbano.. Gabriel Marcel e o existencialismo.
humanismos. Porto: Tavares Martins, 1964. RS: PUCRS, 1988.

A NOÇÃO DE INAUTENTICIDADE EM HEIDEGGER E SARTRE

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