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A PSICOTERAPIA COMO O MAPA DA ALMA

João Marcos Ferreira Santos


ABSTRACT: This article has the objetive to open a new space for discussion
about themes that aren´t treated widely on how do we cure a mental or
spiritual decease on psicoteraphy.

RESUMO: Esse artigo tem como objetivo abrir um novo espaço para
discussões sobre temas que não são usualmente tratados sobre como
podemos curar uma doença mental ou espiritual dentro de um ambiente
psicoterapêutico.

KEYWORDS: Psicoteraphy, Biografy, Narratives, Possibilities.

PALVRAS-CHAVE: Psicoterapia, Biografia, Narrativa, Possibilidades

INTRODUÇÃO

Há um fenômeno criado pelas redes sociais chamado “Terapia de palco”1 -


termo cunhado genialmente pelo Dr. Paulo Pacheco em um texto de suas
redes sociais – que expressa o fato de o palco das opiniões ter sido tomado
por influenciadores (seja digitais ou midiáticos), enquanto os filósofos,
Padres, pastores e guias espirituais, num surto de humildade e
subserviência, saíram dos holofotes de guias culturais para a sombra frígida
dos esquisitões que dizem uma coisinha ou outra condizente com o
imaginário popular. Especificamente no Brasil temos uma onda de terapeutas
que assumiram os holofotes de arautos da masculinidade e tradição, alguns
autoproclamados polímatas aos 25 anos. Apesar de ser um alívio perceber
que uma parcela da população se conscientiza de estratos mais elevados de

1
O texto em questão já não se encontra mais disponível nas redes sociais do autor, seja qual for o
mo vo. Apesar disso, devo os créditos ao Dr. Paulo de Andrada Pacheco por ven lar a ideia que se
tornou o pressuposto deste ar go. Vale ressaltar que apesar de parecer efêmero como uma fonte que
abre o pressuposto deste ar go, o texto em questão dá voz a um desconforto crescente dos
profissionais de saúde e de seus pacientes que são enormemente afetados por esse po de a tude
por parte dos pretendidos “terapeutas”.
sua vida, é preocupante a maneira com que essas ideias são manejadas e
absorvidas por elas.

O problema disso não é a aparência cartunesca do que é ser um terapeuta,


mas o pouco compromisso que se tem com a cura, a reintegração do homem
em sua biografia.

A formação de terapeutas e psicólogos no Brasil começa quando alguém se


sente capaz de atender os mais diversos tipos de sofrimentos físicos, mentais
e espirituais por ler alguns livros sobre mindset, religião e autoajuda. Se o
problema se resumisse a isto, estaríamos um passo mais perto de uma
solução, mas ele está em dois extremos (como toda a hetero-diversificação
humana). O outro lado da mesma moeda é definido pelos cientistas do
comportamento, profissionais nos quais a técnica pura vence toda a
manifestação da personalidade que é um dos veículos que conduz a terapia
até a integração de todos os seus substratos. Entender o atual panorama de
como a formação de terapeutas2 do Brasil é, também, mergulhar na
profundeza de uma intelectualidade enrustida da dualidade desejo-paixão.

A influência de Sigmund Freud (maio de 1856 – setembro de 1939) e de sua


psicanálise foi profundíssima tanto na cultura popular quanto na literatura
acadêmica brasileira.

A psicanálise surgiu como uma resposta às teses agressivas do fisicalismo


alemão e o psiquismo3 exacerbado como uma solução que unisse duas
pontas teóricas que se descolaram de algo essencial ao homem comum: a
experiência da realidade com um mundo mental desordenado – e, na melhor
das hipóteses, inconsciente. A técnica, assim como a vida anímica, transita
entre as planícies abissais do Inconsciente e do Ego buscando um ponto de
equilíbrio para iniciar a análise das forças psíquicas de resistência.

2
Evidenciando que um terapeuta e um psicólogo convergem e se distanciam
na medida que se entende melhor o itinerário de prevenção-intervenções
associadas a profissão
3
O psiquismo para o intuito deste texto é o movimento inverso da psicologia
experimental de Wundt, sendo assim, é o termo que achei mais próximo a
antítese do fisicalismo,
Entretanto, para uma maior imersão dentro da técnica e dos procedimentos
da psicoterapia se faz necessário um mergulho na linguagem, Afinal, ela
existe dentro de um cenário de domínio etimológico profundo e flexível,
objetivo das “talking cure”. A base da análise deve partir de um referencial
claro e a capacidade de articulação de diferentes tipos humanos que
complementam a razão em busca da totalidade da experiência. Como o
próprio Freud diz, devemos “olhar para dentro de si mesmo, para sua própria
profundeza, aprendendo a se conhecer”. Temos no próprio referencial o
abismo no qual devemos mergulhar para encontrar o inconsciente, anterior
ao próprio anímico do homem.

Dentro de um escopo terapêutico não é possível que trate-se uma parte do


homem enquanto as suas outras dimensões constitutivas continuem doentes.
A terapia deve ser um esforço multidisciplinar do terapeuta, não só um
enquadro teórico que contempla uma faceta ou outra do homem. Nos termos
mais básicos, o homem tem três dimensões que pedem formas diferentes de
aproximação, isto é, o homem possui um corpo, uma alma que o dá vida, e
uma mente (ou espírito) que o anima.

Todo e qualquer método terapêutico deve ter como o seu centro a psique
integra, sã e a dignidade do ser humano. Não há nenhuma dúvida de que o
ser humano se desdobra em uma infinidade de traços e particularidades que
seriam impossíveis descrever com precisão e justiça a cada uma destas. A
grande questão a responder, ao observarmos os métodos disponíveis, é
descobrir até onde cada tipo de abordagem pode nos levar dentro do
progresso terapêutico e a dignidade do paciente que nos busca como uma
oportunidade de ascender nos degraus de tornar-se pessoa.

A estrutura da psique humana pode ser descrita de diversas maneiras, mas


para uma ampla e reintegrativa perspectiva da mente, é necessário ver como
ela se estrutura. Olavo de Carvalho, em seu livro “O saber e o Enigma:
Introdução ao estudo dos Esoterismos”4, nos apresenta uma percepção
simbólica (e não menos concreta que quaisquer outras) acerca da estrutura
da realidade, mais ou menos, percebida pelo homem em seis forças
diferentes que formam o espaço biográfico em que todas as possibilidades
humanas podem estar circunscritas – que serão apresentadas de maneira
sucinta:

● Origem: é o local de onde toda vida humana surge. A vida cotidiana,


os afazeres, a família e os hobbies.
● Fim: é para onde a essência humana aponta, seu fim último enquanto
ente racional e livre. O fim é a consequência final das escolhas e
perguntas essenciais que a vida humana abarca; “quem sou eu?”,
“qual é o motivo da minha existência?”, “eu perduro ou tudo acaba?”.
São todas as dúvidas que nortearam a vida humana desde seu
primeiro momento.
● Social: é o embate em que o indivíduo se insere ao conviver num certo
meio e ter seu intelecto bombardeado por imposições deste meio. É a
velha crise do bom selvagem versus o pequeno burguês.
● Natural: é uma força autoexplicativa. É aquilo que é mais próprio do
indivíduo como pessoa e todo o espectro de atitude e escolhas que é
esperado desde sua faixa etária, personalidade (entenda-se como
temperamento ou caráter), vivência e condição social.
● Imanência: dentro da terminologia clássica, o imanente é o ente que
tem o fim em si mesmo, ou seja, ele já é dado completo aos sentidos.
É pura matéria sem causa. Para nós é ligeiramente diferente, a
imanência como força constituinte do universo imaginativo humano
representa a abertura ou o total fechamento da inteligência humana
em nada mais daquilo que é quantificável e mensurável por um
método (Descartes, Hegel, Kant e todo o panteão de
filósofos/cientistas que tentaram enquadrar a totalidade do real num
método).

4
Olavo de Carvalho. O saber e o Enigma: Introdução ao estudo dos Esoterismos Editora
Vide, Campinas. SP., 2022.
● Transcendência: é a abertura ao metafísico ou as facetas da realidade
que o levam a uma unidade que preencha sua inteligência além do
impacto direto da matéria e da sua inconstância.

Por tais motivos é necessário que o aspirante a terapeuta saiba que o


sofrimento humano pode manifestar-se em seis graus diferentes e em três
pares de perguntas e respostas (mais ou menos dadas) que dão indícios do
mistério que é o ser humano. Nomeadamente, os seis sofrimentos possíveis
ao homem são a dimensão física, emocional, familiar, social, intelectual e
espiritual que se colocarmos organizadas nas tensões correspondentes
ficariam: origem-fim/dimensão física-espiritual (psicanálise-ascese),
social-natural/dimensão familiar-social (Adler-Ortega y Gasset),
imanente-transcendente/dimensão emocional-intelectual (abertura às
possibilidades imanentes e transcendentes pela grande literatura e as castas
Hindus).

I – AS DUAS PONTAS SOLTAS NA PSIQUE: O DESEJO E A PERFEIÇÃO

Começando pela ordem acima exposta, vamos analisar o primeiro par de


técnicas, teses e tensões do homem sob o prisma da origem-fim. Há a
necessidade de explicar que o sentido espiritual da vida humana é diferente
de para onde tende toda a essência humana, a psicanálise e a ascese
respondem (dentro da proposta deste artigo, ao menos) a questão mais
imediata do homem: para onde vou eu ao viver essa vida?

É preciso notar que, dentro das possibilidades da técnica analítica Freudiana,


pode-se achar uma enorme gama de possibilidades para a resolução da
tensão que impulsiona o homem a procurar dentro de si um ponto estável
para pautar sua biografia.

Mas é preciso deixar claro que deve ser respeitado todo o referencial deixado
pelo criador e seus estudiosos.
A aplicabilidade da psicanálise precisa ser levada em consideração, como
citado em diversas passagens da obra “Fundamentos da Clínica
Psicanalítica”5.

Conforme se lê: “podemos exigir certo grau determinado de inteligência


natural, e de desenvolvimento ético; no caso de pessoas desprovidas de
valores, logo o interesse abandonará o médico, interesse que no início o
capacitava a se aprofundar na vida anímica do doente.”

Ou seja, é necessário de ambas as partes, médico e doente, a sintonia


própria de um processo terapêutico, o que está estritamente ligado, também
ao sucesso do mesmo, principalmente quando se considera a aptidão do
analista de formular as vias de escape para a estruturação moral do paciente.

É papel intrínseco do profissional envolvido de ser como um guia para que o


paciente possa encontrar dentro de si o caminho mais certeiro possível para
que se possa encontrar entre atos falhos e as repulsas o que andava oculto
na vida inconsciente e trazer por meio da tradução dos sintomas a unidade
perdida.

Por isso se faz expressamente necessário para a prática pessoal e clínica da


análise uma formação humana continuada e multidisciplinar desse
profissional.

A perspectiva da recuperação plena do paciente está relacionada com o


objetivo para o qual a inteligência do terapeuta está voltada. Diferentes
percepções de mundo, mesmo dentro de uma mesma técnica, podem afetar
sutilmente o caminho escolhido.

A própria psicoterapia é tão velha quanto a medicina. O objetivo é que o


psicoterapeuta se torne um médico da alma. Tudo que fuja a esse preceito,
foge ao objetivo. Sigmund Freud em sua conferência “Sobre a Psicoterapia”,

5
Freud, Sigmund. Obras Incompletas; Fundamentos da Clínica Psicanalítica.
Editora Grupo Autêntica, tradução Claudia Dornbusch. 2021, Belo Horizonte -
MG
diz que para as técnicas analíticas e as demais existe um enorme contraste,
o mesmo contraste que: “[...] o grande Leonardo Da Vinci condensou para as
artes nas fórmulas per via de porre e per via di levare. A pintura, diz Da Vinci,
trabalha per via de porre; é que ela coloca montinhos de tinta onde eles não
existiam antes, na tela sem cores; a escultura, por sua vez, procede per via di
levare, já que retira da pedra o necessário para revelar a superfície da
estátua. [...]”.

Da mesma forma, as técnicas diversas da psicologia se contrastam com


relação à técnica analítica.

I.2 – AS PULSÕES E AS VIRTUDES

As pulsões (Trieb, em alemão) são os conceitos basilares do edifício teórico


da psicanálise. São os mitos fundacionais de toda a vida consciente e
inconsciente da pessoa humana.

São as figuras essenciais que sondam nossa vida noturna, a linha fronteiriça
entre o conhecido e o mistério da natureza humana.

Toda pulsão é, essencialmente, vida ou morte. Sempre andam em pares de


opostos, como nos mitos mais antigos. Adão e Eva, Shiva e Shakti, Yin e
Yang. Em certos círculos, toma termos como Salvação e Redenção. A pulsão
é tanto resistência (assumindo a re-pulsão), como sublimação (ganha-se a
im-pulsão).

Há, entretanto, uma faceta pouco explorada dentro desse jogo de opostos; as
pulsões sendo anteriores ao aparelho psíquico e ao Ego, é, também, veículo
da natureza humana, a qual foi ignorada nos séculos XIX e XX.

Não é possível desarticular da vida dos impulsos as disposições naturais do


homem ao bem e mal. A psicanálise é um braço forte da ciência moral
platônica apresentada em “O Banquete”, assim como no Sermão da
Montanha do Evangelho, do Alcorão, do Dharma Hindu e da Torá judaica,
também podemos notar que há pontos confluentes entre a psicanálise e a
moral.

Dissociar a moral da normalidade e do objetivo de cura é ceifar a liberdade


humana diante do mundo à um círculo limitado de escolhas já dadas.

O destino natural do homem é a ser livre, e não o solipsismo infernal de


sofrimento autoimposto.

Podemos traçar junto da técnica a ser aplicada uma “via purgativa” pessoal
para cada sofrimento de nossos pacientes.

O sofrimento é o júri da vida moral de cada um que o vive, de modo que sem
a investigação do sofrimento o homem estará fadado à escuridão e ao exílio
de sua própria circunstância.

Quando o indivíduo negocia aquilo que por essência é inegociável surge


como uma pústula no centro de sua psique, como evidenciou Olavo de
Carvalho citando Caruso:

“A repressão da consciência moral, como demonstrou


Igor Caruso, está na base de muitos distúrbios
neuróticos. A neurose apoia-se num complexo jogo de
racionalizações e compensações que falseia
completamente a posição existencial do indivíduo, como
uma bússola viciada.”6

No fundo, o sofrimento abordado dentro de nossos referenciais é uma falha


biográfica na vida do indivíduo. É uma das intenções da tradução das pulsões

6
CARVALHO, Olavo de. O abandono dos ideais, Aula do curso “Introdução à vida
intelectual”, setembro de 1987, reproduzida sem alterações. Transcrição de aula. Disponível
em: https://olavodecarvalho.org/o-abandono-dos-ideais/ Acesso em 10 de jul. 2022.
alinhar a vida moral daquele que está sofrendo. Todo ser humano tem
potências para realizar-se em pessoa.

I.3 – A ESTRUTURA DO EGO E A SUBSTÂNCIA NARRATIVA

A estrutura do Ego aparece como uma consciência transitória que, segundo o


livro “Eu e o ID”, na sua primeira edição em 1920: “seja, ela mesma, em
grande parte inconsciente; somente uma parte dele, provavelmente, é
abrangida pelo termo “pré-consciente”. Temos como objetivo terapêutico – e
especificamente na psicanálise – tornar aquilo que é inconsciente em
“pré-consciente” e consciente utilizando dos estados de repressão que para
nós é “o protótipo do inconsciente". Percebemos, contudo, que temos dois
tipos de inconsciente: um que é latente, mas capaz de tornar-se consciente, e
outro que é reprimido e não é, em si próprio e sem mais trabalho, capaz de
tornar-se consciente”7.

A tradução dos estados dinâmicos do inconsciente pode nos evidenciar que


há ali uma grande falha na estrutura do mundo interno da pessoa.

O Ego nos serve como uma linha fronteiriça do interno com o externo, é a
pele de nossa mente que experimenta o mundo com a intensidade e reage
ao mesmo. É a instância do consciente que absorve em si dois tipos de
função: a narrativa e a social, estando distante das raízes do Eu humano que
rege toda a estrutura psíquica.

A camada social é um Eu adaptado ao ambiente e suas estruturas, é onde


encaixamos as categorias de ação e padecimento. Estamos falando da
camada mais transitória da experiência humana geral, pouco diferenciada de
qualquer outra que se apresente no estar no mundo presente. O grande
drama da estrutura da personalidade humana começa quando abordamos
como o Eu-Narrativo “está-aí”.

7
FREUD, Sigmund. EU e o ID, tradutor Bernard Jolibert. Editora Massangana, Recife – Pernambuco
1920[2010], pg. 16
Há uma gama de sofrimentos humanos que começam quando não se
reconhece como uma “Individua substantia rationale” (indivíduo de substância
racional pessoal na filosofia clássica) e torna-se incapaz de traduzir por si só
aquilo que vê e experimenta. A tradução dos fenômenos em narrativa é o
fator primeiro da ordenação moral.

Considerando que no processo analítico existe uma revisão do jogo de


tensões de vida (Eros) e morte (Tânatos), é preciso fazer uma revisão
biográfica da vida do paciente, desde sua infância e a resolução do complexo
de Édipo até a neurose de culpa reprimida.

Carregamos conosco o fio prateado de Ariadne para guiarmos o paciente


pelo labirinto do inconsciente para o centro de sua psique. O eixo biográfico
corrompido gira dentro de uma vivência masoquista de sua história. Enfim, a
restituição da capacidade narrativa é essencial ao quadro terapêutico. Não
podemos negar que a vida humana é sempre em primeira pessoa, a
qualidade do mundo em que vivemos dá-se em como construímos os
cenários em que nossa vida se desdobra. Em 1958, no livro “Que é filosofia?”
do filósofo José Ortega y Gasset temos a seguinte passagem sobre a
questão do homem e sua biografia:

“Nossa vida começa por ser a perpétua surpresa de


existir, sem nossa anuência prévia [...] Um símile
esclarecedor seria o de alguém que, adormecido, é
levado aos bastidores de um teatro e ali, despertado por
um empurrão, é lançado a toque de caixa diante do
público. [...] Esse personagem [...] se acha envolvido
numa situação difícil sem saber como nem por que, numa
peripécia: a situação difícil consiste em resolver de algum
modo decoroso aquela exposição diante do público, que
ele não procurou nem preparou nem previu. [...] A vida é
sempre imprevista. Não nos anunciaram antes de entrar
nela [...], não nos prepararam"8.

O psicoterapeuta tem esse papel de ajuste e revisão de narrativas, de vida


moral ou imoral. Liberta-se o sofredor de seu fardo, sendo evidente o
benefício de uma narrativa preparada e organizada, já que um dos grandes
males de nosso tempo é a vida impessoal, sem propriedade.

A vida morna é a ruína da normalidade.

Cabe justamente ao profissional despertar em seus pacientes e em si mesmo


o desejo de perfeição que “é um movimento da alma para um bem ausente.
Difere, pois, do gozo, que é a satisfação do bem presente. Pode ser dividido
em duas espécies: o desejo sensível, ou o impulso apaixonado para o bem
sensível ausente; o desejo racional, que é um ato da vontade que se inclina
para um bem eterno. Às vezes esse desejo repercute sobre a sensibilidade,
misturando-se com o sentimento.”9

A questão da ascese dentro do processo terapêutico é uma saída viável para


o problema de transformação da vida pulsional em benefício do indivíduo,
para a sublimação dessa culpa em desejo de integração. É preciso assumir,
com as novas demandas de nossos pacientes, cada vez mais uma posição
de Hermes Psicopombos, o viajante das profundezas. Assim como o
mensageiro dos “deuses” devemos ser o emissário das verdades
inconscientes diante da complexidade da mente humana. Por isso, devemos
alertar que esse processo da perfeição humana é penoso e durante o
percurso “são muitos os obstáculos que tendem a sufocar ou ao menos
enfraquecer esse desejo: a tríplice concuspicência, [...] o horror das
dificuldades a serem superadas; a renovação constante e imprescindível dos

8
GASSET, José Ortega Y. “O que é filosofia?”, Tradutor Felipe Denardi. VIDE Editorial –
Campinas, São Paulo. 1971[1958], p. 168.
9
TANQUERREY, Adolphe, Teologia Ascética e Mística. Tradutor Dalton César Zimmermann.
Editora Ecclesiae Campinas - São Paulo 1924[2018].
esforços para corresponder e progredir. Por isso precisamos estar bem
convencidos da sua necessidade e meios para reavivá-lo.”10

Podemos citar alguns meios para a perfeição, porém o mais efetivo e que se
reaviva com cada manhã é a sexualidade, que não é mero deleite
momentâneo que vive entre picos de dopamina e vazios existenciais infinitos.
O ciclo sexual hedonista que a modernidade instaurou reduziu o tamanho da
sexualidade humana em uma simples fruição.

O Eros humano é o desejo do inteiro, do infinito contido em cada palavra e


cada sulco de nossa circunstância, o enlace afetivo se dilata ao laço que nos
une pelo que amamos e não pela tolerância que nos difere maximamente.
Onde há a sexualidade humana, há a válvula de escape para uma perfeição
própria de cada indivíduo.

Tudo aquilo que diminui a estatura dessa substância que busca dizer um Eu
perfeito é cilada e fechamento. O terapeuta é o descobridor de abismos e um
peregrino que busca a fonte da perfeição de cada pessoa que passa em seu
consultório.

O ofício próprio do tratamento é dar forças o suficiente para que essa força,
até então oculta, jorre em um gozo perfeito de sua capacidade e sublime na
imagem mais perfeita do homem. Nossa função como pessoas singulares é
estarmos dispostos a pagar o preço para ter-se a si mesmo, todo o resto é
remediável, menos a sua biografia e como você leva a cabo sua existência.

II – A INSERÇÃO DO HOMEM NO MEIO SOCIAL.

Tendo unido (por uma das várias vias possíveis) aquilo que está para baixo
com aquilo que está para cima, como na passagem bíblica onde Jacó, no
livro de gênesis, capítulo 28:11-12, o homem tem a revelação de Deus (ou
como expressão simbólica do conceito hermético de unidade):

10
TANQUERREY, Adolphe. Teologia Ascética e Mística. Tradutor Dalton César Zimmermann.
Editora Ecclesiae, Campinas - São Paulo 1924[2020].
“E chegou a um lugar onde passou a noite, porque já o
sol era posto; e tomou uma das pedras daquele lugar, e a
pôs por sua cabeceira, e deitou-se naquele lugar. E
sonhou: e eis era posta na terra uma escada cujo topo
tocava nos céus; e eis que os anjos de Deus subiam e
desciam por ela.”11

A escada de Jacó é a alusão entre forças cambiantes ao inconsciente


humano, as quais Freud classificava como pulsões que ascendiam e caiam
de maneira livre durante a vida psíquica individual. No decorrer de toda a
história da humanidade lidamos com esses opostos complementares: Shiva e
Shakiti, Adão e Eva, causa e efeito. Ubersmensch e Natursmensch (na
terminologia usada por Nietzsche em Assim falou Zarasthustra [1885]). A
resolução das tensões verticais da vida humana clareia o jogo de forças
horizontais – ou materiais, se assim preferir evidenciá-las. A próxima questão
aparece no processo do homem perceber-se incluso em um “organismo”, o
homem diante da pólis, do múltiplo, da alteridade entre um Eu e o outro, o Tu.

Inscrito numa comunidade, o homem passa a lidar com uma camada do ego
que antes não havia percebido: abre-se aí o Eu social ou responsável,

Adler cita em seu livro A ciência de viver que o objetivo da psicologia


individual é “o ajustamento social". Isso pode parecer um paradoxo, se o
fosse, seria apenas um paradoxo verbal. O fato é que, só quando atentamos
na vida psicológica concreta do indivíduo, chegamos a entender como é
importante o elemento social. O Indivíduo será indivíduo somente com o
convívio social.”12 A vida social é a abertura para a noção dos conceitos mais
básicos da vida cotidiana que começam a ser intuídos a partir das pequenas
organizações simbólicas presentes em nossa vida desde o primeiro
momento, o momento no qual o nome que evoca sua presença faz sentido. O
11
Gênesis, Capítulo 28:11-12. Editora Pastoral.
12
José Olympio, trad. Thomas Newlands Neto, 5a edição, 1956
quarto e a sala de aula são esses dois extratos simbólicos nos quais o
indivíduo começa a fechar os primeiros contornos da personalidade primitiva.
O quarto representando um meio próximo e íntimo, toda a gama daquelas
experiências que dizem aquilo que é mais pessoal a você.

Permitindo a extrapolação analógica, podemos entender partes da vida


psíquica sútil - se assim podemos chamar esta faceta jogada para um canto
da consciência à medida que as estratificações sociais vão se tornando mais
complexas. Dentro dessas duas possibilidades primárias (tanto por
cronologia quanto por experiência - assunto que será trabalhado
posteriormente neste artigo) ao inconsciente individual, o quarto é a instância
prima de reabsorção do homem em sua própria vida. É sempre no leito e na
mesa onde o homem encontra seus anseios mais naturais, isto é, a
subsistência e segurança. É nesse recanto psíquico onde há a constante
significação entre o que é mais individual e as limitações autoimpostas pelo
convívio, sendo este aprendizado saudável ou não.

II.2 - O PROCESSO LINGUÍSTICO E A REABSORÇÃO DA


CIRCUNSTÂNCIA

Parte do embate das forças naturais e sociais intrínsecas à formação do


caráter humano é proporcionado pelo acervo de possibilidades linguísticas
que um indivíduo recruta, no processo de descobrimento de uma “individua
substantia rationale”. É no processo de organização desse “quarto”
imaginário e no ato de encarar o que está fora, ou na instância mais primitiva
das relações interpessoais, a sala de aula torna-se o contato efêmero com a
circunstância. Platão, em seu Diálogo Eutidemo – e os gregos como um todo,
salienta o quão importante é o processo linguístico característico do processo
de inserção do homem a sua Pólis (ou comunidade política, entendendo-se,
primeiramente, que tal comunidade é um espaço que protege e propele o
indivíduo pessoal a sua máxima capacidade de agir);
“Em primeiro lugar, como diz Pródico, temos que
aprender o sentido das coisas, o que é precisamente o
que os nossos dois visitantes estrangeiros estão
salientando, ou seja, que não compreendemos que
indivíduos usam a palavra aprendizado não só na
situação em que alguém que desconhece uma coisa
inicialmente passa a conhecê-la posteriormente, mas
também quando alguém já conhece (já possui esse
conhecimento) o utiliza para investigar a mesma
-matéria.”13

Todo recurso expressivo adquirido por meio da experiência ocorre na medida


em que, de maneira proposital ou não, traduz a instalação de si mesmo em
um espaço físico propício à dilatação do encontro de duas solidões, que se
abarcam em um horizonte de possibilidades diversas. É no processo de
domínio dos referentes linguísticos que a humanidade estabilizou seus
primeiros símbolos primitivos e coletivos. Há, entretanto, um fenômeno de
empobrecimento da capacidade de desenvolvimento da linguagem além da
literalidade dos termos apontados por um acordo semântico. Percebe-se
cada vez mais uma paralisante incapacidade de encontrar-se inscrito em uma
circunstância e partindo disso saber quais são as ferramentas acessíveis ao
descobrimento de si.

A própria palavra circunstância, que denomina todo o conjunto de situações


determinantes dos meios acessíveis de uma realização primária, processo
de amadurecimento, se torna uma incógnita: tratar circunstância como uma
simples sucessão de coincidências e atos acidentais de um indivíduo, que
definem o segmento da sua vida inconscientemente, é uma redução da
dignidade e liberdade plena a um ciclo de feedbacks positivos e negativos,

13
Platão, Dialógos II - Eutidemo 278a, Tradutor Edson Bini, Editora Edipro. São Paulo - São
Paulo, 2020. pg, 184
uma conversa dialógica entre punições e recompensas. A circunstância
também é constituída dessa faceta, mas há nela algo menos situacional que
as reações biológicas ou vegetativas, circunstância vem da palavra latina
circun-stare14 que tem como um de seus vários signos aquilo que circunda,
aquilo que abraça, porém, aquilo que mais interessa ao sentido aqui descrito
é compreender a palavra fora da sua expressão literal; mas buscar uma
possibilidade melhor para a direção para a qual a psicoterapia precisa
apontar, e definir um como e um porquê. É importante que se saiba, dentro
de um processo terapêutico, que o porquê de tal ação e padrão ser
recorrente não só a nível pessoal, mas coletivo, e como se desenrolou a
sucessão de fatos de maneira que me impactasse mesmo sem que eu
precisasse, necessariamente, estar num determinado espaço-tempo. O
porquê precede o como da mesma maneira que justifica a sucessão. A
circunstância é, então, constituída de uma parte acidental a si mesma e outra
tensional, isto é, somos inscritos (jogados, se assim preferir) num certo
tempo, família, sociedade e crenças que sustentam a mesma certeza de que
o sol nasce pelas manhãs e de uma faceta que pertence a mim salvar.

II.3 - EU E A CIRCUNSTÂNCIA: SALVA-SE O HOMEM OU AFOGA-SE.

Em “Meditaciones del Quijote” nos é apresentado, por meio de Ortega y


Gasset, o fato que o homem é justamente esse aglomerado de situações
consignadas, de inclinações e escolhas que estão aí, na realidade, de tal
maneira, que pode vir a ser algo: um herói, como o Odisseu que em sua
epopeia não buscava nada além de Ítaca, sua pequena ilha e lar; ou um ser
deplorável, tal qual Julién Sorel. Apesar de termos toda essa dilatação no
agir e ser, é necessário milhares de fatores para que se apresente uma

14
Ortega, durante toda a sua obra, nos coloca frente a essa palavra. Circunstância, dever, Dharma para
o autor são sinônimos de uma tragédia cômica ao qual o homem é jogado, como que à deriva para
solucionar o mistério de si mesmo. Há tantas passagens especificas as quais poderíamos salientar
nesta nota. Creio que seja mais proveitoso explicar o sen do geral da palavra para o ar go em
questão.

Circunstância nos serve como a inscrição do homem no solo de sua própria vida, nas crenças e na
vivência. A ex-periência de si mesmo.
narrativa com a qualidade distinta como os dois personagens excepcionais
(um sendo quase divino, o Odisseu e o outro sendo demasiadamente
humano – e por consequência falho -, nosso querido e intrigante Julién
Sorel), busquemos antes uma abordagem mais próxima do cotidiano do
homem comum, talvez algo como os personagens do nosso saudoso judeu,
Philipp Roth em seu “Homem comum”15 . A vida humana é um perpétuo
naufrágio, pode-se até duvidar em algum grau de que a interface da sua
existência seja uma interrogação, uma questão de prioridade máxima. Ortega
y Gasset afirma de forma categórica em rebelião das massas que:

“Porque a vida é inteiramente um caos onde a criatura


está perdida. O homem o suspeita; mas aterra-o
encontrar-se cara a cara com essa terrível realidade, e
procura ocultá-la com um véu fantasmagórico onde tudo
está muito claro. Não lhe interessa que suas “idéias” não
sejam verdadeiras; emprega-as como trincheiras para
defender-se de sua vida, como espantalhos para
afugentar a realidade. Homem de mente lúcida é aquele
que se liberta dessas “idéias” fantasmagóricas e olha de
frente a vida, e se convence de que tudo nela é
problemático, e se sente perdido. Como isso é a pura
verdade – a saber, que viver é sentir-se perdido -, quem o
aceita já começou a encontrar-se, já começou a descobrir
sua autêntica realidade, já está no firme.”16

E continua em seguida:

15
Todos os personagens citados acima são pertencentes a literatura clássica. As aventuras de Ulisses
(ou Odisseu) podem ser vistas em Iliada e Odisséia. A história de nosso querido padre Sorel em
Vermelho e o Negro – Stendhal. Não irei recomendar alguma edição em específico, há inúmeras
traduções das obras e a preferência por uma ou outra é pessoal.
16
ORTEGA, José Ortega Y. A Rebelião das Massas. Tradutor Felipe Denardi. Vide Editorial, Campinas
-São Paulo. 2016 p. 239
“Instintivamente, como o náufrago, buscará algo para se
agarrar, e esse olhar trágico, peremptório, absolutamente
veraz porque se trata de salvar-se, lhe facultará pôr
ordem no caos de sua vida. Estas são as únicas idéias
verdadeiras; as idéias dos náufragos. O resto é retórica,
postura, íntima farsa. Quem não se sente de verdade
perdido perde-se inexoravelmente; é dizer, não se
encontra jamais, não topa nunca com a própria
realidade.”17

Uma pessoa encontra-se à medida que permite estar totalmente assentada


na sua circunstância e uma das maneiras mais patentes de se dominar e
amadurecer enquanto indivíduo se dá no trato, no fato de que o trato
experimental entre um Eu e um Outro é a maneira mais flagrante de se
perceber.

No fim das contas, a vida humana é um incrível turbilhão de coisas que


acontecem e aparentemente “desacontecem”, isto é, são esquecidos numa
geração seguinte e redescobertas séculos depois. Novamente recorremos ao
pensamento afiado de Ortega em “O homem e os Outros” que aponta um
grande problema que se encontra incrustado na vida de todo homem
moderno:

“Nunca me esquecerei da surpresa tingida de vergonha e


de escândalo que senti quando, há muitos anos,
consciente de minha ignorância sobre este tema (que
citamos logo acima, isto é, a maneira que o homem se
insere dentro de sua circunstância por meio da
experiência do meio imediato familiar e as instâncias
mais básicas da sociedade), corri, cheio de ilusão, içadas
todas as velas da esperança, aos livros de sociologia, e
me deparei com uma coisa incrível, a saber: que os livros
17
Ortega y Gasset. A Rebelião das Massas. Tradução: Felipe Denardi. Vide Editorial. São Paulo. 2016 p.
239
de sociologia não nos dizem nada claramente sobre o
que seja o social, soque o que é a sociedade.”18

Das grandes dificuldades do amadurecimento nos últimos 30 anos vem de


uma desconexão da história universal da história pessoal, causa um
estranhamento, um distanciamento do si mesmo levando ao esquecimento. O
homem é aquele indivíduo que precisa o tempo todo relembrar que é algo
além de animal, de reviver a experiência de tornar a si mesmo um ser-aí19
social. Uma das consequências mais diretas desse distanciamento histórico
entre o Eu e o mundo é o complexo de inferioridade e a ausência de sentido
próprio de vida, como Adler deixa descrito em A ciência do Viver, dizendo que
“os desajustes sociais são consequências do complexo de inferioridade e a
busca pela excelência. Os termos complexo de inferioridade e de
superioridade já evidencia uma alteração causada pelo mesmo. Tais
complexos não estão no genoma humano ou na corrente sanguínea: eles
simplesmente acontecem no curso natural da interação de um indivíduo com
seu entorno.”20.

O primeiro passo para a reabsorção de toda essa realidade alheia ao


observador que, diferente da literatura, se vê impossibilitado de criar o
panorama perfeito do mundo que o permeia, é conseguir reconstruir a
memória linguística de todo o universo sociológico e simbólico que herdou.
Sem tal esforço constitutivo da inteligência de auscultar o mundo,
provavelmente o homo sapiens não seria nada mais que uma possibilidade

18
ORTEGA, José Ortega Y. O homem e os outros. Tradutor Felipe Denardi. Vide Editorial,
Campinas, São Paulo, 1983[2017]. pg, 31.
19
Os termos que envolvam como o ente está inserido dentro da realidade da qual é par cipante e não
o motor dos acontecimentos, ressaltando o local próprio de uma criatura que conta uma biografia, são
todos dados fenomenológicos, ou seja, viver é um fenômeno que o homem precisa aprender a
observar par ndo do centro de sua existência (leia-se como seus ques onamentos essenciais
referentes a espécie e aqueles que surgem de si como indivíduo de substância pessoal) para os
acidentes à sua volta. Afinal de contas, nossa vida é cons tuída de poucos fatores essenciais e uma
miríade de acidentes que personalizam o percurso de ter-se dominado.

20 [1]
A ciência de viver, página 215; (1929) 1930. Adler, Alfred. Editora George Allen Unwin
LMTDA. (Tradução feita pelo autor do artigo em questão devido às severas limitações
linguísticas das traduções encontradas em fontes de grande circulação (internet e algumas
editoras em específico)
esquisita e distante. Não há uma personalidade estável que não saiba
descrever a tradição à qual está inserida, mesmo que com recursos limitados.

III – A TRANSCENDÊNCIA E IMANÊNCIA COMO HORIZONTES DE


EXPERIÊNCIA

As forças finais que moldam o horizonte de experiência acessível a um


indivíduo são justamente os fundamentos da realidade que nos dão as três
dimensões do mundo físico. A ordem de exposição de cada força muda
imensamente o resultado da construção de uma psique íntegra e
autossustentável - como as polis gregas. Todo o percurso do artigo até aqui
serviu-nos como uma espécie de mapa cosmográfico (pouquíssimo refinado,
diga-se de passagem) de uma fração do microcosmo humano. Por último,
porém não menos importante, vamos falar do ponto onde a inteligência pode
prender-se no reino das leis quantificáveis e ambientais ou subir um degrau e
observar a trepidação do manto negro que a cobre.

A melhor aproximação para o entendimento dessas duas forças


diametralmente opostas deve ter a literatura universal como base, afinal, a
imanência e a transcendência dizem respeito às possibilidades do homem
enquanto ser ordenador da própria matéria, ou seja, um ser dotado de alma
racional. Não há meios de uma técnica englobar com precisão a magnitude
da experiência humana sem limitá-la em seus termos, seja ela qual for: da
psicanálise à logoterapia, todos os modelos definem a experiência humana
dentro do jogo de ferramentas aos quais se propõem a articular e, muitas das
vezes, limitam o horizonte a meras pulsões ou conceitos abstratos (como
sentido, imaginação ativa e inconsciente). Evidentemente, cada tipo de
apreensão tem seu lugar de ser e o momento de ser aplicada dentro do
consultório, mas deve-se notar que todas elas precisam de um uma base
forte de tipos humanos e de possibilidades narrativas para que possam ser
desenvolvidas para o bem do paciente ou aprendente.
Um dos modelos possíveis de encaixe dos vários tipos possíveis de pessoas
é pelas quatro castas hindus, pelas quais define-se qual é o pano de fundo
daquela existência pessoal. Porém, pessoalmente, gosto de perceber as
quatro castas da mesma maneira que Dostoievski descreve São Petersburgo
ou Moscou: como um personagem quase imperceptível que dirigia a trama de
longe, como um superior oculto que via de perto cada segundo vivido.

III.2 - AS QUATRO NARRATIVAS COMO AJUSTE DE PERCEPÇÃO

Antes de expor como cada uma destas narrativas funcionou idealmente, é


preciso entender o porquê desse enquadro simbólico ser tão preciso e
utilizado por literatos e autores dos mais diversos ramos do saber humano.
Elas foram utilizadas para expor um certo tipo de pessoa, para a exposição
de uma hipótese ou mesmo para a construção de um drama infernal sobre a
culpa.

As narrativas podem ser dívidas em inferiores e superiores, mas diferente da


Índia, onde você ao nascer tem todo seu destino definido por uma herança
familiar ou por circunstâncias que não estão sob suas competências
(enquanto residente do local onde nasce, já que para ser um hindu há a
necessidade de nascer na Índia) para nós, ocidentais, essas narrativas
competem de maneira simultânea dentro da vida cotidiana, nas mínimas
escolhas que fazemos. O ideal do homem ocidental durante muitos séculos
era a unidade pessoal a unidade do Deus, a reintegração total da interface do
livre-arbítrio ao seu ser criador; mas com a perda do norte intelectual e moral
no ocidente, a possibilidade metafísica de alçar voos em nas altitudes
estratosféricas de si foi ceifado e substituído por aparatos que não passam
de leis da matéria que, no fim do dia, não possuem uma explicação plena,
mesmo após 300 anos de pesquisa e produção em massa. É nesse cenário
que o homem contemporâneo está jogado e afundado.

Ao acrescentá-las no prisma confuso das possibilidades que o indivíduo


possui, as castas hindus nos servem como uma lente polarizadora que nos
permite ver, a cada momento, um universo de ação por vez.
Podemos dividir cada um destes tipos de ação como os próprios hindus as
dividiam, segundo o livro sagrado do Hinduísmo, o Bhagavad Gita (que só
possui uma passagem que cita explicitamente tal divisão21) as castas são
divididas em:

● Shudra são como os pés de Brahma que tracejam pela terra, os


Shudras são a base da pirâmide da sociedade. São os trabalhadores e
serviçais de baixa-patente.
● Vayshas representam as pernas de Brahma como aquilo que move o
corpo. São em grande parte comerciantes e viajantes.
● Xátrias representam os braços de Brahma e o princípio ativo de
comando e cuidado. Os Xátrias têm um papel fundamental dentro do
esquema social indiano, são os governantes e guerreiros (protetores
dos desamparados e frágeis, idealmente). Também podem ser
representados pelo corpo de Brahma ou a ponte entre o que está
embaixo e aquilo que está para cima (união entre Shudras-Vayshas e
Brâmanes).
● Brâmanes são a boca de Brahma ou os portadores do ato, da lei e da
tradição. São o topo de cadeia social, tanto clero quanto realeza são
pertencentes a esta casta.

O grande ponto para inserirmos algo, aparentemente, tão distante de nossa


realidade no embate entre as possibilidades da inteligência humana está no
poder ordenador que o conhecimento sobre estas castas podem oferecer à
pessoa. Tratando somente a nível mais imediato, é possível perceber que é
exatamente a mesma estrutura que a sociedade ocidental desenvolveu
durante o advento da Idade Média. Apesar da simplicidade, saber em que
faixa da sociedadese está inserido coloca um indivíduo num cenário no qual
ele pode agir com ferramentas apropriadas para o entorno dele. Um dos
sofrimentos que constantemente são ignorados durante um processo
21
O trecho em específico é encontrada na passagem IV .13, que deixarei citada integralmente:
“As quatro castas foram criadas por Mim, segundo a atitude e as ações dos homens. Ainda que seja seu
autor, (em realidade) saiba que sou imutável e não-ator.”, a instituição desta cultura pode ser acha em
“As leis de Manu”, escrita pelo Yogue Manu Smiriti no século II a.C.
terapêutico é quais ferramentas um indivíduo precisa para desenvolver um
ponto futuro, que sirva de âncora para suas ações. Um Eu-futuro que
hospede todo seu potencial realizado.

Uma segunda maneira de utilizar esse sistema de castas-narrativas é


perceber o corpo de Brahma como a totalidade do homem que pode se
autorrealizar, isto é, o poder de dominar a si mesmo usando cada uma das
castas como uma etapa de amadurecimento dessa possibilidade. Dos pés a
boca, o homem, de maneira progressiva, vai dominando meios mais nobres e
elevados de se perceber. Começando dos pés (Shudras), o homem só pode
andar em uma direção, sem muito refino, “segue para onde seu nariz aponta”
e descobre o que há no fim desse percurso e, com o tempo, domina as
pernas (Vaysha) e aprende a mudar o percurso, ajustar-se diante da situação
e decidir por qual caminho deveria seguir tendo como consequência o
despertar do senso próprio do que é certo e errado usando-o como base no
para fazer o pão de cada dia. O domínio dos braços é o domínio da ação
totalmente consciente, da vocação própria de acordo com as ferramentas
(Xátria) e a última ferramenta que se desenvolve no amadurecimento do
caráter é a fala (Brâmane). Aprender a nomear cada coisa, falar de si para
um outro é a arte mais nobre que um homem pode dominar. A fala carrega
em si um universo infinito, que a humanidade lutou para estabilizar em leis
que descrevem o percurso de amadurecimento de todo um povo e seus
dilemas cotidianos. A terceira via de trabalhar as narrativas como
ferramentas de percepção é usando-as para abertura de uma pessoa aos
bens transcendentais. Partindo da vida de um Sudra22 que é a vida comum
de todos nós, com seus prazeres e desprazeres, podemos fazer a escalada
até a vida de um Vaysha- tendo adquirido o poder da temperança ou o
domínio dos prazeres baixos; não há possibilidade de dominar outros bens
transcendentais sem o total controle dos desejos libidinosos de espécie e
sobrevivência -, que tem o papel de oferecer a Beleza por onde passa.

22
O uso dos termos citados até então seguiam com a maior fidelidade possível as fontes de pesquisa
u lizadas para o ar go. Sudra é uma tradução em português para o termo em sânscrito, assim como
Xátria pode ser escrito como Ksátria ou Kxatra, a opção pelas grafias aqui citadas se deu pela
sonoridade e compreensão dos leitores.
Beleza/Prudência essa que se encontra em oferecer utilidade e facilitar a vida
alheia, no primeiro momento, num segundo ponto do desenvolvimento da
Beleza abre-se a possibilidade de dar sentido ao esforço que se emprega.
Beleza é o bem transcendental da proporcionalidade ou harmonia entre as
partes. A apreensão dela oferece à pessoa a capacidade de ajustar o mundo
num nível imediato de existência e fazê-lo manter-se de pé.

O próximo transcendental que se abre é o Bem ou a ação plenamente


bondosa. Ao chegar a esse patamar evidencia na pessoa o
heroísmo/coragem (ou Fortitude) para manter o mundo a sua volta e
protegê-lo. Os nobres adquiriam seus títulos pela capacidade de sacrifício
para manter seu lar a salvo. É importante que uma pessoa saiba dilatar sua
ação até que ela alcance seu limite palpável. O heroísmo adquirido serve de
impulso a fazer aquilo que é necessário. Um Eu se torna exemplo ao dominar
a coragem de ser a si mesmo. É aqui que se transcende um eterno
solipsismo em si mesmo e abre-se ao “ame ao próximo como a si mesmo”
dos mandamentos bíblicos, por exemplo. O próximo passo é enxergar a
Verdade no mundo e propagá-la como seu arauto. A transcendência se torna
plena ao tocar a narrativa de um Brâmane com o fato de o indivíduo não viver
mais por si, vive por algo além, maior. O domínio das narrativas/castas como
ferramenta de amadurecimento humano é uma arma poderosíssima no
arsenal de um terapeuta para a reestruturação da psique ferida e perdida.

III.3 - A TRANSCENDÊNCIA E A IMANÊNCIA COMO COMPLEMENTOS

Todas as experiências que uma pessoa têm servem como um preâmbulo de


adequação entre essas forças dentro da biografia. Uma mente sã deve
articular todas as forças dissonantes dentro dela para alcançar um grau de
equilíbrio que não dependa somente da lei do dia ou do quanto pode arrendar
num momento e sanar suas necessidades. A imanência serve-nos como
lembrete de que há algo acima dos seis sentidos e da própria vida, afinal, o
natural está contido como possibilidade no sobrenatural e não ao contrário
(não entenda sobrenatural como simples espiritualismo-misticismo
naturalista, o reino do sobrenatural é o reino do inteligível). Quando qualquer
uma das duas faces é cortada da vida cotidiana, cria-se ali uma natureza
pervertida ou, no mínimo, incompleta que tateia sua experiência buscando
um norte moral e experimental que abarque tudo e direcione esse curto
período de tempo denominado vida para uma direção.

O homem é uma tríplice-existência: vive enquanto corpo por ter alma,


percebe-se único por ter um espírito que o impele a ser algo além de um
amontoado de leis materiais que coincidem num organismo complexo, mas
que não possui nada demais. A vida humana pede mais, pede o todo, pede o
possível como objetivo primeiro. “Quem sou eu?”, “para onde vou?”, “por que
estou aqui?” é partindo dessas perguntas que o homem parte do material ao
imaterial, do natural ao social, das suas emoções para a capacidade de
ordenar o mundo em pequenas leis, da origem para seu fim. Toda essa
complexidade se abre na máquina e torna-se coisa oferta ao engenho de
todos nós.

Conclusão

A discussão da psicoterapia e a direção de pessoas é um dos assuntos mais


delicados dentro do ramo do desenvolvimento humano por conta da
polarização do campo de pesquisas. A terapia é uma arte que visa englobar
toda a natureza humana e a busca de sua normalidade, a normalidade
humana não é medida por afetos, comportamentos ou reações químicas no
cérebro, a normalidade é a sanidade das três esferas do homem;
sematológica, psíquica e anímica. A perspectiva real de cura surge da
postura do terapeuta diante desse drama que é a vida humana. A terapia é
como uma lupa de aumento da natureza humana. A lente que você usa para
observar a pessoa humana diante de você altera como você vai se dilatar até
tocar o íntimo dela, como Jung disse: “Conheça todas as teorias, domine
todas as técnicas, mas ao tocar uma alma humana, seja apenas outra alma
humana.”, não há barreiras para a capacidade de uma pessoa de se dominar,
de crescer e mais importante de tudo: só há uma coisa que nada poderá tirar
de nossos pacientes, orientandos e demais pessoas que nos relacionamos,
que é ser pessoa. Ser pessoa profundamente é a única possibilidade de uma
vida com sentido e sem maiores arrependimentos. Todo processo terapêutico
deve visar a isso.

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