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Neurose e moralidade.
Sintoma e ideal.
Sabe-se que Freud, em sua época, tratava de sujeitos referenciados pela moral
vitoriana, isto é, a “contra-reforma”moral promovida à época da Rainha Vitória,
relacionada ao movimento de restauração que seguiu-se as revoluções políticas,
religiosas e econômicas nos séculos XVIII e XIX (Mezan, 2006). O século XIX
representa, de fato, um século de restauração dos valores abalados pelo
esclarecimento e pelas revoluções , de compromisso entre as forcas sociais e políticas
decadentes do antigo regime e a burguesia já consolidada como grupo social
dominante.
Contemporaneamente, foram profundas as transformações no registro da
moral. A identificação do sujeito perante uma lei de cunho interditor dá lugar a uma
organização social que promove o prazer, o gozo, mas que, nem por isso, deixa de ser
relacionada à moralidade. Com a alteração fundamental de que o caráter repressor da
organização social não é explícito, sendo denegado ( Safatle, 2008). Neste sentido a
lei social passa a funcionar como uma espécie de imperativo perverso, que forca o
gozo como uma imposição.
O sujeito neurótico, então, guia-se por estes ideais e sofre por não conseguir
sustentá-los, por vivência-los de forma martirizante, em uma busca constante por
reconstituir o pai ou a autoridade. Ele crê na moral social, porém continuamente falha
em adaptar-se a ela, em obedecer a seus imperativos. Fracasso que é testemunhado
pela insistência dos sintomas que, como Freud argutamente observou, representam
tentativas de cura malogradas.
Na neurose obsessiva o sujeito sustenta na fantasia o ideal de um pai
primordial não castrado, e rivaliza edipicamente com este Outro absoluto (que não
há), constituindo-o como autoridade no mesmo gesto em que procura rivalizá-la,
ultrapassá-la . ( Freud, 1909/2006) , Na histeria, por sua vez, o sujeito busca apontar
a insuficiência do Outro, questionando o mestre em nome de um ideal de mestria
não marcado pela impotência ( Lacan, 1951. Já o perverso reconhece a lei social
apenas para denegá-la, para dela subtrair-se, na medida em que é o outro o castrado,
aquele que precisou se submeter, e não o próprio sujeito ( Freud 1927/2006), .
Daí a duplicidade do mecanismo de defesa perverso, a denegação, na medida
em que nele a lei simbólica é reconhecida apenas para ser pervertida. O sujeito
precisa da testemunha do outro para que este o reconheça como alguém que não se
submete, que não sofreu a perda narcísica que todos passam para adentrar na cultura.
Mas, para negar a lei, transgredi-la, ele precisa reconhecê-la.
Que o sujeito neurótico tenha que sustentar o Bem e adoeça com isto,
significa que um dos elementos fundamentais do processo clínico é propiciar a queda
deste elemento excessivo, desta identificação excessiva realizada entre o sujeito e os
ideais. Desta forma, o terreno do adoecimento psíquico revela, para Freud, a
dimensão do fracasso da moral sexual civilizada, reabrindo o terreno da cultura como
dividido. A forma como tal subversão é realizada no adoecimento malogra, já que
sua característica é a de ser experenciado pelo sujeito como “déficit” individual,
fracasso de adaptação.
Por isto qualquer compreensão individualista do adoecimento psíquico, no
sentido de remetê-lo à dimensão de déficits e transtornos relacionados ao indivíduo
enquanto entidade psicológica autônoma, tende a reforçar a razão mesma de seu
adoecimento. Pois o próprio sentido do patológico, na psicanálise, pode ser
relacionado a um processo adoecedor de individualização relacionado à conformação
do sujeito a instâncias ideais que estruturam suas identificações e, no limite, seu
ego.
De fato, a travessia do Édipo encontra obstáculos na medida em que o
narcisismo primário, característico da criança em suas primeiros anos , ao chocar-se
com interditos culturais, pode retornar através da identificação do sujeito com a
autoridade, alojando-se na subsequente constituição do ideal do eu e do supereu.
Trata-se de uma das observações mais esclarecedoras de Freud, realizada a partir de
sua leitura do caráter libidinal do ego, em Introdução ao narcisismo ( 1914/2006) e
amadurecida em suas reflexões sobre a forma como o sujeito identifica-se com um
ideal ou líder em grupos, em Psicologia do eu e análise das massas ( 1921/2006) De
fato, Freud revela a base narcísica e sexualmente “interessada” dos ideais morais.
Daí que a travessia do Édipo gere tantos impasses, inclusive no momento
estruturalista de Lacan nos anos 50, em que o psicanalista francês buscou reler Freud
à luz da linguistica e da antropologia estruturais. Meramente identificar-se com o
agente de interdição parece reforçar, no sujeito, a fantasia e o adoecimento, já que o
objeto perdido pela imposição da Lei retorna na fantasia. Ao mesmo tempo, dar livre
vazão as expectativas do princípio do prazer e ao eu prazer da primeira infância é,
claramente, impossível, levando o sujeito ao adoecimento neurótico e a relações
narcísicas com a sexualidade e a cultura.
Ora, a cena em que o sujeito situa-se no Édipo é, portanto, trágica, já que a
única saída deste impasse estrutural é, justamente, seu reconhecimento, concomitante
à afirmação de que o sujeito é divido. Nem reforço da autoridade simbólica, nem
mera liberação da sexualidade reprimida, portanto, mas manejo, arranjo,construção
de um saber fazer com o conflito que não constitua uma tentativa de negá-lo. Daí que
muitos analistas tenham apontado em soluções “paradoxais”para o final de análise,
através de expressões como identificar-se com o sintoma ( Lacan, 1975-1976/ 2007),
ou postulando um saber fazer com este(Miller, 2005), já que a ideia da mera
eliminação do sintoma acarreta no reforço dos ideais de cura e bem estar.
Não nos parece por acaso que que Lacan tenha começado um remanejamento de
sua leitura estruturalista do complexo de Édipo através, justamente, de seminários
que tem em pecas trágicas seu ponto de orientação, na sequência que vai de Hamlet ,
no Seminário VI, passando por Antígona de Sófocles, no VII, chegando até a trilogia
dos confoutayne, de Claudel, no Seminário VIII. Lacan busca no teatro trágico formas
de se pensar a relação entre o desejo e a Lei paterna, a autoridade simbólica, que
recusem a alternativa conformação/ transgressão, ou que apontem as consequências
de uma forma maniqueista de ler o impasse entre vida pulsional e imperativos morais.
Trata-se, sobretudo, de apontar as consequências clínicas de tais leituras redutoras do
sofrimento psíquico.
Fuga do laco: sofrimento como interioridade.
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PODE TERMINAR AQUI.
Conclusão.