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O REAL E SUA IDEALIZAÇÃO: O Desejo

A capacidade de estabelecer um acordo com a realidade é fundamental


para o desempenho da psicanálise intuitiva, diferente do que ocorre com a
psicanálise que seja fundamentada na dedução. A realidade que, a princípio se
mostra dura e árdua, a partir da possibilidade de firmação do acordo, torna-se
então a maior aliada do psicanalista, onde este não deve fazer mais que servir
de instrumento na manifestação da realidade. Este acordo deve ser
estabelecido através do vínculo amoroso com a verdade. Num plano
esquemático poderíamos propor que: a) primeiramente, a esquiva da realidade
deve predominar na vida mental, onde as fantasias sobressaem, b) a partir do
desenvolvimento da maturidade emocional, o sujeito percebe a necessidade de
reconhecimento da realidade, por mais que o faça a contra gosto, por perceber
que não existe escolha, c) quando, por conta de um bom desenvolvimento da
maturidade emocional-afetiva, passa a ser possível estabelecer acordo com a
realidade, isso se dá através do desenvolvimento do amor à verdade.

Esse acordo tem o pressuposto do desenvolvimento da fé como


fundamento. Sendo a realidade inacessível aos órgãos dos sentidos, o ato de
fé é o recurso básico para o uso da intuição nesse acordo. Ato de fé que, por
mais que consista em uma atitude científica e não aquela fé religiosa
comumente usada, quando se pode contar com o vértice espiritual-religioso
livre de saturações dogmáticas, se ganha grande expansão.

Wilfred Bion (1897 -1979) orienta o psicanalista a renuncia da memória,


do desejo e da compreensão, sendo que, o ato de fé é o que deve sustentá-lo,
uma vez que ele lida com algo que ainda não aconteceu. “A disciplina que
proponho para o psicanalista, ou seja, evitação de memória e desejo, no
sentido que usei estes termos, aumenta sua capacidade de exercer "atos de
fé".” (Bion, 1970). Uma idéia que já havia sido anteriormente proposta por
Sigmund Freud (1856-1939), no que o próprio Bion reconhece. “Freud fala de
cegar-se artificialmente. Assinalei a importância da abstinência de memória e
desejo como um método para conseguir essa cegueira artificial.” (Bion, 1970).
Isso coincide com a proposta de Freud quanto à prática da atenção flutuante.
“Consiste simplesmente em não dirigir o reparo para algo específico e em
manter a mesma ‘atenção uniformemente suspensa’ (como a denominei) em
face de tudo o que se escuta.” (FREUD, 1912)

No estudo da obra de Bion fica clara a proposta das extensões científico-


filosófica, estético-artística e místico-religiosa no reconhecimento da realidade.
Aqui esses três vértices nos orientarão na tarefa de reflexão sobre o desejo.
Partindo do âmbito formal, no Dicionário Aurélio (2002) o conceito de desejo
está definido como ato ou efeito de desejar; vontade de possuir ou de gozar;
anseio, aspiração, cobiça ambição; vontade de comer ou beber; apetite sexual.
A origem da palavra vem do latim “desidiu”, que tem seu inverso em “considiu”.
A palavra “sidiu”, ou ainda “siderare” quer dizer astro, referente ao cosmos.
Enquanto “com” traz a referência de vínculo, junção, união, “des” traz a ideia de
separação. Logo, dentro do vértice científico-filosófico, estamos tratando da
situação onde pode se estar, ou não, ligados à configuração dos astros, na
totalidade do cosmos. Ou ainda, ponderar os astros, assim como os gregos
faziam por meio do oráculo, ou desprezar essa consulta. Estamos cogitando
sobre uma experiência de levar em conta o que nos mostra a configuração do
todo, ou não, focando no que se deseja edesconsiderando o que eles têm a
nos dizer.
Através da psicanálise, Sigmund Freud nos ensinou que a parte
inconsciente da mente é enormemente maior que a parte consciente e com
isso revela-se a verdade de que nossas escolhas não são conscientes, ou seja,
quando escolhemos, o fazemos sem saber por quê. Por mais que tentemos
justificar nossas escolhas, com formulações racionais, nunca conseguiremos
chegar ao real motivo, que sempre guardará uma causa desconhecida.
Segundo Arthur Schopenhauer (1788 —1860) quando escolhemos isso é
indiferente do que podemos ter como razão consciente. Sendo assim, a
escolha não revela ideias superficiais, mas “responde ao conjunto de nossos
sentimentos, de nossos pensamentos e de nossas aspirações as mais
íntimas…”. (Schopenhauer, 1818). O que verdadeiramente motiva o humano
está inacessívelao seu próprio conhecimento. Portanto, não somos livres, mas
sujeitos às necessidades, representadas na vontade de viver, ou simplesmente
Vontade, conceito central na filosofia de Schopenhauer. Em seu ensaio
SOBRE A LIBERDADE DA VONTADE, Schopenhauer propõe que a liberdade
de escolha está subordinada à necessidade básica e dela é escrava.
Schopenhauer propõem ainda, em seu texto LIVRE ARBÍTRIO, três modelos
de liberdade e as obstruções correspondentes, que guardam o elemento da
Vontade, em comum. A primeira liberdade é a do agir, nas causas físicas
quando não existem empecilhos materiais impedindo. Dize-se que o sujeito é
livre quando age segundo sua vontade. Porém, um sujeito pode desejar agir de
certa maneira, mas ser impedido de fazê-lo por conta da vontade que pode se
opor a isso. Nesse caso, deseja fazer algo, mas não tem vontade disso. A
segunda forma de liberdade é intelectual, ou do saber. Nesse modelo pode-se
saber e até mesmo pensar, mas apenas até o ponto em que esse saber possa
coincidir com a vontade. Quando a vontade entra em conflito com o
conhecimento, o saber cede. A terceira modalidade é a liberdade moral, ou
ainda, a liberdade do “desejar o que se quer”. Quer-se algo, mas isso não
coincide com a vontade.

No vértice místico-religioso, temos na cultura védica, a interrelação entre


o Dharma e o Karma. Enquanto o Karma (ação em sânscrito) configura-se nas
reações de nossas ações, praticadas a partir dos nossos desejos, ou ainda,
nos resultados das nossas escolhas, o Dharma (essência e dever) é o caminho
único, na realidade última. Sendo que, quanto mais nos afastamos do Dharma,
que são as leis naturais, ou a lei cósmica do todo, pior será o resultado no
Karma, que tem a função de nos ensinar pela experiência. Isso encontra um
correlato nas formulações cientificas presente na terceira lei de Newton. Isaac
Newton (1643 — 1727) afirma que para toda ação há sempre uma reação
oposta e de igual intensidade. No cristianismo, ainda no âmbito místico-
religioso, temos a correlação entre o livre arbítrio e a vontade de Deus. Livre
arbítrio que, apesar de ser um dom divino que nos é dado, não faz mais do que
nos mostrar que é através da vontade Dele que é possível alcançarmos uma
vida saudável.

No vértice estético-artístico, encontramos uma bela e enriquecedora


contribuição de Fernando Pessoa sobre a real liberdade de escolha do ser
humano, em seus TEXTOS FILOSÓFICOS. Quando trata do livre arbítrio,
Pessoa revela que essa experiência só pode ser aplicável no âmbito moral da
liberdade física. O poeta entende a escolha como sendo inconsciente, assim
como o faz Freud. “É, repito, um daqueles erros inconscientes que nós
cometemos; um daqueles falsos raciocínios nos quais tantas vezes e tão
naturalmente caímos.” (Pessoa, 1968). Nesse texto, Pessoa recorre à
Schopenhauer, lembrando o que o filosofo já havia mostrado, sobre a
configuração primitiva de liberdade, peculiar do campo físico, ou ainda
metafísico, na moral.

"Eu posso fazer o que quero." Disto não há dúvida, evidentemente. Até
agora eu não estou prisioneiro, nem paralítico, nem ligado por qualquer
obstáculo físico, eu sou livre: posso fazer o que quero. "Mas posso eu querer o
que quero e não querer nada mais?" Eis aqui a grande questão. Ora esta
inconsciência primitiva, para que lado pende mais: para o livre arbítrio ou para
o determinismo?”(Pessoa, 1968)

Com as colocações até aqui propostas fica claro que é possível desejar,
mas não pode ser possível escolher o que desejar. Assim, toda ação que seja
dependente de um desejo, não pode ser livre. Por mais que apresentemos
razões para justificar que somos livres, a razão está sempre subordinada à
vontade, que por sua vez é o principio universal da natureza, responsável pelos
movimentos e transformações no mundo. Além disso, o desejo do sujeito esta
sempre, direta ou indiretamente, impregnado do desejo do outro. Por mais que
se acredite que certa vontade venha puramente de si mesmo, ainda assim,
estará impreterivelmente carregada do desejo do outro.

De qualquer forma, o desejo gera um fluxo muito forte delibido (energia


psíquica) e carrega consigo muito dosconteúdos impensados e impregnados
de um narcisismo, que exige urgência na satisfação. Dessa forma, tende a
gerar ações prematuras, o que em psicanálise chamamos de atuação (acting
out).

A partir da instauração do desejo, como acontece na manifestação da


vontade, é criada certa tensão que indica um fim. Quem deseja, o faz em
relação a algo que, por sua vez, trará o fim do desejo, por meio de uma
satisfação. Esse fim está intimamente ligado a um pressuposto de carência. Ou
seja, o deseja, assim como a vontade é o resultado do sentimento de que falta
algo. Ao concordamos que o desejo é definido pela sensação de perda de algo,
podemos afirmar que por mais que o desejo seja uma expectativa de futuro, o
objeto de desejo se encontra no passado. Isso corresponde a dizermos que
quem deseja, o faz, em relação a repetição de algo que está no passado.

Isso pode tomar maior proporção na medida em que, a perda inclui certa
sensação de não ter cuidado bem daquilo que se perdeu, gerando um
sentimento de culpa. Consequentemente, o desejo guarda sempre uma cota de
passado, e isso é representado pela persistência da memória que nos leva a
repetir, repetir, repetir... Por mais que a vontade seja a principal tendência de
Eros, representado na pulsão de vida, o desejo se encontra impregnado das
forças da pulsão de morte, representada por Thânatos. Ele busca sempre o
retorno de algo perdido, numa tentativa de retornar à condição anterior, rumo
ao estado inanimado. Portanto, memória e desejo estão muito próximos, assim
como Freud propõe em sua célebre obra INTERPRETAÇÃO DOS SONHOS, a
ideia de que a memória é o desejo no passado. Ora, se concordarmos quanto a
isso, poderíamos formular que, se a memória é desejo do passado, então o
desejo é, também, uma espécie de memória do futuro. Em ATENÇÃO E
INTERPRETAÇÃO, Wilfred Bion escreve que não é possível fazer uma
diferenciação entre memória e desejo através de impressões sensoriais. “No
entanto, na prática psicanalítica é possível definir quando o paciente está
experimentando memória e quando está experimentando desejo: um é o tempo
verbal "passado"; o outro, "futuro".” (Bion, 1970)

Contudo, ainda assim, o desejo só persiste enquanto se está frustrado.


Pelo menos a priori, abrem-se dois caminhos no caso da frustração na
realização do desejo: o de enfrentar a tarefa do reconhecimento da realidade
no ato de renúncia, ou de evadir-se para a fantasia, até o ponto em que ela
possa ser sustentada. Questão fundamental no que se refere ao
desenvolvimento da maturidade emocional, no sentido de tolerar, respeitar, ser
sincero e assim, tornar-se capaz de amar o real ou ligar-se afetivamente ao
outro, em suas diferenças e limitações. O objeto de desejo nunca é real, isso
por que, nunca se deseja o que é real, mas anseia-se por aquilo que
esperávamos que fosse: o ideal. Mais uma vez a memória funde-se ao desejo.
Na realidade tendemos a nos desinteressarmos pelo objeto de desejo, assim
que o percebemos real. Isso porque ser real limita as qualidades e
possibilidades do objeto, o que não ocorre com o ideal, que é sempre perfeito
em nossas fantasias. Muitas vezes, levamos isso a tal consequência, nos
levando a desistir de certo objeto, por não atender nossas expectativas. É
como se disséssemos: “se não for como eu desejava não importa pra mim”. Ou
seja, a realidade não interessa o que interessava era o que se imaginava ser
essa realidade. Assim que o real se revela, é logo descartado. Ou ainda, por
outro lado, num ato de violência para com a realidade, podemos forçar o objeto
a se tornar aquilo que gostaríamos que fosse.

O que conduz essa linha de pensamento é o fato de que, na maioria do


tempo, somos impulsionados por paixões, ou seja, idealizamos (fantasia) algo
e consequentemente passamos a evitar seu extremo oposto. Melanie Klein
(1882 — 1960) chamou essa forma de funcionar de posição de
esquizoparanoide. “Em consequência, o seio materno, tanto quanto é
gratificador, também é amado é sentido como ‘bom’; na medida em que for
uma fonte de frustração, será odiado e sentido como ‘mau’.”. (Klein, 1952).
Com isso, deixamos de nos aproximar de pessoas e coisas porenxergá-las
muito maiores que nós e, por outro lado, evitamos outras por nos julgarmos
muito superiores a elas. Portanto, renunciar ao desejo parece ser a condição
básica para uma vida saudável. Na proposta de Freud quanto aos processos
edípicos é justamente arenúncia do desejo do filho pela mãe que o liberta para
seguir sua vida. Na capacidade de se iniciar as realizações no mundo. Isso
deve ser efetuado através da entrada da função paterna, o que adequará o
vínculo entrefilho e mãe, libertando-o do pesadelo incestuoso e do parricídio.

É a inexorável luta entre o que é real e o que se deseja que seja, ou até
mesmo, o que se teme que possa ser (já que o medo é filho do desejo). Um
processo de rigidez, nesse nível é inevitavelmente gerador do que poderíamos
denominarde pseudo-sabedoria, ou mesmo sabedoria psicótica, que só se
mantém através da imposição e resguardado pela arrogância. Porém, quando
existe a satisfação completa do desejo isso coincide com a morte num estado
de inércia. Na satisfação total nãoexiste mais reflexão, saturou-se a
experiência. Isso fica claro naobservação de um bebê que logo adormece,
depois de satisfeito com o seio da mãe.
BÍBLIA. Português. BÍBLIA ONLINE. Disponível em: Acesso em: 08 jan. 2017.
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________. (1917). UMA DIFICULDADE NO CAMINHO DA PSICANÁLISE, in Edição Eletrônica Brasileira das Obras
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KLEIN, M, (1952/1969). ALGUMAS CONCLUSÕES TEÓRICAS SÔBRE À VIDA EMOCIONAL DO BEBÊ. Em OS
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MARTINO, R. D. O LIVRO DO DESAPEGO - 1. ed. - São José do Rio Preto, SP: Vitrine Literária Editora, 2015.
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_______________ O Livre arbítrio. São Paulo: Edições e publicações Brasil, 1950/1836. (Tradução de Lohengrin de
Oliveira).

Prof. Renato Dias Martino – Psicoterapeuta e Escritor


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