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De Sigmund Freud a Zygmunt Baumann: a compreensão do aparelho psíquico

na pós-modernidade liquida.

Silas de Santana Vitória1

Resumo
O presente artigo tem como finalidade debater teoricamente, como a transição da sociedade e cultura
tão sólidas, descrita por Sigmund Freud, se tornaram tão líquidas para Zygmunt Baumann em um
curto espaço de tempo. Aqui busca-se entender como essa mudança subverteu a lógica do aparelho
psíquico constituído por Freud, embora não se preste a negar a genealogia do aparelho psíquico,
mas sim buscar entender, a partir da rotação contrária do pêndulo moral, prescrito por Baumann,
como se dá essas novas relações sociais pós-modernas. Entende-se, portanto, que a humanidade
passa a viver uma inversão de valores capazes de modificar a relação do ser humano com o seu
próprio inconsciente e a largos passos essa mudança abrupta força o indivíduo a adentrar em um
novo modelo de sociedade, chamada por Baumann de Sociedade Líquida.

Palavras-chave: Sigmund Freud, Zygmunt Baumann, Aparelho psíquico, Sociedade e cultura.

Abstract
The purpose of this article is to theoretically discuss how the transition from such a solid society and
culture, described by Sigmund Freud, became so liquid for Zygmunt Baumann in a short period of
time. Here we seek to understand how this change subverted the logic of the psychic apparatus
constituted by Freud, although it is not intended to deny the genealogy of the psychic apparatus, but
rather to seek to understand, from the opposite rotation of the moral pendulum, prescribed by
Baumann, how if gives these new postmodern social relations. It is understood, therefore, that
humanity begins to experience an inversion of values capable of modifying the relationship of human
beings with their own unconscious and in large steps this abrupt change forces the individual to enter

a new model of society, called by Baumann of Liquid

Society.Keywords: Sigmund Freud, Zygmunt Baumann, Psychic apparatus, Society and culture..

Introdução

1
Graduando em psicanálise pela Imaginar – Educação e Treinamentos.
2

O período histórico da gênese psicanalítica foi, sem dúvidas, o mais emblemático


e conturbado de toda história, pois se deu no contexto das duas grandes guerras da
humanidade e foi nessa realidade conflituosa e adversa que, Freud, se tornou o pai
da psicanálise; ele foi a pessoa que humanizou o tratamento de pacientes em
estado de sofrimento psíquico, mesmo em um período tão escasso de empatia.
Dessa maneira, FREUD, 1996, p.131 afirma o seguinte:

A psicanálise jamais disse palavra em favor dos instintos desagrilhoantes


que danificariam nossa comunidade; pelo contrário, emitiu uma advertência
e uma exortação para que corrigíssemos nossos modos. A sociedade,
porém, se recusa a consentir em ventilar a questão, porque tem uma má
consciência sob mais deum aspecto. Em primeiro lugar, ela estabeleceu um
elevado ideal de moralidade - sendo essa restrição dos instintos - e insiste
em que todos os seus membros preencham esse ideal, sem preocupar-se
com a possibilidade de que a obediência possa pesar onerosamente sobre
o indivíduo. Ela sequer é suficientemente opulenta ou bem organizada para
poder compensar o indivíduo pela quantidade de sua renúncia instintual.
Conseqüentemente, resta ao indivíduo decidir como pode obter, pelo
sacrifício que fez, uma compensação, suficiente para capacitá-lo a preservar
seu equilíbrio mental. Em geral, ele no entanto é obrigado a viver
psicologicamente além de seus recursos, ao passo que as reivindicações
insatisfeitas de seus instintos o fazem sentir as exigências da civilização
como uma pressão constante sobre ele. Assim, a sociedade sustenta uma
condição de hipocrisia cultural, fadada a ser acompanhada de um
sentimento de insegurança e de uma necessidade de preservar aquilo que é
uma situação inegavelmente precária com proibir a crítica e a discussão.
Essa linha de pensamento aplica-se a todos os impulsos instintuais,
incluindo portanto os egoístas. A questão sobre ela aplicar-se ou não a
todas as formas possíveis de civilização, e não meramente àquelas que
evolveram até agora, não pode ser debatida aqui. Com referência aos
instintos sexuais no sentido mais estrito, há ainda o ponto de que, na
maioria das pessoas, eles são insuficientemente domados, e isso de uma
forma psicologicamente errada; estão portanto mais aptos a desencadear-
se do que os demais. (FREUD, 1996, p.131)

Freud se propôs a compreender a mente humana e os percalços enfrentados


pelo subconsciente e é, por isso, que se pode afirmar que ele foi um grande
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intérprete da sociedade de sua época e isso ficou bem demarcado ao decorrer de


sua vida e obra, pois a todo tempo ele se pôs a refletir como a cultura de cada
espaço social reflete e traz influência, não só no comportamento consciente, mas
sobretudo no inconsciente da pessoa.
FREUD, 1996, p.132 afirma o seguinte:

A psicanálise revelou as fragilidades desse sistema e recomendou que ele


fosse alterado. Propôs uma redução no rigor com que os instintos são
reprimidos, e que correspondentemente se desse mais desempenho à
veracidade. Uma quantidade maior de satisfação deveria ser facultada a
certos impulsos instintuais em cuja supressão a sociedade excedeu um
tanto; no caso de alguns outros, o método ineficiente de suprimi-los
mediante a repressão deveria ser substituído por algum procedimento
melhor e mais seguro. Em resultado dessas críticas a psicanálise é
encarada como ‘inamistosa à cultura’ e foi colocada sob um anátema como
‘perigo social’. Essa resistência não pode durar para sempre. Nenhuma
instituição humana pode, a longo prazo, escapar à influência da crítica
legítima, contudo a atitude dos homens para com a psicanálise ainda é
dominada por esse temor, que dá livre curso às suas paixões e diminui seu
poder de argumento lógico. (FREUD, 1996, p.132)

Os seus métodos consistem, de uma forma geral, em dotar a mente do paciente


de ferramentas para lidar com as sombras psíquicas reveladas pelo inconsciente e
ajudá-lo a lidar com a realidade catastrófica instaurada em sua mente pelo tempo,
espaço e sociedade em que esse está inserido, tudo isso ocorre, para Freud,
através da fala livre do analisado ao terapeuta; esse método é chamado,
comumente, de Catarse.
Retrocedendo um pouco à filosofia antiga de Aristotéles, através do livro “Arte
retórica e Arte poética”, em uma de suas republicações do ano 2000, é possível
identificar que, só é plausível tratar dos episódios, quando se tem o cuidado de bem
envolver os motivos causadores desse episódio, através da expressão do assunto,
sobretudo, em caso de crise de “loucura”, que no caso da arte da tragédia grega, a
qual o autor se referia no seu texto, era um motivo de prisão para a época, contudo,
nesse interim complexo, só o plano de purificação, era capaz de salvar o indivíduo.
Essa purificação viria através do que Aristóteles afirmava ser “kátharsis”, em
grego, que é a purificação pela fala, onde o indivíduo, ao expressar suas emoções,
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por si só, já era capaz de libertar-se da culpa cometida no episódio de “loucura”. O


mesmo Aristóteles traz, também, teses concisas sobre a alma humana, que ele já
chamava de “psyché” naquela época e que, posteriormente, Freud viria a trazer
novas roupagens às teorias Aristotélicas, expandi-las e torná-las vivas até a
hodiernidade.
A partir de então, Freud estabeleceu que era possível o paciente falar das suas
dores e histerias e assim aliviar o seu sofrimento, chegando muitas vezes na
superação do problema. O tratamento, do que Garcia-Roza chama de “loucura”, pelo
psiquiatra, antes de Freud, era uma relação de exclusão, pois pouco se conhecia
sobre a os transtornos psíquicos até então. Todavia, graças ao pai da Psicanálise, o
cuidado com a pessoa em situação de moléstia psíquica passou a ser, então,
humanizado, com foco nos traumas e nas memórias inconscientes dando ao
paciente liberdade de falar sobre suas dores.
Para compreender essa dualidade entre o ser e o querer ser, dentro de toda a
complexidade que é viver em sociedade, foi que o Pai da ciência psicanalítica,
desenvolveu a teoria do aparelho psíquico, que consiste em dividir a mente,
primeiramente em: consciente, pré-consciente e inconsciente.
A consciência para Freud, de maneira bem sucinta, é constituída pelos
pensamentos, sentimentos mais imediatos e sua capacidade de raciociná-los de
maneira imediata, já o pré-consciente é toda a memória recente que pode ser
acionada de maneira consciente, quando necessário. O inconsciente é composto de
todos os medos, recalques, impulsos, desejos, instintos etc. Que foram reprimidos
ao longo da vida, por serem percebidos como censuráveis, ou de certa maneira
vergonhosos.
Para, FREUD 1995, p.106
Tais adversários do inconsciente nunca testemunharam o efeito de uma
sugestão pós-hipnótica e quando lhes disse de minhas experiências com
neuróticos não-hipnotizados foram tomados de grande perplexidade. Nunca
perceberam a idéia de que o inconsciente é algo que realmente não
conhecemos, mas que somos obrigados a admitir através de compulsivas
inferências; compreenderam-no como algo capaz de tornar-se consciente
embora não estivesse sendo pensado em tal momento, não ocupasse ‘o
ponto focal da atenção’. Nem tentaram nunca se convencer da existência,
em suas próprias mentes, de pensamentos inconscientes como esses pela
análise de um de seus próprios sonhos; quando tentei fazê-lo, puderam
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apenas acolher suas próprias associações com surpresa e confusão. Penso


que resistências emocionais fundamentais obstam o caminho da aceitação
do inconsciente, fundadas no fato de que não se quer conhecer o próprio
inconsciente, sendo então o plano mais conveniente a negação completa de
tal possibilidade. (FREUD, 1995, p.106)

Seguindo a mesma genealogia do aparelho psíquico, Freud, posteriormente,


concebe a compreensão de três estruturas complementares ao aparelho psíquico,
são eles o ID (isso), o Ego (eu) e o Superego (“super eu”). Vale ressaltar, que para
Freud essas estruturas são orgânicas e permeiam entre si e, a depender da situação
e circunstância, podem até transitar pelos níveis mentais supracitados acima.
Para o criador da teoria psicanalítica, o ID é onde ficam guardadas as pulsões
mais primitivas, esses impulsos são guiados pelo prazer, não há para ele uma regra
clara e definida a ser seguida, mas sim o desejo e a realização desse desejo a
qualquer custo, é como se fosse uma criança mimada a espera de ver sanado seus
mimos, sendo assim uma estrutura inconsciente.
O Ego funciona como um equilibrista na corda, tentando ao máximo manter o
equilíbrio entre o ID e o Superego, ele é guiado pelo senso imediato de realismo e
tem por fundamento a função de manter a consciência, mesmo em meio aos
recalques sofridos pelo ID, através do Superego. É ele quem decide como agir
diante as exigências mimadas do ID e as leis severas do Superego.
Segundo FREUD, 1996, p. 16, depreende-se o seguinte:

O ego não se acha nitidamente separado do id; sua parte inferior funde-se
com ele. Mas o reprimido também se funde com o id, e é simplesmente uma
parte dele. Ele só se destaca nitidamente do ego pelas resistências da
repressão, e pode comunicar-se com o ego através do id. Compreendemos
em seguida que quase todas as linhas de demarcação que traçamos, por
instigação da patologia, relacionam-se apenas aos estratos superficiais do
aparelho mental - os únicos que nos são conhecidos. O estado de coisas
que estivemos descrevendo pode ser representado diagramaticamente (Fig.
1), embora se deva notar que a forma escolhida não tem pretensões a
qualquer aplicabilidade especial, mas simplesmente se destina a servir para
fins de exposição. (FREUD, 1996, p.16)

O Superego é, classicamente, definido como um grande pai, que age como juiz e
visa censurar tudo aquilo que parece ser vil ou que contradiga a moral estabelecida
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pelos ensinamentos estabelecidos no inconsciente desde o momento de concepção


do indivíduo. Todavia, o Superego é tanto consciente, quando inconsciente, pois se
posiciona limitando os impulsos do ID, para que ele se apresente, através do EGO,
de modo civilizado perante a sociedade de forma a reprimir sua primitividade
imediatista. Nele não há meio termo, o certo é certo e o errado é algo desprezível.
Para FREUD, 1977, p. 21

O superego, contudo, não é simplesmente um resíduo das primitivas


escolhas objetais do id; ele também representa uma formação reativa
enérgica contra essas escolhas. A sua relação com o ego não se exaure
com o preceito: ‘Você deveria ser assim (como o seu pai)’. Ela também
compreende a proibição: ‘Você não pode ser assim (como o seu pai), isto é,
você não pode fazer tudo o que ele faz; certas coisas são prerrogativas
dele.’ Esse aspecto duplo do ideal do ego deriva do fato de que o ideal do
ego tem a missão de reprimir o complexo de Édipo; em verdade, é a esse
evento revolucionário que ele deve a sua existência. É claro que a
repressão do complexo de Édipo não era tarefa fácil. Os pais da criança, e
especialmente o pai, eram percebidos como obstáculo a uma realização dos
desejos edipianos, de maneira que o ego infantil fortificou-se para a
execução da repressão erguendo esse mesmo obstáculo dentro de si
próprio. Para realizar isso, tomou emprestado, por assim dizer, força ao pai,
e este empréstimo constituiu um ato extraordinariamente momentoso. O
superego retém o caráter do pai, enquanto que quanto mais poderoso o
complexo de Édipo e mais rapidamente sucumbir à repressão (sob a
influência da autoridade do ensino religioso, da educação escolar e da
leitura), mais severa será posteriormente a dominação do superego sobre o
ego, sob a forma de consciência (conscience) ou, talvez, de um sentimento
inconsciente de culpa. (FREUD, 1977. p.21)

A estrutura ideal é aquela em que ambos funcionam em equilíbrio, todavia nem


sempre isso é possível, pois existem desejos que são reprimidos e guardados de
forma inconsciente, que se manifestam, ao longo da vida humana, através de
traumas, histerias, neuroses e psicoses.
A obra de Freud é tão complexa, que mesmo após a sua morte ela permanece
viva e latente, contudo, é possível questionar: como a cultura atual tem influenciado
no aparelho psíquico? É possível compreender o ser humano dos dias de hoje a
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partir do olhar de Freud, ou teria a humanidade evoluído tanto que a concepção


freudiana se tornou ultrapassada?

1. Como a cultura da Modernidade Líquida molda a psique dos indivíduos.

Para trazer luz a esses questionamentos, de outrora, é necessário, antes de


tudo, que se permita dizer que a sociedade mudou tanto, que embora o aparelho
psíquico tenha a mesma estrutura, a forma como o indivíduo interage com a
sociedade através do que Freud chamaria de “Princípio da Realidade” (concebido a
partir da ideia do Superego), de cuja classificação freudiana o determina como a
impenetrável barreira que freia e dá limites, ao que o mesmo chamaria de “Princípio
do Prazer” (que traz em sua gênese o próprio Id) se modificou.
O pai da psicanálise, morreu no dia 23 de setembro de 1939, deixando uma
lacuna de obras não publicadas, que foram queimadas e não recuperadas, durante a
segunda Guerra Mundial e uma sociedade órfã de análises tão profundas do seu
tempo. Embora, muitos dos seus discípulos o tenham sucedido de forma brilhante, o
olhar pioneiro sobre a dialética ser-humano/sociedade e sociedade/ser-humano
carecia de um “quê” inovador perante as mudanças sociais, sobretudo as pós-
modernas.
Zygmunt Baumann, filósofo polonês, se dedicou a analisar a sociedade a partir
do conceito de modernidade líquida e, assim como Sigmund Freud, se propôs a
versar como o ser humano lida com vários aspectos da sua vida, tais como: amor,
política, vida em sociedade, relações de consumo e até mesmo com a sua própria
identidade. Baumann falou com o seu olhar voltado para o dia a dia do indivíduo e
se tornou um respeitado nome na ciência pós-moderna, justamente, por pensar a
frente do seu tempo.
Quando se fala de inovação aqui, não se desmerece todo o trabalho feito até
então, mas trata-se da necessidade de alcunha de um termo que por si só trouxesse
completude e entendimento a essas mudanças drásticas vividas desde a morte de
Freud até aos conceitos iniciais apresentados por Baumann, ou seja, nenhuma outra
expressão explicou tão bem a “nova humanidade”, pós Freud, quanto o conceito de
“Modernidade Liquida” de Baumann.
Cerca de onze separa Freud dos primeiros escritos de Zygmunt Baumann, nesse
tempo não deixou-se de fazer ciência, mas tudo desde então parecia ser
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continuidade, ou até mesmo ampliação da teoria freudiana e mesmo não sendo


psicanalista, o polonês, retoma para si o papel de analisar o homem e embora não
negue o aparelho psíquico humano, criado pelo pai da psicanálise, ele faz toda a
comunidade científica pensar para além de Freud, não negando toda sua brilhante
obra, mas expandindo-a de tal forma que ele chega a afirmar o seguinte (DESSAL &
BAUMANN, 2017; p.37):

Eu me pergunto o que diria Freud se tivesse de revisar seu manuscrito de


1929 para preparar a edição de 2008. Presumo que ele generalizaria seu
veredicto, insistindo em que toda e qualquer civilização – isto é, toda
comunhão humana elevada acima de suas “condições animais” – é um
negócio, e nossa variedade não é uma exceção. Mas também presumo que
Freud inverteria seu diagnóstico dos bens trocados na transação.
Provavelmente diria que as principais insatisfações do nosso tempo se
originam da necessidade de ceder boa parte de nossa segurança em troca
de continuar eliminando, uma a uma, as restrições impostas à nossa
liberdade. No que concerne àquela minoria da qual costumam provir os
pacientes que buscam tratamento psicanalítico, a fonte do sofrimento
parece ser agora a carência de segurança, que envenena o gozo de uma
liberdade individual sem precedentes. Os temores de desproteção pessoal,
que a civilização do transcendental estudo de Freud havia prometido
extirpar, voltaram reforçados. E os grilhões que costumavam reprimir os
instintos pessoais, os grilhões que os homens e as mulheres daquela época
lutavam desesperadamente para quebrar, já não parecem tão repulsivos, se
comparados aos recémdescobertos horrores da perpétua e contínua
insegurança. (DESSAL & BAUMANN, 2017; p.37)

Nesse trecho, Baumann reafirma, subjetivamente, o contexto de Barbárie


descrito por Freud, no seu livro “O Mal-Estar na Civilização” de 1997, mas ele supõe
que o próprio Freud repensaria as dimensões dessa Barbárie, a ponto de
reconhecer que sua previsão, embora assertiva, seja também eufêmica, pois nas
construções pós-modernas as afasias humanas são vítimas de vicissitudes tão
algozes que são capazes de fazer a tal civilização humana transcender o espaço do
inconsciente e retornar ao seu estado primitivo de maneira tão fugaz e as torna sem
forma a ponto de tornarem-se líquidas e mudarem constantemente.
A ausência de segurança, que condicionava o homem a buscar por uma zona de
conforto e assim, o coibia a ser sujeito, no sentido primário da palavra sujeição, hoje,
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para Zygmunt Baumann sofre um processo de inversão; onde o homem se sente


absurdamente seguro e cuidado que se torna obediente plácido (DESSAL &
BAUMANN, 2017), ou seja, o ser humano continua sujeito às regras sociais
humanas, mas não pelos mesmos motivos previstos por Freud. O destino é o
mesmo, mas o caminho, via de regra, se modifica.
A fim de robustecer todo o contexto apresentado tanto por Freud, quanto por
Baumann é que se vale cintar Jean Jacques Rousseau, no seu livro que versa sobre
o contrato social, onde ele afirma, ainda que subjetivamente, que toda liberdade é
condicionada a um processo consciente de sujeição, ou seja, o homem se sujeita a
regras socialmente impostas, para que só então consiga ser livre.
Freud não traçou suas teses longe desse pressuposto filosófico moderno, a
ponto dele mesmo dizer que as nuances determinadas pela cultura estabelecem os
limites do EGO. Baumann, posteriormente vem reforçar, que os mecanismos de
dominação robusteceram, sofreram modificações, se tornaram mais perspicazes,
mas não menos cruéis e ainda hoje cumprem as finalidades a que esses se
destinam: dominar a consciência das massas, sujeitar a grande maioria da
humanidade às algumas minorias representativas e por fim, afirma que essa
ressignificação dos processos de dominação, seguem adoecendo o ser humano e
causando nele o famoso “Mal-Estar” definido por Freud.
Para Etiene La Boétie, no seu ensaio sobre “O Discurso da Servidão Voluntária”,
o processo de servir a outrem, seja esse outrem tirano, ou democrático, é feito de
maneira voluntária, através de ideologias de massa que convencem “pacificamente”
à todos a se curvar diante a uma única pessoa, pessoa essa que, comumente, é
muito mais frágil do que se pensa, mas que é reverenciada e não contrariada,
porque a construção desse pensamento servil é tão sólida, que perpassa de geração
a geração e se torna integrante da cultura, onde os filhos são ensinados pelos pais a
servir.
Esse condicionamento é tão complexo, quanto simples, é complexo pois,
dificilmente, um filho que é ensinado a servir voluntariamente pelos próprios pais
conseguirá se desvencilhar de uma servidão hereditária ao sistema mor, todavia, a
busca do inconsciente através do ID de livrar de regras tão densas de servidão,
impostas por esse Superego criado coletivamente pela cultura, adoecem não só a
estrutura do EGO, mas todo o aparelho psíquico.
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A sociedade freudiana de entre guerras, viveu um período traçado de incertezas,


inseguranças e desproteções, mesmo em meio a valores tão rígidos e centralizados,
dessa forma a sua psique reagia a esses estímulos de maneira a buscar a figura
central de proteção, através do complexo de Édipo, a família. Todavia o pêndulo dos
valores, para DESSAL & BAUMANN, 2017, começou a se mover em sentido
contrário, já há várias décadas e ainda se move nessa direção em ritmo acelerado.
DESSAL & BAUMANN, 2017. p.40, afirmam o seguinte:

O mundo que Freud analisou era o mundo dos Buddenbrook de Thomas


Mann, um mundo de normas rígidas e severas penalidades (tais como ficar
excluído da competição empresarial, cair em desgraça social ou sofrer o
ostracismo) aplicadas se aquelas fossem quebradas; e também de normas
claramente articuladas e legíveis, que deviam ser aprendidas de uma vez e
para sempre: para toda a vida individual e para todos os âmbitos da vida, do
berço ao túmulo. A linhagem, a família, a fortuna familiar e a continuidade
dos vínculos sanguíneos traçavam um eixo em torno do qual teria de girar o
itinerário da vida, já concebido, mas ainda sem se completar. Tal como
proclamariam muito mais tarde psicólogos existencialistas como R.D. Lang
ou Thomas Szasz, aquela família, inscrita em um ambiente e, através dele,
em uma classe, era o cão de guarda coletivo (ou um vaso capilar do sistema
panóptico da vigilância social, como o enunciaria depois Michel Foucault)
que obrigava seus integrantes a se manter no caminho reto, excomungando
e eliminando os desviados (em termos freudianos, a família era o baluarte, a
plenipotenciária e a executora do princípio de realidade, encarregada de
podar e domar os excessos perpetrados pelo “princípio do prazer”). Assim o
sintetizou Daniel CohnBendit, com a vantagem de um olhar retrospectivo
que abarcava quarenta anos: aqueles que em Maio de 1968 encarnaram a
palavra que era então blasfema ganharam ainda assim sua batalha, do
ponto de vista social e cultural (embora, apressou-se a acrescentar Cohn-
Bendit, por sorte a perdessem do ponto de vista político). (DESSAL &
BAUMANN, 2017. P.40)

A ausência de, ou pouco esforço para a obtenção de uma recompensa,


promovida pela busca incessante de aprovação do ser humano freudiano, fez o ser
humano sair da condição de trabalhador/produtor de seu sustento, para uma
sociedade de consumidores, conforme afirma BAUMAN, 2017. Essa ausência de
valores sólidos é o que liquefaz o sistema de crenças humanas e cria uma
sociedade, ainda mais histérica do que a de Freud.
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É uma sociedade, aparentemente, bem resolvida, conhecedora de várias


teorias e sabedora de muitas informações, mas que não passam de grandes
consumidores de saberes, valores e culturas de massa prontas, estabelecidas por
essa modernidade Líquida capaz de, rapidamente, tornar ultrapassado até os
saberes mais consistentes.
BAUMANN, 2017 chama esses novos indivíduos de “viciados em adaptação”
e afirma que a sociedade “moderna sólida” analisada por Freud, se encaixou em um
outro modelo de sociedade já ultrapassado. Os papeis dos pais, que até Freud,
eram claros, passam a perder valor e sentido, abrindo espaço para uma inversão de
valores. Dessa forma, cabe, portanto, analisar o seguinte trecho de DESSAL &
BAUMANN, 2017, p.43:

Foucault sugere que, nessa campanha perpétua com o objetivo de


fortalecer a função parental e seu impacto disciplinador, “o ‘vício’ da criança
não era tanto um inimigo quanto um suporte”; “em toda parte onde aparecia
o risco [do ‘vício’], instalaram-se dispositivos de vigilância, estabeleceram-se
armadilhas para exortar a confissão”.4 Os banheiros e os dormitórios eram
os locais onde se concentravam os maiores perigos, o solo mais fértil para
as inclinações sexuais malsãs das crianças: daí exigirem supervisão
particularmente atenta, íntima e implacável, e por conseguinte uma
constante, manifesta e proeminente presença dos pais. Nos modernos
tempos líquidos, o pânico da masturbação foi substituído pelo pânico do
“abuso sexual”. A ameaça oculta que causa o pânico atual não espreita a
partir da sexualidade da criança, mas da dos pais. Os banheiros e
dormitórios continuam a ser considerados antros da horrenda perversão, tal
como antes, mas agora os acusados passaram a ser os pais. O propósito
dessa cruzada que empunha como arma o novo pânico do abuso sexual é
exatamente oposto aos objetivos do pânico da masturbação que Foucault
pesquisou. Sejam expressos ou tácitos, os fins da presente guerra são: a
redução do controle parental, a renúncia à presença ubíqua e proeminente
dos pais, a determinação e a manutenção de uma distância entre os
“velhos” e os “jovens”, tanto na família quanto em seu círculo de amigos.
(DESSAL & BAUMANN, 2017, pgs. 43 e 44)

A exegese da obra de Freud, feita por Baumann, consente em respeitar a


origem do aparelho psíquico em sua estrutura radicalmente sexual, contudo, para
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BAUMANN, 2017, p.44, esses impulsos sexuais mudaram de forma radical em sua
prática, refletidas através de um pânico moral que se converteu no aumento dos
casos de abusos sexuais, não que isso não tenha ocorrido nos tempos de Freud,
mas que os casos de denúncia a respeito da violação tenham se tornado uma
crescente. Nesse interim é que DESSAL & BAUMANN, 2017, pgs 44 e 45, afirma o
seguinte:

Os autores do informe sublinham que “o aumento não prova uma incidência


crescente das agressões, mas uma crescente inclinação a denunciar casos
de violação em estudos científicos, o que indica que se reduziu o limite de
tolerância à violência”; contudo, acrescentam que ele também reflete a
tendência ascendente, induzida pela mídia, de buscar a explicação dos
atuais problemas psicológicos dos adultos em supostas experiências infantis
de assédio sexual, em vez de atribuí-los à sexualidade infantil ou aos
complexos de Édipo e Electra. Não importa quantos pais, com ou sem a
cumplicidade de outros adultos, tratam realmente os filhos como objetos
sexuais, nem em que medida eles abusam de seu poder para tirar proveito
das fragilidades infantis (do mesmo modo como antes não importava
quantos deles, em sua própria infância, se entregaram aos seus desejos
onanistas); o que importa é que todos foram advertidos de que o
encurtamento da devida distância entre seus filhos e eles ou outros adultos
pode ser (será) interpretado como um desenfreamento – aberto, sub-reptício
ou subconsciente – de seus endêmicos desejos de abuso sexual. Os
adultos e aspirantes a adultos ouviram a advertência, interiorizaram a
mensagem e absorveram a nova linguagem que serve à denúncia e à
explicação de afecções psicológicas. (DESSAL & BAUMANN, 2017, pgs. 44
e 45)

Essa exacerbação de desejos subvertidos se dá tanto de maneira expressa,


quanto virtualmente, é como se o “Super Eu” freudiano estivesse assumindo o papel
de reprimido e o ID o controle das pulsões. Não há ainda de generalizar tais
subversões, mas já é notado em grande parte da população um comportamento que
sai da liberdade sujeita e assume uma liberdade deliberada e amoral, que é
facilitada, indistintamente pela lógica proeminente do consumo, que se ampliou
vertiginosamente de Freud até os dias atuais.
Para DESSAL & BAUMANN, 2017, p.47, essa nova relação se dá da seguinte
forma:
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Com o que foi dito não se pretende dar a entender que os pais de hoje, ou a
maioria deles, fracassam no dever parental, socialmente esperado e socialmente
exigido, de formar/preparar a própria descendência de acordo com os requisitos
impostos pela sociedade que integram junto com os filhos. Longe disso, o que se
pretende dizer é que a sociedade para a qual os pais devem instruir ou educar os
filhos mudou. Já não é uma sociedade que molda seus membros principalmente
para os papéis de produtores e soldados, mas uma sociedade que exige de seus
membros a demonstração e a prática, em primeiríssimo lugar, das virtudes do
consumidor. Quando soa o alarme de uma iminente (ou já instalada) “depressão
econômica” (o nome hoje preferido para falar da “crise econômica”), os líderes
políticos e os especialistas não depositam suas esperanças de salvação no
aumento da produção industrial, mas no fato de que os consumidores comprem
mais bens e gastem mais dinheiro (incluindo o dinheiro que ainda não ganharam
nem podem ter certeza de ganhar no futuro). Os párias contemporâneos já não
são os que recusam ou não conseguem contribuir para os esforços produtivos,
mas os que fracassam em seus deveres de consumidores e ficam fora (ou são
expelidos) do jogo das compras. (DESSAL & BAUMANN, 2017, p.47)

Em síntese o que, outrora, era fruto de uma moral rígida e sólida, de uma
sociedade formada de produtores, tornou-se uma sociedade líquida formada de
consumidores, que são frutos de uma autonomia exacerbada e de valor contrário à
sociedade freudiana e que se tornou, extremamente, vulnerável pelo excesso de
autonomia e liberdade, promovida pela liquidez moderna, onde a retroação de
valores, superinflação de informações criou seres humanos indefesos quanto aos
seus próprios impulsos, pessoas livres demais para fazerem o que querem, sem
terem as devidas consequências de seus atos aplicadas.

Considerações Finais
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Referências

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