Você está na página 1de 8

Noeli Reck Maggi

A condição humana
em situação de isolamento:
um encontro com a finitude pessoal
e a busca de criatividade
The human condition in isolation:
an encounter with personal finitude
and the search for creativity
Noeli Reck Maggi

Resumo
O texto traz para reflexão a condição do ser humano quando se depara com a necessidade de
buscar sentido no encontro consigo mesmo num momento em que circunstâncias externas
exigem recolhimento e restringem o contato com os outros. As reflexões e os questionamentos
propostos buscam em Winnicott os fundamentos sobre a constituição da subjetividade e da
intersubjetividade, sobre a necessidade do ser humano de habitar o seu corpo e os seus objetos
internos, além de fazer uso de defesas que ativem a criatividade e a expressão do self espontâ-
neo.

Palavras-chave: Condição humana, Subjetividade, Objeto interno, Criatividade.

Introdução A partir de então, um encontro com o


O ser humano, repentinamente, é convocado interior possibilita ao sujeito perceber o
a confrontar-se com a necessidade de per- que o levou àquelas escolhas, justificar a
manecer só, de manter distância física das disposição física dos objetos e dos espaços
pessoas com as quais teria contato direto, ocupados enquanto realidade. Daí a vivên-
constante e simultâneo no cotidiano. cia de momentos de ansiedade, de angústia
Num primeiro momento, descobre-se e de gratidão. Uma experiência de análise
que os objetos à volta estão relacionados com sem interlocutor, ou seja, com o interlocu-
a novidade, com a possibilidade de revisar o tor interno que ora se aproxima e ora se
que, do ambiente familiar, nunca havia sido distancia.
olhado, escutado, percebido. O estranho que Essa experiência de sentir-se desacom-
habita em cada sujeito revela o desejo de dar panhado parece trazer o ser humano para
significado e sentido a tudo o que ele perce- o isolamento dos primeiros tempos de vida,
be e que antes era supostamente ignorado. É naquele tempo não configurado ainda pelas
percebido tanto o movimento de valorização horas, dias e semanas; tempo em que os ob-
e de revalorização de situações que passavam jetos ainda são subjetivamente percebidos.
despercebidas quanto a atribuição de valor Alguém possibilita ao ser humano pensar
secundário às pessoas e aos objetos que antes que ele criou o mundo e que, nessa condição,
pareciam imprescindíveis. existe apenas uma unidade.
Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 53 | p. 167–174 | julho 2020 167
A condição humana em situação de isolamento:
um encontro com a finitude pessoal e a busca de criatividade

Isso é o que Winnicott (1983) edita e ree- percebida. Um inimigo mortal invade e se
dita em seus escritos. Sorte ou privilégio para instala nos diferentes espaços e em tempos
quem não necessita ainda, tão precocemen- diferentes por todo o mundo. A ciência atri-
te, perceber objetivamente o mundo externo. bui nome ao inimigo, aponta riscos e reser-
Esse acolhimento é o que salva a criatura va cuidados especiais em relação ao referido
humana de uma possível psicose. No entan- vírus porque ele é mortal. Ao ser humano,
to, viver um tempo em que os objetos se pa- é imposta a condição de não contato com o
recem com o que se deseja não persiste por Outro, de não participação em atividades so-
muito tempo. ciais, além de uma perspectiva constante de
A constatação gradativa de um mundo morte iminente, de finitude e luto doloroso
diferente do que foi imaginado possibilita quando laços afetivos são rompidos. Quan-
que, aos poucos, a realidade surja com seus ta dor e luto nessa realidade objetivamente
objetos e pessoas desnudados e que estes se- percebida!
jam não mais subjetivos, mas objetivamente Quando se pensa no viver de modo criati-
escancarados. vo, é possível retomar a forma como o sonho
Não importa se agradáveis ou não, eles se é vivido a cada dia, a cada nova realização.
colocam como diferenciados, e é necessário Sonho em que há perspectiva de vida e no
conviver com eles: vírus, distanciamento, di- qual é atribuído sentido às conquistas. Me-
ferença, pulsão de vida e pulsão de morte. canismo diferente da fantasia, momento em
O que torna a condição humana tão vul- que se instala a fuga de modo a evitar o en-
nerável quanto potente é o convívio com a frentamento da cruel realidade. No dizer de
finitude que, ao mesmo tempo que frustra, Winnicott (1983), o sujeito manifesta com-
devolve o enigma de uma possível recriação. promisso com o mecanismo de fantasia e de
Nesses momentos de intensa ansiedade e até fuga para evitar o contato com a realidade
de angústia, poetas, pensadores, além de ma- que necessita ser objetivamente experimen-
nifestações cultuadas no cotidiano das pes- tada.
soas se constituem em tela de fundo para que Ao falar do colapso da subjetividade e da
cada ser revise suas inscrições nos espaços intersubjetividade no isolamento pessoal,
interiores. Ao compartilhar suas expressões Ogden (1996, p. 48) diz que:
literárias, poéticas e de sofrimento psíquico,
torna-se possível lembrar e evocar o que faz [...] a unicidade é o contexto necessário para
sentido a cada um. dualidade, e a dualidade salvaguarda a expe-
Então, vive-se um paradoxo. O ser huma- riência da unicidade (ao proporcionar uma
no busca viver, como nos tempos precoces negação essencial disso). Essa dialética, que
do desenvolvimento, uma realidade subjeti- tem sua origem na vivência, pelo bebê, da
vamente percebida, embora seja surpreendi- preocupação materna primária, continua ao
do a experimentar a realidade objetivamente longo da vida como uma faceta de todas as
constatada. Uma violência se precipita à con- formas subsequentes de subjetividade.
dição humana realçando as marcas já experi-
mentadas em tempos anteriores. Essa consideração de Ogden explicita
Que mãe-como-ambiente é essa que não as condições pessoais necessárias para os
dá sossego à condição humana para que ela enfrentamentos futuros diante de conflitos
possa experimentar gradativamente a per- inomináveis. Inominável é o que a huma-
cepção objetiva da realidade? nidade sente, vive, experimenta e enfrenta
O pânico ou a fuga da realidade se insta- e se recolhe diante da tragédia avassaladora
lam para buscar alternativas suportáveis no da morte anunciada e precipitada pela pan-
enfrentamento da realidade objetivamente demia.

168 Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 53 | p. 167–174 | julho 2020


Noeli Reck Maggi

Surge, então, a ideia do isolamento que, gestos. Não chega a ser traumático, embora
para Winnicott (1983, p. 31), ao escrever pareça bastante estranho.
sobre “a capacidade para estar só”, deixa re- Para Ogden (1996, p. 163-164), o con-
gistros sobre formas de isolamento que faci- ceito de isolamento pessoal é considerado
litam ao ser humano o desenvolvimento do como “central para uma compreensão do
self. O autor afirma que desenvolvimento humano”. Essa concepção
está baseada no estudo de fenômenos autis-
[...] tem-se escrito mais sobre o medo de ficar tas; condição necessária para que o sujeito se
só, ou o desejo de ficar só, do que sobre a ca- constitua a partir da ilusão e do poder utó-
pacidade de fazê-lo [...]. picos de que ele originou e criou um mundo
abastecedor de todas as necessidades. Essa é
Winnicott concebe o isolamento como uma forma primitiva de isolamento em que
facilitador e necessário para o desenvolvi- o indivíduo está desconectado em relação ao
mento do self. Uma mãe-como-ambiente que mundo exterior.
supre as necessidades do sujeito ainda vul- Ogden (1996, p. 163-164) afirma que
nerável impede que esse elemento nutridor e Winnicott
contensor das angústias seja percebido como
realidade. Essa é a condição necessária para [...] acreditava que o isolamento do bebê em
que o sujeito se estruture de modo saudável relação ao objeto objetivamente percebido é
e possa, mais tarde, enfrentar tantos desafios um contexto vivencial essencial para o desen-
impostos pelo mundo objetivo dos objetos e volvimento de um sentido de realidade e de
das experiências. Enquanto isto, o psiquismo espontaneidade do self.
produz defesas que servem de proteção para
as camadas mais profundas do self. O que Winnicott deixou nos registros
Para Ogden (1996, p. 176), escritos a partir de sua experiência no tra-
balho com crianças que sofreram traumas
[...] a vida psicológica é, desde o princípio, em na vida, no início do desenvolvimento,
salvaguarda de modo similar pelo santuário é que a percepção prematura do estado de
proporcionado pela experiência de não exis- separação entre o self e a realidade externa
tir no mundo dos vivos. não pode ou não deveria ser precipitada. Um
ambiente confiável e capaz de suprir as fal-
A humanidade enfrenta uma realida- tas que emergem das necessidades torna-se
de nunca antes vivida e experimentada de indispensável num período precoce da vida
modo tão urgente e necessário, que é o “não psíquica do sujeito. Pode parecer um estado
existir no mundo dos vivos” de modo a se ideal de existência e, assim, podemos con-
distanciar de tudo o que se apresenta como siderar esse momento, que é denominado
insuportável por ser também insuperável. como “continuidade do ser”, para que, mais
tarde, essa criatura humana possa enfrentar
Quando o isolamento reativa desafios e seja capaz de desejar.
a experiência de um trauma Uma tragédia social, uma ameaça de
e a saída para a vida criativa morte coletiva provocada por uma pande-
Nestes tempos de isolamento e distancia- mia pode preservar o sujeito para que conti-
mento social, temos de encontrar pessoas e nue existindo e confiando no que lhe é reser-
reconhecê-las pelo restante do corpo e, espe- vado na realidade objetivamente percebida
cialmente, pelo olhar, uma vez que a máscara ou, ainda, a desesperança e o uso de defesas
impede que se enxergue o sorriso. Algumas muito arcaicas podem ser acionados a fim
pessoas sorriem por meio do olhar e pelos de tentar suportar a dor e a angústia inomi-

Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 53 | p. 167–174 | julho 2020 169


A condição humana em situação de isolamento:
um encontro com a finitude pessoal e a busca de criatividade

náveis. O momento em que são divulgadas política e intelectual. Trata-se de uma tra-
notícias da morte de milhares de pessoas em gédia maior do que pensam estar constituí-
todos os lugares do mundo não reserva es- das as instituições e organizações sociais.
paço para isolamento e proteção, a não ser Esse estado caótico e devastador dominado
encontrar refúgio dentro de si mesmo. por um inimigo invisível revela tratar-se de
Daí surge o que é essencial e vital ao ser uma guerra silenciosa, viral, de contágio
humano e se constitui talvez a única forma e que ameaça o ser humano que se pensa
de se manter vivo, que é a capacidade de re- soberano e pronto para grandes desafios. O
presentação e de extensão das emoções, dos ser humano é confrontado na sua onipotên-
sentimentos e dos desejos para além de si cia e na sua in(certeza) de tudo poder, saber
mesmo. Manter-se vivo supõe a criação de e prever.
símbolos, de objetos, de situações e expe- A mãe-como-ambiente proporciona ao
riências num espaço no qual são originadas humano uma forma de isolamento da exter-
novas formas de experiência e de vivência nalidade ameaçando a vitalidade e a conti-
de um novo self, recriado a partir da ma- nuidade de ser. Agora, a ilusão está entregue
triz. Possivelmente, a onipotência que, se- à capacidade de criar, inventar e suceder o
gundo Winnicott (1983), é constituída com que tem de ser recriado a cada novo dia, a
o auxílio da mãe-como-ambiente desde os cada nova possibilidade de contemplar o
primeiros tempos de vida, é necessária no amanhã. Winnicott utilizou o termo “onipo-
momento em que a angústia causada pelo tência” para um tempo em que nada servia
isolamento necessita ser enfrentada. Certa de suporte ao ser humano a não ser a ilusão
dose de ilusão promove força e encoraja o de que o mundo era criação própria de cada
ser humano que se sente desamparado a en- um. Agora, parece que cada um tem de re-
contrar novas formas de viver e de se rela- correr a essa ilusão de que será salvo de todo
cionar. este caos, só que de modo diferente: recrian-
Os símbolos são criações que ocupam do a realidade, representando o desejo por
espaços de falta, que unem o que está des- meio de pequenas realizações. Parece pouco
conexo e dão sentido ao caos que ameaça o apropriado pensar em uso de poder porque
aniquilamento. Seguindo as concepções de se desfruta de uma onipotência quando se
Winnicott, Ogden (1996) traz para análise vive um clima de incerteza e de ausência de
a espontaneidade do self como decorrente respostas para as dúvidas que surgem coti-
de um enfrentamento cuidadoso do sujeito dianamente.
diante da realidade. É certo que a cada dia, Ogden (1996, p. 166) reativa, nos seus
a cada novo fato ou nova descoberta, os hu- escritos, o que Winnicott concebeu como
manos se locomovem por meio de defesas forma de isolamento para que o desenvol-
que protegem o psiquismo de um colapso. O vimento precoce normal possa ocorrer: um
risco de as defesas entrarem em colapso se dá retraimento tanto em relação à mãe-como
justamente quando o sujeito se vê rodeado -ambiente quanto à mãe como objeto. A in-
de eventos devastadores marcados pela mor- visibilidade em relação à demanda do outro
te, pelo extermínio causado por um inimigo produz uma camada protetora para “salva-
que está presente e não se apresenta materia- guardar” a vulnerabilidade própria dos pri-
lizado, a não ser pela maior castração huma- meiros tempos de vida. Esse mecanismo é
na que é a morte. essencial para que as camadas profundas do
A humanidade se vê dominada e amea- psiquismo, ainda em constituição, não sejam
çada na sua onipotência e desnudada na invadidas de modo traumático.
sua condição de pertencimento a uma de- Essa é também a atividade clínica do psi-
terminada classe social ou a uma condição canalista: encontrar sentido e nomear seus

170 Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 53 | p. 167–174 | julho 2020


Noeli Reck Maggi

objetos internos para servir de ego auxiliar O que emerge na clínica psicanalítica são
à dor do paciente. Possibilitar um encontro as situações traumáticas, as dores, o abando-
empático com o outro, mantendo a distância no. E o que resta ao psicanalista trabalhar é
necessária anunciada pela técnica. o que, do vazio existencial, poderá ser feito
Hoje vivemos momentos de tensão fisio- para que aquele sujeito possa se encontrar
lógica e psíquica porque, no isolamento ex- realizando algo proveitoso, algo que tenha
perimentado por cada um, há uma invasão sentido de liberdade para sua vida.
de acontecimentos, da realidade que realça Os atendimentos clínicos, nesses contex-
o iminente risco de morte a cada nova pers- tos, ocupam espaços físicos diferentes, na
pectiva de perda, abandono e luta pela so- sala ou no escritório da casa, no carro ou a
brevivência. A camada mais profunda e pro- caminho da praça, embora o espaço inter-
tegida do self sente-se exposta aos riscos de no, tanto do psicanalista quanto do paciente,
aniquilamento e de abandono. possa estar situado na relação transferencial
Nesse sentido, Souza (2007, p. 316) diz com o enquadre que o trabalho psicanalítico
que, segundo a psicanálise, exige. Possivelmente, cada um traz a sua rea-
lidade interna a partir da realidade externa
[...] as defesas desempenham um papel es- transitando com maior ou menor capacida-
truturante na constituição da subjetividade, de para criar e ampliar sua experiência.
onde o recalcamento se faz presente. Trata-se O vazio experimentado pelo paciente
de um modo de funcionamento em que a pes- configura um acontecimento que danificou o
soa está organizada e com um funcionamento ego que, num momento posterior, procura se
baseado no princípio da realidade. livrar dessa agonia com representações que
deem sentido de liberdade. Se hoje o sujeito
O colapso, assim denominado por Winni- vive o impacto de um possível vírus extermi-
cott (1994, p. 71), surge no momento em que nar com a sua vida, há que dar sustentação
as defesas não dão conta da dor impensável, para a continuidade de ser, de existir e de
no momento em que o ego se sente ameaça- buscar conforto num lugar próprio de vida.
do pelo ataque de um risco pessoal ou am- Isso porque o medo da morte é paralisante e
biental. Por outro lado, o fracasso ambiental constitui sintoma, impedindo a perspectiva
estará presente na vida do ser humano uma de vida futura. Se essa morte aconteceu num
vez que a dependência é uma condição per- tempo inicial da vida do paciente, é necessá-
manente do psiquismo humano, embora seja rio falar dela, escutar de onde emana a ex-
uma dependência relativa. periência dolorosa de não existir para que o
Pacientes trazem, para a clínica psicana- sujeito possa dar nome e sentido ao que ex-
lítica, o medo em relação ao futuro diante perimenta naquele momento. Evitar que as
de uma tragédia ou de algum obstáculo que defesas arcaicas mostrem algo dissociado da
possa interromper o ciclo de vida daquele realidade objetivamente percebida e experi-
sujeito. Esse medo pode estar relacionado mentada.
tanto às experiências passadas quanto às in- Quando o paciente traz para a sessão
tercorrências do ambiente. psicanalítica seu temor de morrer, de algu-
Winnicott (1994, p. 75) diz que ma forma está no processo de regressão à
dependência num período em que não res-
[...] em alguns pacientes, o vazio precisa ser tou outra alternativa senão trazer a situação
experienciado, e este vazio pertence ao pas- de sofrimento, revivê-la e tentar reanimá-la
sado, ao tempo que precedeu o grau de ma- sob outro vértice. Ocorreu num tempo tão
turidade que tornaria possível ao vazio ser precoce que seria insuportável reviver esses
experienciado. sentimentos pela fragilidade como esse ser se

Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 53 | p. 167–174 | julho 2020 171


A condição humana em situação de isolamento:
um encontro com a finitude pessoal e a busca de criatividade

encontrava quando fora invadido pelos sen- Nesse ponto, lembramos Otávio Souza
timentos de aniquilamento e desamparo. A (2007) que, ao escrever sobre defesa e criati-
organização eficaz de recursos pessoais pode vidade em Klein, Lacan e Winnicott, traduz
auxiliar na superação do medo e na busca de de modo farto a ideia de defesa. O autor traz
alternativas diante das dificuldades que do- para reflexão a ideia de defesa pensada como
minam o cotidiano. defesa contra o desejo, considerada numa si-
tuação de conflito no funcionamento psíqui-
O indivíduo herda um processo de amadu- co e defesa contra o trauma pensada como
recimento, que o faz progredir na medida uma invasão no psiquismo do sujeito quando
em que exista um meio ambiente facilitador ele ainda não dispõe de recursos para supor-
e somente na medida em que este exista. O tar tal invasão. Nesse caso, o funcionamento
meio ambiente facilitador é ele próprio, um normal é impedido de ocorrer em função da
fenômeno completo e necessita de um estu- não estruturação do psiquismo.
do especial por seu próprio direito: o espa- Neste ponto, encontramos o trabalho do
ço essencial é que ele possui uma espécie de psicanalista para uma interpretação, pois, se-
crescimento seu, próprio, estando adaptado gundo Souza (2007, p. 338),
às necessidades mutantes do indivíduo em
crescimento (Winnicott, 1994, p. 71). [...] a interpretação não interpreta o desejo,
mas empaticamente se aproxima do sofri-
O trabalho em psicanálise é reviver o va- mento do sujeito no que foi desatendido nos
zio, experienciá-lo por meio do que sente e tempos primordiais da dependência absoluta.
sentiu em suas transações com as contingên-
cias ambientais. Se o paciente vivencia um Nesse sentido, parece necessária a con-
momento de caos social, de medo contra um fiança no trabalho psicanalítico e numa rela-
inimigo que extermina a vida das pessoas, há ção transferencial em que o paciente perceba
que dizer desse medo do vazio para que ele quais defesas se tornam necessárias e não
não paralise esse/o sujeito e que seja possível obstaculizem a ampliação do espaço criativo.
olhar para ele, clamar a presença dele e, jun- Na continuidade, Souza (2007, p. 342)
to com o trabalho psicanalítico, encontrar as aponta para o cuidado necessário de o psi-
representações para esse espaço que, num canalista se nortear pela “situação clínica que
primeiro momento, está compulsivamente encontra” de modo a evitar “mandamentos
controlado ou temido por não ter sido falado éticos excessivamente rígidos”.
na realidade objetivamente concebida.
Segundo Winnicott (1994, p. 76), Considerações finais
O trabalho psicanalítico necessita abrir pos-
[...] A base de toda aprendizagem (assim sibilidade para que o inconsciente possa
como do comer) é o vazio. Mas se o vazio não sempre expressar o que deseja evitando, des-
é experienciado como tal, desde o começo, ele se modo, o empobrecimento da vida afetiva.
aparece então como um estado que é temido, Como bem afirma Winnicott (1994), a
mas, contudo, compulsivamente buscado. criatividade não é traduzida por meio de atos
defensivos ou por meio de atividades artísti-
Falar do vazio e do medo da morte é evitar cas, mas na “coloração”, na diversidade, na
que as defesas obstruam a capacidade de lem- mobilidade e na transitoriedade das atitudes
brar e reelaborar. O encontro com o eu interior diante da realidade externa.
ativa a necessidade de encontrar caminhos O psicanalista precisa estar atento à cria-
que representem vida, solução e busca de sen- ção de um sentimento de confiança para que
tido ao que, aparentemente, não faz sentido. o paciente tenha a oportunidade de brincar,

172 Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 53 | p. 167–174 | julho 2020


Noeli Reck Maggi

de criar, de se locomover num universo de Referências


símbolos próprios.

FULGENCIO, L. Por que Winnicott? Coordenação


Daniel Kupermann e Adriano Zago. São Paulo:
Abstract
Zagodoni, 2016.
The text reflects on the condition of the hu-
man being when faced with the need to seek GREEN, A. Orientações para uma psicanálise
meaning in the encounter with oneself at a contemporânea. Tradução: Ana Maria Rocca Rivarola.
time when external circumstances require rec- Rio de Janeiro: Imago; São Paulo: SBPSP, 2008.
ollection and restrict contact with others. The
KLEIN, M. Inveja e gratidão e outros trabalhos.
proposed reflections and questions explore in Tradução da 4. ed. inglesa: Elias Mallet da Rocha,
Winnicott the fundamentals on the constitu- Liana Pinto Chaves (Coords.) e col. Rio de Janeiro:
tion of subjectivity and intersubjectivity, on Imago, 1991.
the need of human beings to inhabit their bod-
OGDEN, T. H. Os sujeitos da psicanálise. Tradução:
ies and their internal objects, to make use of
Claudia Berliner. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1996.
defenses that activate creativity and the ex-
pression of the spontaneous self. SOUZA, O. Defesa e criatividade em Klein, Lacan e
Winnicott. In: BEZERRA Jr., B.; ORTEGA, F. (Orgs.).
Keywords: Human Condition, Subjectivity, Winnicott e seus interlocutores. Rio de Janeiro: Relume
Dumará, 2007.
Internal Object, Creativity.
WINNICOTT, D. W. Explorações psicanalíticas: D. W.
Winnicott. Tradução: Jose Octavio de Aguiar Abreu.
Porto Alegre: Artes Médicas, 1994.

WINNICOTT, D. W. O ambiente e os processos de


maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento
emocional. Tradução: Irineo Constantino Schuch
Ortiz. Porto Alegre: Sulina, 1983.

Recebido em: 30/05/2020


Aprovado em: 10/06/2020

Sobre a autora

Noeli Reck Maggi


Psicóloga.
Psicanalista.
Sócia efetiva do Círculo Psicanalítico
do Rio Grande do Sul.
Doutora em educação pela Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Membro do Conselho Editorial
da Revista Estudos de Psicanálise.

Endereço para correspondência


E-mail: nrmaggi@gmail.com

Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 53 | p. 167–174 | julho 2020 173

Você também pode gostar