Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Introdução
1
Ensaio apresentado como requisito de avaliação da Disciplina Tópicos Especiais em Processos de
Subjetivação I, do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal do Piauí,
ministrada pelo Prof. Dr Gustavo Fortes Said, período 2016.2
2
Mestrando do Programa de Pós-Graduação de Comunicação pela Universidade Federal do Piauí,
sob orientação da Profa. Dra. Monalisa Pontes Xavier. Bolsista da CAPES. E-mail:
deutiltdaniel@gmail.com
1
O fato de nos percebermos como seres em constante competição por
recursos, por atenção e pela estima alheia nos coloca no seio de uma sociedade
associada ao caráter narcísico, que estaria sendo estimulado (também) por fatores
sociais: as estruturas administrativas e burocráticas, que pressupõem uma atitude
competitiva e autopromotora; a superabundância de produções culturais e
audiovisuais, por meio das quais os sujeitos registram a realidade e transcrevem
suas experiências vividas a fim mesmo de validá-las; a prevalente percepção de um
mundo perigoso e sem futuro, que coloca os sujeitos uns contra os outros, inclusive
lutando pela permanência de suas condições emocionais.
Em meio a essas situações, temos um cenário que se acelera e se povoa de
universos de sentido e produções individuais. Como situa Marc Augé (2007), a
contemporaneidade é marcada pelas figuras de excesso, sendo o tempo, o espaço e
as produções individuais de sentido algumas das marcas que o homem atual deve
conviver.
O presente ensaio propõe uma articulação do direcionamento narcísico como
uma resposta frente às figuras de aceleração presentes na contemporaneidade,
entendidas numa analogia às vicissitudes relativas ao sofrimento dos sujeitos. Neste
contexto, o caráter narcísico demarcado na sociedade contemporânea seria uma
espécie de sistema de autoconservação frente às instabilidades e ameaças de
finitude que emergem da relativização proveniente destas acelerações e excessos.
2
desilusão com o futuro individual e coletivo, sendo estas fontes das mais variadas
possíveis. Frente a estas modalidades de sofrimento, podemos inferir que os
sujeitos encontram diferentes formas de perceber-se e também de lidar com estas
constatações, o que se reflete, mesmo que de forma indireta, nas patologias e traços
de personalidade observados como preponderantes em cada época.
Freud (2010d) considera as três vicissitudes relativas ao sofrimento do
homem na modernidade (que estariam presentes no declínio do corpo, nas forças
inexoráveis e destruidoras do mundo externo e nas relações com os outros sujeitos),
e as privações relativas às pretensões na busca dos prazeres que seriam
autoimpostas por este homem a fim regular sua a vida em sociedade. Destas
privações (onde a conquista do prazer é posta como secundária em relação ao
imperativo de evitar o sofrer) resultariam os sofrimentos psicológicos dos sujeitos, ou
os mal-estares.
Como propõe Lasch (1983), “cada época desenvolve suas próprias formas
peculiares de patologia, que exprimem, em forma exagerada, sua estrutura de
caráter subjacente” (p. 66). Contemporâneas a Freud estavam tanto a histeria
quanto as neuroses obsessivas, que externalizavam os traços de personalidade
ligados à organização capitalista em seu estágio premente de desenvolvimento:
“ganância, devoção fanática ao trabalho e uma feroz repressão da sexualidade” (p.
67).
A colocação do historiador norte-americano é usada para suscitar o
questionamento relativo às “desordens do caráter” da contemporaneidade.
Apoiando-se em pesquisas e observações clínicas, o autor aponta para uma espécie
de emergência do narcisismo como uma mudança na organização de personalidade
do homem contemporâneo, evidenciadas principalmente no pós Segunda Guerra
Mundial. Se os sujeitos modernos vivenciavam as neuroses sintomáticas, as
paralisias e performances histéricas, as compulsões e fobias associadas às
patologias mais comuns, os sujeitos de hoje estariam convivendo cada vez mais
com as desordens narcisistas – ou sob outro ângulo, não se trataria de uma maior
incidência das desordens de natureza narcisista, mas sim de uma atenção mais
direcionada por parte da clínica na atualidade (LASCH, 1983).
Convém notabilizar que a estrutura de caráter narcísico à qual estamos nos
reportando estaria menos associada a um sentido de perversão e mais como o
3
complemento libidinal do egoísmo do instinto de autoconservação, que de certo
modo, está (justificadamente) atribuído a cada um de nós (FREUD, 2010c).
Importante ainda é ressaltar dois pontos da teoria do narcisismo: a distinção entre o
narcisismo primário e o narcisismo secundário, ou de caráter patológico.
No que se refere ao narcisismo primário, de maneira sintética, seria o
investimento libidinal do Eu observado como uma pré-condição necessária do objeto
amoroso (LASCH, 1983), que se desenvolve numa etapa anterior à diferenciação do
recém-nascido com os objetos. Nesta fase, o bebê não percebe a existência da
figura materna (ou no caso da ausência desta, das figuras de apoio) como separada
da sua, e confunde a dependência da mãe – a figura que satisfaz suas
necessidades prontamente – com a própria onipotência. O recém-nascido leva ainda
certo tempo antes de conceber a ideia de que suas necessidades são internas e a
fonte de suas realizações não vem de si. Esta etapa do investimento libidinal no Eu
é necessária para evitar o adoecimento frente às frustrações externas, ao desacordo
com os objetos de amor e impossibilidades da própria carne, e se dá anteriormente
à conversão deste investimento aos objetos.
Quanto ao narcisismo secundário, este surge apenas no momento posterior
ao desenvolvimento do Eu ao ponto de o sujeito distinguir-se dos objetos ao seu
redor (LASCH, 1983). Nesta modalidade de narcisismo, o sujeito busca anular o
sofrimento decorrente do objeto de amor que o desaponta através do
restabelecimento de relações anteriores, onde figuras onipotentes (geralmente os
pais) se misturam à própria imagem de si, constituída num Eu ideal.
A esse ideal do Eu dirige-se então o amor a si mesmo, que o Eu real
desfrutou na infância. O narcisismo aparece deslocado para esse
novo Eu ideal, que como o infantil se acha de posse de toda preciosa
perfeição. Aqui, como sempre no âmbito da libido, o indivíduo se
revelou incapaz de renunciar à satisfação que uma vez foi
desfrutada. Ele não quer se privar da perfeição narcísica de sua
infância, e se não pôde mantê-la, perturbado por admoestações
durante seu desenvolvimento e tendo seu juízo despertado, procura
readquiri-la na forma nova do ideal do Eu. O que ele projeta diante
de si como seu ideal é o substituto para o narcisismo perdido da
infância, na qual ele era seu próprio ideal (FREUD, 2010c, p. 40).
5
Entre os “muitos usos narcisistas” que Sotang atribui à câmara, a
“autovigilância” situa-se entre os mais importantes, não só porque ela
proporciona os meios técnicos de incessante auto-escrutínio, mas
porque torna o senso de identidade dependente do consumo de
imagens do eu, ao mesmo tempo colocando em questão a realidade
do mundo exterior (LASCH, 1983, p. 74).
6
O nosso eixo de discussão reside em como o direcionamento para o
narcisismo reflete uma resposta social frente às vicissitudes de nossa época (que
devem ser inúmeras e por isso não aspiramos contemplá-las no presente ensaio),
aqui caracterizadas nas três figuras de aceleração da contemporaneidade: o tempo,
o espaço e o Eu.
7
naturezas – “desiludidos do socialismo, desiludidos do liberalismo e, logo mais,
desiludidos do pós-comunismo” (p. 33).
A segunda figura de excesso denunciada por Augé (2007) refere-se ao
espaço, e ocorre paradoxalmente ao “encolhimento” do globo. Enquanto o alteram-
se as escalas, os transportes se aceleram e as comunicações ignoram as barreiras
físicas e os intervalos temporais através de suas vias instantâneas ou simultâneas, o
mundo se abre para os sujeitos, as fronteiras se enfraquecem e os lugares se
tornam acessíveis.
Em vista destas acelerações, a organização espacial é relativizada e
ultrapassada na contemporaneidade, os espaços se multiplicam e “esticam”. Esta
superabundância espacial funcionaria como substituta dos universos de sentido
tradicionais, onde os indivíduos e grupos se definem. Com esta transformação,
ocorrem certas modificações da ordem do concreto, como as concentrações
urbanas, as transferências de população e também o surgimento dos “não-lugares”
– em oposição à noção sociológica de lugar, situado no tempo e no espaço -, que
representam uma constelação de espaços, definidos por seus fins: instalações
necessárias à circulação de pessoas e bens, os próprios meios de transporte ou
centros comerciais, ou os campos de trânsito prolongados onde ficam alojados os
refugiados (AUGÉ, 2007).
A terceira figura de excesso, segundo Augé (2007) recai sobre o Eu e as
produções individuais de sentido, sobre as maneiras como os sujeitos interpretam
por e para si mesmos as informações sobre o mundo que para eles são entregues.
Neste sentido, provoca o autor, “nunca as histórias individuais foram tão
explicitamente referidas pela história coletiva, mas nunca, também, os pontos de
identificação coletiva foram tão flutuantes. A produção individual de sentido é,
portanto, mais do que nunca, necessária” (AUGÉ, 2007, p. 39). O desafio que o
pensador faz é o de como se pensar a pesquisa que visa um entendimento da
contemporaneidade considerando a superabundância da individuação das
referências, da singularidade dos objetos e dos grupos, ao mesmo tempo que se fala
ininterruptamente em processos de aceleração e deslocalização, que geralmente
são resumidos por expressões como “homogeneização” ou “mundialização” da
cultura.
8
Da relação narcisismo e aceleração: autoconservação
10
preservação das identidades e do Eu (LASCH, 1983), podemos entender a
necessidade das produções de si, a autoafirmação, o registro e posterior
deslumbramento com a própria imagem como respostas frente à saturação das
imagens do outro. Esta resposta narcísica ao povoamento dos universos de sentidos
pelas imagens seria como a tentativa desesperada do náufrago, que na iminência de
afogar-se sob as ondas, empurra o companheiro para baixo a fim de impulsionar-se
até a superfície. A superfície estaria para esta metáfora, como a prevalência da
identidade e a sobrevivência do Eu está para o contexto contemporâneo da
competição por atenção e do regime de visibilidade.
Referências
______. Teoria geral das neuroses. In: FREUD, Sigmund. Obras completas,
volume 13: conferências introdutórias à psicanálise (1916 – 1917). São Paulo:
Companhia das Letras, 2014, p. 325 – 613.
11