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empírica
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs2210200012.htm
O gênio da retórica
Frederick Crews
especial para a Folha
Falência intelectual
Quanto a essas "fundamentais contribuições para a compreensão das origens
das pulsões e dos conflitos" que o folheto da Biblioteca do Congresso
caridosamente atribuiu a Freud, descobriremos que elas evaporam tão logo se
pergunte o que sejam. Os freudianos estão na defensiva, e as estratégias de
defesa que adotam são elas próprias sintomáticas da falência intelectual. Em
vez de tentar mostrar que Freud inferiu corretamente o trauma infantil a partir
da livre associação, ou que suas leis mentais estão realmente vinculadas de
forma clara e adequada à observação, eles lançam mão de critérios de prova
mais frouxos. Os críticos, sustentam eles, ignoram as percepções modernas da
natureza relativa da ciência. Somos então brindados com uma tendenciosa
sinopse da concepção da história científica de Thomas Kuhn (1922-1996),
segundo a qual uma suposta incomensurabilidade entre paradigmas
concorrentes é tomada como sinônimo (a despeito dos opositores de Kuhn) de
que "prova" é tudo quanto os partidários de um dado paradigma declaram ser.
Não precisamos nos preocupar, diz o argumento, com o uso que Freud faz de
sua própria teoria para justificar as razões dessa teoria, uma vez que
percebemos agora que todas as teorias tomam iguais liberdades. Mas, como
mostra Barbara von Eckardt, essa posição em voga é oca. Por mais carregadas
de teoria que sejam em geral nossas idéias e percepções, é tanto possível
quanto necessário ser teoricamente neutro naquilo que conta: excluindo a
circularidade de um teste ou uma justificativa. Assim, o fato de que os
argumentos científicos nunca prescindem de pressupostos não é desculpa para
a clamorosa petição de princípio da psicanálise. Ademais, a acusação a que
está sujeito o freudismo não tem nada a ver com os rarefeitos debates na
filosofia ou sociologia da ciência. Antes, ela reside naquilo que Sebastiano
Timpanaro chama "um nível muito mais modesto e artesanal", o dos lances
furtivos que seriam julgados inaceitáveis não somente na ciência, mas na
conduta dos afazeres diários. A verdadeira questão é simples: quão
indulgentes queremos ser ante a postura "eu-sou-cara-você-é-coroa" de um
pensador idolatrado?
Nota
1. Trocadilho em inglês entre o verbo "to plumb" (sondar, perscrutar) e o substantivo "plumbing"
(encanamento).