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Douglas Barros

Quem foi Freud?


3º Aula1

“Sou onde não penso, penso onde não sou”


(Lacan)

1 Este ensaio será utilizado como material complementar no curso Quem


foi Freud? Seu conteúdo pode ser livremente reproduzido desde que ci-
tada a fonte.
Ato 2: as pulsões

N ão se pode esquecer que a resistência à psicanálise


marca a história da recepção do pensamento
freudiano. Quando em 1914, Freud escreve A história do
movimento psicanalítico joga luz nas sombras que constituem
a oposição às suas principais teses. O percurso de Freud
não foi o de apenas estabelecer o protocolo mínimo
da prática psicanalítica, mas também o de criticar os
desvios teóricos sofridos na psicanálise e estabelecidos
por alguns de seus seguidores. Após sua morte, sabemos
que a International Psychoanalytical Association (IPA) tratou
de reduzir a formação psicanalítica ao decoro médico
de caráter tecnicista tornando a psicanálise algo interno
à medicalização e à psicologização. Isso converteu a
psicanálise numa terapêutica adaptacionista e inscrita no
quadro da psicologia geral1. Mas, de fato, ainda é possível
encontrar bolsões de resistência a isso, aqui e acolá.

1 JORGE, M. A. C. Fundamentos da psicanálise de Freud a Lacan: Vol 1:


as bases conceituais. Rio de Janeiro: Zahar, 2022.
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O conceito de pulsão (Trieb) é desenterrado pela
primeira vez por Freud no fundamental Três ensaios sobre
a teoria da sexualidade. Sua centralidade reside na basilar
diferença entre ele e a ideia de instinto no que se refere à
formação da sexualidade humana. Através da observação
conduzida na prática clínica, Freud, surpreendentemente,
conclui que a formação da sexualidade é traumática em
si mesma. Ao estudar as chamadas “aberrações sexuais”
que na época incluíam a homossexualidade, ele diz de
maneira escandalosa: “posso assegurar que a tendência
inconsciente à inversão (homossexualidade) jamais está
ausente” no neurótico2. Freud rapidamente se deu conta
de que a sexualidade humana é em si mesma um desvio.
É por chegar à conclusão de que os mecanismos
“desviantes”, envolvidos nas práticas tidas como
“aberrações sexuais” pelo discurso médico, faziam parte
do que era considerado comportamento sexual “normal”
que não podemos compreender o alcance da noção de

2 FREUD, S. Obras completas volume 6: três ensaios sobre a teoria da


sexualidade. São Paulo: Companhia das letras, 2006.
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pulsão sem antes refletir sobre a teoria do recalque. Para
Freud é ela que funda toda a estrutura da psicanálise. O
recalque e a resistência, extraída de inúmeras observações
clínicas, constituem sua fundamental descoberta. Para
capturá-la em toda sua dimensão precisamos fazer
uma importante distinção entre o próprio recalque
(Verdrängung) e a repressão (Unterdrückung). O recalque
é autônomo à coerção externa pela qual se caracteriza
a repressão. Sua formação é estruturante e independe
dela. Já a repressão se dá por motivos morais inibidores
da ação do sujeito. Se a repressão advém do fato de
existir recalque, o recalque por sua vez não provém da
repressão, ele a antecede e, por isso, não só antecede
aquilo que estrutura a subjetividade como é fator decisivo
para que ela surja. Nesse sentido, Freud percebe que há
um recalque originário que estrutura a subjetividade.
Atenção: a teoria da bissexualidade terá aqui um papel
fundamental.
Se no início de suas descobertas clínicas, Freud
atrelou a noção de recalque ao sistema de defesa

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psíquico, quando concluiu na existência de um recalque
originário desdobrou este conceito pensando-o como
um mecanismo constitutivo do inconsciente. É em 1911,
analisando o “Caso Schereber”, que a compreensão do
recalque é dividida em três fases:
1) A fixação que precede e condiciona o recalque:
nela uma pulsão permanece fixado no estádio infantil
passando a pertencer ao sistema inconsciente como
uma força recalcada. Ela é constituída por um recalque
originário.
2) A repulsão e atração que organiza o próprio recalque.
A repulsão atua sobre o consciente indicando o recalcado
e a atração reconstitui sua ligação com ele. Repulsão e
atração formam pares antagônicos que se complementam
e organizam a subjetividade.
3) O retorno do recalcado constituído pelo fracasso do
recalque.
O enigma do recalque tem relação direta, para Freud,
com a sexualidade. E aqui chegamos no ponto: quais as
condições de possibilidade para a emergência da pulsão?

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Para pensá-la na sua produção é preciso suspendê-la
enquanto conceito e levar em consideração como os
seus efeitos decorrem e são captados. É preciso levar em
consideração o movimento de sua produção.
A pulsão tem um caminho que revela uma estrutura.
Freud, em 1915, no seu artigo Pulsões e suas vicissitudes
formula quatro destinos à pulsão: reversão, retorno ao
eu, recalque e sublimação. Vimos anteriormente que a
estrutura da psique se organiza pela economia libidinal,
daí o caráter entrópico do inconsciente e o caminho
que a pulsão adota. É levando isso em consideração
que podemos afirmar que aquilo que direciona a pulsão
excede o campo da reprodução biológica. Ou seja, ao
afastar-se da ideia de instinto, a pulsão se dá por um
excedente à necessidade, um resto que significa algo para
além daquilo que imediatamente reside na necessidade
instintiva. No seu movimento, ela já é algo radicalmente
afastado do campo da necessidade imediata, ela já reside
no campo da linguagem organizada por significados. É
justamente esse excedente à necessidade que causa a

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humanização do indivíduo. Freud chega nessa conclusão
após perceber que há desvios constitutivos e originais às
pulsões que fazem com que atue independente do objeto.
Vou tentar explicar como isso se dá:
Precisamos nos deter rapidamente sobre a noção de
recalque originário, tal como pensado por Freud: ele
percebeu que os processos de recalque secundário,
delimitados pelo pré-consciente e o consciente, só
poderiam advir com uma cisão marcante entre a atividade
mental consciente e a inconsciente. Por isso, o recalque
se associa à entrada em ação do processo secundário e
funda o sujeito. Há na metapsicologia uma ideia de uma
unidade primária da bissexualidade que seria cindida na
organização do recalque primordial, direcionando as
pulsões. Isso ajuda-nos a entender que a pulsão excede
o campo da relação imediata da reprodução biológica
e atrela-se à pulsão como algo já significado.Uma vez
estruturado o sujeito do inconsciente, a pulsão que
organiza a energia psíquica torna-se uma força constante
(Konstate Kraft) ultrapassando o regime da mera
necessidade instintual.
E é exatamente por isso que o alvo da pulsão também
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pode sofrer desvios ou ocultamento. Esse desvio estará
relacionado com o princípio de realidade que, para manter
o equilíbrio psíquico, será dirigido a outros objetos por
meio da sublimação. Freud, à sombra das mudanças de
alvo das pulsões de suas analisandas, conseguiu elaborar a
ideia de sublimação como aquela porta para a descarga de
pulsões nem sempre possíveis de se realizar de maneira
direta. E, evidentemente, a função da pulsão põe em
questão o objeto da satisfação; é no nível da pulsão que o
estado de satisfação deve ser pensado.
O paradoxo é que essa satisfação, ela própria, é
impulsiva. Tudo depende da satisfação, mas ao mesmo
tempo em que não nos contentamos com ela, somos
contentados por ela.Toda a questão reside em desvendar o
que nos torna contentes na satisfação. O que se evidencia
nessa dialética é a lei do prazer que aponta novamente para
o que há de paradoxal na satisfação. Esse paradoxo reside
no fato do resíduo inconsciente do recalque originário
que organiza a direção da pulsão como algo para além
do campo da necessidade e da realidade. É a miragem, a
fantasia, da realização de encontro pleno com a satisfação,
alimentado pelo desejo, que na pulsão se repõe, ou seja, o
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alvo se dissolve no momento que atingimos ele.
Devemos pensar assim a relação umbilical entre pulsão
e sexualidade. Freud percebe existir uma manifestação da
sexualidade infantil que tinha sido ignorada. É nela que
é possível observar o afastamento da pulsão na relação
com a necessidade. Quando a criança busca o alimento
ao mesmo tempo a pulsão oral busca algo para além da
comida. Há uma clivagem fundamental aqui: a satisfação
oral surge como um resultado da satisfação da necessidade
pelo alimento. Ao transformar os lábios numa zona
erógena se origina a pulsão parcial. E é ela que passa a
funcionar como objeto da pulsão e se distingue do objeto
primário. Ou seja, a satisfação da necessidade organiza
outro tipo de satisfação que se torna independente do objeto
que organiza seu impulso e busca se autoproduzir e satisfazer-
se. “Num segundo momento, essa pulsão parcial, cujo
caráter sexual é assim ligado ao processo de erotização
da zona corporal considerada, separa-se de seu objeto de
apoio para se tornar autônoma.3” Abre-se o caminho para

3 ROUDINESCAO e PLON. Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro:


Zahar, 1998.
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autoerotização da criança.
O escandaloso dessa conclusão é o fato de que não há
para a humanidade nenhuma necessidade natural que
não tenha sido cravada por algo a mais. Algo que divide
a própria satisfação natural no interior de si mesma. É
essa dupla satisfação – a da necessidade e a da pulsão –
que fundamenta a sexualidade humana. “Este é um ponto
crucial quando se trata da compreensão de outra ênfase
importante da conceitualização da sexualidade por Freud:
sexual não deve ser confundido com genital.4” Esse é um
dos grandes escândalos da psicanálise: pôr em xeque a
proposição de uma normalidade do sexual ligado ao
biológico. O autoerotismo infantil é a fase preparatória
de organização do narcisismo primário quando as pulsões
parciais convergem para a organização egóica e não se
limita mais a uma zona corpórea especifica.
A pulsão, ao apreender seu objeto (alvo), desvenda
que não é nessa simples apreensão que ela se satisfaz.
Isso é fundamental para nós; a pulsão tem algo de

4 ZUPANCIC, A. Por que psicanálise? Tradução Rodrigo Gonsalves.


São Paulo: Lavra palavra, 2022.
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monstruosamente excessivo e negativo. Por isso nenhum
objeto pode satisfazer a pulsão; “não é pelo alimento que
se satisfaz uma pulsão, mas pelo prazer da boca5”, essa
frase soturna de Lacan revela o fato de que nós queremos,
não algo em si mesmo, mas o significado que ele expressa
para a pulsão. Portanto, o objeto da pulsão não tem
importância, mas sim a causa do desejo: isto é o objeto
estruturado no recalque primordial que permanece
como sentido ao prazer.
Ao pensarmos no nível erógeno (boca, lábios, pulsão
anal, etc.) podemos observar que a organização da
satisfação se dá pela montagem da pulsão no sentido que
se apresenta como uma estrutura que guia o princípio de
prazer do sujeito atrelado àquilo que projeta sua ação. Nós
não queremos o objeto em si, não queremos o objetivo
que almejamos, o que queremos é o significado, o que
ele representa e o que supostamente nos dará a satisfação
originária anterior ao recalque primário.
Então o que é a pulsão? É essa montagem pela qual a
sexualidade participa da vida psíquica, ultrapassa o reino

5 Lacan no seminário 11
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da necessidade biológica, conformando-se à estrutura da
cisão inconsciente organizadora dos processos conscientes
e que arma o sentido da ação do sujeito no campo do
simbólico. Por isso num trecho acrescentado ao artigo dos
Três ensaios, Freud dirá: “Por pulsão, antes de mais nada,
não podemos designar outra coisa senão a representação
psíquica de uma fonte endossomática de estimulações
que fluem continuamente... a pulsão, portanto, é um dos
conceitos da demarcação entre o psíquico e o somático”.
Ao pensar na representação psíquica já se evidencia algo
que escapa ao objetivo e ao objeto da sexualidade. Por
isso, a pulsão sexual nunca se reduz ao instinto sexual.
A pulsão sexual assume a forma de um conjunto de
pulsões parciais, ela não está imediatamente vinculada
ao desejo, mas à intervenção, como pulsão parcial, num
tempo e espaço que definem a interpretação do desejo.
É exatamente por isso que a sexualidade se inscreve sob
vários aspectos de modos de ser: ela é, como sabia Lacan,
polimorfa, isto é, se transforma ao longo da experiência
do sujeito e advém através da passagem das redes da
constituição subjetiva para as redes de significantes.
O que é fundamental no nível da pulsão é o vaivém
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no qual ela se estrutura. Por que a pulsão é parcial?
Primeiro, porque ela pode ser satisfeita sem se relacionar
à função biológica (a reprodução); segundo, porque o seu
alvo – aquilo que busca uma resolução interna – nunca
é atingido. O que a pulsão realiza de fato é o retorno
do circuito da dialética satisfação = reposição da falta.
É preciso lembrar que essa satisfação se distingue do
autoerotismo (da masturbação) porque seu objeto é um
vazio e não importa que objeto apareça em seu lugar.
Noutras palavras nossa fantasia descarta de fato o que
está aí na nossa frente despertando o desejo, não nos
relacionamos com isso aí, mas com aquilo que estrutura
nossa fantasia. Por isso, nenhum alimento ou corpo jamais
satisfará nossa pulsão, o que eles fazem é dar contornos
ao objeto eternamente faltante do qual estamos sempre
à busca. Na lasanha há muito mais do que presunto,
mussarela e molho, assim, como na meia três quartos!

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