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Ciclo V – 5ª feira – Noturno - 2020

Marcelo Yukio Corazza

Pandemia e medidas paliativas

Centro de Estudos Psicanalíticos


Em O mal-estar na civilização (1930), Freud discorre sobre as dificuldades

humanas em aceitar as restrições impostas pela vida civilizada, em síntese,

aponta para um dilema civilizatório: em prol de maior segurança, abrimos mão

de uma parcela de liberdade e felicidade. Essa situação de

pandemia/confinamento, de certa forma, radicaliza o apontado pelo pai da

psicanálise: os limites ficaram mais estreitos e isto exigido enorme esforço de

cada pessoa para que esses cerceamentos não sejam ultrapassados. No

capítulo dois do livro supracitado, Freud cita e comenta, de maneira breve, uma

série de medidas paliativas que os seres humanos têm adotado para suportar as

restrições impostas pela árdua vida civilizada. Pensando nessa situação

restritiva de pandemia e confinamento que estamos experimentando - sem

esquecer que esse contexto cerceador afeta de maneira diferenciada cada um

em função do lugar social que ocupa e, também, de características pessoais -,

listarei as medidas paliativas mencionas por Freud. Foi realizada uma

dissecação dos comentários realizado por Freud, com um breve comentário.

1. “intoxicação”

Freud diz que “há substâncias de fora do corpo que, uma vez presentes

no sangue e nos tecidos, produzem em nós sensações imediatas de prazer”. É

fato que se busque por substâncias químicas que provoquem sensações de

ganho imediato de prazer, de modo a poder suportar situações psíquicas

incômodas, aqui incluído o consumo de álcool, café, alguns chás, medicamentos

e drogas ilícitas. A intoxicação seria uma mudança físico, psico-biológico do

corpo, uma tentativa de homeostase para com o mundo externo. Freud adiciona

que há um efeito de amortecer preocupações ocasionado por essas substâncias


e acrescenta, porém, que esse papel pode levar a um “desperdício de grandes

quantidades de energia que poderiam ser usadas na melhoria da sorte humana”.

2) “dominar as fontes internas das necessidades”

Aqui ele aponta para uma ação radical de “se liquidar os instintos, como

prega a sabedoria do Oriente e como praticam os iogues”, nesse caso se

alcançaria “apenas a felicidade de quietude”, ou algo mais brando “ao se

procurar apenas o governo dos instintos”. De qualquer forma, lembra o autor: “A

sensação de felicidade ao satisfazer um impulso instintual selvagem, não

domado pelo Eu, é incomparavelmente mais forte do que a obtida ao saciar um

instinto domesticado”. A natureza necessária do confinamento nos impôs a

dominar e utilizar todos os esforços psíquicos para suportar tamanha exigência

que não obedeceria ao princípio do prazer.

3) “sublimação”

A sublimação é mais um caminho apontado por Freud, onde “a tarefa

consiste em deslocar de tal forma as metas dos instintos, que eles não podem

ser atingidos pela frustação a partir do mundo externo”, assim, elevaria

suficientemente o “ganho de prazer a partir das fontes de trabalho psíquico e

intelectual”. Contudo “a sua intensidade é amortecida, comparada à satisfação

de impulsos instintuais grosseiros e primários; ela não convulsiona o nosso ser

físico”. Assim, a sublimação estaria à disposição de poucos, visto que exige

talentos e disposições especiais. A sublimação seria a das mais nobres medidas

paliativas utilizadas.
4) “vida da fantasia [imaginação]”

Freud explica aqui que a “satisfação é obtida de ilusões que a pessoa

reconhece como tais, sem que a discrepância entre elas e a realidade lhe

perturbe a fruição”. “Entre essas satisfações pela fantasia se destaca a fruição

das obras de arte”. Nota-se que o sentido da realidade foi poupado e o destino

da satisfação libidinal é utilizada para a criação de desejos “dificilmente

concretizáveis”. É a vida da imaginação, a criação de algo diferente da realidade

para poupar os processos psíquicos internos dolorosos.

5) “eremita”

O eremita é aquele que “dá as costas a este mundo, nada quer saber

dele”. O eremita comporta-se como um sujeito que se recua do seu mundo.

Perde-se a sua identidade ao meio em que se encontra. Nas palavras de Freud,

dá as costas ao seu mundo, pois a realidade é forte demais para ele. Ele vaga a

procura da sua tranquilidade interior de modo que possa suportar o seu conflito.

Assim, o eremita recua, prefere não enfrentar a realidade, pois ela é demasiada

dolorosa para ele. Ele se desvincula e se desenraiza do seu meio social e

procura outro estado de equilíbrio psíquico.

6) “louco”

Freud conclui-se que o eremita, pode se torna um “louco” - aquele que

tenta refazer o mundo, “construir outro em seu lugar, no qual os aspectos mais

intoleráveis sejam eliminados e substituídos por outros conforme aos próprios

desejos”. Assim, age conforme um paranoico, “corrigindo algum traço inaceitável

do mundo de acordo com seu desejo e inscrevendo este delírio na realidade”.


Assim, o fato de negar a pandemia e dar outro sentido à gravidade, torna-se as

pessoas negacionistas. As pessoas negam a pandemia, diminuem a percepção

do grave, “através de uma delirante modificação da realidade”. Este fenômeno,

muito comum nos psicóticos, também pode ser observado na paixão. Os

apaixonados vivem na sua loucura, no seu objeto único de desejo e a sua

percepção de loucura é muito próximo aos dos psicóticos – “quem partilha o

delírio jamais o percebe”, segundo Freud. Assim, psicóticos e apaixonados

estariam anestesiadas e imunes as más sensações causadas pelo

confinamento.

7) “religiões”

Freud salienta que a religião seria uma fonte de consolo e de prazer no

sofrimento. Porém relata que as religiões seriam um “delírio em massa” - um

remodelamento delirante da realidade efetuada em comum por um considerável

número de pessoas - uma tentativa de deformar delirantemente a imagem do

mundo real. A religião seria utilizada para suportar a realidade e as incertezas

provocadas pela pandemia e assim pouparia muitos homens da neurose

individual. A busca por um sentido existencial e apaziguamento do sentimento

de culpa, muito buscada pelas religiões, não seriam suficientes, nas palavras de

Freud, para “conduzir seguramente à felicidade”, pois estaria condicionado

apenas à submissão incondicional da crença religiosa.

8) “amar e ser amado”

O amor é orientado como uma realização positiva de felicidade que tem

ele como centro, e que espera toda satisfação do amar e ser amado. É uma

atitude psíquica familiar a todos nós, segundo Freud. O amar e ser amado é uma
forma vincular de afeto, sobretudo para os seres humanos; tem uma forma de

identificação e enraizamento, oposto ao eremita. Aqui, Eros é fonte libidinal, onde

os pseudópodes adquire mobilidade em busca de um objeto de amor. Porém,

alerta Freud: “Nunca estamos mais desprotegidos ante o sofrimento do que

quando amamos, nunca mais desamparadamente infelizes quando perdemos o

objeto amado ou seu amor”. Assim, a perda do objeto amado pode-se ser fonte

de sofrimento.

9) “amor sexual”

Freud relata que uma das formas de manifestação do amor é o amor

sexual. “Ele nos proporciona a mais forte experiência de uma sensação de prazer

avassaladora, dando-nos assim o modelo para nossa busca de felicidade”, diz.

O contato físico, sobretudo sexual, é uma forma de descarga psíquica que

quando manifestada de forma amorosa, proporciona sensações de prazeres

orgásticos, sensação máxima do prazer sexual, que traz benefícios para o bem-

estar humano. O ato sexual é, em si, a mais nobre expressão do amor entre dois

indivíduos.

10) “gozo da beleza”

Freud relata que uma das formas paliativas para lidar com o sofrimento é

o gozo das belezas – “onde quer que ela se mostre a nossos sentidos e nosso

julgamento, a beleza das formas e dos gestos humanos, de objetos naturais e

de paisagens, de criações artísticas e mesmo científicas”, adquire um

interessante campo para a busca da felicidade na vida. Há uma busca pelo belo,

uma fruição inerente à condição humana que lhe dá prazer. Assim, o gozo da

beleza possui caráter estético e segundo Freud, não oferece muita proteção
contra a ameaça de sofrer, mas compensa muita coisa. A aproximação por um

belo se tornam características do objeto sexual e, assim, a “beleza e a atração”

seriam utilizadas na busca de um objeto de um amor sexual, principio máximo

de satisfação e gozo.

11) “doença neurótica”

Freud relata que a doença neurótica seria uma fuga que promete

“satisfação substitutiva”, onde o indivíduo “empreende ainda jovem”. Freud

comenta que quem não tiver passado pela “transformação e reordenação de

seus componentes libidinais, imprescindível para realizações posteriores”,

poderá ter sua felicidade comprometida. A doença neurótica obedeceria ao

princípio do prazer, onde a compulsão à repetição do sintoma traria menor

sofrimento, do ponto de vista econômico, ao aparelho psíquico. Porém, como

sabemos, quando o indivíduo fracassa, nos esforços, para com a sua neurose,

poderá encontrar felicidade por meio da intoxicação crônica, comentado no item

1, ou poderá entrar numa tentativa de rebelião, aproximando da psicose, nas

palavras de Freud.

Diante do exposto, Freud relata que a felicidade é um problema da

economia libidinal do indivíduo. Indivíduos que possuírem condições libidinais

desfavoráveis e que não tiver passado pelas suas transformações terá

dificuldade em obter felicidade em situações extremas. Assim, caso a libido atinja

condições favoráveis, Freud, cita que àqueles predominantemente erótico dará

prioridade às relações afetivas com outras pessoas; o narcisista, inclinado à

autossuficiência, buscará as satisfações principais em seus eventos psíquicos


internos. Para os que destinarão sua libido de forma mais nobre, utilizarão seus

dons e seus interesses na sublimação.

O fato de expor os indivíduos a perigos, como a pandemia do COVID-19,

exige da constituição do aparelho psíquico medidas para adaptar sua função ao

meio e aproveitá-la para conquistar prazer. O êxito, nas palavras de Freud,

jamais é seguro e depende da conjunção de muitos fatores, principalmente para

aqueles ligados à questão social e a forma como cada indivíduo demanda os

seus conflitos internos.

Freud observa que não há uma regra de ouro para todos e postula que

“todo homem tem de descobrir por si mesmo de que modo específico ele pode

ser salvo”. O próprio individuo deverá descobrir à sua maneira particular como

evitar o sofrimento.

E nós, como nos colocamos nesses caminhos apontados por Freud?


Referências Bibliográficas

FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização, Novas conferências


introdutórias à psicanálise e outros textos (1930-1936). Trad. Paulo César de
Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. v. 18.

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