Você está na página 1de 4

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO

ESCOLA DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

O papel do princípio de prazer e do princípio da realidade


na tentativa de levar a cabo o nosso propósito de felicidade
a partir da leitura de O mal estar na cultura, de Freud.

JESSICA FONTES BRITO


Matrícula 158.080

Guarulhos
2022
2

O papel do princípio de prazer e do princípio da realidade na tentativa de levar a


cabo o nosso propósito de felicidade a partir da leitura de O mal estar na cultura,
de Freud.

Tentaremos decifrar a busca humana pela felicidade à luz de dois conceitos da


teoria freudiana, a saber, o princípio de prazer e o princípio de realidade, conforme
aparecem em O mal estar na cultura (1930). Comecemos pensando sobre as fronteiras
do Eu com o que lhe é externo. Elas nos parecem tão bem delimitadas que é possível
haver uma certa autonomia do Eu perante o mundo exterior. No entanto, veremos que o
sentimento consolidado na vida adulta sobre esse mesmo Eu passa, segundo Freud, por
um desenvolvimento; ele não é o mesmo, agora, como havia sido desde o início, pois
este Eu possuía antes uma sensação de totalidade. Assim, o entendimento da existência
de um Eu e de um fora do Eu se dá no lactente na medida em que os objetos, os quais
são fontes do seu prazer, se afastam; a título de exemplo, tem-se o afastamento do seio
materno quando o bebê precisa ser introduzido aos alimentos sólidos.
Identifica-se, então, durante o desenvolvimento primário da criança um puro Eu-
de-prazer, a partir do qual podemos compreender que as ações do lactente objetivam
exclusivamente o próprio gozo. Aqui observa-se que este ser humano vive em um puro
desejar. Nesse puro Eu-de-prazer, o qual ainda detém a sensação de unidade com o
todo, apresenta-se o outro; consequentemente, a seu gozo contrapõe-se um fora, um
lugar além do eu que é desolador, ameaçador. Sendo assim, aprende-se gradativamente
a distinguir aquilo que pertence ao mundo interior daquilo que não pertence. Em
seguida, o princípio de realidade se irrompe. Segundo Freud, tal princípio dominará o
desenvolvimento da psiquê posterior. A partir dessa nova etapa, a tarefa de buscar a
satisfação imediata dos desejos cede modestamente o seu protagonismo a fim de evitar
o desprazer.
Ambos os princípios são norteadores do nosso aparelho psíquico, interagindo e
organizando a psiquê dos sujeitos. Freud supõe que o sentimento de totalidade, de
unidade, que em origem orientou o princípio de prazer, de algum modo, em paralelo ao
desenvolvimento do principio de realidade, ali sobreviveu. Para facilitar a nossa
compreensão da relação entre os dois princípios, Freud nos apresenta uma analogia. Ele
compara os fenômenos da vida anímica com os aspectos históricos e arqueológicos das
cidades antigas, como Roma. Nesta cidade, quando algumas edificações haviam sido
3

reconstruídas diversas vezes com o passar dos séculos, algo que pertencia à construção
anterior permaneceria no subsolo ou mesmo como elemento material nas novas
edificações; não sendo, portanto, eliminada por completo. Partindo dessa analogia,
entende-se que a conduta humana é composta por dois anseios:

Esse anseio tem dois lados, uma meta positiva e uma negativa; por um
lado, ele quer a ausência de dor e de desprazer, e, por outro, a
experiência de intensos sentimentos de prazer. No sentido mais
restrito da palavra, “felicidade” refere-se apenas à última meta.
(FREUD, 2021, p. 320, grifo do autor)

A conduta humana nos mostra que a intenção da vida – o propósito da mesma –


seria o de manter-se em um estado de felicidade. Porém, se os indivíduos vivessem em
um narcisismo ilimitado, almejando apenas a realização dos seus desejos individuais,
singulares e únicos, apartados de todo o resto, seria absurdamente impossível existir a
coletividade própria de uma sociedade. Para que ela seja constituída, é necessário que
cada um que se propõe a erguê-la renuncie em certa medida aos seus próprios prazeres,
uma vez que quanto se dedica cada um a se realizar no prazer individual, mais distante
dos objetivos coletivos da civilização (ou da cultura) estará o ser humano. Assim, viver
com o menor grau de angústia implicaria saber equilibrar as demandas pulsionais com
as demandas sociais, tentando equilibrar-se sobre os dois princípios conflitantes que nos
movem.
Freud, a seguir, aponta que as metas de felicidade mais moderadas nos permitiriam
um maior domínio sobre a vida pulsional, embora reduzissem as nossas possibilidades
de gozo. O esforço para viver em uma certa harmonia com a sociedade consiste,
portanto, em uma forma de submeter a satisfação imediada a momentos de gozo
moderado, ou seja, negligenciar em certa medida o princípio de prazer e tolerar o
desprazer, o que pode trazer angústias aos sujeitos. Quanto mais nós estivermos
dispostos a corroborar com os objetivos da civilização, mais renúncias ao próprio gozo
teremos de fazer. Pode-se dizer que a angústia e o nível de infelicidade tornam-se
termômetros que indicam a nossa dificuldade em conciliar os princípios de prazer e o de
realidade. Para Freud, a felicidade humana é uma condição de felicidade parcial, sendo
somente possível enquanto um fenômeno episódico. Apenas a felicidade moderada seria
a possível dada a nossa constituição. Outro tipo de felicidade imaginada seria a supra-
humana. Segundo o psicanalista:
4

O sentimento de felicidade na satisfação de uma moção pulsional


selvagem não domada pelo Eu é incomparavelmente mais intenso do
que a saciação de uma pulsão domada. A irresistibilidade a impulsos
perversos, talvez a atração daquilo que é proibido em geral, encontra
aqui uma explicação econômica. (FREUD, 2021, p. 324)

Ao final do capítulo 1, de O mal estar na cultura, Freud descreve métodos através


dos quais as pessoas se apropriam para afastar o sofrimento que a realidade muitas
vezes traz ao ser humano. É a polifonia das moções de desejo e a variedade de caminhos
possíveis a fim de se evitar o sofrimento, ou de ser feliz, que complexificam as relações
e configuram as diferenças entre cada ser. Compreende-se sobre o tema que o princípio
de prazer determina efetivamente o propósito das nossas vidas; pois, tendo dominado o
funcionamento do aparelho anímico desde o início, este princípio nos impele a sermos
felizes. No entanto, tal meta não pode ser plenamente realizada, pois existe um mundo
exterior que a coíbe. Compreende-se também que desejar é viver, uma vez que é o
desejo que nos direciona para a vida. Quando não há desejo ou há uma renúncia muito
grande do mesmo, encontramo-nos com aquilo que Freud denominou como pulsão de
morte, e que apesar da impossibilidade psíquica de uma felicidade total e perene,
abandonar os esforços para nos aproximarmos dela implica entregar-nos à angústia, a
um certo estado de inércia perante a vida, isto é, à infeliz infelicidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FREUD, Sigmund. Cultura, sociedade, religião: O mal-estar na cultura e outros


escritos. Tradução de Maria Rita Salzano Moraes. – Belo Horizonte: Autêntica, 2021.

Você também pode gostar