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ENSAIO

Por uma emancipação real da ilusão religiosa: psicanálise e ciência


Guilherme Henderson

Mesa Redonda: Psicanálise e ciência:


debates, controvérsias e imposturas
Guilherme Henderson, Juliano Lagoas,
Lívia Campos e Morgana Queiroz, Pedro
Saraiva

Gostaria de expressar minha gratidão pelo convite e a convocação da minha


amiga e colega de trabalho, Lívia Campos, para compor esta mesa ao lado dos colegas
Juliano Lagoas, Morgana Queiroz e Pedro Saraiva. Esta convocação surge movida, sem
rodeios, por um desejo de resposta e reflexão diante dos intensos ataques que a
psicanálise, mais uma vez, enfrenta. Desta vez, esses ataques se originam de uma nova
publicação intitulada "Que bobagem!: pseudociências e outros absurdos que não
merecem ser levados a sério", escrita por Natalia Pasternak e Carlos Orsi. Nesse livro, a
psicanálise é classificada como um dos referidos absurdos que não merecem ser levados
a sério.
Devo confessar que este debate já emergiu em minha trajetória por pelo menos
três vezes, apesar de minha experiência relativamente curta na psicanálise, cerca de 10
anos. Durante meus anos de graduação, os ecos do "Livro negro da psicanálise: Viver e
pensar melhor sem Freud", de Catherine Meyer, ainda ressoavam, ao lado das
repercussões naquela época das revisões do DSM, que frequentemente provocam
discussões sobre a validação científica das psicoterapias. Posteriormente, vieram os
ataques de Ronaldo Pilati através da psicologia baseada em evidências e, agora, o livro
de Pasternak e Orsi. Pode-se perceber, com humor, uma média de aproximadamente três
anos para que surja um livro que dizendo que não devemos levar os psicanalistas a
sério. Nos vemos neste auditório em 3 anos. No entanto, o mais intrigante é a falta de
renovação desse debate. Pesquisas contínuas na psicanálise têm sido conduzidas em
resposta a tais críticas, mas os autores parecem ignorá-las, mesmo quando essas
pesquisas empregam métodos quantitativos e são publicadas em renomadas revistas
como a Science.
Observo, entretanto, um movimento oposto. A psicanálise está sendo levada
cada vez mais a sério, tanto pela academia quanto pelo público em geral. Psicanalistas
estão sendo chamados com maior frequência, pelo menos no contexto brasileiro, para
oferecer perspectivas interessantes sobre uma ampla variedade de tópicos relevantes
para nossa cultura. Isso ocorre em meios de comunicação, jornais e colunas de revistas.
Além disso, alunos de graduação estão demonstrando crescente entusiasmo em buscar
formação em psicanálise além dos limites universitários. Tudo isso me enche de
esperança e consolida meu comprometimento diante deste debate. A transmissão na
psicanálise não visa apenas transferir conhecimento, mas também incitar um desejo. A
capacidade da psicanálise de perdurar, apesar dos constantes ataques, repousa não
somente na transmissão do saber, mas primordialmente na transmissão de um desejo.
Nossa sociedade anseia por recuperar as possibilidades de uma vida pautada pelo
desejo, e a psicanálise permanecerá vigente desde que haja psicanalistas desejantes.
Meu maior espanto surgiu ao perceber que esta crítica superficial estava sendo
feita por uma das cientistas que mais admirei durante a pandemia. Ela corajosamente
disse verdades sobre a importância da vacinação, uso de máscaras e transmitiu
informações vitais para nossa sobrevivência nesse período crítico. Agora, essa mesma
cientista estava atacando de maneira destrutiva o meu trabalho. A sensação era a de que
nós estávamos unidos naquele momento. Perguntei a mim mesmo, em um sentimento
quase que de traição: o que aconteceu? Durante a catástrofe, nós, psicanalistas e
cientistas, caminhamos lado a lado. Centenas, milhares, de analistas sustentaram seus
consultórios, produziram manifestos em prol de nossa tarefa comum naquela ocasião,
compartilhada tanto pelos psicanalistas quanto pelos cientistas: combater o
fundamentalismo religioso, as crenças antivida e os líderes autoritários. No entanto,
após a urgência da catástrofe, somos agora acusados de sermos irrelevantes e não
merecedores de credibilidade? Pessoal... é profundamente sério o que a psicanálise
almeja. Porém, não devemos temer. Também podemos abordar isso com humor, como
tentarei fazer ao final.
Hoje, desejo contribuir para este debate apresentando um aspecto do trabalho do
psicanalista, uma das maneiras pelas quais podemos teorizar o objetivo do tratamento
realizado por um psicanalista. Tendo em vista que devemos considerar que há, no
fundo, um interesse subjacente neste falso debate sazonal, uma disputa por espaço no
mercado de tratamento de diversas psicopatologias. Nessa arena, abordagens
comportamentais e cognitivo-comportamentais, devido ao alinhamento de seus métodos
com um determinado estilo de pesquisa científica, ganham uma legitimidade maior.
Porém, ousaria dizer que, nem mesmo essas abordagens são de fato legitimadas... são
muitas vezes utilizadas como antesala das “verdadeiras” terapias medicamentosas.
Considero válido refletir sobre o que um analista busca ao sustentar uma análise.
Um analista não almeja meramente a cura de transtornos mentais. Devemos sempre
ressaltar quão problemático é isso. Permitindo-me ser direto e conciso, o objetivo de
uma análise é: possibilitar que um sujeito subjetive a ausência de garantias
provenientes de um Outro. Em outras palavras, consiste na aceitação de que qualquer
indivíduo (inclusive o próprio Eu) que pretenda oferecer certezas sobre o que se deve
desejar, ou proporcionar uma direção clara “evidente” à saúde, bem-estar e
felicidade, será um impostor. A falsa-obtenção de tais garantias sempre envolverá um
exercício de poder, no qual o sujeito precisará renunciar uma parte de seu gozo para
tentar obtê-la. Gostaria de repetir isso.
Seja esse Outro um psicólogo, um falso psicanalista, um líder religioso ou um
cientista. Caso esse Outro tente fornecer a derradeira evidência, a promessa que me
conduzirá à satisfação, ele estará exercendo um poder sobre o sujeito. A tarefa do
analista é desmantelar essas armadilhas nas quais o neurótico insiste em cair ou
produzir. Isso é extremamente sério. Gostaria de destacar uma dessas armadilhas. A que
Freud denominou "ilusão religiosa", o que me parece intrigante, pois até certo ponto
nosso trabalho e o de Pasternak e Orsi se alinhavam justamente no combate contra as
ilusões religiosas.
Afinal, em que consiste essa ilusão religiosa?
A influência do texto "O Futuro de uma Ilusão" (1927) na minha formação
analítica foi decisiva, ela remonta a escrita da minha tese de doutorado , servindo agora
como um catalisador para revitalizar o debate entre psicanálise e ciência de um ponto de
vista que me instiga. Defender a relevância desse texto nesse contexto pode parecer
excessivo, dado que tradicionalmente se extraem implicações dessa série de obras de
Freud - incluindo "Psicologia das Massas", "Mal-Estar na Civilização" e "O Futuro de
uma Ilusão" - para enriquecer o debate sobre a relação entre psicanálise e o campo
social. Se minha intenção ao escrever minha tese era derivar implicações clínicas que
auxiliassem na compreensão da noção de transformação almejada na prática
psicanalítica, aqui almejo salientar desse texto o valor que Freud atribui ao
conhecimento científico como parte integrante desse processo de transformação
buscado por um psicanalista.
A significância desse texto reside em sua capacidade de fornecer uma base ética
que oriente a técnica analítica. Esse novo paradigma ético está ancorado no valor
atribuído ao desejo, na compreensão da relevância da sexualidade na experiência
humana e na apreciação do patrimônio cultural - um patrimônio que, em sua amplitude,
engloba também o conhecimento científico. Ao confrontar as ilusões religiosas, Freud
oferece uma orientação clara para o processo terapêutico, esclarecendo, dessa forma, o
que define a atuação do psicanalista em contraposição ao papel desempenhado pelo
sacerdote. Esse entendimento é evidenciado pela carta que Freud dirigiu a seu amigo
pastor Pfister em 25 de novembro de 1928 (FREUD, 1928):

Não sei se o senhor adivinhou a ligação secreta entre a ‘Análise leiga’ e o Futuro
de uma ilusão. Na primeira, quero proteger a análise dos médicos, na segunda,
dos sacerdotes. Quero entregá-la a uma categoria que ainda não existe, uma
categoria de curas de alma seculares, que não necessitam ser médicos e não
podem ser sacerdotes. (Freud & Meng, 1994, p.167, grifos nossos).

Gostaria de destacar deste trecho da carta que, quando Freud se refere aos
médicos, ele está se referindo a uma formação médica com seu caráter cada vez mais
biologicista e fisicalista, que de alguma maneira recusava a escuta do sujeito que sua
clínica buscava fazer valer. No entanto, é intrigante quando ele afirma: “não necessitam
ser médicos”. Nesse ponto, ele também está aludindo à ideia de que um psicanalista não
precisa necessariamente ter formação médica, abrindo espaço para a possibilidade de
que indivíduos de diversas formações possam se interessar pela psicanálise e tornar-se
psicanalistas. Enquanto para um sacerdote, essa possibilidade é excluída. Dessa forma,
surge uma antinomia evidente entre a posição do sacerdote e do psicanalista, enquanto
com o médico (cientista), não encontramos uma oposição.
Por meio de "O Futuro de uma Ilusão", Freud não está oferecendo somente uma
crítica direta à religião, tampouco uma celebração da "morte de Deus", ou mesmo
propondo a eliminação da religião de nossos analisandos na clínica psicanalítica. Ele
está explorando as ramificações da transformação que a psicanálise implica (seja em
intenção ou extensão) em relação à maneira como o sujeito estabelece (ou reestabelece)
sua relação com a cultura e, por que não, com a própria ciência. Essa nova relação,
emergente da tarefa psicanalítica, se distinguirá profundamente daquela mediada e
sustentada pelos sacerdotes e suas ilusões religiosas. Nesse sentido, a aposta freudiana é
a de que a psicanálise pode contribuir e muito com o desenvolvimento científico através
da desconstrução dos pensamentos coagulados no interior da própria ciência.
Sejamos mais claros: no cerne dessas ilusões religiosas reside um modelo de
devoção infantil que distancia o sujeito de sua posição desejante, criativa e autêntica
dentro do âmbito das relações com os outros, e até mesmo dentro do contexto do
próprio fazer científico. É precisamente esse núcleo de devoção que a psicanálise
freudiana se empenha em desarticular. Cito um trecho do analista Mario Eduardo Costa
Pereira que sintetiza esse trabalho do analista:

[o analista] ainda que queira ou que esta seja a demanda de seu paciente, não tem
como tomar o lugar de Deus ou da Providência junto àquele. Esse lugar é
necessariamente vazio e qualquer progresso que se possa atingir na cura decorre
justamente da sustentação desse lugar vazio como tal. É ante ele que o sujeito vai
confrontar-se com a sua castração, mas também com seus reais desejos e
possibilidades de realização. É da aceitação desse vazio, justamente lá de onde
se esperava garantias, que poderá surgir existencialmente algo da ordem de um
projeto. A cura psicanalítica passa, portanto, pela confrontação do sujeito com
sua própria condição de desamparo (Pereira, 2008, p.213, grifo nosso).

Seleciono alguns extratos de “O Futuro de uma Ilusão” para discussão e análise,


a fim de lançar luz sobre o que Freud identifica como a ilusão religiosa a ser
desmantelada por meio da psicanálise. Essa ilusão religiosa emerge como um produto
intrínseco à trajetória da humanidade ao longo da civilização. O ser humano constrói a
figura divina na tentativa de resguardar-se do Real, que neste contexto é mencionado
sob diversas facetas, como, por exemplo, o indomável da própria Natureza:

[...] ela nos mata, de modo frio, cruel e inabalável, assim nos parece, e talvez
justamente através das coisas que nos satisfazem [...]
Mas ninguém comete o engano de achar que a natureza já está dominada, e
poucos têm a audácia de esperar que algum dia ela se sujeite inteiramente ao ser
humano. Existem os elementos, que parecem zombar de toda tentativa de
coação humana; a terra, que treme, se abre e soterra o que é humano ou obra do
homem; a água, que tudo inunda e afoga ao sublevar-se; a tempestade, que tudo
varre para longe; há as doenças, que há pouco tempo descobrimos serem ataques
de outros seres vivos; e, por fim, o doloroso enigma da morte, para a qual até
agora não se achou e provavelmente não se achará remédio. Com essas forças a
natureza se ergue contra nós, majestosa, cruel, implacável, sempre nos
recordando nossa fraqueza e desvalia, que pensávamos haver superado mediante
o trabalho da civilização (Freud, 1927/2004, p. 246, grifo nosso).

A ilusão religiosa se configura como uma invenção a qual a humanidade


recorreu ao longo da sua trajetória civilizatória, buscando atenuar o confronto com o
Real. Nesse contexto, o homem supõe a existência de um Outro que vigia, vela, que
controla essas forças, que possui suas razões e que, no desfecho dos tempos, nos
protegerá, e que tenta comunicar-se conosco através dessas adversidades. Toda essa
empreitada simbólico-imaginária é uma tentativa de erigir uma estabilidade no campo
do sentido. No entanto, o preço que o indivíduo paga por essa construção é a renúncia a
uma parcela do seu gozo (para além daquela paga por seu processo civilizatório) e a
construção de uma devoção. Devoção não gratuita é claro, pois não deixa de esperar,
inconscientemente, a restituição daquilo que foi sacrificado.
A ciência, por sua vez, empreende uma abordagem de confronto com esse real,
almejando dominá-lo. Entretanto, existe o risco intrínseco de que, ao se empenhar nessa
tentativa de domínio, ela negligencie a presença do próprio cientista, que anseia pelo
controle total, pelo um sentido. A ciência, ao negar essa dimensão real, acaba por
ignorar a existência do sujeito cientista nessa sua empreitada, assim como a verdade da
castração presente nesse processo: existem elementos indomáveis.
No entanto, surge uma indagação: se a constatação desse real, vinculado à
condição estrutural do desamparo, é justamente o que levou o ser humano a forjar as
ilusões religiosas, como então uma psicanálise, ao se confrontar ali, não acirraria ainda
mais essas noções? Poderiam emergir novas divindades, líderes ainda mais autoritários?
Nesse ponto, Freud novamente nos auxilia ao notar que a prevenção dessa
possibilidade demanda uma ação prévia de desarticulação, um trabalho voltado ao que
ele denomina de "modelo infantil". Esse trabalho permitiria a geração de um saldo
positivo, a ser mobilizado diante da queda das ilusões. Este, portanto, constituiria um
aspecto diferenciador da psicanálise. Ela não busca um confronto abrupto com o
desamparo, mas sim uma confrontação emergente dessa desmontagem prévia. Ao
desconstruir o seu "modelo infantil", analiticamente, o indivíduo extrai os recursos
necessários para enfrentar um processo de travessia, de luto em relação a uma série de
expectativas, abrindo-se para uma recriação, e não somente para uma conformação ou
adaptação para aquilo que se esperava.
É importante mencionar que uma explanação detalhada sobre a natureza desse
"modelo infantil" não será possível nesse ensaio, ela foi considerada em minha tese de
doutorado. No entanto, todos temos conhecimento dele quando percebemos os traços de
natureza infantil nos sintomas neuróticos.
Frente à possibilidade de que a renúncia à ilusão religiosa possa provocar um
receio, Freud responde no texto:

Discordo, portanto, quando você conclui que o ser humano é incapaz de


prescindir do consolo da ilusão religiosa, que ele não suportaria, sem ela, o peso
da vida, a realidade cruel. De fato, não o indivíduo a quem desde a infância
tenha sido instilado esse doce — ou doce-amargo — veneno. Mas e outro, que
tenha sido educado sobriamente? Não sofrendo da neurose, talvez ele não
necessite de um tóxico para entorpecê-la. Claro que o ser humano se verá então
numa situação difícil, terá de admitir seu completo desamparo, sua irrelevância
na engrenagem do universo, já não será o coração da Criação o objeto da
carinhosa atenção de uma Providência bondosa. Estará na mesma situação de um
filho que deixou a casa do pai, que era aquecida e confortável. Mas não é
inevitável que o infantilismo seja superado? O ser humano não pode permanecer
eternamente criança, tem de finalmente sair ao encontro da “vida hostil”.
Podemos chamar a isso “educação para a realidade”; ainda preciso lhe dizer que
o único objetivo deste trabalho é chamar a atenção para a necessidade de dar
esse passo? (Freud, 1927/2004, p.234, grifos nossos).

Nesse trecho, Freud não poderia ser mais categórico em relação ao seu objetivo
com O Futuro de uma Ilusão (1927/2004): a “necessidade de dar esse passo”. O passo
da “criança eterna” ao “encontro da vida hostil”. Ser criança aqui é constituir uma vida
alienada nas ilusões, uma vida de negação do desamparo, uma vida na posição de objeto
devoto pela proteção do Outro. Posição de resignação e de medo diante da vida. O
“encontro da vida hostil”, pelo contrário, é invocação de uma nova posição, posição de
um sujeito que não espera mais as garantias de um Outro, que se lança à vida, com suas
delícias, riscos e limites.

Você teme, provavelmente, que o ser humano não resista a essa dura prova.
Bem, vamos esperar que sim. Já é alguma coisa quando alguém sabe que conta
apenas com as próprias forças; então aprende a usá-las corretamente. E o ser
humano não é inteiramente sem recursos, desde os tempos do Dilúvio sua
ciência lhe ensinou muita coisa, e incrementará mais ainda o seu poder. Quanto
às inevitabilidades do destino, contra as quais não existe remédio, ele aprenderá
a suportá-las com resignação. De que lhe serve a miragem de uma grande
fazenda na Lua, cuja colheita ninguém jamais viu? Como honesto camponês
aqui na Terra, ele saberá cultivar seu pequeno torrão de modo que este o
alimente. Retirando as expectativas que havia posto no Além e concentrando na
vida terrena todas as forças assim liberadas, ele provavelmente alcançará que a
vida se torne suportável para todos e a civilização não mais oprima ninguém
(Freud, 1927/2004, p.234, grifos nossos).

Podemos resumir esse saldo obtido pela aposta civilizatória de Freud em uma
ética da desilusão-reconciliação, como aquele saldo também a ser conquistado por um
processo analítico: que o sujeito saiba que pode contar com suas próprias forças e
manejá-las a partir de uma escolha; que ele se lembre que, pelo fato de se constituir
como um ser de cultura, ele já não é inteiramente sem recursos (tem a lei, a ciência, a
arte, a psicanálise ao seu lado); que o sujeito desenvolva uma capacidade de se deparar
com o incontrolável e fazer desse encontro algo produtivo; e que o sujeito possa então
contar com as forças que antes estavam contidas apenas no campo das expectativas
sustentando suas ilusões.

Em segundo lugar, veja a diferença entre a sua e a minha atitude diante da ilusão.
Você precisa defender a ilusão religiosa com todas as forças; se ela ficar sem
valor—e está verdadeiramente ameaçada —, o seu mundo desmoronará, nada
lhe restará senão o desespero, com a civilização e com o futuro da humanidade.
Dessa servidão eu estou, nós estamos livres. Como estamos dispostos a
renunciar a boa parte de nossos desejos infantis, podemos tolerar que algumas de
nossas expectativas se revelem ilusões (Freud, 1927/2004, p.239, grifos nossos).

Para concluir, gostaria de encerrar com uma história vivida faz pouco tempo e
que comento na minha tese de doutorado, mas que se iluminou de uma maneira
diferente para a nossa mesa, na medida em que nos mostra como esse modelo infantil,
que sustenta uma ilusão pode se misturar com o “conhecimento científico”.
Nos preparativos do chá de bençãos, a avó está fazendo alguns recortes de papel
para a decoração do evento, escrevendo ali a primeira letra do nome do mais novo neto.
A sua netinha, de três anos, que aguarda a chegada do irmão, se dispõe a ajudar a avó, e
espertamente diz:
- T de Thiago, M de Maria.
- Isso, seu irmãozinho, ele está chegando, vocês vão até ter um quarto para vocês
dormirem juntos...
A avó, astutamente prevenida, notando um possível ciúme na insistência da
brincadeira, e as consequências embirradas que poderiam advir, decide então fazer logo
alguns foguetinhos com a letra M também. Durante uma conversa espontânea, a neta
pergunta:
- Vó, eu tenho três anos, qual número vem depois do três?
- O quatro. – A avó responde.
- Vó, o 3 acaba? pergunta a neta.
- Sim, depois do 3 vem o 4. – Responde a avó objetivamente, agora mais
preocupada com a confecção dos decorativos.
A netinha rompe com a atmosfera aparentemente ingênua da conversa, abre o
berreiro, e em desespero começa a chorar e gritar por todos os lados:
- EU NÃO QUERO QUE O 3 ACABE! EU VOU ACABAR COM O
QUATRO! EU VOU DER-RE-TER O 4!
A mãe, uma médica, pesquisadora e cientista reconhecida, tentando consolar a
avó, e talvez a si mesma, informa que nos últimos dias a filha está realmente assim, à
flor da pele, parece que vem estudando as matemáticas na escola e descobrindo mais
sobre a noção de “finito” e “infinito”.
A mãe, preocupada com o nascimento que se aproxima, e a avó com o evento
que prepara, parecem não desconfiar, e com razão, que o desespero de Maria não se
refere apenas ao aprendizado dos números, mas ao confronto com seu desamparo
fundamental, os mistérios que retornam de vez em quando aos seres de linguagem, seres
de filiações simbólicas. A chegada do irmão desconhecido é atualização do complexo
de intrusão: um semelhante, outra criança, outro filho, mas que é ao mesmo tempo
distinto, possível concorrente do amor dos pais, rival, um mal vindo de fora que
instabiliza o seu lugar na família.
O complexo de intrusão, elemento do modelo infantil, já é atualização e
elaboração simbólica e imaginária do desamparo, da finitude, da morte, da queda de um
certo lugar narcísico frente aos desejos maternos e paternos, resposta frente à abertura
da questão de que os pais podem desejar algo para além da criança, que percebe que já
não os completa. A criança se desespera, não querendo “que o três acabe”. Até ali, na
altura de seus três anos, o sentido está posto, a dinâmica de reconhecimento entre pai,
mãe e ela é mais ou menos conhecida, e eles parecem conviver em uma harmonia que
agora está ameaçada e que pode desmoronar com a chegada do quarto elemento. A
resposta a esse intruso é simples: se o quatro ameaça acabar comigo, melhor eu acabar
com ele antes. O desejo infantil matemático-assassino de acabar com ele se transfigura
em uma ilusão de dominação, gozosamente soletrada (“der”-“re”- “T”, ali encontramos
a letra do irmão). Essa ilusão contendo esse gozo já é uma maneira infantil de velar seu
confronto com o desamparo.
Em um segundo momento, essa imagem em formação parece vacilar, e a criança
é confrontada não apenas com o outro especular, possível rival, ou igual, mas com o
Outro absoluto, a morte, a finitude. A chegada do irmão serve assim como bode
expiatório que permite a criança simbolizar e imaginar, tentar obter algum controle
daquilo que não podemos controlar, o enigma da morte, da passagem do tempo, do
desejo do outro. Frente ao infinito, somos just a single grain of sand. Tanto a ciência na
escola, quanto a chegada do irmãozinho lembram essa criança de sua condição
estrutural de desamparo.
Apresentamos essa vinheta para que notemos que esses restos da neurose infantil
ainda nos habitam enquanto adultos. Diante do confronto com o desamparo,
constituímos respostas mais ou menos apegadas aos modelos infantis do complexo de
édipo, do complexo de intrusão. Essas respostas simbólico-imaginários infantis são a
maneira com que conseguimos nos defender do encontro com a falta de garantias e de
salvação até certo momento.
Esse modelo infantil quer tentar garantir as coisas tal como elas estão, os
sentidos estáveis, o lugar frente ao desejo e amor dos pais mais ou menos garantidos. As
atitudes devotas aos pais, por exemplo,buscam garantir o campo do sentido da vida,
garantir a presença de um Responsável por mim, por minhas escolhas, um olhar para
minha proteção, um culpado para as falhas sempre presente nesse processo. Contudo
diante da vida, do sexo, do nascimento, da morte não existem últimas palavras que
poderiam ser dadas por esses outros.
De alguma forma essa história bem humorada - não devemos nos levar a sério
demais também - me fez pensar como podemos utilizar a ciência, a matemática, o
empirismo ingênuo para sustentar uma ilusão infantil, de estrutura religiosa, para negar
o Real, seja através da fantasia de dominação, seja da fantasia de resgatar um estado
anterior de segurança ameaçada por esse intruso, esse inimigo (cuidado com os
psicanalistas!). Há diferentes usos que se pode fazer da ciência, e também da
psicanálise. Não devemos esquecer isso. Inclusive um uso que produz e sustenta ilusões
infantis. Natalia Parternak e Carlos Orsi parecem conservar uma certa ingenuidade
diante disso. E nós psicanalistas?

Referências:
Freud, S. (2014/1927). O futuro de uma ilusão. Tradução de Paulo César de Souza. In:
Obras Completas, vol. 17, pp. 231-301. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras
Freud, E. L., & Meng, H. (Org.). (1994). Cartas entre Freud & Pfister [1909-1939]: um
diálogo entre a psicanálise e a fé cristã. Viçosa: Ultimato.
Henderson, G. (2021). A condição do desamparo e a vida comum: um horizonte na cura
psicanalítica [Tese de Doutorado, Instituto de Psicologia, Universidade de Brasília].
Pereira, M. E. C. (2008). Pânico e desamparo: Um estudo psicanalítico. São Paulo:
Escuta.

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