Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Não sei se o senhor adivinhou a ligação secreta entre a ‘Análise leiga’ e o Futuro
de uma ilusão. Na primeira, quero proteger a análise dos médicos, na segunda,
dos sacerdotes. Quero entregá-la a uma categoria que ainda não existe, uma
categoria de curas de alma seculares, que não necessitam ser médicos e não
podem ser sacerdotes. (Freud & Meng, 1994, p.167, grifos nossos).
Gostaria de destacar deste trecho da carta que, quando Freud se refere aos
médicos, ele está se referindo a uma formação médica com seu caráter cada vez mais
biologicista e fisicalista, que de alguma maneira recusava a escuta do sujeito que sua
clínica buscava fazer valer. No entanto, é intrigante quando ele afirma: “não necessitam
ser médicos”. Nesse ponto, ele também está aludindo à ideia de que um psicanalista não
precisa necessariamente ter formação médica, abrindo espaço para a possibilidade de
que indivíduos de diversas formações possam se interessar pela psicanálise e tornar-se
psicanalistas. Enquanto para um sacerdote, essa possibilidade é excluída. Dessa forma,
surge uma antinomia evidente entre a posição do sacerdote e do psicanalista, enquanto
com o médico (cientista), não encontramos uma oposição.
Por meio de "O Futuro de uma Ilusão", Freud não está oferecendo somente uma
crítica direta à religião, tampouco uma celebração da "morte de Deus", ou mesmo
propondo a eliminação da religião de nossos analisandos na clínica psicanalítica. Ele
está explorando as ramificações da transformação que a psicanálise implica (seja em
intenção ou extensão) em relação à maneira como o sujeito estabelece (ou reestabelece)
sua relação com a cultura e, por que não, com a própria ciência. Essa nova relação,
emergente da tarefa psicanalítica, se distinguirá profundamente daquela mediada e
sustentada pelos sacerdotes e suas ilusões religiosas. Nesse sentido, a aposta freudiana é
a de que a psicanálise pode contribuir e muito com o desenvolvimento científico através
da desconstrução dos pensamentos coagulados no interior da própria ciência.
Sejamos mais claros: no cerne dessas ilusões religiosas reside um modelo de
devoção infantil que distancia o sujeito de sua posição desejante, criativa e autêntica
dentro do âmbito das relações com os outros, e até mesmo dentro do contexto do
próprio fazer científico. É precisamente esse núcleo de devoção que a psicanálise
freudiana se empenha em desarticular. Cito um trecho do analista Mario Eduardo Costa
Pereira que sintetiza esse trabalho do analista:
[o analista] ainda que queira ou que esta seja a demanda de seu paciente, não tem
como tomar o lugar de Deus ou da Providência junto àquele. Esse lugar é
necessariamente vazio e qualquer progresso que se possa atingir na cura decorre
justamente da sustentação desse lugar vazio como tal. É ante ele que o sujeito vai
confrontar-se com a sua castração, mas também com seus reais desejos e
possibilidades de realização. É da aceitação desse vazio, justamente lá de onde
se esperava garantias, que poderá surgir existencialmente algo da ordem de um
projeto. A cura psicanalítica passa, portanto, pela confrontação do sujeito com
sua própria condição de desamparo (Pereira, 2008, p.213, grifo nosso).
[...] ela nos mata, de modo frio, cruel e inabalável, assim nos parece, e talvez
justamente através das coisas que nos satisfazem [...]
Mas ninguém comete o engano de achar que a natureza já está dominada, e
poucos têm a audácia de esperar que algum dia ela se sujeite inteiramente ao ser
humano. Existem os elementos, que parecem zombar de toda tentativa de
coação humana; a terra, que treme, se abre e soterra o que é humano ou obra do
homem; a água, que tudo inunda e afoga ao sublevar-se; a tempestade, que tudo
varre para longe; há as doenças, que há pouco tempo descobrimos serem ataques
de outros seres vivos; e, por fim, o doloroso enigma da morte, para a qual até
agora não se achou e provavelmente não se achará remédio. Com essas forças a
natureza se ergue contra nós, majestosa, cruel, implacável, sempre nos
recordando nossa fraqueza e desvalia, que pensávamos haver superado mediante
o trabalho da civilização (Freud, 1927/2004, p. 246, grifo nosso).
Nesse trecho, Freud não poderia ser mais categórico em relação ao seu objetivo
com O Futuro de uma Ilusão (1927/2004): a “necessidade de dar esse passo”. O passo
da “criança eterna” ao “encontro da vida hostil”. Ser criança aqui é constituir uma vida
alienada nas ilusões, uma vida de negação do desamparo, uma vida na posição de objeto
devoto pela proteção do Outro. Posição de resignação e de medo diante da vida. O
“encontro da vida hostil”, pelo contrário, é invocação de uma nova posição, posição de
um sujeito que não espera mais as garantias de um Outro, que se lança à vida, com suas
delícias, riscos e limites.
Você teme, provavelmente, que o ser humano não resista a essa dura prova.
Bem, vamos esperar que sim. Já é alguma coisa quando alguém sabe que conta
apenas com as próprias forças; então aprende a usá-las corretamente. E o ser
humano não é inteiramente sem recursos, desde os tempos do Dilúvio sua
ciência lhe ensinou muita coisa, e incrementará mais ainda o seu poder. Quanto
às inevitabilidades do destino, contra as quais não existe remédio, ele aprenderá
a suportá-las com resignação. De que lhe serve a miragem de uma grande
fazenda na Lua, cuja colheita ninguém jamais viu? Como honesto camponês
aqui na Terra, ele saberá cultivar seu pequeno torrão de modo que este o
alimente. Retirando as expectativas que havia posto no Além e concentrando na
vida terrena todas as forças assim liberadas, ele provavelmente alcançará que a
vida se torne suportável para todos e a civilização não mais oprima ninguém
(Freud, 1927/2004, p.234, grifos nossos).
Podemos resumir esse saldo obtido pela aposta civilizatória de Freud em uma
ética da desilusão-reconciliação, como aquele saldo também a ser conquistado por um
processo analítico: que o sujeito saiba que pode contar com suas próprias forças e
manejá-las a partir de uma escolha; que ele se lembre que, pelo fato de se constituir
como um ser de cultura, ele já não é inteiramente sem recursos (tem a lei, a ciência, a
arte, a psicanálise ao seu lado); que o sujeito desenvolva uma capacidade de se deparar
com o incontrolável e fazer desse encontro algo produtivo; e que o sujeito possa então
contar com as forças que antes estavam contidas apenas no campo das expectativas
sustentando suas ilusões.
Em segundo lugar, veja a diferença entre a sua e a minha atitude diante da ilusão.
Você precisa defender a ilusão religiosa com todas as forças; se ela ficar sem
valor—e está verdadeiramente ameaçada —, o seu mundo desmoronará, nada
lhe restará senão o desespero, com a civilização e com o futuro da humanidade.
Dessa servidão eu estou, nós estamos livres. Como estamos dispostos a
renunciar a boa parte de nossos desejos infantis, podemos tolerar que algumas de
nossas expectativas se revelem ilusões (Freud, 1927/2004, p.239, grifos nossos).
Para concluir, gostaria de encerrar com uma história vivida faz pouco tempo e
que comento na minha tese de doutorado, mas que se iluminou de uma maneira
diferente para a nossa mesa, na medida em que nos mostra como esse modelo infantil,
que sustenta uma ilusão pode se misturar com o “conhecimento científico”.
Nos preparativos do chá de bençãos, a avó está fazendo alguns recortes de papel
para a decoração do evento, escrevendo ali a primeira letra do nome do mais novo neto.
A sua netinha, de três anos, que aguarda a chegada do irmão, se dispõe a ajudar a avó, e
espertamente diz:
- T de Thiago, M de Maria.
- Isso, seu irmãozinho, ele está chegando, vocês vão até ter um quarto para vocês
dormirem juntos...
A avó, astutamente prevenida, notando um possível ciúme na insistência da
brincadeira, e as consequências embirradas que poderiam advir, decide então fazer logo
alguns foguetinhos com a letra M também. Durante uma conversa espontânea, a neta
pergunta:
- Vó, eu tenho três anos, qual número vem depois do três?
- O quatro. – A avó responde.
- Vó, o 3 acaba? pergunta a neta.
- Sim, depois do 3 vem o 4. – Responde a avó objetivamente, agora mais
preocupada com a confecção dos decorativos.
A netinha rompe com a atmosfera aparentemente ingênua da conversa, abre o
berreiro, e em desespero começa a chorar e gritar por todos os lados:
- EU NÃO QUERO QUE O 3 ACABE! EU VOU ACABAR COM O
QUATRO! EU VOU DER-RE-TER O 4!
A mãe, uma médica, pesquisadora e cientista reconhecida, tentando consolar a
avó, e talvez a si mesma, informa que nos últimos dias a filha está realmente assim, à
flor da pele, parece que vem estudando as matemáticas na escola e descobrindo mais
sobre a noção de “finito” e “infinito”.
A mãe, preocupada com o nascimento que se aproxima, e a avó com o evento
que prepara, parecem não desconfiar, e com razão, que o desespero de Maria não se
refere apenas ao aprendizado dos números, mas ao confronto com seu desamparo
fundamental, os mistérios que retornam de vez em quando aos seres de linguagem, seres
de filiações simbólicas. A chegada do irmão desconhecido é atualização do complexo
de intrusão: um semelhante, outra criança, outro filho, mas que é ao mesmo tempo
distinto, possível concorrente do amor dos pais, rival, um mal vindo de fora que
instabiliza o seu lugar na família.
O complexo de intrusão, elemento do modelo infantil, já é atualização e
elaboração simbólica e imaginária do desamparo, da finitude, da morte, da queda de um
certo lugar narcísico frente aos desejos maternos e paternos, resposta frente à abertura
da questão de que os pais podem desejar algo para além da criança, que percebe que já
não os completa. A criança se desespera, não querendo “que o três acabe”. Até ali, na
altura de seus três anos, o sentido está posto, a dinâmica de reconhecimento entre pai,
mãe e ela é mais ou menos conhecida, e eles parecem conviver em uma harmonia que
agora está ameaçada e que pode desmoronar com a chegada do quarto elemento. A
resposta a esse intruso é simples: se o quatro ameaça acabar comigo, melhor eu acabar
com ele antes. O desejo infantil matemático-assassino de acabar com ele se transfigura
em uma ilusão de dominação, gozosamente soletrada (“der”-“re”- “T”, ali encontramos
a letra do irmão). Essa ilusão contendo esse gozo já é uma maneira infantil de velar seu
confronto com o desamparo.
Em um segundo momento, essa imagem em formação parece vacilar, e a criança
é confrontada não apenas com o outro especular, possível rival, ou igual, mas com o
Outro absoluto, a morte, a finitude. A chegada do irmão serve assim como bode
expiatório que permite a criança simbolizar e imaginar, tentar obter algum controle
daquilo que não podemos controlar, o enigma da morte, da passagem do tempo, do
desejo do outro. Frente ao infinito, somos just a single grain of sand. Tanto a ciência na
escola, quanto a chegada do irmãozinho lembram essa criança de sua condição
estrutural de desamparo.
Apresentamos essa vinheta para que notemos que esses restos da neurose infantil
ainda nos habitam enquanto adultos. Diante do confronto com o desamparo,
constituímos respostas mais ou menos apegadas aos modelos infantis do complexo de
édipo, do complexo de intrusão. Essas respostas simbólico-imaginários infantis são a
maneira com que conseguimos nos defender do encontro com a falta de garantias e de
salvação até certo momento.
Esse modelo infantil quer tentar garantir as coisas tal como elas estão, os
sentidos estáveis, o lugar frente ao desejo e amor dos pais mais ou menos garantidos. As
atitudes devotas aos pais, por exemplo,buscam garantir o campo do sentido da vida,
garantir a presença de um Responsável por mim, por minhas escolhas, um olhar para
minha proteção, um culpado para as falhas sempre presente nesse processo. Contudo
diante da vida, do sexo, do nascimento, da morte não existem últimas palavras que
poderiam ser dadas por esses outros.
De alguma forma essa história bem humorada - não devemos nos levar a sério
demais também - me fez pensar como podemos utilizar a ciência, a matemática, o
empirismo ingênuo para sustentar uma ilusão infantil, de estrutura religiosa, para negar
o Real, seja através da fantasia de dominação, seja da fantasia de resgatar um estado
anterior de segurança ameaçada por esse intruso, esse inimigo (cuidado com os
psicanalistas!). Há diferentes usos que se pode fazer da ciência, e também da
psicanálise. Não devemos esquecer isso. Inclusive um uso que produz e sustenta ilusões
infantis. Natalia Parternak e Carlos Orsi parecem conservar uma certa ingenuidade
diante disso. E nós psicanalistas?
Referências:
Freud, S. (2014/1927). O futuro de uma ilusão. Tradução de Paulo César de Souza. In:
Obras Completas, vol. 17, pp. 231-301. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras
Freud, E. L., & Meng, H. (Org.). (1994). Cartas entre Freud & Pfister [1909-1939]: um
diálogo entre a psicanálise e a fé cristã. Viçosa: Ultimato.
Henderson, G. (2021). A condição do desamparo e a vida comum: um horizonte na cura
psicanalítica [Tese de Doutorado, Instituto de Psicologia, Universidade de Brasília].
Pereira, M. E. C. (2008). Pânico e desamparo: Um estudo psicanalítico. São Paulo:
Escuta.