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Estudo sobre o Texto O Mal-Estar na Civilização (1930-1936)

Estelamaris Brant Scarel1

Trata-se de um texto culturalista, que busca refletir sobre o conflito entre


pulsão e instinto. A visão de homem parte sempre dessa ambivalência.
De acordo com Laplanche e Pontalis (2001, p. 394), para Freud, a pulsão
(Trieb), tem o seguinte sentido:

Processo dinâmico que consiste numa pressão ou força (carga


energética, fator de motricidade) que faz o organismo tender para um
objetivo. Segundo Freud, uma pulsão tem a sua fonte numa
excitação corporal (estado de tensão); o seu objetivo é suprimir o
estado de tensão que reina na fonte pulsional; é no objeto ou graças
a ele que a pulsão pode atingir a sua meta.

Segundo os autores, Freud distingue a pulsão, como o sentido de impulso, do


instinto, que se caracteriza por “um comportamento animal fixado por
hereditariedade” (LAPLANCHE; PONTALIS, 2001, p. 394). Nesse sentido, para
Freud, o instinto consiste no seguinte:

Classicamente, esquema de comportamento herdado, próprio de


uma espécie animal, que pouco varia de um indivíduo para outro,
que se desenrola segundo uma sequência temporal pouco suscetível
de alterações e que parece corresponder a uma finalidade (idem,
2001, p. 241).

 Feita essa distinção inicial passaremos à primeira seção do texto em que Freud
recorre a uma metáfora da Roma antiga para demonstrar como o homem
preserva os seus traços mnemônicos, isto é, suas memórias. Para Freud (2010,
p. 22), tal como Roma que, ao passar por várias modificações, manteve seus
vestígios por meio de sítios arqueológicos assim também ocorre com o passado
psíquico. Contudo, este psicanalista adverte que esse passado só permanece
intacto se os tecidos da vida psíquica não passarem por nenhum trauma ou
inflamação.
 Na segunda seção, Freud (2010, p. 29) afirma que os homens buscam a
felicidade de duas formas: de um lado, procuram evitar a dor e, por outro, evitam

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Estudo elaborado para aula relativa ao seu processo de pós-doutoramento, sob a supervisão da
Profa. Dra. Silvia Rosa Silva Zanolla, em 24/09/2020.
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o desprazer. Porém, para este autor, é apenas o “princípio do prazer que


estabelece a finalidade da vida” (idem, p. 30).
 prosseguindo o seu raciocínio, Freud (2010, p. 31) expõe que quando o
homem consegue dar vazão ao “princípio do prazer” este lhe resulta apenas
como um “morno bem-estar”. No entanto, a infelicidade é muito mais fácil de
ser experimentada, porque o sofrimento ameaça o homem de três lados: o
“próprio corpo”, que fenece; o mundo externo, que poder vir sobre nós com
uma força poderosa; “as relações com os outros seres humanos”. Quanto a
esta última, Freud (2010, p. 31) expõe que o sofrimento que provém dela e
“nós experimentamos talvez mais dolorosamente que qualquer outro”.
 Para o enfrentamento a essas fontes de sofrimento, Freud (2010, p. 32-42)
aponta algumas técnicas. A primeira delas seria o domínio dos impulsos
instintuais. Na sua visão: “Esse tipo de defesa contra o sofrimento já não lida
com o aparelho sensorial, busca dominar as fontes internas das
necessidades” (p. 34). A segunda técnica consistiria no “deslocamento da
libido do nosso aparelho psíquico” (p. 35), por meio da “sublimação dos
instintos”. A terceira técnica, segundo o autor, talvez seja mais radical, que é
a ruptura com o mundo, como é o caso do eremita. O quarto procedimento
configura-se na tentativa de uma “delirante modificação da realidade”. Nesse
sentido Freud (2010, p. 38) complementa essa ideia expondo o seguinte:
“Devemos caracterizar como tal delírio de massa também as religiões da
humanidade. Naturalmente, quem partilha o delírio jamais o percebe” (p. 38).
 Continuando a sua lista, este psicanalista, ainda, apresenta como técnicas
para minimizar o sofrimento o amor e a estética. Quanto ao amor, entretanto,
ele atenta para o seguinte:

Nunca estamos mais desprotegidos ante o sofrimento do que quando


amamos, nunca mais desamparadamente infelizes do que quando
perdemos o objeto amado ou seu amor (Idem, p. 39).

Na sua perspectiva, a felicidade configura-se em “um problema da economia


libidinal do indivíduo” (p. 40). Por isso, sugere que cada um deve encontrar a sua
própria forma de ser feliz.
Ao finalizar esta seção, Freud (2010) ainda indica uma última técnica de vida
que consiste na “fuga para a doença neurótica, que em geral ele empreende ainda
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jovem” (p. 42). Contudo, segundo o raciocínio deste autor pode ocorrer que o
indivíduo fracasse nas suas buscas pela felicidade, então, ele pode consolar-se “no
prazer obtido por meio da intoxicação crônica”, ou, por outra, pode fazer “a
desesperada tentativa de rebelião que é a psicose” (idem, p. 42).
 Na terceira seção2, Freud (2010) inicia o seu argumento afirmando que o homem
não se sente bem em sua civilização (p. 47). Depois aponta as características
das quais a civilização se reveste. Nesse sentido, o termo

[...] Em o “Futuro de uma Ilusão” civilização designa a inteira soma


das realizações eu afetam a nossa vida daquela de nossos
antepassados animais, e que servem para dois fins: a proteção do
homem contra a natureza e a regulamentação dos vínculos dos
homens entre si [...] estima e o cultivo das atividades psíquicas mais
elevadas, das realizações intelectuais, científicas e artísticas, do
papel dominante que é reservado às ideias na vida das pessoas [...]
o modo como são reguladas as relações sociais, que dizem respeito
ao indivíduo enquanto vizinho, enquanto colaborador, como objeto
sexual de um outro, como membro de uma família e de um Estado
(FREUD, 2010, p. 48-56).

Trata-se, como se pode observar, de exigências cruciais para a contenção


dos impulsos agressivos dos indivíduos. A manutenção da cultura irá depender de
três fatores: “substituição do poder do indivíduo pelo da comunidade

[...] a justiça, isto é, a garantia de que a ordem legal que uma vez se
colocou não será violada em prol de um indivíduo [...] O resultado
final deve ser um direito para o qual todos – ao menos todos os
capazes de viver em comunidade – contribuem com o sacrifício dos
instintos (idem, p. 57).

Em síntese, para Freud (2010), não há distinção entre civilização e cultura. Na


sua visão, é a civilização que diferencia o homem da vida animal, bem como o
distancia da natureza. Nesse sentido, a civilização seria resultante tanto desse
controle pelo homem da natureza como dos ordenamentos criados por ele para
reger o controle das relações humanas.
 Na quarta seção, Freud (2010) lança um olhar retrospectivo ao seu trabalho
“Totem e Tabu” escrito em 1921, no qual explicita de que maneira se deu a
passagem da natureza à cultura. De acordo com o mito referente à “horda
primeva”, de início haveria um pai onipotente, detentor de todas as mulheres,
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Nesta seção Freud (2014) indica seu trabalho denominado “O Futuro de uma Ilusão”, por meio do
qual descreve seu entendimento sobre as origens da religião, seu desenvolvimento, acerca da
psicanálise e do futuro
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bem como de uma vontade absoluta e arbitrária. Então, esse pai é assassinado
pelos filhos e, em decorrência disso, estabelece-se um contrato social impedindo
que nenhum desses filhos tomasse o lugar do pai.

A vitória sobre o pai havia ensinado aos filhos que uma associação
pode ser mais forte que o indivíduo. A cultura totêmica baseia-se nas
restrições que eles tiveram que impor uns aos outros, a fim de
preservar o novo estado de coisas (FREUD, 2010, p. 62).

Assim, o parricídio marcaria o início da organização social da qual originou a


civilização. O tabu ao incesto torna-se a primeira lei, segundo Freud, a sustentar
uma organização social, já que o incesto caracteriza-se por ser antissocial.
A partir de então a vida humana passa a ser ancorada por dois fundamentos:
“a compulsão pelo trabalho, criada pela necessidade externa, e o poder do amor,
que no caso do homem não dispensava o objeto sexual, a mulher, e no caso da
mulher não dispensa o que saíra dela mesma, a criança. Eros e Ananke tornaram-se
também os pais da cultura humana” (Idem, p. 63).
Por fim, deduz-se que nesta seção Freud formula a sua tese, isto é, a de que
a cultura com suas restrições, a partir de “tabus, leis e costumes” (p. 67) causa um
profundo mal-estar nos indivíduos, pois essas restrições transformam-se em
barreiras intransponíveis diante das exigências das pulsões, de um lado, e, de outro,
frente às restrições da civilização.
 Na quinta seção, este autor põe em relevo a função conservadora da religião
com vistas à manutenção da sociedade humana. Na sua perspectiva, a
existência de toda religião justifica-se em face de defender o homem do estado
de desamparo desde a infância até a vida adulta. A religião, nesse sentido,
atenderia ao desejo do homem de ter um pai poderoso que trouxesse
segurança. “O homem civilizado trocou um tanto de felicidade por um tanto de
segurança” (p. 82). Para Freud (2010), a religião livra os homens de uma
neurose individual, porém, ao custo de levá-los a um estado de infantilismo
psicológico, em virtude de se submeterem a um “delírio de massa”.
Nas páginas 80-81, Freud comenta sobre o narcisismo das pequenas
diferenças.
 Na sexta seção, Freud (2010, p. 85-86) resgata um trabalho elaborado em 1920,
por meio do texto “Além do Princípio do Prazer” e conclui
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[...] que deveria haver, além do instinto para conservar a substância


vivente e juntá-la em unidades cada vez maiores, um outro, a ele
contrário, que busca dissolver essas unidades e conduzi-las ao
estado primordial inorgânico. Ou seja, ao lado de Eros, um instinto de
morte.

Trata-se, como se pode ver, de um sentimento ambíguo. Freud (2010)


identifica o sadismo como esse impulso à destruição. Na sua concepção, a pulsão
de morte seria o grande empecilho para o avanço do processo civilizatório. Nas suas
palavras:

[...] em tudo o que segue me atenho ao ponto de vista de que o


pendor à agressão é uma disposição de instinto original e autônoma
do ser humano e retorno ao que afirmei antes, que a civilização tem
aí o seu mais poderoso obstáculo (FREUD, 2010, p. 90).

 Na sétima seção, a partir do conceito de superego (instância censora ao ego,


que funciona como a consciência moral), Freud (2010) desenvolve o conceito de
culpa, que se torna fundamental na relação entre o indivíduo e a cultura. É o
sentimento de culpa que estabelece a tensão entre o ego (eu), que é uma das
três instâncias da tríade do aparelho psíquico, e o superego. A essa tensão
Freud (2010, p. 92) denomina “consciência de culpa; ela se manifesta como
necessidade de punição”. Na concepção deste autor, o sentimento de culpa
possui duas origens: a primeira configura-se no medo de uma autoridade
exterior, que é anterior à formação do superego; a segunda é o medo do
superego. No tocante ao medo da autoridade, este impõe ao indivíduo a renúncia
às “satisfações instintuais”, o segundo o conduz ao “castigo, dado que não se
pode ocultar ao super-eu a continuação dos desejos proibidos” (FREUD, 2010, p.
97). Neste último caso, então, a renúncia não seria suficiente, uma vez que se o
desejo permanece a culpa perdura.
Neste item, encerrando seu raciocínio, Freud (2010, p. 104) afirma que “o
sentimento de culpa é expressão do conflito de ambivalência, da eterna luta entre
Eros e o instinto de destruição ou de morte”.
 Na última seção, Freud (2010, p. 116) conclui o seu raciocínio destacando
algumas questões importantes. A primeira delas é que o superego “de uma
época cultural tem origem semelhante ao de um indivíduo, baseia-se na
impressão que grandes personalidades – líderes deixaram”. Neste ponto, então,
pensar no totem será muito importante, porém, aqui Freud cita o exemplo de
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Jesus Cristo. A segunda, conforme este psicanalista, refere-se ao seguinte: “O


Super-eu da cultura, exatamente como o do indivíduo, institui severas exigências
ideais, cujo não cumprimento é punido mediante “angústia de consciência”. La
Planche e Pontalis (2001, p. 27) afirmam que para Freud a angústia “[...] é
definida como resultante de uma tensão libidinal acumulada e não
descarregada”. Na perspectiva freudiana, há uma intrínseca conexão entre a
civilização e o sentimento de culpa. A civilização somente atinge o objetivo de
manter os seres humanos inter-relacionados mediante o fortalecimento do
sentimento de culpa, por intermédio de um super-Eu que atua influenciando a
evolução cultural. Consoante o entendimento de Freud (2010, p. 121): “os juízos
de valor dos homens são inevitavelmente governados por seus desejos de
felicidade, e que, portanto, são uma tentativa de escorar suas ilusões com
argumentos”.
Por fim, Freud (2010), tendo em vista as pulsões de vida (Eros) e as pulsões
de morte (Tânatos), finaliza o seu texto questionando até que ponto o primeiro
conseguirá dominar o segundo. Nesse sentido, ele perquire se há condições de
alguém prever esse desfecho.
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REFERÊNCIAS

FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização, novas conferências introdutórias


à psicanálise e outros textos (1930-1936). Trad. Paulo César de Souza. São
Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 13-122 (Coleção Obras Completas; v. 18).

______. O futuro de uma ilusão (1927). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo:
Companhia das Letras, 2014, p. 231- 301 (Coleção Obras Completas; v. 18).

LAPLANCHE, Jean; PONTALIS, Jean-Gertrand. Vocabulário da psicanálise. 4. ed.


Trad. Pedro Tamen. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

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