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Sua majestade, o Eu:

O narcisismo como sistema de autoconservação frente às três figuras de aceleração


da contemporaneidade1

Daniel dos Santos Cunha2

RESUMO: as expressões individuais superpovoam os universos de sentido dos


sujeitos, e numa correlação a este desdobramento do contemporâneo, os traços de
personalidade associados ao narcisismo parecem proliferar também no cenário
atual. Entre as influencias sociais sobre uma “cultura do narcisismo” e as
transformações e excessos presentes no mundo de hoje, os sujeitos passam a
assumir comportamentos e percepções da realidade com base na necessidade de
autoconservação, numa espécie de batalha pela sobrevivência emocional. O
presente ensaio tem como interesse articular a noção de direcionamento narcísico
com as três figuras de excesso da contemporaneidade levantadas por Marc Augé: o
tempo, o espaço e as produções individuais de sentido.

PALAVRAS-CHAVE: narcisismo; contemporaneidade; figuras de aceleração.

Introdução

Dentre as inúmeras características que definem a situação dos sujeitos na


contemporaneidade, poucas estão mais presentes nas discussões (sejam estas nas
rodas acadêmicas, na mídia ou nas conversas descontraídas de conhecidos) do que
aquelas relativas à noção de desamparo, sensação de pequenez e isolamento –
salvo quando este isolamento é substituído pelo contato restrito às situações de
competição – relatadas pelo homem na atualidade.
Como parte do processo pelo qual nos tornamos “civilizados”, Freud (2010d)
postula que aprendemos a lidar com certas vicissitudes relativas ao sofrimento, a fim
de constituirmos uma vida em sociedade. O homem então passou a privar-se de
determinadas atitudes em busca do prazer a fim de evitar sofrer com as frustrações
que irremediavelmente encontravam-se no caminho de sua felicidade. O mal-estar,
então fruto destas privações, convertia-se em sintomas, que comumente se
associam às estruturas de caráter pertinentes a cada época.

1
Ensaio apresentado como requisito de avaliação da Disciplina Tópicos Especiais em Processos de
Subjetivação I, do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal do Piauí,
ministrada pelo Prof. Dr Gustavo Fortes Said, período 2016.2
2
Mestrando do Programa de Pós-Graduação de Comunicação pela Universidade Federal do Piauí,
sob orientação da Profa. Dra. Monalisa Pontes Xavier. Bolsista da CAPES. E-mail:
deutiltdaniel@gmail.com
1
O fato de nos percebermos como seres em constante competição por
recursos, por atenção e pela estima alheia nos coloca no seio de uma sociedade
associada ao caráter narcísico, que estaria sendo estimulado (também) por fatores
sociais: as estruturas administrativas e burocráticas, que pressupõem uma atitude
competitiva e autopromotora; a superabundância de produções culturais e
audiovisuais, por meio das quais os sujeitos registram a realidade e transcrevem
suas experiências vividas a fim mesmo de validá-las; a prevalente percepção de um
mundo perigoso e sem futuro, que coloca os sujeitos uns contra os outros, inclusive
lutando pela permanência de suas condições emocionais.
Em meio a essas situações, temos um cenário que se acelera e se povoa de
universos de sentido e produções individuais. Como situa Marc Augé (2007), a
contemporaneidade é marcada pelas figuras de excesso, sendo o tempo, o espaço e
as produções individuais de sentido algumas das marcas que o homem atual deve
conviver.
O presente ensaio propõe uma articulação do direcionamento narcísico como
uma resposta frente às figuras de aceleração presentes na contemporaneidade,
entendidas numa analogia às vicissitudes relativas ao sofrimento dos sujeitos. Neste
contexto, o caráter narcísico demarcado na sociedade contemporânea seria uma
espécie de sistema de autoconservação frente às instabilidades e ameaças de
finitude que emergem da relativização proveniente destas acelerações e excessos.

Da atenção ao narcisismo na contemporaneidade

Nosso inconsciente está plenamente convencido da própria imortalidade.


Mais de um século após esta afirmação, as palavras de Freud (2010b) continuam a
carregar uma verossimilhança desconcertante. Nossa relação com a morte e com a
finitude de toda a materialidade que nos circunda ainda mostra-se conturbada, e
mesmo com todos os avanços da psicologia (no esforço de entendê-la) e da
medicina (em sua batalha para adiá-la), prosseguimos sendo arrebatados pelo
colapso da perda de nossos entes queridos e com a descrença no próprio ato de
perecer.
Além do irremediável (até o presente momento) encontro com a morte, somos
também acometidos por intensas sensações de pequenez, desorientação e

2
desilusão com o futuro individual e coletivo, sendo estas fontes das mais variadas
possíveis. Frente a estas modalidades de sofrimento, podemos inferir que os
sujeitos encontram diferentes formas de perceber-se e também de lidar com estas
constatações, o que se reflete, mesmo que de forma indireta, nas patologias e traços
de personalidade observados como preponderantes em cada época.
Freud (2010d) considera as três vicissitudes relativas ao sofrimento do
homem na modernidade (que estariam presentes no declínio do corpo, nas forças
inexoráveis e destruidoras do mundo externo e nas relações com os outros sujeitos),
e as privações relativas às pretensões na busca dos prazeres que seriam
autoimpostas por este homem a fim regular sua a vida em sociedade. Destas
privações (onde a conquista do prazer é posta como secundária em relação ao
imperativo de evitar o sofrer) resultariam os sofrimentos psicológicos dos sujeitos, ou
os mal-estares.
Como propõe Lasch (1983), “cada época desenvolve suas próprias formas
peculiares de patologia, que exprimem, em forma exagerada, sua estrutura de
caráter subjacente” (p. 66). Contemporâneas a Freud estavam tanto a histeria
quanto as neuroses obsessivas, que externalizavam os traços de personalidade
ligados à organização capitalista em seu estágio premente de desenvolvimento:
“ganância, devoção fanática ao trabalho e uma feroz repressão da sexualidade” (p.
67).
A colocação do historiador norte-americano é usada para suscitar o
questionamento relativo às “desordens do caráter” da contemporaneidade.
Apoiando-se em pesquisas e observações clínicas, o autor aponta para uma espécie
de emergência do narcisismo como uma mudança na organização de personalidade
do homem contemporâneo, evidenciadas principalmente no pós Segunda Guerra
Mundial. Se os sujeitos modernos vivenciavam as neuroses sintomáticas, as
paralisias e performances histéricas, as compulsões e fobias associadas às
patologias mais comuns, os sujeitos de hoje estariam convivendo cada vez mais
com as desordens narcisistas – ou sob outro ângulo, não se trataria de uma maior
incidência das desordens de natureza narcisista, mas sim de uma atenção mais
direcionada por parte da clínica na atualidade (LASCH, 1983).
Convém notabilizar que a estrutura de caráter narcísico à qual estamos nos
reportando estaria menos associada a um sentido de perversão e mais como o

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complemento libidinal do egoísmo do instinto de autoconservação, que de certo
modo, está (justificadamente) atribuído a cada um de nós (FREUD, 2010c).
Importante ainda é ressaltar dois pontos da teoria do narcisismo: a distinção entre o
narcisismo primário e o narcisismo secundário, ou de caráter patológico.
No que se refere ao narcisismo primário, de maneira sintética, seria o
investimento libidinal do Eu observado como uma pré-condição necessária do objeto
amoroso (LASCH, 1983), que se desenvolve numa etapa anterior à diferenciação do
recém-nascido com os objetos. Nesta fase, o bebê não percebe a existência da
figura materna (ou no caso da ausência desta, das figuras de apoio) como separada
da sua, e confunde a dependência da mãe – a figura que satisfaz suas
necessidades prontamente – com a própria onipotência. O recém-nascido leva ainda
certo tempo antes de conceber a ideia de que suas necessidades são internas e a
fonte de suas realizações não vem de si. Esta etapa do investimento libidinal no Eu
é necessária para evitar o adoecimento frente às frustrações externas, ao desacordo
com os objetos de amor e impossibilidades da própria carne, e se dá anteriormente
à conversão deste investimento aos objetos.
Quanto ao narcisismo secundário, este surge apenas no momento posterior
ao desenvolvimento do Eu ao ponto de o sujeito distinguir-se dos objetos ao seu
redor (LASCH, 1983). Nesta modalidade de narcisismo, o sujeito busca anular o
sofrimento decorrente do objeto de amor que o desaponta através do
restabelecimento de relações anteriores, onde figuras onipotentes (geralmente os
pais) se misturam à própria imagem de si, constituída num Eu ideal.
A esse ideal do Eu dirige-se então o amor a si mesmo, que o Eu real
desfrutou na infância. O narcisismo aparece deslocado para esse
novo Eu ideal, que como o infantil se acha de posse de toda preciosa
perfeição. Aqui, como sempre no âmbito da libido, o indivíduo se
revelou incapaz de renunciar à satisfação que uma vez foi
desfrutada. Ele não quer se privar da perfeição narcísica de sua
infância, e se não pôde mantê-la, perturbado por admoestações
durante seu desenvolvimento e tendo seu juízo despertado, procura
readquiri-la na forma nova do ideal do Eu. O que ele projeta diante
de si como seu ideal é o substituto para o narcisismo perdido da
infância, na qual ele era seu próprio ideal (FREUD, 2010c, p. 40).

Neste sentido, estariam presentes uma série de influências sociais sobre a


constituição narcísica em emergência (ou apenas sob um olhar mais atencioso),
novamente como possibilidades de estruturas de caráter que são externalizadas ou
que são “convocadas” a se apresentarem conforme os rigores da época.
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Entre as inúmeras possíveis matrizes para o que Lasch (1983) chama de
direcionamento interior para o narcisismo podem ser acompanhadas nas dinâmicas
presentes nas sociedades contemporâneas. Uma destas realidades é a que envolve
o mundo da administração, dos negócios e da burocracia, onde o “narcisista
encontra seu lugar” (p. 69). Neste contexto de competitividade, busca de sucesso e
promoção pessoal, o sujeito narcisista goza da aprovação necessária para creditar e
estimular sua autoestima. Dentro do padrão que se busca, onde o desempenho é
estimado em menor grau que a visibilidade e o registro das vitórias, o administrador,
ou o executivo brilhante pouco se interessa pelos eventos do mundo externo, a não
ser que estes espelhem sua própria imagem ou repercussões de seus feitos
pessoais e profissionais.
Outro conjunto de influências sociais transbordantes na contemporaneidade é
o que remete à reprodução mecânica da cultura, e à proliferação de imagens visuais
e auditivas na “sociedade dos espetáculos” (LASCH, 1983, p. 73). Vivemos então
num cenário abundante de imagens que registram e transcrevem as experiências,
oferecendo a múltiplos aspectos de nossa vida um caráter semelhante ao de uma
sala de espelhos, onde nossas imagens ecoariam para nós mesmos e para outros
espectadores, nem sempre anunciados.
A vida se apresenta como uma sucessão de imagens ou de sinais
eletrônicos, de impressões registradas e reproduzidas por mio da
fotografia, filmes animados, televisão e sofisticados aparelhos
registradores. A vida moderna é tão profundamente invadida por
imagens eletrônicas, que não podemos deixar de responder aos
outros como se suas ações – e nossas próprias – estivessem sendo
registradas e simultaneamente transmitidas a uma audiência
invisível, ou armazenadas para minucioso escrutínio posterior.
“Sorria, você está sendo focalizado” (LASCH, 1983, p. 73).

Ao embasar sua posição a partir de estudos feitos sobre fotografia, Lasch


(1983) problematiza uma noção de realidade que se assemelha cada vez mais com
aquilo que as câmeras registram, como se as observações decorrentes de nossas
percepções não gozassem do devido crédito até que as câmeras realizassem o
trabalho de atestá-las. Assim, por meio do registro fotográfico, seria dada a prova
cabal de nossa existência, sem a qual encontraríamos dificuldades na própria
reconstrução de uma história pessoal, muitas vezes servindo como única referência
de vida, reconhecida como totalmente válida.

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Entre os “muitos usos narcisistas” que Sotang atribui à câmara, a
“autovigilância” situa-se entre os mais importantes, não só porque ela
proporciona os meios técnicos de incessante auto-escrutínio, mas
porque torna o senso de identidade dependente do consumo de
imagens do eu, ao mesmo tempo colocando em questão a realidade
do mundo exterior (LASCH, 1983, p. 74).

Uma terceira proposição a aparecer como influência no direcionamento


narcisista refere-se às condições sociais na atualidade que estimulam uma
mentalidade de sobrevivência nos sujeitos, que pode ser ilustrada em metáforas
como a vida constituindo-se numa “corrida de obstáculos” ou mesmo numa “selva”,
onde o mais forte devora o mais fraco. A novidade em comparação a outros
momentos da história humana (que se mostraram, inclusive, contextos tão ou mais
imersos em competitividade e animosidade) é que a corrida da atualidade remete
não apenas a uma chegada cujos prêmios são recursos materiais, a preservação da
vida e da carne, mas também a sobrevivência emocional, a preservação das
identidades e do Eu (LASCH, 1983).
A provocação do autor prossegue ao sugerir que novas formas sociais trazem
à tona novos arranjos de personalidade, novas modalidades de socialização e novas
maneiras de organizar a experiência. Tendo a “dura realidade” como plano de fundo
da sociedade, o narcisismo aparenta, realisticamente, representar a maneira mais
eficiente de lutar com relativa igualdade de condições com as tensões, os temores e
ansiedades da vida moderna (não necessariamente como um determinismo
psicológico, mas como uma maneira de compreender o impacto das mudanças mais
recentes). Paralelamente, sob o temor de um futuro com baixas expectativas, ou
mesmo em vias de não existir, projeta uma sociedade que pouco se interessa pelas
necessidades das gerações posteriores, desvinculando-se de um sentido de
continuidade histórica e também abrindo espaços para eufemismos e cinismos sob o
pretexto de sobrevivência e predação do outro.
A percepção do mundo como um lugar perigoso e repulsivo, embora
tenha origem em uma conscientização realista da insegurança da
vida social contemporânea, recebe reforço da projeção narcisista de
impulsos agressivos. A crença de que a sociedade não tem futuro,
embora se baseie em certo realismo sobre os perigos do devir,
também incorpora uma incapacidade narcisista de identificar-se com
a posteridade ou de sentir-se parte do fluxo da história (LASCH,
1983, p. 77).

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O nosso eixo de discussão reside em como o direcionamento para o
narcisismo reflete uma resposta social frente às vicissitudes de nossa época (que
devem ser inúmeras e por isso não aspiramos contemplá-las no presente ensaio),
aqui caracterizadas nas três figuras de aceleração da contemporaneidade: o tempo,
o espaço e o Eu.

Das três figuras de aceleração

Com a intenção de atrair o olhar antropológico e das ciências sociais em geral


para o contemporâneo, Marc Augé (2007) descortina objetos de pesquisa que
considerem os processos de mudança, distanciamentos, iniciativas e transgressões.
Com base nessa premissa, o autor desloca sua atenção para três transformações
aceleradas próprias do cenário contemporâneo, debruçando-se sobre o tempo, o
espaço e a figura do Eu.
A primeira figura de aceleração abordada pelo etnólogo e antropólogo
francês, trata-se do tempo. Conforme Augé (2007) transformaram-se tanto a nossa
percepção do tempo quanto os usos que dele fazemos e também a maneira como
dele dispomos. Esta instância não seria, hoje, um princípio de inteligibilidade.
Para ilustrar essa aceleração do tempo, Augé (2007) concentra-se no que ele
propõe como uma aceleração da história, onde os sujeitos, tendo passado pouco
pela vida, já percebem o próprio passado como história, em outras palavras, têm a
noção de que suas histórias individuais pertencem à história, como se ela estivesse
em seus calcanhares. Esta sensação de pertencer à história seria um traço da
aceleração da mesma, que corresponde de fato a uma superabundância dos fatos,
uma multiplicação dos acontecimentos (em sua maioria não previstos por
economistas, historiadores ou sociólogos), e que por sua vez cobram dos sujeitos
uma também superabundância de sentidos.
Segundo o autor, um problema que pode se apresentar a partir desta relação
superabundância de fatos/sentidos é o que reside na nossa exigência de
compreender todo o presente que decorre de nossa dificuldade em dar sentido ao
passado próximo. Para Augé (2007) esta demanda de sentido se manifesta nos
sujeitos contemporâneos e poderia explicar certos fenômenos que são interpretados
como “crises de sentido”, a exemplo de decepções e desilusões de todas as

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naturezas – “desiludidos do socialismo, desiludidos do liberalismo e, logo mais,
desiludidos do pós-comunismo” (p. 33).
A segunda figura de excesso denunciada por Augé (2007) refere-se ao
espaço, e ocorre paradoxalmente ao “encolhimento” do globo. Enquanto o alteram-
se as escalas, os transportes se aceleram e as comunicações ignoram as barreiras
físicas e os intervalos temporais através de suas vias instantâneas ou simultâneas, o
mundo se abre para os sujeitos, as fronteiras se enfraquecem e os lugares se
tornam acessíveis.
Em vista destas acelerações, a organização espacial é relativizada e
ultrapassada na contemporaneidade, os espaços se multiplicam e “esticam”. Esta
superabundância espacial funcionaria como substituta dos universos de sentido
tradicionais, onde os indivíduos e grupos se definem. Com esta transformação,
ocorrem certas modificações da ordem do concreto, como as concentrações
urbanas, as transferências de população e também o surgimento dos “não-lugares”
– em oposição à noção sociológica de lugar, situado no tempo e no espaço -, que
representam uma constelação de espaços, definidos por seus fins: instalações
necessárias à circulação de pessoas e bens, os próprios meios de transporte ou
centros comerciais, ou os campos de trânsito prolongados onde ficam alojados os
refugiados (AUGÉ, 2007).
A terceira figura de excesso, segundo Augé (2007) recai sobre o Eu e as
produções individuais de sentido, sobre as maneiras como os sujeitos interpretam
por e para si mesmos as informações sobre o mundo que para eles são entregues.
Neste sentido, provoca o autor, “nunca as histórias individuais foram tão
explicitamente referidas pela história coletiva, mas nunca, também, os pontos de
identificação coletiva foram tão flutuantes. A produção individual de sentido é,
portanto, mais do que nunca, necessária” (AUGÉ, 2007, p. 39). O desafio que o
pensador faz é o de como se pensar a pesquisa que visa um entendimento da
contemporaneidade considerando a superabundância da individuação das
referências, da singularidade dos objetos e dos grupos, ao mesmo tempo que se fala
ininterruptamente em processos de aceleração e deslocalização, que geralmente
são resumidos por expressões como “homogeneização” ou “mundialização” da
cultura.

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Da relação narcisismo e aceleração: autoconservação

No esforço de articular as figuras de excesso levantadas por Augé (2007)


como possibilidades de vicissitudes do homem contemporâneo, nos apoiamos
necessariamente na relatividade que a aceleração propõe aos sujeitos. Numa
metáfora grosseiramente simples, em que um ponto se acelera em relação ao outro,
distanciando-se, a noção daquele ponto “deixado para trás” será a de abandono,
pequenez, descontinuidade. Frente ao excesso, não acontece de forma muito
diferente para nós, os sujeitos. Atravessados por uma multidão de imagens, de
sentidos individuais e coletivos, não é de se estranhar certa atomização,
sentimentos de diminuição ou mesmo de finitude.
O que Augé (2007) nos traz com o excesso dos fatos históricos, do passado
próximo “farejando” nossos calcanhares, não necessariamente contrapõe-se ao
sentimento de descontinuidade histórica do sujeito narcísico. Se a abundância de
fatos e busca de sentidos “superpovoa” a história de sujeitos e de acontecimentos,
também não garante que, mesmo fazendo parte desta história “recente”, sejamos
lembrados, ou mesmo que nós mesmos teremos as capacidades e recursos de
lembrar, coisa que a imagem nos exime da responsabilidade, especialmente a
imagem de si.

Figura 01: o selfie no velório. Disponível em: http://oglobo.globo.com/brasil/selfie-em-


velorio-de-campos-gera-indignacao-nas-redes-sociais-13635476. Acesso em: 11
dez. 2016.

A imagem do sujeito registrando um selfie no velório pode soar caricatural,


mas conforme o ângulo de percepção, ilustra a necessidade do homem
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contemporâneo de sentir-se como pertencente ao seu tempo, de fazer parte de sua
história e de poder comprovar (para os outros, e principalmente para si) que também
constrói os acontecimentos e que elabora e percebe os sentidos deles
reverberantes.
A superabundância dos espaços e dos universos de sentido também
interagem com o sentido de autoconservação empregado pelo direcionamento
narcísico contemporâneo. Se os espaços se multiplicam, e com eles os significados
e usos que deles fazem os sujeitos, tanto o sentimento de presença e experiência
podem se ver afetados. Afirmações como “eu estive lá!” perdem sentido frente à
necessidade de imagens como validação única e incontestável. A experiência vivida,
que antes era guardada na memória e narrada aos entes próximos e curiosos fica
relegada ao enquadramento de registros audiovisuais, onde geralmente os sujeitos
protagonizam a cena e se colocam em primeiro plano, contraditoriamente à ação
que deveria recordá-los das paisagens, monumentos ou edifícios, uma vez que são
suas próprias figuras que ocupam o registro.

Figura 02: O consumo da própria imagem como validação da experiência vivida.


Disponível em: https://www.buzzfeed.com/justincarissimo/as-101-selfies-mais-
importantes-de-todos-os-tempos?utm_term=.psLgeaBwE#.if5omqv0l. Acesso em: 11
jul. 2016.

Por último, a aceleração do Eu, ou das produções individuais de sentido


(AUGÉ, 2007), parece-nos englobar as outras duas considerações, sob este aspecto
de análise. Relembrando a batalha pela sobrevivência emocional, ou a luta pela

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preservação das identidades e do Eu (LASCH, 1983), podemos entender a
necessidade das produções de si, a autoafirmação, o registro e posterior
deslumbramento com a própria imagem como respostas frente à saturação das
imagens do outro. Esta resposta narcísica ao povoamento dos universos de sentidos
pelas imagens seria como a tentativa desesperada do náufrago, que na iminência de
afogar-se sob as ondas, empurra o companheiro para baixo a fim de impulsionar-se
até a superfície. A superfície estaria para esta metáfora, como a prevalência da
identidade e a sobrevivência do Eu está para o contexto contemporâneo da
competição por atenção e do regime de visibilidade.

Referências

AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. 6.


ed. Campinas: Papirus, 2007.

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

COLVARA, Lauren. Tecnototemismo: a subjetividade, a ilusão da sociabilidade e a


comunicação em tempos tecnológicos. In: SAID, Gustavo (org.). Tecnologias
midiáticas e subjetividade. Teresina: EDUFPI, 2016, p. 25 – 56.

FREUD, Sigmund. A transitoriedade. In: FREUD, Sigmund. Introdução ao


narcisismo: ensaios de metapsicologia e outros textos (1914 – 1916). São Paulo:
Companhia das Letras, 2010a, p. 247 – 252.

______. Considerações atuais sobre a guerra e a morte. In: FREUD, Sigmund.


Introdução ao narcisismo: ensaios de metapsicologia e outros textos (1914 –
1916). São Paulo: Companhia das Letras, 2010b, p. 209 – 246.

______. Introdução ao narcisismo. In: FREUD, Sigmund. Introdução ao


narcisismo: ensaios de metapsicologia e outros textos (1914 – 1916). São Paulo:
Companhia das Letras, 2010c, p. 13 – 50.

______. O mal-estar na civilização. In: FREUD, Sigmund. O mal-estar na


civilização, novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos
(1930-1936). São Paulo: Companhia das Letras, 2010d, p. 13 - 122.

______. Teoria geral das neuroses. In: FREUD, Sigmund. Obras completas,
volume 13: conferências introdutórias à psicanálise (1916 – 1917). São Paulo:
Companhia das Letras, 2014, p. 325 – 613.

LASCH, Christopher. A cultura do narcisismo: a vida americana numa era de


esperanças em declínio. Rio de Janeiro: Imago, 1983.

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