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MITOS DE LINGUAGEM

Desconstrua seus mitos de linguagem. Já passou da hora!

O que eu chamo de “mitos de linguagem” são ideias preconcebidas – e, em sua maioria, equivocadas – sobre a língua portuguesa ou sobre as línguas
em geral. No livro que acaba de ser publicado pela Parábola Editorial (Mitos de linguagem), tento desconstruir 10 mitos de linguagem, como os
seguintes:
• As mulheres falam demais
• A gramática do português não tem lógica
• Ninguém fala o português correto
• A língua portuguesa é uma das mais difíceis do mundo
• Todo mundo tem sotaque, menos eu
• A língua dos índios é muito rudimentar
• Depois de adulto, é praticamente impossível aprender uma nova língua
• Os animais têm uma forma de comunicação tão complexa quanto a nossa

Considero importante essa nossa tarefa de quebrar tabus com base em estudos cientificamente amparados

Há outros livros que também se ocupam da desconstrução de mitos de linguagem, como A língua do Brasil amanhã e outros mistérios (de Mario
Perini), A norma oculta: língua & poder na sociedade brasileira e Preconceito linguístico (ambos de Marcos Bagno); em inglês, encontramos também
alguns livros interessantes, como How Languages Are Learned (de Lightbrown & Spada) e Language Myths(organizado por Bauer & Trudgill). Isso
mostra um esforço entre os linguistas para mostrar à sociedade geral que algumas ideias sobre linguagem que circulam por aí estão completamente
equivocadas. Considero importante essa nossa tarefa de quebrar tabus com base em estudos cientificamente amparados.

Peguemos o primeiro mito de que trato no meu livro, por exemplo: “As mulheres falam demais”. O que este mito quer dizer, exatamente: que as
mulheres falam mais do que os homens? Ou que elas simplesmente falam mais do que deveriam falar? Ou seja, por trás desse mito há uma
comparação quantitativa entre a fala de homens e mulheres, algo do tipo quem fala mais? Ou há um ideal de representação sobre a fala feminina,
sobre uma pretensa “quantidade máxima de fala” da mulher que não consegue ser “respeitada” pelas mulheres na sociedade, no que toca a sua
comunicação diária? Há, pelo menos, dois mitos envolvidos nessa questão, então. E ambos podem ser facilmente desconstruídos, tanto de um ponto
de vista biológico (não há diferenças biológicas que proporcionem uma vantagem linguística da mulher em relação ao homem), como do ponto de vista
antropológico ou social (não há nenhum estudo sociocultural que demonstre que as mulheres falam mais do que os homens; pelo contrário!). O que
acontece é que, em algumas sociedades (como a nossa), parece que se espera que a mulher não fale tanto quanto um homem. E a mulher que falar
“mais do que deveria” leva, então, a malfadada e injusta fama de “tagarela”. Ou seja, aparentemente há uma expectativa social de que as mulheres
falem menos do que os homens, especialmente em situações discursivas públicas. Quando uma mulher se expressa “mais do que deveria” (leia-se:
mais do que os outros julguem que ela deveria se expressar) em público, ela pode receber julgamentos negativos por causa de sua loquacidade.

Mas essa expectativa idealizada de a capacidade de fala da mulher ser, de certa forma, “superior” à do homem, repito, não está calcada em nenhuma
lei biológica ou genética: é uma mera prática social e está atrelada a cada cultura. E como qualquer outra convenção social (como andar com os seios
à mostra ou ocultos, usar cabelos longos ou curtos, tatuar ou não tatuar o corpo), ela pode ser mudada pelas próprias pessoas que compartilham – e
aprovam ou desaprovam – essa prática.

a língua portuguesa é uma das mais difíceis do mundo

Outro mito que ronda o discurso corrente em nossa sociedade é o de que “a língua portuguesa é uma das mais difíceis do mundo”, quando comparada
a outras línguas supostamente mais “fáceis” ou “simples” como o espanhol, o inglês ou as línguas indígenas. O mito deixa transparecer a também
equivocada ideia de que existem línguas fáceis, línguas difíceis, línguas rudimentares, línguas complexas etc. Todas as línguas são igualmente
complexas e têm estruturas fascinantemente organizadas, esperando que nós tratemos de investigá-las e desvendar seus segredos.

Para ter uma ideia de como todas as línguas são igualmente complexas, vejamos outro mito que precisa urgentemente ser desfeito, o de que “a língua
dos índios é muito rudimentar”. Para começo de conversa, não há uma “língua dos índios”. Há diversas línguas indígenas faladas por diferentes
comunidades. Hoje, no Brasil, são faladas cerca de 180 línguas indígenas, por cerca de 220 povos diferentes. Mas esse número já foi muito maior:
estima-se que, em 1500, à época da chegada portuguesa em terras brasileiras, eram faladas cerca de 1.270 línguas por aqui. E nenhuma dessas
línguas é “rudimentar”, em qualquer sentido que se possa pensar.

Esses mitos de linguagem infelizmente estão enraizados em nossa cultura, e o livro Mitos de linguagemé uma tentativa de trazer à tona a discussão
de alguns tópicos importantes que podem desfazer essas ideias preconcebidas e equivocadas sobre a linguagem e a língua portuguesa.

Nosso trabalho de linguistas deve ser dividido em dois: por um lado, investigarmos a linguagem humana (seja a propriedade específica humana que
nos permite possuir nossa faculdade da linguagem, seja essa propriedade manifesta nas línguas particulares) para desvendar seus mistérios, suas
regras e seus princípios; por outro, temos também o dever social (como advogam Dinah Callou, Mario Perini, Sirio Possenti, Marcos Bagno, Kanavillil
Rajagopalan, entre outros) de divulgar e “traduzir” os resultados que encontramos em nossas pesquisas para que elas possam fazer uma diferença no
mundo que no cerca e em que vivemos.

MARCOS BAGNO FALA SOBRE PRECONCEITO LINGUÍSTICO


Marcos Bagno é graduado em Letras, com doutorado em Filologia e Língua Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP) e mestrado em Letras
pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

A discriminação com base no modo de falar dos indivíduos é encarada com muita naturalidade na sociedade brasileira. Os “erros” de português
cometidos por analfabetos, semianalfabetos, pobres e excluídos são criticados pela elite, que “disputa” quem sabe mais a nossa língua. Essa é uma
das constatações do linguista e professor do Instituto de Letras (IL) da Universidade de Brasília (UnB) Marcos Bagno. Segundo o pesquisador, o
conhecimento da gramática normativa tem sido usado como um instrumento de distinção e de dominação pela população culta.
“É que, de todos os instrumentos de controle e coerção social, a linguagem talvez seja o mais complexo e sutil”, afirma. “Para construir uma sociedade
tolerante com as diferenças é preciso exigir que as diversidades nos comportamentos linguísticos sejam respeitadas e valorizadas”, defende.

O preconceito na língua faz com que os indivíduos se sintam humilhados ou intimidados com a possibilidade de cometer um erro de português. “Como
se o fato de saber a regência ‘correta’ do verbo implicar gerasse algum tipo de vantagem, de superioridade, de senha secreta para o ingresso num
círculo de privilegiados”, afirma o professor, que foi um dos convidados do seminário Universidade e Preconceitos – Discutindo e Enfrentando uma
Realidade, ocorrido em setembro de 2006 na UnB.

Mas Bagno assegura que esse tal erro, que tanto aterroriza, na realidade não existe. Na sua opinião o que há são variedades do português, como
aquele falado no interior pelo caipira ou aquele falado por alguém que estudou e mora na capital. O que mais importa para Bagno é o contexto de
quem diz o quê, a quem, como e visando que efeito.

SALAS DE AULA – Isso não significa que a norma culta deva ser desprezada nas escolas. Muito pelo contrário. Bagno acredita que esta deve ser a
base do que é ensinado na cadeira de língua portuguesa. Mas é preciso entender essa norma como sendo a falada e escrita atualmente pela população
culta do país e não aquela que só existe na gramática, mas ninguém usa.

Autor de diversos livros sobre o assunto – entre os quais o famoso Preconceito linguístico: o que é, como se faz (Ed. Loyola) –, o linguista critica o
ensino de algumas normas consideradas por ele já obsoletas. Para ele, os professores escolares devem se apegar menos às regras e mais a missão
de ajudar os alunos a desenvolver sua capacidade de expressão e reflexão.

Entre os exemplos citados por ele está o verbo assistir. “Por mais que os professores digam que é transitivo indireto – e que por isso se liga ao
complemento por meio de uma preposição – os alunos continuam falando que vão “assistir o filme” e não ao filme. O mesmo acontece com a forma “vi
ele” no lugar de o vi, não considero errada”, analisa o linguista.

A língua é algo vivo em constante em processo de evolução. “O português deve ser ensinado da mesma forma que se ensina física ou biologia. Os
professores sabem que muito do que eles dizem hoje pode ser reformulado ou negado amanhã”, acrescenta.

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