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Índice

1. Sobrevoando as relações objetais Pág.


1

2. A existência psicossomática à luz das relações objetais Pág.


10

3. Uma perspectiva empírica sobre somatização e depressão Pág.


17

4. Perspectivas clássicas sobre somatização e depressão Pág.


22

5. Considerações desenvolvimentistas acerca da somatização e Pág.


25

da depressão

6. Conclusões e implicações clínicas Pág.


29

7. Bibliografia Pág.
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1. Sobrevoando as relações objetais

Fairbairn foi o primeiro psicanalista a trabalhar a um nível


global e sistemático a teoria das relações objetais da nossa vida
psíquica, perspetivando-nos como pessoas em crescimento num
contexto relacional. Mas, não seria correto associar a teoria das
relações objetais exclusivamente ao seu nome.
De acordo com Fairbairn, quando Freud introduziu o
conceito de super-Eu, não realizou as modificações necessárias na
sua teoria biológica da líbido que este novo conceito de objeto
relacional exigia. Na verdade, a teoria das relações objetais é o
desenvolvimento do aspeto pessoa da teoria de Freud, distinto do
aspeto físico ou biológico. Neste seguimento, nas várias etapas do
desenvolvimento teórico de Freud, as dimensões física e
psicológica, alternaram entre a sua mistura ou distinção. A teoria
das relações objetais representa o emergir e destacar dos aspetos
pessoais e psicológicos das primeiras formulações de Freud. Este
aspeto evidenciou-se mais quando, após a primeira guerra
mundial, Freud focou cada vez mais a sua atenção nos problemas

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do Eu. No seu último livro, “An Outline of Psychoanalysis”, o título


do inacabado capítulo final é “The Internal World”, um conceito
claramente imbuído de relações objetais.
Assim, Freud foi o pioneiro que disse a primeira, mas não a
última palavra, mas o seu trabalho terminou num ponto que
constituiu um verdadeiro estímulo para o pensamento
subsequente. Os desenvolvimentos teóricos para-além de Freud
começaram com o próprio Freud, pois ele sempre questionou as
suas próprias hipóteses ou formulações anteriores.
Sandor Ferenczi desenvolveu alguns trabalhos que
implicavam uma perspetiva de relações objetais, mas
infelizmente, as suas formulações chegaram antes do tempo, pois
Freud ainda não estava preparado para esse desenvolvimento. O
trabalho de Ferenczi veio mais tarde a ser consolidado pelo seu
discípulo Michael Balint, no livro “The Basic Fault”. Neste livro
sobre a falha básica Balint sublinha a necessidade do paciente
regredir até à falha básica, ou seja, à falha original do
desenvolvimento inicial de um Eu seguro. Esta situação só podia
ser reparada por um reconhecimento do self, da pessoa, pelo
analista, sendo esta experiência um ponto de partida para um
novo início no desenvolvimento da personalidade. Nesta
perspetiva, a necessidade pessoal de relações objetais transcende
as necessidades biológicas.
É importante mencionar também dois psicanalistas

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extraordinários, Melanie Klein e Heinz Hartmann, que devido aos


problemas políticos que assolavam a Europa, tomaram rumos
muito diferentes, Klein na Grã-Bretanha e Hartmann na América.
De forma resumida, podemos dizer que Hartmann deu
menos importância ao conceito de super-Eu (que como uma
internalização da autoridade parental é claramente um objeto
relacional), e focalizou-se essencialmente no sistema do Eu e nas
suas duas funções: controlar o id e adaptar-se ao mundo externo.
A adaptação é um termo biológico, e para Hartmann a psicanálise
era uma ciência biológica, apesar dele ter tentado desenvolver
uma maior proximidade com a psicologia geral (que, com o
comportamentalismo, era mais mecanicista e impessoal). Não
descurando a capacidade intelectual e a clareza de Hartmann,
podemos permitir-nos discordar dele, no sentido em que talvez o
conceito de adaptação não seja completamente adequado à
psicologia do Eu, ao não comtemplar os seres humanos como
pessoas. Frequentemente, o nosso funcionamento humano mais
elevado conduz-nos a uma recusa em adaptar-nos e
disponibilizamo-nos a sacrificar a própria vida ao serviço dos
nossos valores.
Na Grã-Bretanha, o grande ponto de viragem no
desenvolvimento teórico foi o trabalho de Melanie Klein. Para
Klein, o maior medo da criança é da sua própria pulsão de morte,
e ela introjeta (incorporando no seu mundo mental interno) o

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bom seio como uma defesa. Mas, quando ela sente que o bom
objeto corre perigo dentro de si, projeta a pulsão de morte para o
seio externo, para se confrontar com um mau objeto externo, que
introjeta para controlá-lo. Deste modo, a criança foi construindo
no seu inconsciente um mundo interno de bons e maus objetos
com quem pode relacionar-se, na sua fantasia. O trabalho de Klein
é um desenvolvimento, não do elemento biológico da teoria das
pulsões de Freud, mas do elemento pessoal, de relações objetais
do seu conceito de super-Eu, resultante das relações
desenvolvidas entre a criança e os seus pais.
É interessante verificar que, tal como Hartmann descurou o
conceito de super-Eu e descreveu de forma muito impessoal o Eu,
também Klein permitiu que o conceito de Eu ficasse muito na
retaguarda, e proporcionou uma descrição do inconsciente (até
aqui descrito essencialmente em termos biológicos) com grande
enfâse nas relações objetais, baseando-se nos conceitos de
introjeção e de super-Eu.
Nesta altura, urgia um salvamento do Eu...e eis que surge
como resposta aos seus suplícios...Fairbairn, que desenvolve um
trabalho detalhado acerca deste assunto, que se evidencia em “A
Revised Theory of The Psychoses and Psychoneuroses”.
Os desenvolvimentos na filosofia da ciência são de extrema
importância na compreensão das implicações não só do conceito
original de realidade psíquica de Freud, mas também do

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desenvolvimento posterior que Fairbairn realizou. O complexo de


édipo de Freud, representa já as relações objetais da criança com
os seus pais como pessoas, e isso é realidade psíquica. Quando
Sullivan e a escola americana deslocaram a enfâse do biológico
para o sociológico, estudando o destino do individuo como uma
pessoa no seu ambiente social, estavam a explorar realidade
psíquica e experiência pessoal subjetiva. Quando entre 1930-
1940s Klein elaborou o conceito de super-Eu de Freud, numa
escala de análise do mundo psíquico interno e dos seus processos
de desenvolvimento, ela estava a explorar um fenómeno
endopsíquico, que embora recorrendo ao material biológico da
vida, se desenvolve a partir da qualidade da relação da criança
com os seus pais, e isto é realidade psíquica. Sullivan aproximou-
se da teoria de Klein quando considerava as relações
interpessoais como mais do que aquilo que realmente acontece
entre duas ou mais pessoas factuais. Ou seja, podem existir
“personificações fantásticas” tais como a idealização de um
objeto-amado, ou podemos endossar características falsas às
pessoas que na verdade provêm de pessoas significativas do
nosso passado. Pode-se dizer que existe uma relação interpessoal
entre uma pessoa e qualquer uma destas pessoas mais ou menos
fantásticas, tal como entre uma pessoa ou um grupo avaliados
sem distorções. Aqui surge uma nítida descrição de pura realidade
psíquica, mas nem Sullivan nem Klein consideraram que era

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necessário um re-desenvolvimento completo da psicologia do Eu.


Esse foi o grande passo em frente de Fairbairn, que culminou no
seu conceito de estrutura dinâmica da realidade psíquica.
A ênfase no Eu e na sua procura de segurança, que pode
encontrar apenas se conseguir lidar de forma satisfatória com os
seus maus objetos e se mantiver relações de confiança com os
seus bons objetos, transporta a questão das relações objetais para
o centro da investigação psicanalítica. Além disso, conduz a
psicanálise desde a psicobiologia para uma verdadeira teoria
psicodinâmica – uma teoria da pessoa, e não somente do
organismo. Gradualmente, pelas mãos de Fairbairn e Winnicott, o
problema do Eu-pessoa passou por um desenvolvimento subtil
mas muito importante. A questão tornou-se mais do que um
caminho para alcançar um objeto onde possa encontrar suporte,
mais do que uma procura de segurança, emergiu a necessidade de
auto-descoberta, de auto-desenvolvimento, de realização e
desenvolvimento das possibilidades potenciais do Eu em relação
com outras pessoas. Se quisermos utilizar o termo “segurança”,
este deve implicar um “possuir” seguro da própria
individualidade, o que pode envolver o “possuir” de uma força
interior para fazer face à insegurança externa, com uma
determinação primordial de sermos coerentes com o nosso
verdadeiro self. Winnicott escolheu o seguinte título para um dos
seus livros mais importantes - “The Maturational Processess and

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The Facilitating Environment” – que desenvolve a ideia de que se a


criança usufruir de um ambiente genuinamente facilitador, por
um período suficientemente longo, no início da sua vida, ela
poderá mais tarde na sua vida possuir capacidade para resistir às
pressões de ambientes difíceis.
A preocupação de Fairbairn com a análise do Eu, permitiu-
lhe extrair as implicações do trabalho de Klein e das últimas
declarações de Freud, resumindo-as do seguinte modo: “Podemos
dizer que a psicologia se resume ao estudo das relações do
individuo com os seus objetos, e de forma semelhante, podemos
dizer que a psicopatologia se resume mais especificamente ao
estudo das relações do Eu com os seus objetos internalizados.”
(Guntrip, 1974)
As distinções realizadas por Fairbairn relativamente à
complexa estrutura do Eu no seu todo, não são entidades (ou
partes de uma máquina), mas sim processos, que se distinguem
mas que são simultaneamente reações da forma como o Eu-
pessoa lida com o seu ambiente de complexos objetos pessoais.
Alguns destes processos reativos são tão fundamentais que se
tornam características habituais e relativamente estáveis da
pessoa, especialmente as que se baseiam nas reações da criança
aos seus pais. Fairbairn defende que o ser humano é um todo
desde o início, e que a personalidade se vai desenvolvendo, não
pela integração de elementos separados, mas através de uma

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diferenciação psíquica interna dentro do todo, sujeita ao impacto


da experiência com o mundo externo. Fairbairn considera que,
embora em teoria se possa distinguir o biológico e o psicológico,
como diferentes níveis de abstração científica e conceptualização,
na realidade são ambos aspetos de uma mesma unidade. No
entanto, Fairbairn crítica que estas duas dimensões possam ser
misturadas em teorias psicobiológicas, recusando que a psicologia
seja reduzida à biologia. Em 1962, Fairbairn escreveu numa carta
endossada a Guntrip: “Eu não considero que uma visão
psicobiológica seja válida, em nenhum nível de abstração. O
psicológico e o biológico são ambos válidos nos seus respetivos e
apropriados níveis de abstração, mas para mim uma visão
psicobiológica não é válida porque confunde duas disciplinas
muito distintas.” (Guntrip, 1974)
Para Fairbairn, o desenvolvimento da personalidade
individual decorre num meio de relações objetais pessoais, que se
inicia com a relação mãe-criança. O autor considera que este não é
um fenómeno biológico, mas sim psicodinâmico e do âmbito de
estudo da psicanálise. Fairbairn argumenta que o Eu
psicodinâmico utiliza os seus recursos biológicos para conduzir as
suas relações objetais pessoais, na sua procura de segurança. Mas,
esta “segurança” não se refere meramente a uma segurança
material ou de auto-preservação corporal. É uma “segurança
psicodinâmica” que significa a segurança da própria

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personalidade, de sentir que tem o direito de ser quem é, com


significado pessoal, estabilidade e capacidade para se manter ela
própria como um membro significativo na relação com os outros.
Fairbairn, defende que esta segurança psicodinâmica só é
alcançada através de um desenvolvimento adequado do Eu, que se
inicia com as relações pessoais (pais-criança) “suficientemente
boas” referidas por Winnicott.

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2. A existência psicossomática
à luz das relações objetais

De acordo com Freud (1923), o Eu no início é principalmente um Eu


corporal, não apenas uma superfície, mas a projeção de uma superfície.
Neste capítulo, tentar-se-á delinear as tendências originais para uma
integração mente-corpo, tal como se expressa através da existência
psicossomática. Dissociar a mente da experiência corporal, que resulta
das experiências relacionais que moldaram o desenvolvimento do self,
predispõe a pessoa à sintomatologia somática e aos estados depressivos
(Lombardi, 1990).
A perspetiva das relações objetais foca-se na capacidade de tolerar o
afeto depressivo, que é visto como adaptativo e apropriado em termos
de desenvolvimento. Considera-se que a depressão é um estado básico
do Eu, e a questão recai sobre os vários protótipos da capacidade ou
incapacidade para aceitar o afeto depressivo e os estados depressivos
(Winnicott, 1962/1965; Zetzel, 1965). A posição depressiva é uma
evolução no desenvolvimento emocional (Klein, 1940/1975; Winnicott,
1954/1978), um movimento desde a cruel orientação do objeto parcial
do início do relacionamento, característica da infância, para a

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capacidade de reconhecimento do self e do outro como pessoas


completas, com capacidade para amar e para odiar. Concomitantemente
com este reconhecimento da separação fundamental e da integridade do
self e do outro, surge o início da empatia, da capacidade de interesse
pelo outro. Stern (1985), também descreveu esta realização como a
descoberta da intersubjetividade, isto é, com o reconhecimento da
separação do self emerge a descoberta de que os estados subjetivos
podem ser partilhados. Esta realização envolve a compreensão de que
os outros, distintos do nosso self, podem experienciar estados mentais
semelhantes aos que o self já experimentou. Stern denomina esta
realização de aquisição da teoria das mentes separadas.
Paradoxalmente, o reconhecimento da separação do self permite a
percepção de que a experiência intra-subjetiva é potencialmente
partilhável com outra pessoa. Pensa-se que esta aquisição de
desenvolvimento, quer seja descrita como posição depressiva ou como
descoberta da intersubjetividade, geralmente ocorre entre os seis meses
e um ano de idade.
Mas, porque é que o afeto depressivo deverá estar associado a uma
realização tão positiva e extraordinária? Porque na medida em que a
criança, que é uma pessoa completa, se torna capaz de identificar com a
pessoa completa da mãe ou com outras pessoas significativas, a criança
começa a reconhecer que a pessoa amada e querida é a mesma que
também tem odiado nos momentos mais difíceis. Segundo Klein
(1940/1975), a introjeção do objeto de amor no seu todo provoca

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preocupação e tristeza, pois teme que o objeto possa ser destruído pelos
seus sentimentos negativos de frustração, ódio e raiva. Estes
sentimentos e medos perturbadores constituem a posição depressiva.
As ansiedades da posição depressiva são duplas: por um lado
centram-se na preocupação para com o outro e por outro lado, na
preocupação para com o self. As ansiedades acerca do objeto de amor,
incluem a preocupação de que o objeto possa ser danificado ou até
mesmo destruído, durante os momentos de frustração e ódio. As
ansiedades acerca do self incluem fantasias relativamente à nossa vida
interior ou ao nosso interior, e preocupações de que os bons objetos
internos se possam perder devido aos nossos maus impulsos. No luto (e
nos bebés de Spitz, que padecem de depressão anaclítica), existe uma
perda real da pessoa amada, que no seu extremo, pode provocar
sentimentos de desesperança face às relações e aos contactos externos
em geral. O luto patológico é um exemplo desta situação. Na posição
depressiva, existe um reconhecimento de que a nossa própria raiva e
ódio podem fazer-nos perder o objeto amado e o sentimento de self
internamente bom.
Os sintomas hipocondríacos podem ser percebidos como
manifestações de ansiedades paranoides ou depressivas (Klein,
1935/1975). Os sintomas somáticos, que em fantasia representam
ataques de objetos perseguidores, são tipicamente paranoides (por
exemplo, sintomas que são geridos através da projeção, como os
atribuídos a feitiçaria ou ao diabo). Os sintomas somáticos, que derivam

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de fantasias de ataque dos maus objetos internos aos bons objetos


internos, nos quais a pessoa se identifica com o sofrimento dos bons
objetos, são tipicamente depressivos.
A forma como a pessoa elabora a sua posição depressiva determina
as suas capacidades para estabelecer relacionamentos plenos e para
conseguir ter uma vida saudável. As tendências reparadoras saudáveis,
ajudam a integrar aspetos do amor e da agressão, de modo a que
possam ser experienciados em relação ao self e aos outros sem o medo
do sadismo e da destruição, diminuindo, assim, a tendência para a
somatização. A capacidade para tolerar o afeto depressivo está
associada ao reconhecimento da nossa própria agressividade. A
incapacidade para tolerar os estados depressivos reflete um estado
interno em que a pessoa, não só se sente abandonada por todos os
objetos internos bons, mas também sujeita aos ataques de todos os
objetos internos maus. O sentimento de culpa que acompanha esta
situação, é muitas vezes direcionado para o self, na forma de ataques
somáticos.
Winnicott, também considera que a mente e o corpo não são dois
conceitos dicotómicos e distantes. Pelo contrário, o autor defende a
existência de um processo de inter-relação mútua entre os aspetos
psíquicos e somáticos do crescimento individual, em que cada
proporciona informação acerca da experiência do outro. À semelhança
do Eu corporal de Freud (1923/1961) e do sentimento nuclear de self
de Stern (1985), Winicott concebe o corpo, na medida em que é

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experienciado pela pessoa, como parte integrante do núcleo do self


imaginativo desenvolvido.
Assim, o desenvolvimento psicossomático inicial, quando ocorre de
uma forma saudável, despoleta a continuidade do ser. Para Winnicott,
uma mãe “suficientemente boa” normal, que se adapta ativamente às
necessidades iniciais do bebé, e que gradualmente vai falhando nessa
adaptação para poder continuar com a sua própria vida, proporciona o
ambiente que facilita o “continuar a ser”. Durante esta fase inicial, a
criança desenvolve um self, a existência psicossomática começa a ganhar
um padrão individual pessoal, e Winnicott refere-se a este processo
como a “psique a viver no interior do soma” (1960/ 1965). Este “viver
no interior”, integra as experiências motoras, sensoriais e funcionais, e
constitui a base para a construção do self, da realidade pessoal e da
experiência individual. Um relacionamento errático (impositivo,
negligente, abandónico) por parte dos cuidadores primários, constitui
as falhas ambientais às quais a criança terá de reagir e adaptar-se. Estas
falhas interferem com a integração do self, com a tendência natural da
criança para adquirir uma realidade psíquica pessoal e um esquema
corporal pessoal. Na infância, tal como noutras fases da vida, os
sintomas como perturbações alimentares e do sono, ideação suicida, e
outras dificuldades psicossomáticas, tendem a surgir como reflexões de
experiências iniciais desintegradoras da existência psicossomática.
Nesta perspectiva, os sintomas psicossomáticos são percebidos como
instâncias especiais de splitting (clivagem) ou dissociação (Gaddini,

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1978; James, 1979; Szasz, 1957; Winnicott, 1966). Estas falhas da


integração mente-corpo podem ser entendidas como: falhas na relação
precoce mãe-bebé; defesas; ou formas de construção de uma verdadeira
identidade.
Ao nível do desenvolvimento, estas clivagens psicossomáticas
surgem a partir de falhas na relação precoce entre a mãe (ou outros
cuidadores) e a criança. As situações de imposição parental, retirada ou
falhas ao nível na empatia, requerem adaptações por parte da criança
que vão forçar um conformismo precoce e uma consequente perda de
espontaneidade e de integração do self. A ausência de reciprocidade
física e psíquica entre os pais e a criança, na infância, interfere com a
integração natural da psique e do soma. Como resultado, a psique,
narcisicamente danificada, tenderá a construir um falso self. Para se
adaptar a um falso self-conformista, a criança em desenvolvimento
constrói uma série de relações falsas (Winnicott, 1960/ 1965), que
operam como se fossem reais, mas proporcionam um sentimento de
desconexão interior e superficialidade. Uma das consequências deste
sentimento de desconexão interior é a dissociação da experiência
corporal, que se expressa, então, psicossomaticamente.
Quando os sintomas psicossomáticos são levados a sério, a um nível
médico, a procura de um alívio médico pode funcionar como um
objetivo de vida, e distrair a atenção do sentimento interior de
frivolidade (James, 1979). Assim, os sintomas constituiriam um
processo defensivo. A hipocondria encaixa-se bem neste modelo de

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defesa. Winnicott, propõe um outro modelo, mais atrativo, que


considera que os sintomas psicossomáticos têm a função de defender a
pessoa contra os perigos que emergem da integração da personalidade.
Desta forma, as defesas somáticas operam para proteger a pessoa da
experiência da ansiedade depressiva associada ao sentimento de que os
bons objetos se perderam, não devido a falhas ambientais, mas devido à
própria destrutividade da pessoa. Por outras palavras, a somatização
serve para mitigar a culpa e o ódio a si mesmo, que emergem quando o
afeto depressivo não pode ser tolerado.
A somatização também pode funcionar como uma forma de forjar
uma identidade e reconquistar a integração. Os sintomas
psicossomáticos, aqui, podem ser percebidos como uma função do self,
em vez de uma expressão simbólica específica de um conflito. Um dos
objetivos da doença psicossomática é “retirar a psique da mente e
devolvê-la à relação intima com o soma” (Winnicott, 1949/ 1978). Ao
chamar a atenção para a dissociação, o sintoma pode ser uma tentativa
da pessoa para reparar a clivagem entre mente e corpo, entre a ideia e o
afeto. O facto dos sintomas serem sintomas corporais, demonstra que o
vínculo psicossomático não foi completamente perdido.
Paradoxalmente, através da experiência despersonalizada da
somatização, a pessoa pode estar a tentar entrar em contacto com a
possibilidade da integração psicossomática e do self personalizado.

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3. Uma perspectiva empírica


sobre somatização e depressão

De uma perspetiva fenomenológica e sintomática, os estados


depressivos incluem, muitas vezes, manifestações corporais como a
insónia ou a hipersónia, anorexia, perda de peso, diminuição de energia
e da libido, anedonia, agitação ou lentificação psicomotora, e
dificuldades no pensar e na concentração. Estes sinais vegetativos
podem derivar em constelações somáticas mais elaboradas, tais como
dores de cabeça, dores nas costas ou dor crónica, e podem envolver
qualquer sistema de órgãos: o sistema nervoso central, o sistema
nervoso periférico, o cardiovascular, o respiratório, o genital-urinário, o
gastrointestinal ou o sistema endócrino. Apesar da somatização poder
ser sintomática da histeria, de perturbações da ansiedade, de
perturbações obsessivas-compulsivas, de condições borderline ou de
reações ao luto, vários investigadores (Katon, Kleinman, & Rosen, 1982;
Lesse, 1967; Lloyed, 1986) sugerem que a somatização é mais
frequentemente representada nas perturbações do humor, e em
particular na depressão major. A somatização é vista como tendo a

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função de mascarar a depressão (Lesser, 1967). As pessoas que


somatizam não apresentam necessariamente um humor deprimido,
podem, em vez disso, procurar os cuidados médicos primários para
obter o alívio das suas queixas somáticas presentes (Katon et al. 1982).
Como foi divulgado numa extensa revisão de literatura empírica (Katon
et al., 1982), os estudos de investigação que utilizaram vários
inventários de depressão, indicaram que quando a depressão não é
referida pelo próprio, mas é apresentada através de sintomas somáticos
aos médicos de cuidados primários, o seu diagnóstico perde-se em 95%
dos casos. Outro dado muito importante, é que se estima que entre 12 a
35% dos pacientes, dos médicos de cuidados primários, estão
significativamente deprimidos.
Mas, o que é que contribui para a apresentação somática dos
estados de humor? Tem sido sugerido que os sintomas somáticos são
amplificações de sensações fisiológicas normais, que ficaram distorcidas
devido a uma hiperconsciência, hipersensibilidade e atenção seletiva
(Lloyd, 1986). Também se tem vindo a considerar que alguns fatores
culturais estão implicados, tais como inibições culturais relativamente à
experiência direta do afeto depressivo e a falta de vocabulário que
facilite a expressão emocional (Goldberg & Bridges, 1988; Katon et al.,
1982; Lloyd, 1986). A somatização parece estar relacionada com o
avançar da idade, com a história familiar, com doença física anterior, e
parece diminuir na medida em que o estatuto socioeconómico aumenta.

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Os sintomas que são expressos, com maior frequência, pelos


pacientes depressivos, são os que se referem ao sistema nervoso
autónomo (transpiração nas palmas das mãos, tremores, taquicardia,
transpiração, e falta de ar), perturbações do sono, boca seca e fadiga
(Wittenborn & Buhler, 1979), o que sugere uma associação entre
depressão e ansiedade. Alguns investigadores sugerem uma relação
entre traços de personalidade, história familiar e somatização.
Encontraram-se várias diferenças nas comparações entre depressivos
que não tinham nenhuns sintomas somáticos localizados, e os
depressivos com sintomas peitorais de falta de ar (em situações de
ausência de esforço, e incluindo suspiros respiratórios e
hiperventilação aguda), sensação de peso no esterno e preocupações
com o tema de morte devido a doença cardíaca ou peitoral. Os
depressivos com sintomas peitorais tendiam a ser mais obsessivos, a
relatar dificuldades respiratórias prolongadas num dos progenitores, a
ter sofrido uma perda de alguém muito próximo nos últimos três anos –
estes dados sugerem que as questões da identificação e da perda,
podem estar relacionadas não só com a somatização, mas com sintomas
somáticos particulares envolvidos.
Em alguns estudos (Goldberg & Bridges, 1988; Katon, Kleinman, &
Rosen, 1982), a somatização foi considerada como um mecanismo de
defesa ou de coping. Na literatura médica, a somatização da depressão
tem sido tradicionalmente descrita como uma manobra defensiva
inconsciente, por parte do paciente, partindo do pressuposto de que o

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foco nos sintomas somáticos, e não numa emoção, protegeria a pessoa


da dor psicológica. As perspetivas históricas e transculturais revelam
que os depressivos, em culturas não europeias e não ocidentais, tendem
a somatizar muito mais frequentemente, o que sugere que a
somatização possui uma orientação cultural. Goldberg e Bridges (1988),
consideram que a somatização é um mecanismo básico da espécie
humana para responder ao stress. Os mesmos autores, defendem a ideia
de que em sociedades mais individualistas, que tendem para uma
idealização narcisista do self, a somatização tende a ser substituída por
uma “psicologização”, orientação cultural mais recente.
Num estudo realizado numa região urbana de Inglaterra,
Goldberg e Bridges formaram dois grupos, o das pessoas que
“psicologizam” e o das que somatizam, que depois entrevistaram e
pediram que completassem várias escalas de avaliação de
personalidade e de atitudes. Foi interessante verificar que, apesar de
ambos os grupos terem obtido resultados que evidenciaram ansiedade,
o grupo dos que psicologizam apresentaram mais referências de
depressão do que os que somatizam. Dada a relação entre somatização e
depressão, estes resultados parecem contraditórios, num primeiro olhar
superficial...No entanto, os autores colocam a hipótese de que a
somatização funciona como uma defesa contra a culpa. Ou seja, as
pessoas que somatizam tendem a não referir a depressão, nem a
considerar-se psicologicamente afetados ou responsáveis por
contribuírem para os seus problemas de vida. Os autores inferem que,

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então, as pessoas que reconhecem os seus afetos (emoções,


sentimentos), e que se percebem como agentes das suas próprias vidas,
somatizam menos. Goldberg e Bridges, afirmam que, nas pessoas que
somatizam, a culpa é gerida através da projeção (por exemplo, um
Yoruba que atribui os seus sintomas corporais à feitiçaria), através da
introjeção (por exemplo, um britânico hipocondríaco que atribui os seus
sintomas corporais a um cancro não diagnosticado), ou através de uma
combinação de ambas (por exemplo, uma pessoa que acredita que tem
algum tipo de doença que o médico não foi capaz de diagnosticar, e que
a culpa é do médico). Os autores concluem que quando tendemos a ter
uma experiência mais integrativa, e um sentimento de responsabilidade
ou de capacidade de agir e transformar as nossas próprias
vidas...somatizamos menos.

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4. Perspectivas clássicas sobre somatização e depressão

Fenichel (1945), afirma que o termo perturbações “psicossomáticas”


tem a desvantagem de sugerir um dualismo que na verdade não existe.
Para este autor, todas as doenças são “psicossomáticas”, porque
nenhuma doença “somática” é inteiramente livre da influência psíquica.
A teoria psicanalítica clássica tem realizado algumas tentativas sérias
para abordar o dualismo mente-corpo, tão comum no pensamento
ocidental. Estas tentativas, pretendiam continuar a valorizar o
desenvolvimento intelectual e da mente racional sobre as expressões
mais “primitivas” da existência emocional e somática, e
simultaneamente compreender as consequências da repressão de
sentimentos e pensamentos para o organismo humano. Na teoria
psicanalítica clássica, a somatização era considerada uma expressão
inconsciente, através de uma descarga corporal, de pensamentos e
sentimentos inaceitáveis para a pessoa. Quando uma pessoa experiencia
o afeto de uma forma visceral, sem consciência da experiência mental, a
somatização servia como um equivalente para facilitar o
reconhecimento do afeto. Ao contrário dos afetos (emoções)

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plenamente experienciados, que são relacionados com a consciência


mental, os equivalentes do afeto têm um valor de descarga diminuído
para a pessoa, e tendem a tornar-se expressões crónicas de ansiedade.
A somatização era percebida como o resultado corporal das atitudes
inconscientes, um canal alternativo para a expressão de conflitos ou
impulsos repelidos. Por exemplo, a tensão muscular que acompanha
uma experiência inaceitável de raiva, pode resultar em dor crónica nas
costas ou no pescoço. Uma mulher que desenvolve urticária no seu
peito, quando veste um vestido mais decotado ou curto, pode estar a
expressar um conflito acerca de ser admirada e sexualmente desejada.
A somatização, apesar de ser precipitada por eventos
intrapsíquicos, utiliza os canais físicos como forma de descarga. A
somatização está relacionada com a regressão do Eu, que não consegue
conter a ansiedade ou neutralizar a agressão de forma eficaz (Schur,
1955). Assim, pode-se considerar a somatização como uma agressão
voltada para o interior ou, em termos mais modernos, como um
processo do corpo atacar o self. Freud (1917/1957), originalmente,
atribuiu a somatização à hostilidade reprimida, que emerge como uma
auto-censura (ou culpa) e depressão (melancolia), ou como uma forma
histérica de punição através do desenvolvimento de sintomas corporais.
Em qualquer dos casos, na raíz desta necessidade de punição,
pressupõe-se a existência inconsciente de um sentimento de
responsabilidade pela morte, ou perda do amor, de uma pessoa amada.

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Groddeck (1923/1949), num tratado inicial sobre a


psicossomática da saúde e da doença, adverte para a falácia de se
separar o corpo da mente. O autor defende que cada um afeta e informa
o outro, continuamente, e que o organismo total é animado por uma
força de vida (o “It”, que Freud formulou mais tarde como o “id”), que se
expressa através da doença e da saúde. Portanto, a doença não pode ser
isolada do resto da personalidade, a doença é o “It” a expressar-se
através do self.
A importância de Groddeck para o pensamento contemporâneo
sobre a psicossomática tem duas vertentes. Primeiro, o autor destaca a
relação entre a vida interior e a exterior, e a sua contínua influência
reciproca. Na prescrição do tratamento físico dos pacientes, ele tem em
conta qual a função dos seus sintomas. A segunda vertente, refere-se ao
foco na somatização como uma defesa contra a rejeição e a perda
(exemplo: o aparecimento de um inestético eczema junto da boca, que
anseia ser beijada – se o beijo acontecer, apesar do eczema, virá o
sentimento de felicidade, e se não acontecer não é porque não é
amada...mas por causa do eczema malfadado...).

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5. Considerações desenvolvimentistas
acerca da somatização e da depressão

Nas primeiras explorações acerca da etiologia da somatização


emergiram muitas vezes o tema da depressão e da perda. Os trabalhos
posteriores sobre crianças, quer perspetiva da pediatria clínica
(Winnicott, 1936/1978), da perspetiva empírica (Spitz, 1946, 1951;
Spitz e Wolf, 1946), e dos estudos de caso longitudinais (Harmon,
Wagonfeld e Emde, 1982) proporcionaram evidências confirmatórias
impressionantes sobre esta relação. A partir da sua experiência
pediátrica, Winnicott sugeriu que várias perturbações alimentares se
relacionavam com aspetos da experiência precoce da criança nos seus
primeiros meses de vida, que se repercutiram em defesas contra a
ansiedade e a depressão. Winnicott estava a referir-se a crianças
relativamente “normais” ou típicas, da sua prática pediátrica, que
desenvolviam dificuldades alimentares na infância, ou que se tornavam
anoréticas ou bulímicas, ou que tinham acessos de dor de estômago ou
espasmos intestinais, em crianças.

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O trabalho de Spitz com crianças, foi realizado numa circunstância


muito particular – as crianças viviam em asilos e tinham sido separadas
da sua mãe e do seu ambiente familiar de origem, por períodos
prolongados de tempo. As crianças que se encontravam nesta situação,
mostravam não só atrasos significativos no desenvolvimento da
linguagem, da socialização, das suas capacidades motoras e do seu
funcionamento intelectual, mas também manifestavam graves sintomas
somáticos, que incluíam uma diminuição significativa da resistência à
doença e uma elevada taxa de mortalidade. As crianças que
sobreviviam, apresentavam, no follow-up, uma incidência alta de
eczemas e de outros problemas de pele. Spitz referiu-se a este síndrome
como “hospitalismo”, mas que talvez possa ser melhor denominado de
“institucionalismo”. As crianças deste estudo, sofreram a separação da
sua família e também a negligência emocional da instituição, apesar de
serem cuidadas fisicamente. Na maioria dos casos, nunca foram
repostos, nem os cuidados maternais nem uma vida familiar a estas
crianças.
Outros estudos (Spitz e Wolf, 1946), sobre um síndrome mais
discreto, desenvolvido por crianças separadas das suas mães na
segunda metade do primeiro ano das suas vidas, também revelaram
uma relação entre depressão e somatização. Denominado de depressão
anaclítica, este síndrome é caracterizado por choro e apreensão,
afastamento do ambiente, atraso no desenvolvimento, atraso
psicomotor, anorexia, perda de peso e insónia. Estes sintomas

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desenvolviam-se entre quatro a seis semanas após a separação da mãe,


e mantinham-se até ao reencontro, que geralmente acontecia no espaço
de três meses após a separação original. Estes sintomas pareciam ser
expressões sintomáticas do afeto deprimido, especificamente
relacionados com a perda do objeto de amor.
Mas, porque é que o afeto deprimido segue o curso da expressão
somática? Na infância, e nas suas fases mais precoces em particular,
podemos especular que como ainda não estão disponíveis palavras que
permitam expressar a angústia da perda, o corpo torna-se o veículo
mais imediato desta expressão. Em termos desenvolvimentistas, alguns
teóricos (A. Freud, 1970; Group for the Advancement of Psychiatry,
1966) sugeriram que na infância existe uma espécie de membrana semi-
permeável entre a experiência psíquica e a experiência somática, e que
por isso existe um fácil acesso da mente ao corpo e do corpo à mente. As
excitações corporais como a fome, o frio ou a dor podem ser facilmente
“descarregadas” através de ligações mentais na forma de afetos, tais
como a ansiedade ou a raiva. Reciprocamente, também a perturbação
mental pode ser “descarregada” corporalmente, através de
perturbações da digestão, da eliminação (funcionamento intestinal), da
pele, etc. Spitz (1951) acrescenta que, com o desenvolvimento e a
maturação, as experiências de cada um destes domínios formam
sistemas estruturados, que progressivamente se vão diferenciando cada
vez mais um do outro. O que Spitz não contemplou foi a existência de

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um vínculo contínuo, especialmente a níveis inconscientes, entre a


psique e o soma, no decorrer de toda a nossa vida.

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6. Conclusões e implicações clínicas

Os estudos de investigação e os dados clínicos, sugerem ambos que


a sintomatologia somática se correlaciona frequentemente com os
estados depressivos. A teoria psicanalítica clássica tentou abordar o
dualismo mente-corpo, tão comum na cultura ocidental, considerando a
somatização como uma expressão inconsciente, através de uma
descarga corporal, de pensamentos e sentimentos inaceitáveis para a
pessoa. As perspetivas de desenvolvimento das relações objetais
tendem a relacionar a somatização a problemas na capacidade de conter
o afeto deprimido ou os estados depressivos.
A forma como a pessoa elabora a posição depressiva, incluindo a
integração do bom e do mau self e as experiências de objeto, determina
a sua capacidade de estabelecer relações plenas e de viver uma vida
saudável.
O desenvolvimento psicossomático precoce, pressupõe, assim, que
a continuidade da experiência do self pode ter sido interrompida por

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uma atitude demasiado intrusiva, distante ou errática por parte dos


principais cuidadores. Estas disrupções interferem com a integração do
self. Na infância, e na vida posterior, as dificuldades psicossomáticas
podem surgir como reflexos destas experiências desintegradoras
precoces. Nesta perspetiva, os sintomas psicossomáticos são vistos
como instâncias especiais de clivagem ou dissociação. A defesa somática
serve para mitigar a culpa, a responsabilidade e o ódio a si mesmo,
quando o afeto depressivo não consegue ser tolerado pela pessoa.
Paradoxalmente, através da experiência despersonalizada da
somatização, a pessoa está a tentar entrar em contacto com a
possibilidade de integração psicossomática e do self personalizado.
No que se refere aos seus aspetos defensivos, a somatização pode
assumir várias funções (Busch, 2014). O foco no corpo pode defender de
afetos dolorosos ou de conflitos intrapsíquicos, pode manter à distância
fantasias agressivas através da experiência pessoal de incapacidade ou
lesão física. Os medos de separação também podem ser atenuados pela
doença como uma forma de expressar a necessidade de ajuda dos
outros. Segundo Busch (2014), a interpretação destas defesas é
importante na identificação e alívio dos conflitos inconscientes
relacionados com a raiva, a separação e a perda.
Além desta questão da somatização como uma defesa, vários
autores também relacionam a somatização à experiência de um estado
somático-emocional que não foi representado simbólica ou
verbalmente, ou a um componente somático dissociativo da memória de

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uma experiência traumática (Bucci, 1997; Waller & Scheidt, 2006). Na


prática clínica e no âmbito da investigação, a somatização tem sido
associada com a alexitimia (Nemiah & Sifneos, 1970; Parker, Taylor, &
Bagby, 1998), que Busch (2014) descreve do seguinte modo: dificuldade
em identificar e descrever os sentimentos; dificuldade em diferenciar
sentimentos e sensações corporais de excitação emocional; e, um estilo
cognitivo orientado para o exterior (tendência a realizar atribuições
externas aos acontecimentos da sua vida).
Outros estudos indicam que a somatização está associada a uma
capacidade limitada de experienciar conscientemente e identificar
emoções e de expressá-las de uma forma adaptativa (Waller & Scheidt,
2006). As dificuldades na identificação dos estados emocionais pode
prejudicar de regulação dos afetos, conduzindo a um maior foco e
intensificação das sensações corporais associadas à excitação
emocional, e a uma potencial distorção da interpretação desses estados
como representantes de adoecimento corporal.
Portanto, a somatização pode ser encarada como fruto da
alexitimia, ou seja, a dificuldade em elaborar os estados emocionais de
uma forma simbólica conduz à expressão corporal dessa emoção. Por
outro lado, a alexitimia e a somatização podem ser vistas como parte do
mesmo mecanismo de defesa, ou seja, como um evitamento de afetos
dolorosos ou de fantasias ameaçadoras através de uma desconexão do
afeto e um foco no corpo. Por exemplo, as memórias de uma experiência
traumática podem ser precipitadas por situações ambientais ou

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psicológicas e experienciadas como excitação somática sem qualquer


identificação cognitiva da memória. Esta situação pode ser entendida
como uma disrupção entre os sistemas simbólico e sub-simbólico com
uma excitação emocional não identificada, ou como uma defesa contra a
dolorosa memória do trauma.
A somatização pode ocorrer em pessoas que, em geral, não têm
alexitimia, mas que têm um bloqueio emocional em certas áreas,
provocado por um trauma ou conflito intrapsíquico. Na prática clínica, é
útil manter presente que os sintomas somáticos podem representar
tanto um estado emocional pouco simbolizado como uma defesa, e
possivelmente até simultaneamente. Assim, por vezes, é importante
ajudar os pacientes a identificar e simbolizar os estados somáticos, e
noutras circunstâncias o foco da intervenção pode incidir sobre de que
afetos e fantasias é que os sintomas corporais se estão a tentar
defender.
Outra função possível da somatização é ser uma forma de
comunicação, num contexto familiar em que a expressão emocional não
é compreendida nem validada. Em certos casos, a doença física pode ser
a forma mais eficaz de obter uma resposta e cuidados. Estes ambientes
familiares estão muitas vezes associados a uma capacidade limitada
para elaborar representações mentais dos estados emocionais,
contribuindo para a alexitimia. Além disso, a tendência para
experienciar a aflição somaticamente proporciona uma defesa imediata

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para afastar afetos e fantasias em conflito, incluindo a raiva e a


necessidade de cuidados/carinho.
Busch (2014) sublinha alguns aspetos, que considera pertinentes,
em termos da intervenção terapêutica com pacientes que apresentam
problemas de somatização. O autor salienta a importância de numa
primeira fase explorar as circunstâncias, os sentimentos, os
pensamentos e os sintomas específicos que são desencadeados, de
forma a ajudar o paciente a ter maior consciência dos significados e
contexto da sua ansiedade. Refere também que considera útil
apresentar, com base na apresentação clínica, uma formulação inicial,
que muitas vezes envolve conflitos associadas a separação, raiva e culpa
auto-punitiva. Numa fase intermédia, o autor destaca o esforço para
ampliar a compreensão dos conflitos, das defesas e dos fatores de
desenvolvimento relacionados com os sintomas. A evolução da relação
terapêutica permite identificar os conflitos relevantes, à medida que vão
emergindo na transferência, e as percepções que o paciente tem da
relação com o terapeuta. Uma maior capacidade de identificar
sentimentos e fantasias conflituantes associados a ansiedade, ajuda a
tolerar melhor as emoções e a reconhecer os significados dos sintomas.
Numa fase final, o autor sugere que o terapeuta explore os conflitos,
medos e zangas do paciente na medida em que eles surjam face à
prevista separação do terapeuta. A maior capacidade para gerir a
separação, a raiva e a culpa, facilita a melhoria das relações
interpessoais, dado que o paciente desenvolve uma maior capacidade de

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abordar as suas necessidades na relação com os outros. Esta maior


compreensão e tolerância dos estados emocionais e psicológicos e
relacionamento interpessoal ajuda a diminuir a vulnerabilidade à
recorrência da somatização.
Além dos aspetos já mencionados, Busch (2014), refere que no
tratamento da somatização, além da identificação dos conflitos e das
defesas, é crucial ajudar o paciente a reconhecer que o seu sintoma
somático tem um significado importante. O terapeuta pode ajudar o
paciente a representar simbólica e verbalmente os seus estados
somáticos e emocionais. Estes sintomas podem estar associados a
experiências traumáticas ou podem representar estados emocionais que
o paciente tem dificuldade em identificar, tais como a raiva. Estes
esforços por parte do terapeuta podem ajudar o paciente a desenvolver
a sua capacidade de mentalizar/ elaborar (Fonagy & Target, 1997), o
que contribui para a diminuição dos seus medos catastróficos, à medida
que o paciente vai compreendendo o que as suas preocupações
corporais representam emocional e psicologicamente. O terapeuta ajuda
o paciente a identificar as funções defensivas da somatização, devido ao
paciente inconscientemente evitar sentimentos e fantasias associadas à
raiva, à separação, à autonomia e à culpa.

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