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A posição esquizo-paranóide

Ao abordar o estudo da posição esquizo-paranóide é necessário destacar desde logo


alguns aspectos importantes para evitar dificuldades de entendimento: a posição
esquizo-paranóide como etapa normal do desenvolvimento de qualquer ser humano; a
posição esquizo-paranóide como ponto de fixação da psicose esquizofrênica e de
personalidades esquizóides (patologia); e a posição esquizo-paranóide como momento
de regressão temporária no funcionamento de personalidades não-psicóticas (inclui os
ditos “normais”).
1. A posição esquizo-paranóide como etapa normal do desenvolvimento. A discussão
entre posição e fase (ou estágio) do desenvolvimento já foi abordada no estudo da
posição depressiva. Realmente, quando Klein descreve o funcionamento mental do
bebê nos primeiros três ou quatro meses de vida, está considerando a posição
esquizoparanóide como uma etapa natural do desenvolvimento humano. Esta etapa
compreende um estado peculiar do ego: fragilidade, falta de coesão, desagregação;
estados emocionais, mecanismos defensivos e relações de objeto característicos, que
serão vistos em detalhe mais adiante.
2. A posição esquizo-paranóide como ponto de fixação de psicoses e estruturas de
personalidade esquizóide significa que o sujeito, ao atravessar essa etapa inicial da
vida, sofre o efeito de uma combinação de fatores internos (constitucionais) e externos
(ambiente traumático) que perturba a transposição normal dessa etapa. Começa já a
apresentar defeitos de adaptação que interferirão na ultrapassagem da
posiçãodepressiva (iniciada normalmente entre o terceiro ou quarto mês após o
nascimento), Essas perturbações estruturais da personalidade ficam fixadas e
funcionam como fator predisponente. No futuro, fatores desencadeantes (novos
traumas, frustrações excessivas e prolongadas, às vezes efeito da própria falha
adaptativa prévia; incremento de pulsões sexuais na puberdade) provocam regressão
ou exacerbação de mecanismos esquizóides, surgindo manifestações típicas das
psicoses esquizofrênicas.
3. A posição esquizo-paranóide como momento de regressão temporária implica uma
concepção de fluidez dinâmica na integração da personalidade. Aqui, sim, o conceito de
posição é mais adequado do que o de etapa. Esclarecendo: Klein admite que os
estados mentais não são estáticos. As pessoas oscilam entre momentos de maior ou
menor lucidez; maior aproximação e maior distanciamento da realidade. Estas
variações implicam maior e menor integração da personalidade. Se for concebido que
aos momentos de maior integração corresponde um estado mental definido
como”posição depressiva”e, aos de menor integração, como “posição esquizo-
paranóide”, então o indivíduo oscilará entre essas duas posições, dependendo das
angústias, defesas e fantasias que estejam predominando em sua relação com os
objetos internos e externos. Esse conceito de oscilação entre duas posições é muito útil
durante a sessão de análise, porque permite ao analista verificar se o analisando está
conseguindo enfrentar as angústias depressivas ou fugir delas.
Histórico do conceito de posição esquizo-paranóide

O conceito, tal como se nomeia, foi aplicado no trabalho que Klein trouxe à luz em
1946, “Notas sobre alguns mecanismos esquizóides”. Todavia, por ocasião dessa
publicação, ainda usava a denominação de “posição paranóide” (tal como no artigo de
1935, “Contribuição à psicogênese dos estados maníaco-depressivos”). Porém, ao
republicar “Notas sobre alguns mecanismos esquizóides” na coletânea comemorativa
de seu septuagésimo aniversário, Progressos em Psicanálise (Developments in
Psycho-Analysis), em 1952, Klein resolveu ajuntá-lo ao termo “posição esquizóide”
usado por W. R. D. Fairbairn (1941; 1944), passando a adotar a designação definitiva
de”posição esquizoparanóide”. Essa noção, em alguns aspectos essenciais, já era
usada por Klein em seus primeiros trabalhos com o nome de “fase persecutória”. Assim,
para acompanhar o uso ,do conceito no desenvolvimento da obra kleiniana, observem
que, primeiramente, até 1935, foi designado como “fase persecutória”; a partir daí e até
1946, “posição paranóide”; daí em diante, “posição esquizo-paranóide”.

Características da posição esquizo-paranóide

Talvez se se acompanhar o funcionamento do ego desde o nascimento fique mais


acessível o entendimento da”posição esquizo-paranóide” como etapa do
desenvolvimento normal. Não foi fácil para Klein chegar até aí. Nem para Freud. Freud
concebe, no trabalho de 1923 — “O ego e o id” —, que não existe um ego desde o
nascimento. Existe um ego-id indiferenciado. Esse aglomerado indiferenciado vai- se
organizando, através do tempo, em torno de rudimentares ações de percepção-
consciência, formando um primitivo ego que se destaca do id. O superego, só se
formará, para Freud, após os cinco ou seis anos de idade, com a dissolução do
complexo de Édipo.
Klein já admite um ego ao nascer, bem como, logo em seguida, um superego
rudimentar, originário da primeira introjeção dos objetos parciais. Mas vamos por
etapas. Klein discute com Freud usando o próprio Freud. E sua lógica parece bem
fundamentada na própria metapsicologia proposta por Freud. Essa discussão encontra-
se no artigo de Klein publicado em 1948, “Sobre a teoria da angústia e da culpa”. Apóia-
se nos conceitos de instintos de vida e de morte postulados por Freud em seu denso
trabalho de 1920: “Além do Princípio do Prazer”. Em suma, Freud diz que antes do
nascimento os instintos de vida e de morte estão fundidos. Ao nascer, ocorre sua
defusão, isto é, separam-se ambos os instintos, e, ficando livre, o instinto de morte
procura atingir seu fim, que é a destruição do organismo. O organismo, valendo-se do
instinto de vida, consegue defletir para o exterior uma parte do instinto de morte, outra é
ligada pela própria libido (ou seja, é contida, neutralizada), enquanto outra parte do
instinto de morte ainda permanece no interior do organismo.
Observem que Freud, ao falar destes processos, emprega termos biológicos, em vez de
psicológicos. Isso se deve em parte a que ele não admite um ego desde o nascimento,
e, por outra, que ele não aceita a idéia de morte no inconsciente. Melanie Klein,
superando as limitações naturalísticas do pensamento freudiano, postula que já existe
um ego ao nascer. É este ego rudimentar que percebe a presença do instinto de morte,
inconscientemente. Todavia, não se trata de uma percepção direta do instinto, o que
seria impossível. O que o ego percebe é a angústia primária. A presença do instinto de
morte é percebida como o medo do aniquilamento. Para evitar o próprio aniquilamento,
o ego põe em prática sua primeira ação defensiva — a deflexão. (Deflexão, expulsão e
projeção são, a grosso modo, sinônimos no pensamento kleiniano.). Como resultado da
deflexão, surge o primeiro objeto persecutório, situado fora do ego.
“fora” e “dentro” neste contexto não correspondem à noção geográfica e espacial do
adulto. O ego primitivo não apresenta diferenciação entre realidade exterior e realidade
psíquica. É este um problema filosóico e psicológico ainda não resolvido. Para fins
clínicos, e considerando que o bebê não dispõe de representação verbal,aquilo que
abstratamente se chama “fora”, no meu entender, corresponderia à vivência de “muito
longe”; e, “dentro”, semelhante a “muito perto”.
A explicação kleiniana desses primeiros movimentos vitais ao nascimento pacece-me
muito mais coerente que a de Freud. Pois como poderia o organismo defletir o impulso
destrutivo, se essa é uma função psíquica? Ademais, por que o organismo defletiria o
instinto de morte se não tivesse percepção do perigo, que é outra função psíquica? A
deflexão é um mecanismo de defesa e, por definição, uma função do ego.
Expressões como deflexão, objeto persecutório, instinto de morte são concepções
abstratas. Uma preciosa contribuição de Susan Isaacs, íntima colaboradora de M. Klein,
ajuda-nos muito a relacionar as noções abstratas com a experiência clínica. Em seu
trabalho “A natureza e função da fantasia”, que faz parte da coletânea Progressos em
Psicanálise, editada por M. Klein em 1952, Susan Isaacs propõe a noção de “fantasia
inconsciente” como sendo a expressão mental dos instintos. Mas não só dos instintos:
“Todos os impulsos, todos os sentimentos, todos os modos de defesa são vivenciados
na fantasia, a qual lhes dá vida mental e mostra sua direção e propósito” (Isaacs, em
Klein, 1952, p. 81 e 82). Aproveitando essas concepções de Isaacs sobre fantasia
inconsciente, aquilo que abstratamente é chamado instinto de morte é vivenciado pelo
ego como a fantasia de um monstro aterrorizante querendo aniquilá-lo. A deflexão
corresponde a uma fantasia onipotente de expulsão desse monstro aterrorizante para
fora (“bem longe”). Portanto, a deflexão não se faz no vácuo, nem a fantasia existe no
vazio. Ao ser realizada a expulsão, já se estabelece uma relação de objeto: o sujeito
sendo perseguido por um monstro perigoso mantido o mais longe possível. Não
esquecer que ao instinto de vida também correspondem fantasias inconscier.tes. Cria-
se um objeto que protege e dá vida ao ego. Na mente onipotente do bebê, ao desejo de
comer corresponde um peito generoso e nutritivo, que é incorporado. O primeiro objeto
do bebê é o peito. Mas o que é chamado “peito”é apenas o alicerce dessa fantasia.
Combinando as noções de instinto de vida e de morte, e de peito como objeto desses
instintos, à defusão dos instintos correspondem duas espécies de peitos: o “peito mau”
seria continente do instinto de morte, enquanto o “peito bom” conteria o instinto de vida.

Talvez com esse preâmbulo, as concepções da posição esquizo-paranóide se tornem


um pouco mais acessíveis. Como foi visto, o ego dessa etapa inicial da vida é frágil e
carece de coesão. Essa fragilidade, contudo, é paradoxalmente sua força. Para se ter
uma idéia, imaginem um sujeito inexperiente diante de um touro bravo. Desmaiar pode
ser sua melhor defesa. O ego, diante dc, representante do instinto de morte, divide-se.
Divisão, cisão ou clivagem são as várias traduções que em português se dá ao termo
splitting, em inglês.
Ao efetuar a ciivagem, Klein admite que o ego age ativamente para se defender da
defusão dos instintos de vida e de morte. A defusão seria uma clivagem? Penso que
não. A defusão seria um movimento vital que estaria no limiar entre o somático e o
psíquico, como o próprio conceito de instinto definido por Freud. A defusão colocaria o
ego diante de duas forças. Ao instinto de vida corresponderia a fantasia do “peito bom”;
ao instinto de morte corresponderia a fantasia do “peito mau”. E seria então para
manter separados os peitos bom e mau, e evitar adestruição do primeiro, que entraria
em ação o mecanismo de clivagem.
Existindo um ego desde o começo da vida, existem também, desde o início, relações de
objeto. Mas os objetos da relação esquizo-paranóide apresentam essa característica:
são clivados. Quer dizer:
são considerados protetores do ego (“bons”), ou perigosos para o ego (“maus”). Isto é,
os objetos estão sempre partidos, cindidos nessas duas qualidades. Os objetos bons
são amados pelo ego; os maus, odiados. Mas de que modo se estabelecem as
relações de objeto nos primórdios da vida? Este é um problema complicado e nunca
resolvido. Mas, para dar coerência ao pensamento de Klein, é forçoso admitir que
desde o nascimento estabelece-se algum contato com os objetos reais, externos (por
oposição a objetos fantásticos, internos). Contudo, o suporte dá realidade nestas
relações objetais primitivas é ainda diminuto. Predominam as relações com objetos
determinadas pelas fantasias. É aqui que entram os dois outros principais mecanismos
da posição esquizo-paranóide: a projeção e a introjeção. (O terceiro principal
mecanismo desta posição é a clivagem.)
A projeção consiste no transporte, para o “exterior”, de aspectos de vivências do ego
que ele precisa manter “fora”. E a introjeção, no transperte para “dentro”, de aspectos
de vivências do ego que ele quer ou precisa retirar do “exterior”. (Lembrem que as
aspas estão aqui colocadas para exprimir a diferença, que os termos têm para a mente
mais evoluída.) Na experiência o bebê, que vive num mundo concreto, ao mecanismo
que abstratamente se chama projeção corresponde, aproximadamente uma fantasia
corporal de expulsão (por vômito, micção, defecação, cusparada) de algo odiado e
temido. Mas o bebê também precisa de “benfeitores” e “protetores”. Por isso, ele
também projeta aspectos de fantasias continentes do instinto de vida e que vão cuidá-
lo, alimentá-lo, aquecê-lo, acariciá-lo e amá-lo. Do mesmo modo, e inversamente,
acontece com a introjeção: o bebê executa, através da fantasia onipotente, movimentos
de comer, engolir, sugar, inspirar aspectos de vivências na relação com o objeto que
ficam então “dentro do corpo” do bebê. Introjeção e projeção são, portanto, o modo
primitivo de o bebê estabelecer contato com o mundo objetal. A cada projeção
corresponde uma introjeção. Como, a projeção se faz sobre algo da realidade (o peito,
a mão, o rosto, a presença da mãe, por exemplo), que modifica um tanto aquilo que na
fantasia foi projetado, então, ao ser efetuada a introjeção correspondente, o objeto
incorporado já está um tanto modificado.
Já foi visto que a angústia primária é proveniente da percepção inconsciente do
representante do instinto de morte. Há duas outras fontes de angústia primária, estas
provenientes da ação do mundo exterior: o trauma do nascimento, vivido como angústia
de separação; e frustração de necessidades corporais (fome, frio etc.), vividos como
angústia primária de aniquilamento por objetos maus; porque, a cada sentimento de
mal-estar, o bebê projeta uma fantasia de um objeto responsável por seu sofrimento.
Os processos de deflexão do instinto de morte ou sua ligação no interior da mente pelo
instinto de vida não alcançam seu objetivo. Isso quer dizer que o ego primitivo, para
defender-se da angústia de ser destruído por dentro, recorre ao mecanismo de
despedaçar-se. Klein admite que o mecanismo de clivagem é ativo: o ego se divide e
divide sua relação com o objeto “mau” de forma ativa. Isso leva ao passo seguinte.

Estudo do processo de clivagem em relação ao objeto

O impulso destrutivo clivado e projetado fora é primeiramente vivido como ligado ao


seio materno, que fica portanto dividido num “seio mau” que ameaça o sujeito de
devorá-lo (continente de impulsos destrutivos sob forma oral). Simultaneamente, o bebê
projeta seu amor e o atribui ao peito gratificante, que se converte no “seio bom”. Então
inicialmente existem dois objetos na posição esquizo-paranóide:os seios “bom” e “mau”,
respectivamente ligados a cada parte do ego que se relaciona separadamente com
cada um. Mas a coisa não fica só aí. Surgem complicações devido a momentos em que
as frustrações e a angústia se intensificam. O aumento desses sentimentos
desagradáveis reforça os desejos orais sádicos canibalísticos. Em consequência dos
ataques fantásticos do bebê contra o seio “mau” (frustrador), este fica imaginado como
despedaçado. Cada pedaço se converte num novo inimigo. O ego fica ameaçado por
uma multidão de agressores, que nessa nova forma assume o nome de “objeto
persecutório”. Como o objeto persecutório está sempre despedaçado em múltiplos
fragmentos aterrorizantes, mais correto seria chamá-lo no plural: “objetos
persecutórios”. Esses objetos persecutórios são incorporados canibalisticamente
(introjetados), engolidos, para se livrar dos inimigos. Todavia esse é um tiro que sai pela
culatra. Porque, tendo engolido os inimigos, eles agora ameaçam o sujeito por “dentro”.
O seio gratificador, que nutre e protege o ego, é amado e sentido inteiro, completo, é
considerado o “seio bom”. Esse seio bom, sendo introjetado, age como um ponto
nuclear dentro do ego. Torna-se uma fonte de integração e coesão que contrabalança a
clivagem e a fragmentação e dispersão do ego e dos objetos. O seio bom pode
contrapor-se à dispersão de ameaças do seio mau. Contudo, não é adversário à altura
do “seio persecutório” (multidão). O seio bom é abalado por angústias e frustrações
internas, que perturbam a clivagem entre bom e mau. Isso significa que o seio bom é
derrotado, feito também em pedaços. É nesse momento que, para sobreviver, o bebê
precisa invocar outro protetor ainda mais poderoso. O que quer dizer que ele precisa
inventar outros mecanismos de defesa, além dos três básicos já vistos (clivagem,
introjeção e projeção).

Mecanismos complementares da posição esquizo-paranóide

São seis os mecanismos complementares, e sempre se ligam a clivagem, introjeção e


projeção: negação, idealização, onipotência, abafamento das emoções (stifling of
emotions), identificação projetiva e identificação introjetiva.
O pobre ego, que foi deixado a braços com uma multidão de objetos persecutórios, não
contando mais com o objeto bom para protegê-lo — porque este foi fragmentado por
excessiva angústia e frustração —, recorre em desespero ao mecanismo de
idealização, criando uma espécie de superobjeto — o “seio idealizado”. Este seio
idealizado é construído à base de outros mecanismos. A partir do seio bom, realiza-se
uma clivagem: o seio, bom fica purificado dos elementos perecíveis; através da
onipotência, atribui-se-lhe a indestrutibilidade, a onisciência etc. Este seio idealizado
consegue acalmar o ego do medo do aniquilamento e também satisfazer sua
voracidade. Contudo, esses mecanismos não se processam no vazio. Ocorrem na
mente humana, a mente do bebê, no caso. Isto é, se o auxílio externo ao bebê não vem
logo, a fome, o frio, a dor, frustrações e angústias diversas perturbam sua relativa
segurança e bem-estar. Lança mão então de mecanismos de negação: nega as
frustrações, a dor, o temor, nega a ameaça do objeto persecutório. E mais, cria através
da onipotência um universo interno idealizado, uma espécie de paraíso, protegido e
mantido por uma espécie de deus, o objeto idealizado, e, nesta realização alucinatória
de desejo de um bem eterno, corta as ligações com a realidade exterior. Esse
distanciamento da realidade externa, dos objetos concretos que o bebê ama e de que
necessita, é facilitada pelo abafamento das emoções. É negada a angústia, a
frustração, mas também é perdido o contato com as emoções de amor, interesse,
provocando uma perturbação no contato com a realidade psíquica e com a realidade
externa.
A negação onipotente do objeto persecutório equivale à sua destruição. Porém, a!ém da
negação do objeto perseguidor, é negada também uma relação com esse objeto. E,
como a relação se faz entre o objeto e o ego, isso equivale também à destruição da
parte ao ego ligada ao objeto negado.

Conceito de identificação projetiva e Introjetiva

Dada a importância que o conceito de identificação projetiva foi adquirindo na obra de


Melanie Klein e seus seguidores, convém abordá-lo com destaque. Trata-se de um
mecanismo de defesa que se forja na posição esquizo-paranóide. Representa,
principalmente, um tipo particular de relação de objeto. É uma relação em que o objeto,
enquanto tal, desaparece, para dar lugar a um objeto que é o prolongamento do ego,
isto é, uma identificação. Nesse sentido, trata-se de uma relação narcisista de objeto,
ou seja, o ego se relaciona com uma parte que parece estar fora, no “objeto”, mas, na
verdade, inconscientemente, é uma parte de si mesmo.
A primeira descrição que faz M. Klein da identificação projetiva comunica a idéia de que
se trata de uma relação agressiva. Todavia, logo a seguir, esclarece que se trata
também de uma relação amistosa. Na verdade, a identificação projetiva é o protótipo da
relação de objetos. Sem ela não haveria relações posteriores mais diferenciadas.
Vamos por partes, para acompanhar a descrição que Klein faz do conceito de
identificação projetiva em “Notas sobre alguns mecanismos esquizóides” (1946).
Falando dos ataques ao peito materno, Klein deduz que eles se estendem
posteriormente ao interior do corpo da mãe, mesmo antes de ela ser concebida como
pessoa inteira. (Na posição esquizo-paranóide as relações são sempre com objetos
parciais. Em conseqüência, o ego também está sempre dividido em “bom”, “mau”,
“fragmentado” e “idealizado”, por identificação com os objetos parciais correspondentes.
A esses objetos parciais correspondem também objetos internos que representam as
primeiras figuras superegóicas.)
Os ataques ao corpo da mãe seguem duas linhas formais, uma sadooral, com fantasias
de engolir, esvaziar, cortar, roubar os conteúdos maternos (que serão vistas em relação
com a introjeção), e outra linha de ataque sob forma de fantasias de ataque anal e
uretral. Citando M. Klein: “A outra linha de ataque deriva de impulsos anais e uretrais e
implica a expulsão de substâncias perigosas (excrementos) para fora do sujeito (self) e
para dentro da mãe. Junto com esses excrementos danosos, expelidos com ódio,
pedaços do ego são também projetados na mãe, ou, como preferiria dizer, dentro da
mãe”. (Aqui Klein introduz uma nota para esclarecer que “projetar dentro de outra
pessoa” parece-lhe a única forma de transmitir um processo inconsciente em termos da
fantasia do bebê que ainda não pensa por palavras.) Continuando com a citação:
“Esses excrementos e partes más do sujeito têm o intuito não só de atacar mas
também de tomar posse e controlar o objeto. No momento em que a mãe contém as
partes más do sujeito, ela não é mais sentida como um indivíduo separado, mas é
sentida como o sujeito mau (bad self). Muito do ódio contra partes do sujeito é agora
dirigido contra a mãe. Isso leva a uma forma particular de identificação que estabelece
o protótipo de uma relação agressiva de objeto. Eu sugiro para esses processos o
termo ‘identificação projetiva’” (Klein, 1975, p. 8).
Como foi mencionado, não só as partes más, mas também as partes boas do sujeito
são partidas e projetadas no objeto. Isso da origem a relações de amor, confiança, o
que forma a base de relações positivas e construtivas, primeiro com o seio, depois com
outros objetos e finalmente com pessoas. Se há excesso de projeção de partes
agressivas, o sujeito se enfraquece em virtude do significado de vigor, potência etc.,
que se associa à agressividade. Se são excessivamente projetadas partes boas do
sujeito e bons sentimentos, há empobrecimento do ego. Isso será visto com mais
detalhes quando for abordada a patologia da posição esquizo-paranóide.
Apenas para fornecer um esclarecimento adicional do significado do conceito de
identificação projetiva, citarei um exemplo clínico simples de minha experiência. Uma
analisanda já em atendimento durante alguns meses encontrou-se, por acaso, em
minha sala de espera, com sua antiga professora, que lhe disse também ser minha
cliente. Na sessão que se seguiu, a analisanda, que evitava deitar-se no divã, alegou
que não podia mesmo fazer uso do divã porque aquela ex- professora encontrada na
sala de espera era “ensebada e suja”. Aqui é evidente o uso da identificação projetiva,
pois, mesmo sabendo que sua ex-professora era minha cliente, não podia saber que
ela fazia uso do divã. Assim, o divã — que era um prolongamento do analista — estava
“ensebado e sujo” como efeito de uma percepção alucinatória, que sempre acompanha
a identificação projetiva (visto que se trata de uma percepção de algo que, por
definição, não existe no objeto). Foi possível, na seqüência da sessão, pelas
associações que se seguiram, entender os motivos da identificação projetiva. Na
fantasia inconsciente da analisanda a ex-professora e eu tínhamos ali no divã relações
sexuais. Por ciume e inveja, a analisanda projetara sua “ensebação e sujeira” no divã, e
assim uma relação tão repugnante não poderia mais despertar-lhe sentimentos de
inveja e ciúme. Quando lhe assinalei esse fato à analisanda associou que sempre
achou sua mãe “suja”, porque passava às vezes três dias sem tormar banho. E aqui
temos o suporte genético da transferência, porque, por analogia, o analista e a ex-
professora rolando ensebados e sujos no divã representavam suas fantasias da cena
primária, com pai e mãe copulando, invejados, provocadores de ciúmes, sujados pela
urina e fezes da filha excluída.
Quanto à identificação introjetiva, pode-se considerar que o bebê, desde o começo da
vida, introjeta o seio desejado, quer mamando, quer na fantasia de incorporá-lo.
Desejando as qualidades boas do seio o bebê procura identificar-se com ele. Ao
mesmo tempo que a introjeção é uma função do ego, é ainda uma importante base de
sua formação. Também o superego se forma por introjeção. À medida que a criança se
desenvolve, outros objetos vão sendo incluídos, posteriormente os pais, na primitiva
relação edipiana.
Como resolver a questão do destino de um objeto introjetado? Isto é, como saber se o
introjetado vai participar do ego ou do superego? Aqui Paula Heimann, na coletânea
publicada em 1952 — Progressos em Psicanálise —, expõe no artigo “Certas funções
da introjeção e projeção na primitiva infância” algumas idéias norteadoras. Dependendo
da situação emocional que prevalece na introjeção será possível diferenciar entre
introjeção simplesmente e identificação introjetiva. Assim, segundo Heimann, se o
objeto é introjetado principalmente com a finalidade de identificação, ele torna-se
introjetado no ego e com este é identificado (identificação introjetiva). Exemplos disso
são situações em que o menino procura vestir-se como o pai, andar como ele, adquirir
suas habilidades. Por outro lado, se o objeto é introjetado numa situação de conflito
emocional, é mais provável que ele seja introjetado no superego. Embora todos os
objetos introjetados que não são utilizados para identificação introjetiva se tornem
superegóicos, Heimann esclarece que os objetos internalizados não têm apenas função
crítica e punitiva, mas também são protetores, amistosos e estimuladores da vida e da
criatividade.

Passagem da posição esquizo-paranóide para a posição depressiva

No trabalho de 1946, “Notas sobre alguns mecanismos esquizóides”, Melanie Klein


situa os primórdios da posição depressiva ao redor do sexto mês de vida do bebê. No
trabalho de 1952, “Algumas conclusões teóricas relacionadas à vida emocional do
bebê”, situa esses primórdios no segundo quarto do primeiro ano, o que, traduzido de
forma menos rebuscada, significa que a posição depressiva estaria iniciando-se ao
redor do quarto ao sexto mês de vida do bebê. Essas alterações de fase devem-se a
que Klein apura ainda mais sua observação direta de bebês (vide seu trabalho
“Observando o comportamento de jovens bebês”, publicado na coletânea de 1952
Progressos em Psicanálise), além de contar com a colaboração de outros colegas
trabalhando no mesmo assunto. O que importa notar é que a transição da posição
esquizo-paranóide para a depressiva não se faz de um dia para o outro. E uma
transformação gradual, que está na dependência da tolerância do ego à integração dos
objetos parciais bons e maus (e das partes do ego a estas relacionadas), das angústias
e ambivalência que o pressionam.
Para que se efetue um bom início e satisfatória ultrapassagem da posição depressiva
infantil, a precondição é que haja uma clivagem bem nítida entre objeto bom e mau e a
correspondente parte do ego que com estas se relaciona. Se a clivagem não é bem
nítida, o que quer dizer que as partes boas e más não estão bem separadas, mas se
apresentam confusas, a integração do objeto total fica prejudicada. Tais efeitos
confusionais se devem à interferência de excessiva inveja e voracidade na relação
objetal parcial. (Essa perturbação da clivagem, produzindo efeitos patológicos, foi
desenvolvida por Klein no trabalho de 1957, sobre “Inveja e gratidão”.)
Mas, se a clivagem é “limpa”, e as partes boa e má do objeto parcial encaixam-se
razoavelmente, processa-se a integração do objeto completo. Ocorrem importantes
mudanças na relação de objeto. Os aspectos amados e odiados da mãe aproximam-se,
aumentando o medo da perda, instalam-se estados de luto e fortes sentimentos de
culpa (como já foi visto no capítulo anterior). Os sentimentos depressivos aumentam a
integração do ego. Isso porque não só o ego, pela maturação natural, tem
incrementada sua inerente capacidade de síntese, aumentando aproximação entre
situações internas e externas, mas os próprios sentimentos depressivos levam a uma
maior compreensão da realidade psíquica, em comparação com a realidade exterior. A
identificação da criança com o objeto atacado (mãe como pessoa) reforça os impulsos
de reparação e inibe a agressão. Quando a angústia depresiva e a ambivalência são
insuportáveis, o bebê, como foi visto no capítulo anterior, recorre a defesas maníacas
(negação, idealização, controle do objeto externo e interno, clivagem, semelhantes à
posição esquizo-paranóide, porém mitigados, porque o ego está mais integrado e tem
mais consideração pelo objeto). O controle dos objetos internos e externos tem por fim
diminuir a angústia depressiva, porque, evitando frustração, ocorre menor
agressividade e, portanto, o objeto amado fica menos ameaçado.
A clivagem na posição depressiva processa-se de forma diferente que na esquizo-
paranóide. Em vez de objetos parciais, a divisão se faz entre objetos completos. Os
objetos ficam separados entre objeto vivo, isto é, intacto, e objeto moribundo, ou morto,
isto é, estragado. Desse modo a clivagem serve como defesa contra a angústia
depressiva de perda do objeto.
Vivenciando continuamente a realidade psíquica, implicada na elaboração da posição
depressiva, há uma comparação entre os pais internos e externos que leva à melhor
compreensão das semelhanças e diferenças. E assim a figura dos pais, que estava
cindida entre aterrorizante e idealizada, vai ficando cada vez mais próxima da realidade.
Nessa aproximação progressiva, à medida que os maus aspectos dos objetos vão
sendo atenuados pelos aspectos bons, também a assimilação do superego pelo ego
vai-se incrementando. Aumentam as tendências para reparação, como forma de lidar
com a culpa. As sublimações e reparações (substituindo os mecanismos esquizóides)
se tornam os meios preponderantes para evitar ou diminuir as angústias depressivas.
A onipotência diminui à medida que o bebê ganha mais confiança e acredita mais em
seu poder de reparação. Surge uma nova atitude com relação à frustração. Na posição
esquizo-paranóide, o objeto persecutório era responsabilizado por toda frustração e
desconforto interno ou externo. Com o aumento do senso de realidade propiciado pela
maior integração do ego na posição depressiva, é maior a possibilidade de distinguir a
frustração proveniente da fantasia, daquela causada pelos objetos externos. Assim, o
ódio e a agressão podem ser relacionados mais diretamente com sua causa verdadeira.
Se a mãe está realmente demorando mais para cuidá-lo, é mais lícito agredi-la, e lhe
causa menor culpa. Do mesmo modo, pode sublimar sua agressão, por exemplo,
morder um brinquedo de borracha, em vez de morder a mãe (na fantasia) e assim
tornar sua agressividade mais ego-sintônica (isto é, mais tolerada e compreensível para
o ego).
A propósito da angústia depressiva, Klein faz uma correção na nota 1 do trabalho dado
à luz em 1952, “Algumas conclusões teóricas relativas à vida emocional do bebê”. Até
então, a partir de seu conceito de posição depressiva emitido em 1935, “Contribuição à
psicogênese dos estados maníaco-depressivos”, a culpa, a ambivalência e a depressão
só podiam ser sentidos em relação ao objeto total. Todavia, observações mais recentes
levaram-na a deduzir que, por curtos períodos, durante a posição esquizo-paranóide, as
partes amada e odiada do peito se integravam, provocando no bebê angústia
depressiva, culpa e impulsos de reparação. Ou seja, seria possível encontrar
rudimentos da angústia depressiva na posição esquizo-paranóide, assim como
sentimentos de ambivalência por um objeto parcial. Porém, fora destes momentos
fugazes de integração, a posição esquizo-paranóide é não-ambivalente. Não porque
não existam simultaneamente amor e ódio pelo objeto, mas porque essas relações,
sendo separadas pela clivagem, não se encontram uma com a outra, na mente do
bebê.
Depois do reconhecimento da mãe como pessoa, o pai também começa a existir como
indivíduo no universo do bebê. Sentimentos de amor e ódio são também dirigidos para
ele. Isso leva à distribuição da dependência, o que tem enorme importância na
elaboração da posição depressiva. Visto que o bebê não depende mais de um único
objeto, sua angústia de perder a mãe torna-se menos dilacerante. Esse relativo alívio
favorece a superação da posição depressiva. Todavia, novos conflitos surgem ligados a
essas duas pessoas, e posteriormente aos irmãos e demais integrantes do universo da
criança. Sua elaboração é parte das modificações da angústia que se estende desde o
aleitamento até os primeiros anos da infância.
A neurose infantil pode ser entendida como um processo para ligar, elaborar e modificar
as angústias psicóticas oriundas das posições esquizo-paranóide e depressiva.
Geralmente a neurose infantil começa no primeiro ano de vida e termina com a latência
(quinto ano). No primeiro ano, podem-se notar as angústias persecutórias e
depressivas por detrás das fobias primitivas. No segundo ano, as tendências
obsessivas passam a primeiro plano: surgem rituais, a criança solicita
interminavelmente a repetição das mesmas histórias ou se entrega a brinquedos
repetitivos. Os hábitos de limpeza servem para atenuar a angústia relacionada com as
fezes perigosas e os maus objetos internos. O manejo dos excrementos reais desmente
os danos provocados pelas fezes e urina na fantasia. Os mecanismos obsessivos
ajudam a evoluçã do ego. Quando excessivos, indicam que o ego não conseguiu lidar
eficazmente com as angústias psicóticas (persecutórias e depressivas) e estaria se
estruturando severa neurose obsessiva na criança.
Outra mudança fundamental nas defesas é verificada quando a libido genital se
fortalece. O ego se torna mais integrado e consegue maior síntese entre as partes
inconscientes do próprios ego e do superego. Essa melhor sintonia entre ego e
superego tem um importante resultado: permite à repressão funcionar como defesa
principal. Essa importância pode ser avaliada pelo seguinte efeito: a repressão apenas
produz uma divisão entre aspectos conscientes e inconscientes da mente. Ou seja, não
expõe o sujeito a desintegrações de partes de sua mente, causadas por mecanismos
mais primitivos como dissociação em pedaços, expulsão de partes, negação de
qualidades, onipotente distanciamento da realidade etc. Se os mecanismos esquizóides
não forem superados, haverá rígida barreira entre aspectos conscientes e
inconscientes, provocados por repressão excessiva. Se, porém, as defesas primitivas
forem superadas suficientemente, a repressão será mais branda, a distância entre
consciente e inconsciente será menos ampla, permitindo uma porosidade entre os
sistemas, facultando aos impulsos e seus derivados pré-conscientes reaparecerem
muitas vezes à percepção consciente, facilitando ao ego a tarefa de selecioná-los ou
rejeitá-los. Isso representa um passo decisivo no conhecimento da realidade psíquica,
na sua relação com a realidade externa e no domínio racional dos mundos exterior e
subjetivo.

A patologia da posição esquizo-paranóide

Como foi visto no início deste capítulo, na evolução normal do bebê as posições
esquizo-paranóide e depressiva são consideradas etapas do desenvolvimento. A
clivagem é o passo inicial para desenvolver a capacidade de diferenciação entre bom e
mau, e a identificação projetiva a primeira forma de relação com o mundo exterior. Mas
quando a angústia persecutória é excessiva, leva a resultados que preparam o caminho
para os mais graves distúrbios mentais. Se o bebê se vê a braços com angústias e
frustrações intoleráveis, não poderá elaborar a posição esquizo-paranóide, e, menos
ainda, elaborar a posição depressiva. Esta falha na elaboração da posição depressiva
fortalece regressivamente os temores persecutórios e fundamenta os pontos de fixação
das severas psicoses do grupo das esquizofrenias. Os efeitos de distúrbios surgidos na
elaboração da posição depressiva serão posteriormente perturbações mentais de tipo
maníaco-depressivo.

Nos distúrbios menos severos do desenvolvimento, as dificuldades patológicas na


elaboração das posições esquizo-paranóide e depressiva influirão na escolha da
neurose. Apesar do recente delineamento da posição esquizo-paranóide, Klein continua
sustentando que a posição depressiva tem um papel central na evolução primitiva. Com
a introjeção do objeto como um todo, alteram-se as relações de objeto, modificando
profundamente a vida intelectual e emocional do bebê. Assim, a posição depressiva
converte-se na encruzilhada da escolha entre neurose ou psicose. Isso explica por que
o bebê já perturbado mentalmente (por não ter superado adequadamente a posição
esquizo-paranóide) não está em condições de enfrentar as responsabilidades de culpa
e reparação do objeto total, que são a tarefa da posição depressiva. E, supondo que
tenha superado regularmente as vicissitudes da posição esquizo-paranoíde, certas
insuficiências constitucionais ou contratempos ambientais podem impedi-lo de elaborar
a posição depressiva. Isto é, realizar aquilo que Klein chamou de construir um bom
objeto interno solidamente estabelecido dentro do ego (como, foi visto no final do
capítulo anterior).
O psicótico regride a fases do desenvolvimento que já possuíam aspectos patológicos
nas já descritas etapas da evolução do bebê. Na etapa esquizo-paranóide da evolução,
se a clivagem e a identificação projetiva se tornam excessivas como forma de se
defender da desintegração e aniquilamento totais, o ego se torna enfraquecido. Pois o
ego, ao se livrar da destrutividade, despoja-se dos componentes da personalidade que
estão intimamente ligados a sentimentos de poder, potência, força, conhecimento etc.
Sem contar que também os bons excrementos são expelidos, e a pessoa que os
recebe passa a representar as boas partes do sujeito. Sem seus componentes positivos
o sujeito fica sem elementos para desenvolver boas relações de objeto e integrar o ego.
A exagerada expulsão de partes boas faz com que a mãe fique identificada com o
objeto ideal do bebê. Na vida posterior, por transferência, o sujeito fica
superdependente das pessoas com quem identifica esse objeto ideal.
A identificação introjetiva é outra forma de obter desenvolvimento normal por
incorporação do bom objeto, que se torna ponto focal no ego. Em estados de frustração
e angústia insuportáveis, há tendência para fugir para o objeto interno idealizado,
visando escapar do perseguidor. O excesso de recurso a esse mecanismo de fuga para
o objeto interno idealizado perturba as relações de objeto totais. O ego torna-se
exageradamente dependente e subserviente desse objeto internalizado: o ego se torna
uma sinples casca para conter o precioso objeto ideal. Isso dificulta a assimilação
desse objeto maravilhoso pelo ego (Heimann, 1952), com a conseqüência de o ego
sentir-se sem vida e valor próprios. (Algo semelhante ocorre quando o sujeito se
apaixona e a amada ocupa o lugar do objeto ideal interno.)
No bebê, estados de desintegração repetidos e prolongados levam a desenvolvimento
esquizóide, já notados nos primeiros meses. Por exemplo: o bebê mama sem
satisfação, não se liga à mãe; ou mama excessivamente, mas sem se ligar as pessoas
— seu interesse voraz só se centra no alimento. Recusa-se a brincar, não aceita
substitutos materno. Se estas manifestações não forem transitórias, mas perdurarem
longo tempo, indicam distúrbio na elaboração da posição esquizo-paranóide e,
posteriormente, da posição depressiva. (Para maiores informações veja de Klein, 1952:
“Observando o comportamento de tenros bebês” — “On observing the behaviour of
young infants”.) Estados de desintegração são superados por amor e compreensão
maternos. Excesso de mecanismos esquizóides e paranóides leva à deficiência mental.

Por outro lado, excesso de projeção de um mundo interno muito hostil acarreta
introjeção de mundo externo também muito hostil (por identificação com o projetado).
Inversamente, a introjeção de um mundo externo hostil (por exemplo, mãe realmente
má) leva à projeção de mundo interno também hostil sobre o exterior, formando uma
bola de neve de relações cada vez mais destrutivas. Se a projeção é muito intensa,
produz a fantasia de uma entrada à força no objeto. O inverso passa então a ser
temido: a introjeção é retribuída como a fantasia de uma invasão do exterior para o
interior do sujeito. Isso é inferido nos delfrios de influência, em que o sujeito vive a
experiência de que sua mente e seu corpo são controlados pelos outros. Esse temor de
ser invadido desde fora pode levar a severo distúrbio na introjeção de bons objetos,
impedindo a utilização de funções do ego (percepção, atenção, memória, raciocínio),
bloqueando a evolução da sexualidade e provocando retraimento no contato com o
mundo externo. Assim, um excesso de clivagem e projeção enfraquece o ego por
esvaziamento. O ego enfraquecido torna-se incapaz de assimilar o objeto interno —
que se torna idealizado, engrandecido, inatingível — e fica subserviente. A
incapacidade de incorporar aspectos do ambiente por temor de introjeção invasiva
impede o ego de recuperar o que foi projetado no exterior. Essas deficiências nas
relações objetais constituem-se na raiz do desenvolvimento esquizóide.
As relações objetais esquizóides são causadas por clivagens violentas e projeções
excessivas, tornando o outro um perseguidor, para o qual é preciso sempre ficar atento,
aplacar e nunca confiar. A pessoa esquizóide inevitavelmente projeta uma parte,má de
seu ego em outra pessoa. Se se trata de uma pessoa amada, essa projeção gera culpa
inconsciente. A culpa projetada não desaparece; é sentida como responsabilidade
compulsiva pela pessoa que foi objeto da projeção (representa partes agressivas do
ego). Visto que também as partes boas do sujeito são projetadas, as pessoas se tornam
o ego ideal do sujeito. isso quer dizer que, devido a freqüente e intenso uso de
projeções e introjeções, as relações de objeto ficam alteradas. As pessoas são
percebidas distorcidamente, como se fossem prolongamentos do sujeito. Para Melanie
Klein, é esse o significado de “relações narcísicas de objeto”. Nas relações narcísicas
há um vínculo com o exterior, embora prejudicado pelas identificações projetivas. Klein
descreve também “estados narcísicos”. Nestes, não há vínculo com o exterior. O sujeito
se volta para o objeto interno idealizado, nega a perseguição e a frustração, tornando-
se autista (isto é, corta o contato com o ambiente externo).
As relações narcísicas mostram nítidos traços obsessivos. Essa obsessividade no trato
com o outro explica-se pela necessidade de controlar nele partes do sujeito que foram
projetadas e identificadas no parceiro. É como se o sujeito tentasse controlar no outro
as partes más (ou boas) de si mesmo. Essa forma de ligação esquizóide, baseada na
identificação projetiva excessiva, leva a vínculos compulsivos com determinadas
pessoas. ou então, como forma de reação, a retraimento exagerado do contato humano
para se preservar de intrusão destrutiva ou retaliação.
Outra característica das relações objetais esquizóides, descritas por Klein, é a
acentuada artificialidade e falta de espontaneidade. São conseqüência de
esvaziamento afetivo e rígido controle da expressividade. Junto com essas inibições há
severo distúrbio no sentimento de si mesmo, a própria pessoa se sente artificial, sem
vida própria. No extremo surgiriam sentimentos de despersonalização. A falta de
angústia em pacientes esquizóides é apenas aparente. Ela se deve à ação dos
mecanismos esquizóides que dispersam ou abafam as emoções. Mas as emoções
permanecem presentes em estado latente. (Depois de trabalhosa análise às vezes são
recuperáveis.) Na verdade, o sentimento de estar desintegrado, incapaz de se
preocupar em perder os objetos, ou incapaz de experimentar emoções, é de fato
equivalente à angústia. Se tudo parece morto, isso é sinônimo de angústia grave.
Seria útil, para completar a visão da psicopatologia da posição esquizo-paranóide,
trazer alguns acréscimos feitos por discípulos mais próximos de Melanie Klein.
Trabalhando com psicóticos graves, eles aplicaram as teorias de Klein com seu
conhecimento e aprovação. Entre estes destacam-se H. Rosenfeld (1965), cujos
trabalhos serão referidos nó próximo capítulo, e W. R. Bion (1967). Ambos fizeram
contribuições importantes à psicopatologia da esquizofrenia.

Bion estuda as alterações dos processos de clivagem e identificação projetiva


patológicos. É importante lembrar que no processo normal da posição esquizo-
paranóide a criança projeta parte de si e dos objetos internos no seio e no interior da
mãe. Estas partes são projetadas quase inalteradas, e, quando reintrojetadas no ego,
permitem sua reintegração. Isso porque a clivagem foi feita segundo nítidas linhas de
demarcação psicológica e fisiológica, permitindo recuperação relativamente intacta do
“bom” e do “mau” órgãos da percepção (visão ou audição) e impulsos sexuais (eróticos
ou sádicos).
Todavia, quando a angústia, a destrutividade são intensas, a identificação projetiva
sofre perturbações: as partes projetadas são despedaçadas e desintegradas em
fragmentos minúsculos. Estas, projetadas no objeto, por sua vez, o desintegram em
fragmentos minúsculos. Segundo Bion (1956), há um duplo objetivo nessa identificação
projetiva violenta:
1. No desenvolvimento patológico do bebê, a realidade é vivenciada principalmente
como perseguição. Por conseguinte, qualquer experiência da realidade, externa ou
interna, é acompanhada de ódio violento. Para se livrar das percepções, todo o
aparelho perceptivo é atacado e com isso o ego fica despedaçado, pois usando a
clivagem com força máxima consegue a divisão em fragmentos (spliting intobits).
2. O objeto responsável pela percepção também é odiado. A projeção visa destruir esse
clemento da realidade. Isso pode ser observado em miniatura e de forma transitória em
certos momentos da ludoterapia. Por exemplo: o analista diz algo que a criança não
suporta ouvir; ela tapa os ouvidos com as mãos (destrói a própria percepção).
Contudo, se o analista continua falando, e a criança, apesar do ouvido tapado, continua
ouvindo, ela começa á gritar simultaneamente com a fala do analista (destrói o objeto
fonte de sofrimento).
Quando a inveja é constitucionalmente intensa, a percepção de um objeto ideal é tão
dolorosa quanto a experiência de um objeto mau, visto que o sentimento de inveja, na
intensidade provocada pelo objeto ideal, torna-se insuportável. Assim, esse tipo de
identificação projetiva patológico pode se dirigir tanto ao objeto persecutório quanto ao
objeto idealizado. Considerando que uma das funções do objeto ideal é proteger o ego
do objeto persecutório, se também o objeto ideal fica estragado e persecutório, pode-se
imaginar a angústia que assalta o bebê psicótico. Porém, como resultado desse
processo de fragmentação, não existe clivagem nítida entre objeto ideal e objetos
maus. O objeto é percebido como estando despedaçado em minúsculos fragmentos,
cada qual contendo partes do ego e do objeto indiferenciados, reduzidos a pedacinhos
violentos, denominados por Bion (1956) “objetos bizarros”. Para dar uma idéia do
estranho mundo do esquizofrênico, Bion cita um exemplo do paciente que tinha
projetado uma parte de sua visão sobre um toca-discos. Quando o toca-discos era
acionado, em vez de ouvir sons, o paciente tinha visões.
O ego fica muito prejudicado por esse processo desintegrativo patológico. Cada
tentativa de se livrar da dor das percepções leva de fato a um aumento das percepções
dolorosas pela geração persecutória dos objetos bizarros acrescido da mutilação do
aparelho perceptivo. Cria-se um círculo vicioso, em que a dor da realidade leva a
defesas do tipo da identificação projetiva patológica. E esta faz com que a realidade se
torne crescentemente persecutória e dolorosa.
Outra forma de ataque à realidade através da identificação projetiva, também descrito
por Bion (1959), e característico da posição esquizo-paranóide, são os “ataques ao
vínculo”. Qualquer órgão ou função orgânica percebido pelo bebê como ligando dois
objetos é violentamente atacado pela identificação projetiva patológica. Por exemplo, á
própria boca da criança e o bico do seio são destruídos, visto constituírem um vínculo
entre o bebê e o peito. São atacadas e cortadas as ligações entre o sujeito e o objeto,
interno ou externo. Nisso se incluem as várias partes da pessoa, como as ligações
entre as funções do sentir e pensar. As ligações entre outros objetos (edipianos)
tornam-se por sua vez alvo de potentes ataques invejosos. Pois, se o bebê se sente ele
próprio incapaz de se ligar, as ligações alheias promovem reações invejosas intensas.
É claro que, quanto mais ataca as ligações entre os objetos que introjeta, menos capaz
se torna de se ligar, e se converte num ser ainda mais invejoso. As ligações entre os
objetos são imediatamente sexualizadas. Analistas trabalhando com esquizofrênicos
admitem que a criança esquizóide tem prematuras experiências e fantasias genitais,
que por sua vez acarretam violenta inveja e ciúme sexual prematuros. Nesses casos, o
complexo de Édipo permanece no nível oral da evolução da libido, aí se fixa, e, em vez
de se caracterizar pelo ciúme da dupla parental, como habitualmente, salienta-se pela
excessiva inveja da cena primária.
Na opinião de Hanna Segal (1964), a criança esquizóide vive num mundo muito
diferente da criança normal. Seu aparelho perceptivo é prejudicado, sente-se rodeada
de objetos hostis desintegrados, suas ligações com a realidade estão rompidas ou são
muito dolorosas. Do mesmo modo, está cortada sua capacidade de se ligar a outros ou
consigo mesma (integrar-se). Procurando sobreviver em tais condições, o bebê tem de
preservar uma parte do ego capaz de alimentar-se e estabelecer um objeto
suficientemente bom que lhe permita manter, além da alimentação, outros processos
introjetivos sem os quais o aprendizado não se realiza. Defronta-se com a quase
impossível tarefa de manter fora um objeto ideal protegido dos devastadores efeitos de
sua identificação projetiva, acionada por sua intolerância à frustração e excessiva
inveja. Se o bebê o consegue, ele sobrevive, mas carrega em sua estrutura defeitos
(pontos de fixação) que provocarão regressão a estados psicóticos quando o sofrimento
provocado pela adaptação à realidade ultrapassar seu limiar de tolerância.

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