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Narcisismo – uma revolução na Teoria Freudiana

Rachel Lomonaco Beltrame1

O tema “Narcisismo” exigiu tarefa árdua já que esse conceito proposto por Freud
nos primórdios da Psicanálise foi responsável, posteriormente, por mudança radical na
teoria Freudiana. Daí o titulo que dei a essa apresentação: Narcisismo – uma revolução na
teoria Freudiana.
Procurei elaborar um texto didático e acessível, apropriado a esse evento cujo
público me parece ser, em sua maioria, composto por estudantes e profissionais não
psicanalistas.
Inicio a minha apresentação com uma pequena revisão do conceito na Teoria
freudiana, em seguida passo para as contribuições da Escola Kleiniana das Relações
objetais e finalmente para as propostas introduzidas por Bion, André Green e Francis
Tustin.
O conceito de Narcisismo, a meu ver, se aproxima dos fenômenos descritos por
Bion como Transformações em alucinose que serão aprofundados em um encontro
específico com os nossos colegas Lia Fátima Cristóvão e Jose Cesário Francisco. Portanto,
farei apenas uma sucinta consideração da Teoria Bioniana embora há algum tempo
compartilho das idéias propostas por Bion. Na segunda parte do nosso encontro hoje a
Dra Sandra Abadia irá trazer um material clinico para que possamos tentar fazer uma
correlação entre teoria e praxis.
Em seu artigo “Três ensaios sobre a Teoria da sexualidade” escrito em 1903 Freud
apresenta as fases de desenvolvimento sexual a partir do investimento libidinal nas assim
chamadas zonas erógenas. Nesta época Freud acreditava existir uma fase autoerótica
(indiferenciada), anobjetal já que o impulso busca satisfação no próprio corpo e não em
um objeto exterior a ele. Poderíamos dizer que os impulsos e a satisfação tem nessa fase
características marcadamente biológicas. O desenvolvimento se processa através da
evolução das fases pré-genitais (fases oral, anal e genital) até a consolidação da fase
genital que ocorreria na puberdade com a possibilidade de escolha objetal. Saliento aqui
dois aspectos fundamentais:
1) a Teoria Freudiana é uma teoria energética baseada no conceito de libido que
busca por um objeto que a satisfaça. Implícito nessa teoria está o conceito de tensão
como aumento de energia que, quando represada, provocaria os sintomas e
2) a Teoria Freudiana se funda na idéia de conflito: neste período Freud acreditava
na oposição entre instintos sexuais e os instintos de auto-preservação do ego.
Contudo, em 1910 a partir do Caso Shroeber, o contato com alguns fenômenos
como os delírios megalomaníacos o faz repensar a premissa anterior já que observou,
nesses casos uma erotização do ego. Introduziu nesta época, de forma rudimentar, o
conceito de narcisismo necessário para explicar os quadros de paranóia. Esses quadros
eram denominados por ele como psicoses narcisicas (portanto com dificuldades de
estabelecer relações objetais) e não eram passíveis de análise já que os pacientes não

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Membro associado da SBPSP e membro efetivo da SBPRP
tinham condições de estabelecer a transferência, condição essencial para o
desenvolvimento da análise. Acreditava que, nesses casos, a libido ficava circunscrita ao
mundo interno e esse recolhimento libidinal explicaria em grande parte os delírios de
grandeza, megalomaníacos em que se observava um engrandecimento do ego.
Observou ainda que em alguns casos o ego tomava-se como objeto e se
comportava como se estivesse apaixonado por si mesmo. Essa constatação criou sério
problema para Freud que ficou, digamos assim, numa “sinuca de bico” : A teoria
psicanalítica que tinha como primordial a idéia de conflito intrapsiquico entre os impulsos
sexuais e os impulsos de auto-preservação do ego, precisou ser reformulada a partir da
constatação de que o ego tomava a si mesmo como objeto erótico.
O seu artigo “Narcisismo – uma introdução” foi escrito em 1914 para poder dar
conta deste fenômenos clínicos que mencionei, mas introduziu uma dificuldade
epistemológica que se tornou alavanca para as modificações que culminaram com as
proposições da segunda tópica em que o conflito psíquico finalmente se instala entre os
instintos de vida e os instintos de morte (1920), (1923). Nesse artigo, Freud introduz uma
fase de desenvolvimento da libido situada entre o autoerotismo e a escolha objetal. É a
partir do autoerotismo com o investimento libidinal feito no próprio corpo que o ego se
constitue. É essa ação que promove a passagem do autoerotismo para o narcisismo.
Freud então desloca o conflito entre o investimento libidinal colocado no objeto
(libido objetal) e o investimento no próprio ego (narcísico).
Neste texto, Freud se ocupou de várias questões e é por essa razão que Baranger
(1991) atribui grande parte da controvérsia existente quando se fala em narcisismo ao
fato de que o termo foi utilizado por Freud de diferentes formas:
a) como uma fase normal de desenvolvimento da libido situada entre o auto-
erotismo e a escolha objetal, na qual a libido se aplica ao ego que se constitui a
partir dessa ação
b) como um tipo de escolha objetal em que o sujeito procura no outro algo que
seja semelhante a si mesmo
c) como uma extensão do termo referindo-se à atitudes e sentimentos
relacionados a auto-estima, até uma valorização megalomaníaca do sujeito.
d) como a origem do ideal do ego
A meu ver, uma das riquezas deste artigo reside nos elementos que ele utiliza para
compreender a forma como se organizam as escolhas objetais: as analicliticas ou de
ligação que seriam as escolhas complementares e as escolhas narcísicas em que o
individuo se busca no outro (base da escolha homossexual).
O conceito de narcisismo secundário foi teoricamente necessário para explicar
vários quadros patológicos como a melancolia em que se observa no indivíduo uma
reação violenta às perdas de objetos e uma dificuldade em se desligar deles, já que a
libido investida no objeto perdido que deveria ser deslocada para um objeto substituto,
fica circunscrita ao ego devido a uma identificação narcisica.
Este conceito (narcisismo secundário), a meu ver, pressupõe uma separação eu-
mundo na medida que a libido é retirada dos objetos reais e reinvestida no próprio ego.
Freud relaciona esse processo a dolorosas experiências de frustrações e, a meu ver, não
foi por acaso que este conceito foi melhor elaborado no artigo Luto e Melancolia (1917),

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no qual trata das perdas e sentimentos de impotência frente às mesmas. Neste mesmo
texto encontramos os rudimentos do conceito de objeto interno.
O conceito de narcisismo também foi útil para a compreensão do masoquismo,
pois esses quadros constituiam um paradoxo teórico: como admitir a busca do sofrimento
e não do prazer? Freud então pode explicá-lo como um retorno da agressividade que
havia sido colocada no objeto para o próprio ego. Mais tarde, com a reformulação da
teoria instintual, Freud vai se utilizar dos conceitos de pulsões de morte para explicar
esses casos de masoquismo.
O conceito de narcisismo primário como fase do desenvolvimento libidinal
intermediária entre autoerotismo e escolha objetal foi abandonado pelas escolas
posteriores. A Teoria Kleiniana preconiza a existência de relações objetais desde o
nascimento e, portanto, não aceita a existência de um estado anobjetal. Porém, o
mecanismo de identificação projetiva, fundamental para a teoria Kleiniana, baseia-se no
conceito de narcisismo secundário já que há uma projeção de partes do self no mundo
externo e posterior reintrojeção desses elementos que não são percebidos como um
prolongamento do self e resultam na construção de um mundo interno fragmentado
(persecutório e/ou idealizado) característico da Posição esquizo-paranóide a partir da qual
a mente se organiza.
Para Bion, compartilhando do ponto de vista kleiniano, a existência de uma pré-
concepção do seio faz com que o bebê busque por uma realização que ocorreria no
acasalamento entre pré-concepção e objeto (seio). Essa experiência é fundamental para o
desenvolvimento da capacidade de transformar elementos sensoriais (beta) em
elementos emocionais (alfa), a partir dos quais se torna possível a produção de sonhos,
de pensamentos-sonhos e de pensamentos, processo este necessário para a constituição
do aparelho para pensar os pensamentos e assim alcançar conhecimento (K). O
mecanismo de identificação projetiva como comunicação é essencial, pois é através dele
que o bebê projeta suas angústias inominadas na mãe a qual através da reverie pode
desintoxicá-las e devolvê-las de uma forma modificada. Essa contínua interação permite
que a mente se constitua e possa desenvolver a capacidade de continência para as
experiências emocionais. A indiferenciação inicial eu-mundo vai sendo modificada na
medida que experiências de frustração possam ser toleradas, criando condições para
simbolização.
Um outro aspecto que deve ser ressaltado é a proposição de Bion de uma teoria
relacional, pela qual emoções e sentimentos emergindo no encontro, por mais fugaz que
seja a experiência emocional estando a presença do objeto implícita mesmo quando
“consideramos a possibilidade de o objeto ser ultrapassado ou não ser alcançado, o
modelo no qual nos exercitamos continua sendo o vincular. Em Bion, como diz Cecil Rezze:
“sempre há algo que age sobre algo”” (p.2 Falsarella,2008)
Para Winnicott no narcisismo o verdadeiro self se esconde por trás de uma fachada
falsa e geralmente quando há esse recolhimento, o self não entra em contato com os
objetos do mundo externo. Acredita ser esse fato consequência de uma relação com a
mãe incapaz de se adaptar adequadamente ao bebê, geralmente como resultado de
depressão.

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Francis Tustin (1986) concentrou sua atenção nos estados autisticos de crianças e
teve grande sucesso no tratamento psicanalítico do autismo. Afirma que nesses casos há
um buraco negro resultante da separação entre a mãe e o bebê que ocorreu sem que
estivessem preparados para isso. Essa separação foi experimentada como um
despedaçamento do self. Em torno desse buraco negro, essas crianças construiram uma
fortaleza que as isolou quase totalmente de qualquer forma de contato. Symington
acredita que o autismo, conforme esse referencial de Tustin, seria uma forma quase
extrema de narcisismo. Discordo dessa formulação de Symenton, pois Tustin salienta que
o narcisismo pressupõe a existência de um ego não apenas corporal e no autismo não há
um sentido de um self. Nesse caso, o autismo se situaria entre a fase auto-erótica e o
narcisismo.
André Green (1988) de uma certa forma retoma a polaridade entre pulsão de vida
e pulsão de morte aproximando a existência de dois tipos de narcisimo: um ligado a vida e
a autopreservação e um chamado narcisismo de morte em que o ego se isola e tem uma
tendência à busca da tensão zero.
Encerro minha apresentação com uma observação de André Green em seu livro
Narcisismo de vida, narcisismo de morte: “Não surpreende que este conceito meio exilado
tenha retomado com toda a força para perseguir os trabalhos dos psicanalistas, pois a
realidade clinica do narcisismo é um fato, mesmo se a interpretação que se possa dar
varie de autor para autor.”

Baranger, W. – El narcisismo em Freud – in. Estudio sobre “introducción al Narcisismo” de


sigmund Freud . compilador: Dr. Joseph Sandler, 1991.
Freud,S. (1914) - Introdução ao Narcisismo – Ed Std. Obras Completas de S.Freud, vol.
XIV. Imago ed., Rio de Janeiro, 1974.
_______ (1917) - Luto e Melancolia – Ed. Std. Obras completas de S.Freud, vol. XIV.
Imago ed., Rio de Janeiro, 1974.
Green, A. – Narcisismo de vida, narcisismo de morte – Ed. Escuta Ltda, SP,1988.
Tustin, F. – Autistic Barriers in Neurotic patients – Karnac Books, London, 1986.

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