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29 de agosto de 2023
A Incredulidade de São Tomé, de Caravaggio
.
A vantagem de entrar em uma polêmica quando ela parece estar acabando é poder avaliar
seu saldo. E no mais das vezes, quando ela é uma polêmica intelectual feita a partir do
ritmo, das frases de impacto e das imagens próprias à mídia, seu saldo é muito próximo do
zero. Talvez seja esse o caso da última versão nacional do já centenário debate sobre a
cientificidade da psicanálise, impulsionada por uma pesquisadora da área de biológicas, a
sra. Natalia Pasternak, e seu marido jornalista, o sr. Carlos Orsi.
E é bom lembrar do caráter centenário desse debate, porque teríamos o direito de esperar
que sua versão nacional pudesse trazer alguma novidade, algum argumento astuto, alguma
pesquisa nova a uma discussão sobre o destino de uma prática clínica que, para o bem ou
para o mal, moldou a sensibilidade ocidental a respeito de questões tão centrais como:
família, sexualidade, corporeidade, memória, desejos e seus conflitos. Pois é materialmente
impossível descrever o século 20, suas aspirações, tensões e transformações, sem
entendermos como nossa cultura é, em larga medida, uma “cultura psicanalítica”. Isso
significa: uma cultura forjada pela circulação da psicanálise em consultórios, hospitais,
escolas, filmes, literatura, mas também em periferias, lutas sociais, entre outros.
Entender tal força de influência de uma prática clínica exige um trabalho de sociologia das
ideias que muito poderia acrescentar ao debate. Trabalho que poderia trazer elementos para
responder, de forma mais objetiva, a questões como: por que a psicanálise se inseriu de
forma tão orgânica na história das sociedades ocidentais? Foi porque Freud era um “ótimo
publicitário”, um “astuto prestidigitador”? Ou foi porque a psicanálise efetivamente diz algo
de relevante a respeito da estrutura de nossa subjetividade e cultura?
O que aconteceu então com o Brasil para que a mesma discussão aparecesse agora de forma
mais explosiva, sem que nenhum elemento novo ou dado relevante fosse acrescentado ao
debate? É possível creditar parte do fenômeno à desorientação produzida pela pandemia.
Diante de um governo que praticou uma sequência sistemática de crimes contra a saúde
pública, não faltaram aqueles que se viram no meio de uma verdadeira reedição da guerra
das luzes contra a superstição, da ciência contra o obscurantismo, da civilização contra a
barbárie. Pesquisadores em ciências biológicas e exatas foram elevados à condição de
guardiães da razão aos quais a política deveria se submeter, se não quisesse abraçar as vias
do populismo ou de algum “irracionalismo” em política.
Só que agora talvez seja o momento de dizer que, nesse caso, o medo fez o pensamento
crítico regredir duas casas. Primeiro, porque nunca estivemos em um combate da ciência,
das luzes, da civilização, da razão, da bondade etc. contra as forças da regressão e do atraso.
Seria bom começar por lembrar o quanto há de sombra nas luzes, o quanto há de barbárie na
civilização, o quanto há de obscurantismo no positivismo científico. Um pouco de dialética
do esclarecimento faz bem nesses momentos.
A luta contra o fascismo nacional não foi nem é uma luta contra forças obscurantistas, um
termo mais apropriado aos debates teológicos do que às análises políticas. Analiticamente
“obscurantismo” não diz nada, até porque, se me permitem, sempre se é o “obscurantista”
de alguém. O que não poderia ser diferente, já que o conceito de racionalidade é um
conceito histórico e em disputa, a ciência não é um espelho da natureza, e não há nada de
“relativista” nessa posição. Não sendo uma luta contra o “obscurantismo”, nossa guerra
contra o fascismo é uma luta política (sublinho, uma luta política) contra uma junção
devastadora de ultraliberalismo econômico, indiferença social, violência estatal e
organização da sociedade a partir da generalização da lógica de milícias.
Dito isto, sugiro que aqueles que gostariam de fazer debates de divulgação científica para o
grande público não esquecessem de outro biólogo, o sr. George-Louis Leclerc, mais
conhecido como conde de Buffon, quem nos lembrava que “o estilo é o próprio homem”.
Maneira de dizer que a rudeza do estilo é expressão da simplicidade do conteúdo do
pensamento. Ninguém faz discussão séria sobre nada com o tom bonachão do monopolista
do bom senso que olha para as ditas “verborragia pseudocientíficas” e exclama, com se
estivesse fazendo uma repreensão às impertinências de um adolescente: “Que bobagem!”.
Isso deveria ser deixado com o finado Olavo de Carvalho e seus seguidores.
Tanto é assim que falta simplesmente tudo, do ponto de vista de uma reflexão
epistemológica séria, nessa versão mais recente do debate nacional sobre a cientificidade da
psicanálise. Há uma longa bibliografia recente, tanto nacional quanto internacional, de
reflexões epistemológicas sobre a psicanálise e seus regimes de objetividade. Seria
necessário levá-la em conta e se posicionar a respeito. Há uma história de respostas aos
argumentos clássicos contra a psicanálise. Seria necessário levá-la em conta e se posicionar
a respeito. Não vou fazer aqui o papel do professor de teoria das ciências humanas e passar
a lista exaustiva e ausente, mas o mínimo que se pode dizer é que um debate sério sobre a
objetividade da psicanálise levaria em conta, por exemplo, as discussões daqueles que
pensaram nos últimos anos psicanálise e neurociências (como Mark Solms e as reflexões do
Nobel de medicina Erick Kandel).
Ele poderia, ainda, fazer pesquisas com pacientes que passaram pela psicanálise e sentiram
mudanças importantes em suas vidas, fazer a mesma pesquisa com pacientes que não
perceberam tais mudanças e avaliar os resultados. Seria interessante fazer tais pesquisas no
Brasil dos últimos anos. Tudo isso seriam contribuições significativas para o debate, mas
nada foi feito, o que nos leva àquela sensação tão bem descrita por Shakespeare: Muito
barulho por nada… mais uma vez.
Sofrimento e autorreflexão
Digo “mais uma vez” porque o debate sobre a psicanálise como pseudociência sempre foi
muito pobre intelectualmente, já que foi feito em larga medida por quem se via mais na
posição de esconjurar um embuste primário do que de efetivamente analisar uma prática
clínica e uma crítica da cultura complexa que merece, ao menos, paciência nas análises. Por
exemplo, uma dessas figuras, cuja crítica retorna pela enésima vez nas páginas do livro que
analisamos, é, não poderia deixar de ser, Karl Popper.
Afinal, Popper foi responsável pela ideia de que a psicanálise não poderia ser ciência, já que
as interpretações de um analista não são enunciados que podem ser verificados. Se o
paciente aceita tais interpretações, o psicanalista se sente confirmado; se ele recusa, o
analista pode sempre alegar resistência do analisando e continuar sentindo-se confirmado.
Isto não é estranho para uma prática clínica desmedicalizada, ou seja, que não compreende
o sofrimento psíquico como expressão causal de marcadores biológicos, como se fôssemos
obrigados a assumir uma relação estritamente biunívoca entre estado cerebral e estado
mental, ou como se estados mentais fossem apenas maneiras “metafóricas” de falarmos
sobre estados cerebrais. Por ser desmedicalizada, a psicanálise opera por uma forma muito
específica e singular de reconhecimento. Isso não poderia ser diferente porque, quando
estamos a falar em sofrimento psíquico, a maneira com que um paciente se autocompreende
interfere em seu quadro clínico.
Levar um depressivo a compreender-se de outra forma tem, sim, efeitos em seu quadro
clínico. Mas, é claro que isso não se dá por simples “redescrição simbólica”. Nossas formas
de autocompreensão estão enraizadas em experiências sociais e históricas, em violências
reiteradas, na forma de circulação de discursos e práticas, em nomeações que têm o peso do
aparentemente intransponível. Tais autocompreensões se organizam através de nossos usos
de linguagem, de nossas disposições de ação, da história de nosso desejo, que é sempre uma
história social composta de mortos e vivos, de disposições conscientes e inconsciente.
Nesse sentido, a psicanálise é efetivamente uma ciência humana modelo, e por isso ela é tão
atacada. Pois ela tem consciência plena do caráter performativo de suas explicações e
intervenções. Isso explica porque o eixo de sua racionalidade clínica encontra-se no que
chamamos de “manejo da transferência”. Uma maneira de explicá-lo consiste em lembrar
que as relações de autoridade nos fazem sofrer. Elas determinam obrigações, normas, leis,
modos de ser, disposições de conduta, valores e sentimentos morais. Eu me constituo
socialmente internalizando princípios e figuras de autoridade. O médico, o discurso médico,
o psiquiatra são também autoridades que têm força constituinte de sujeitos e subjetividades.
Nossa vida psíquica é uma relação intersubjetiva constante com as marcas dessas figuras,
com suas internalizações, suas idealizações. Por isso, há sempre muitos outros em um Eu.
Por isso, a experiência que a psicanálise procura pôr em prática é uma experiência sobre o
caráter constituinte de relações de saber e poder que estão presentes em várias estruturas
sociais, até porque a transferência não é um fenômeno exclusivamente clínico. Ela está
presente em todo lugar no qual há relação constituinte de autoridade. O psicanalista age
sobre essas relações, procura dar corpo a elas em situação clínica a fim de permitir que elas
caiam e desamparem. Ele irá então lidar com tal desamparo, na crença de que ele será um
caminho capaz de produzir emancipação e fazer dos sintomas um campo de produção de
singularidades.
Bem, seria interessante se perguntar por que isso está a ocorrer agora. Estaríamos a passar,
neste exato momento, por uma verdadeira revolução científica que teria nos permitido
enxergar aquilo que não conseguíamos enxergar antes? Como se, durante décadas, não
tivéssemos percebido que havia entre nós pessoas sofrendo de “transtorno de acumulação”
(comportamento caracterizado por excesso de aquisição de itens e incapacidade de descartá-
los) e “transtorno desafiador opositivo” (comportamento excessivo de quem está geralmente
raivoso, irritado ou questionando figuras de autoridade)? Ou há algum outro a ocorrer e que
diz respeito à extensão das tecnologias de intervenção nos corpos e desejos através da
extensão dos procedimentos de patologização?
Alguns querem nos fazer acreditar que estamos em direção à clarificação inconteste de
marcadores biológicos para as estruturas do sofrimento psíquico. Mas poderíamos nos
perguntar, apenas para ficar em um exemplo pedagógico, quais são então os marcadores
biológicos para o transtorno de personalidade histriônica? Seus critérios diagnósticos são,
entre outros, “desconforto em situações em que ele ou ela não é o centro das atenções”,
“uso constante da aparência física para chamar a atenção para si”, “demonstração de
autodramatização, teatralidade e expressão exagerada de emoções”.
Tais critérios devem ser avaliados como expressão de marcadores biológicos específicos ou
como comportamentos de recusa, inconsciente ou não, a padrões de socialização que, por
sinal, são bastante imprecisos? Pois se estamos a falar em “expressão exagerada de
emoções”, havemos de perguntar onde estaria a definição de um “padrão adequado” de
emoções, a não ser na subjetividade do médico ou no manual de boas maneiras de nossa
avó.
Na verdade, isso demonstra a profunda insegurança epistêmica que atravessa aquilo que a
gritaria sobre “pseudociências” faz questão de esquecer de discutir. Seria o caso de refletir
com vagar sobre as razões que levaram nossas sociedades a modificar de forma tão
dramática sua maneira de intervir através da distinção entre saúde e doença, por que ela
estendeu tanto suas patologias e quais consequências podemos esperar disto.
Seria o caso, ainda, de lembrar dos problemas profundos que a guinada farmacológica da
psiquiatria contemporânea produziu. Por exemplo, estudos desenvolvidos por Michael
Hengartner e Martin Plöderl publicados na revista Psychotherapy and
Psychosomatics defendem que adultos começando tratamento com antidepressivos para
tratar a depressão têm 2,5 chances a mais de cometer suicídio do que aqueles que se servem
de placebos. Sim, você leu corretamente, é isso mesmo. Se os resultados de estudos dessa
natureza forem reiterados, bem, temos um problema sério a resolver. Uma boa discussão
epistemológica não seria indiferente a tais questões e dinâmicas. Mas, mais uma vez, ela
nos falta.
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