Você está na página 1de 11

A Lei do Mais Forte (Mia Couto)

Durante muito tempo dissemos que a competição e a eliminação dos mais fracos eram o motor da
evolução natural. Sem querer, demos crédito à chamada lei do mais forte. Sancionamos o pecado
da ira dos poderosos no extermínio dos chamados fracos. Sabemos hoje que a simbiose é um dos
mecanismos mais poderosos de evolução. Mas deixámos que isso ficasse no esquecimento. E
continuamos ainda hoje vasculhando exemplos isolados de simbiose quando a Vida é toda ela um
processo de simbiose global. Sabemos hoje que a capacidade de criar diversidade foi o mais
importante segredo da nossa época como espécie que se adaptou e sobreviveu. No entanto,
vamo-nos contentando com o estatuto que a nós mesmos conferimos: o sermos a espécie
«sabedora».

Alimentámo-nos de receios e essa será mais uma manifestação da gula. Temos medo de errar.
Esse medo leva à proibição de experimentar outros caminhos, sufocados pelo cientificamente
correcto, pelo estatisticamente provado, pelo laboratorialmente certificado. Deveríamos ser nós,
biólogos, a mostrar que o erro é um dos principais motores da evolução. A mutação é um erro
criativo que funciona, um erro que fabrica a diversidade.
Os avanços no domínio do conhecimento fazem-se através de caminhos paradoxais. A nossa
ciência, sendo da vida, fez-se também por estradas da morte: a biologia sacrificou a planta para a
herborizar, matou o bicho para o dissecar, laminou a célula para a mergulhar nos solventes e
espreitá-la sob a lente do microscópio. Mas há outros modos de matar. Não matar o objecto do
conhecimento mas o próprio conhecimento. Um desses modos de aniquilar é aprisionar em
conceitos estreitos essa infinita complexidade a que damos o nome de Vida.

REGNER, Anna Carolina Krebs Pereira. Feyerabend/Lakatos: "adeus à razão" ou construção


de uma nova racionalidade? In: PORTOCARRERO, V., org. Filosofia, história e sociologia
das ciências I: abordagens contemporâneas [online]. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ,
1994. 272 p. ISBN: 85-85676-02-7. Available from SciELO Books <http://books.scielo.org>.

ELEMENTOS BIOGRÁFICOS e CONTEXTUALIZAÇAO COM OS DEMAIS


FILÓSOFOS CONTEMPORÂNEOS:

Paul Karl Feyerabend nasceu em Viena, em 1924. O pai era um funcionário


público discreto, e a mãe, uma dona de casa frustrada e suicida. Se Paul
manifesta ter devotado ao pai uma respeitosa ternura distante, para com a
mãe os sentimentos não vão além do respeito formal. […] Participou da
juventude hitlerista e foi oficial do exército alemão durante a Segunda
Guerra mundial (NETO, 2006).
Paul Karl Feyerabend nasceu em Viena, em 1924. O pai era um funcionário público discreto, e a mãe,
uma dona de casa frustrada e suicida. Se Paul manifesta ter devotado ao pai uma respeitosa ternura
distante, para com a mãe os sentimentos não vão além do respeito formal. O menino Feyerabend era
curioso e perscrutador (bem jovem, montou um telescópio a partir de um par de espelhos, um armário
velho e uma bicicleta, tornando-se observador do Instituto Suíço de Pesquisa Solar). Talvez desta
curiosidade infantil advenha uma das características de sua maturidade, a multiplicidade de interesses
(estudou teatro, história, política, matemática, filosofia, física e astronomia; era, ainda, apaixonado
por ópera e pintura).

Foi alistado no exército nazista e atuou na frente de batalha da Segunda Guerra


Mundial, em cujos ferimentos obrigaram-no ao uso de muletas pelo resto da vida e à
impotência sexual, bem como a uma rotina de constante dor1. Segundo Neto (2006),
Feyerabend nunca aderiu emotiva ou ideologicamente ao nazismo, mas essa informação é
controversa em especulações sobre sua biografia.

Foi aluno de Popper e depois se afastou de seu modelo racional de ciência. Foi amigo
de Kuhn e Lakatos.

O autor foi reconhecido pela pluralidade de sua formação/atuação, tendo sido


cientista, doutor em Física, filósofo, especialista em teatro (trabalhou com o Brest) e doutor
honoris causa em Letras e Humanidades. Na mesma direção, sua posição epistemológica:
demanda um pluralismo metodológico em sua obra mais conhecida Contra o Método (1977).
Mais do que a ausência de organização, o anarquismo epistemológico defendido por
Feyerabend busca resistir aos parâmetros únicos, métodos estáticos, postulações fixas de
regras e métodos com ambições universalistas. Resiste, nessa proposta anarquista, à
hierarquização de saberes, em que um conjunto de conhecimentos seria o mais válido ou mais
verdadeiro que os demais. Como Bachelard, Popper e Kuhn, também critica o indutivismo e
resiste à ideia de neutralidade e de objetividade absoluta, considerando os atravessamentos
contextuais, históricos, culturais em que as observações são feitas – ou seja, também afirma o
caráter construtivo do conhecimento, desinvestindo a ideia moderna de verdade definitiva
bem como a possibilidade de fatos nus (livres de teoria, como diria Popper). Segundo o autor,
“Caso não possamos resistir à tentação de buscar um princípio (meta-metodológico) que seja
aplicável a todas as situações (ou contextos), concede que o único seria o princípio tudo
vale.” (REGNER, 1996, p. 235).

Em síntese, para os filósofos contemporâneos, passa a ter lugar de destaque uma


análise da história das ciências, sob viés epistemológico. Segundo Lakatos, "A Filosofia da
ciência sem a história da ciência é vazia; a História da ciência sem a filosofia da ciência é
cega" (Lakatos, 1987a:11). Com base na famosa frase de Kant: "Pensamentos sem conteúdos
são vazios, intuições sem conceitos são cegas" (Kant, 1974:57). Nesse sentido, a
filosofia-epistemologia correspondem à razão e a história e seus fatos e fenômenos
correspondem à experiencia, de certa maneira.

Em comum, os 5 criticam:

- A ideia de neutralidade

- A ideia de objetividade absoluta

- A ideia de verdade acabada, absoluta ou completa

- O modelo positivista

- O empirismo/indutivismo

Ou seja, todos criticam a ideia de que a verdade está nos fatos, objetos e fenômenos nus, a ser
descoberta por um observador neutro, isento de pressupostos e atravessamentos culturais,
paradigmáticos, históricos, contextuais, biográficos – por meio do Método Científico (como
se fosse um conjunto fixo de regras universais). Apontam para o caráter construtivo e
provisório do conhecimento.

Em relação à Lakatos, Kuhn e Feyerabend criticam a ausência de um critério que


permita claramente estabelecer quando um programa deixa de ser progressivo e toma-se
estagnado, dado que um programa em degeneração "pode", em princípio, "sempre"
recuperar-se. Outrossim, em relação à tendência talvez mais estruturalista de Lakatos,
Feyerabend questiona o fato de ele delimitar a divisão entre objetivo e subjetivo,
indagando-lhe que critérios seguros fazem-no atribuir a lógica e a experiência à esfera
objetiva e fatores psicológicos à esfera subjetiva.

CRÍTICA A UM CERTO RACIONALISMO


Ele critica um certo tipo de racionalismo, demandando uma racionalidade
contextualizada. Não se trata, portanto, de uma crítica a qualquer racionalismo, mas à
racionalidade clássica ou às suas tradicionais delimitações = proposições provadas ou
inferidas (dedutiva/indutivamente). Ele coloca como furado esse racionalismo que surgiu lá
na Grécia, substituindo uma tradição mais dialética, talvez, em que a razão estava ligada à
situação. Isso se nota em filósofos pré-socráticos (já na escola jônica, a crítica e a abertura
eram elementos fundamentais; bem como nos mobilistas/pluralistas da escola italiana, como
Demócrito e Heráclito – segundo o qual a realidade tem unidade básica na pluralidade e o
movimento rege a realidade natural, as coisas estando em constante fluxo). Essa percepção do
caráter circunstancial da verdade também se faz presente nos sofistas.

O conhecimento ... não é um gradual aproximar-se da verdade. É, antes, um


oceano de alternativas mutuamente incompatíveis (e, talvez, até mesmo
incomensuráveis), onde cada teoria singular, cada conto de fadas, cada mito
que seja parte do todo força as demais partes a manterem articulação maior,
fazendo com que todas concorram, através desse processo de competição,
para o desenvolvimento de nossa consciência. Nada é jamais definitivo,
nenhuma forma de ver pode ser omitida de uma explicação abrangente
(Feyerabend, 1977, p.40-41 apud REGNER, 1996, p. 236, grifo nosso).

* "Todas as teorias são igualmente indemonstráveis" – a partir da crítica cética

* “Todas as teorias são igualmente improváveis" – a partir da crítica que Popper faz ao
positivismo lógico (que interpõe necessidade de estabelecer a probabilidade de uma
hipótese). Verificabilidade > Falseabilidade. (Uma teoria científica deve ser falseável,
oferecer possibilidade de refutação).

Feyerabend critica à razão em sua acepção mais recente, inclusive em Popper e em


Lakatos, em que se estabelece obediência a regras fixas e a padrões imutáveis. Embora
Popper critique o indutivismo, compartilha o empirismo deste, ao tomar a experiência como
"o" árbitro para a aceitabilidade (via "falseamento") das teorias. Critica também o seguinte:
Hipóteses aceitas obedecem teorias estabelecidas e se ajustam aos fatos estabelecidos. (Essa
já era a crítica do Bacon lá atrás, dizendo que desse método não sairia nada realmente
NOVO, já que se buscam refutar as anomalias – o que foge às regras nos casos particulares).
Assim, critica regras e padrões usualmente tomados como constituintes da “racionalidade”,
associando à expressão “conto de fadas”.

A condição de coerência, por força da qual se exige que as hipóteses novas


se ajustem a teorias aceitas, é desarrazoada, pois preserva a teoria mais
antiga e não a melhor. Hipóteses que contradizem teorias bem assentadas
proporcionam-nos evidência impossível de obter por outra forma. A
proliferação de teorias é benéfica para a ciência, ao passo que a
uniformidade lhe debilita o poder crítico. A uniformidade, além disso,
ameaça o livre desenvolvimento do indivíduo. (Epígrafe Capítulo III).

Essa racionalidade rebatida por Feyerabend é entendida por ele como uma tradição cega ao
método, do que uma possibilidade de irrefutabilidade dos seus preceitos, pois se houver
alguma observação que fuja dessa métrica, será ignorada e sempre os regimentos mais antigas
e mais familiares irão prevalecer.

“Se a teoria mais recente fosse a mais antiga, a condição de coerência


operaria em seu favor. ‘A primeira teoria adequada tem o direito de
prioridade sobre teorias posteriores igualmente adequadas’. Sob esse
aspecto, o efeito da condição de coerência é similar ao efeito dos mais
tradicionais métodos de dedução transcendental, de análise de
essências, de análise fenomenológica, de análise lingüística. Contribui
para a preservação do que é antigo e familiar, não porque seja
portador de qualquer inerente vantagem — não porque esteja melhor
fundamentado na observação do que a alternativa de sugestão recente
ou porque seja mais elegante — mas apenas por ser mais antigo e
familiar. (Contra o método, p. 48).

Sobre o papel do cientista sem esse nível de consciência, ele faz uma advertência (puxada rs):

Assim como um animal bem adestrado obedecerá ao dono, por maior


que seja a perplexidade em que se encontre e por maior que seja a
necessidade de adotar novos padrões de comportamento; assim
também o racionalista convicto se curvará à imagem mental de seu
mestre, manter-se-á fiel aos padrões de argumentação que lhe foram
transmitidos e aceitará esses padrões por maior que seja a
perplexidade em que se encontre mostrando-se incapaz e
compreender que a ‘voz da razão’ a que dá ouvidos é apenas o efeito
causal tardio do treinamento que recebeu. Não está em condições e
descobrir que o apelo à razão, diante do qual tão prontamente
sucumbe, nada mais é que manobra política. (Contra o método, p.32).

Síntese da Crítica de Feyerabend ao racionalismo:

* Popper critica o empirismo/indutivismo, mas o árbitro último para aceitar as teorias está
nos fatos. Não na verificabilidade, mas quando pensa o princípio da falseabilidade.
* Critica a fixidez do conjunto de regras que delimitam a razão crítica (Hipóteses aceitas
obedecem teorias estabelecidas e se ajustam aos fatos estabelecidos.)

* Critica, enfim, o enfoque estático da racionalidade.

A tarefa do cientista não é mais a de 'buscar a verdade' ou a de 'louvar


a Deus' ou a de 'sistematizar observações' ou a de 'aperfeiçoar
previsões'. Esses são apenas efeitos colaterais de uma atividade para a
qual a sua atenção se dirige diretamente e que é 'tornar forte o
argumento fraco', tal como disse o sofista, para, desse modo,
garantir o movimento do todo (Feyerabend, 1977:40-41).

* A objetividade não é uma invenção da ciência.

CRÍTICAS QUE RECEBE:

NÃO PERFAZ O QUE SERIA UMA “NOVA” RACIONALIDADE

É comum uma crítica a ele por não ser propositivo em relação ao que seria uma
“nova” teoria da racionalidade. Mas, como já apontava Kuhn, um novo paradigma, ao
substituir outro, passa por um processo de crise e questionamento. Há, portanto, o papel de
apontar lacunas, não somente o de propor preenchimentos.

Este ensaio é a primeira parte de um livro a propósito do anarquismo que


seria escrito por Lakatos e por mim. Cabia-me atacar a posição racionalista;
Lakatos, por seu turno, reformularia essa posição, para defendê-la e, de
passagem, reduzir meus argumentos a nada. Juntas, as duas partes deviam
retratar nossos longos debates em torno desse tema — debates que tiveram
início em 1964, prosseguiram em cartas, aulas, chamadas telefônicas,
artigos, até quase o último dia de vida de Imre, e se transformaram em parte
de minha rotina diária. A origem do ensaio explica o seu estilo: trata-se de
uma carta, longa e muito íntima, escrita para Imre e cada frase perversa que
contém foi escrita antecipando frase ainda mais ferina de meu companheiro.
Também é claro que o livro, como se apresenta, está lamentavelmente
truncado. Falta-lhe a parte mais importante, a réplica da pessoa para quem
foi elaborado. Publico-o, entretanto, como testemunho da forte e estimulante
influência que Imre Lakatos exerceu sobre todos nós (Paul K. Feyerabend).

O ANARQUISMO

A ciência é um empreendimento essencialmente anárquico: o anarquismo


teorético é mais humanitário e mais suscetível de estimular o progresso do
que suas alternativas representadas por ordem e lei. (Epígrafe de “Contra o
método)
Isso é demonstrado seja pelo exame de episódios históricos, seja pela análise
da relação entre idéia e ação. O único princípio que não inibe o progresso é:
tudo vale. (Epígrafe do primeiro capítulo)

* Tentativa de implodir a posição do adversário

* Alternativas teóricas conflitantes é uma força motriz para o desenvolvimento da ciência.

* Aproximação com Bachelard, que diz que sempre conhecemos contra e dá primazia ao erro
e à retificação. Segundo Bachelard, a busca por definir o que é ou não ciência, ou por
estabelecer critérios de demarcação, são empreitadas sem sentido – além de deslegitimar
alguns saberes em detrimento de outros.

* Não privilegiar um conjunto particular de regras não é o mesmo que mera exclusão de
regras.

Na discussão crítica de teorias, é preciso trabalhar com alternativas teóricas conflitantes -


"não podemos descobrir o mundo a partir de dentro. Há necessidade de um padrão externo de
crítica: precisamos de um conjunto de pressupostos alternativos" (Feyerabend, 1977:42)

* Comensurabilidade (Popper e Lakatos, sendo o elo o racionalismo) X incomensurabilidade


em Kuhn e Feyerabend. Feyerabend diz: a definição do que é racional é segundo os próprios
padrões de racionalidade de um programa ou teoria (história interna, normatizada).

CONTRA-INDUÇÃO

1. Introduzir hipóteses que conflitem com teorias confirmadas ou corroboradas

2. Introduzir hipóteses que não se ajustem a fatos bem estabelecidos.

Caso não possamos resistir à tentação de buscar um princípio (meta-metodológico) que seja
aplicável a todas as situações (ou contextos), concede que o único seria o princípio tudo vale.

METODOLOGIA PLURALISTA
Não se recusa a examinar qualquer concepção. Por trás do mundo tal como descrito pela
ciência pode ocultar-se uma realidade mais profunda, ou as percepções podem ser dispostas
de diferentes maneiras e que a escolha de uma particular disposição "correspondente à
realidade" não será mais "racional" ou "objetiva" que outra.

* Múltiplos vieses e camadas das realidades

* Não se pode estabelecer rigorosamente uma hierarquia em que uma seria mais “racional”
ou “mais objetiva” que a outra.

* Reconciliação da parte com o todo (o mundo em que vive), do puramente subjetivo e


arbitrário com o objetivo e submisso a regras → metodologia pluralista

* A própria linguagem é, para ele, “modeladora de eventos”, trazendo símbolos e


cosmologias implicitamente – proceder como um antropólogo.

* Reflexão: Mesmo que não esteja explícita a valoração, o fato de delimitar o lugar exato do
que seja possível ser considerado ciência já é, em si, uma hierarquização, pois em nossa
sociedade, dizer que algo é científico ou racional já carrega consigo, a intenção de dizer que é
confiável ou verdadeiro.

* O sucesso da ciência é reconhecido, mas qualificado como RESTRITO, RELATIVO,


CONTEXTUAL, LOCAL e FALÍVEL.

* Podemos aceitar como válidos os RESULTADOS do materialismo científico sem, com isso,
aceitar tal materialismo ou o objetivismo científico (ciência como espelho do real).

concessões

POR UMA RACIONALIDADE CONTEXTUALIZADA - REFORMULAÇÕES

podemos dar-lhe [a Lakatos] apoio sem renunciar ao anarquismo. Cabe


mesmo admitir que, no presente estágio de consciência filosófica, uma
teoria irracional, falsamente interpretada como versão nova da Razão, será
instrumento melhor para a libertação do espírito do que um anarquismo
irrestrito, suscetível de paralisar quase todos os cérebros (Feyerabend,
1977:319).
A crítica que o autor austríaco tece ao racionalismo (e mesmo ao racionalismo crítico
em ascensão em sua época, capitaneado por Popper) é reavaliada ou suavizada no final de sua
vida e em seus últimos escritos pondera sobre o estado da ciência e da vida da época (anos
finais do século XX), considerando a possibilidade de a razão ser especialmente necessária
nesses tempos para assegurar uma “abordagem mais humana” – um paralelo que possa
justificar essa posição pode ser feito, por exemplo, com as investiduras negacionistas do
ex-presidente Jair Bolsonaro durante o período da pandemia de COVID-19 a custa de
milhares de vidas. Ideias semelhantes podem ser acessadas nos últimos textos de Bruno
Latour (1947-2022), especialmente no texto Por que a crítica perdeu a força? De questões de
fato a questões de interesse. Em tal texto, o filósofo francês problematiza o excesso de
desconfiança na contemporaneidade, inquieto com as apropriações indesejáveis dessa
incerteza, com as controvérsias mantidas artificialmente – citando o exemplo do aquecimento
Global – para beneficiar o pior tipo de ideia (RIBEIRO, 2021).

IMPLICAÇÕES COM A EDUCAÇÃO

Feyerabend questiona não o fato de a ciência possuir sua própria ideologia e


impô-la a seus adeptos, mas a ausência de oportunidade para uma tal escolha
pelos que são a ela submetidos. Em sua educação, deveriam ser expostos a
diferentes cosmovisões, antes que fizessem sua escolha pela ciência, com
suas exigências próprias: "Cabe ensiná-la, mas tão-somente àqueles que
decidiram aderir a essa particular superstição" (Feyerabend,1977:464)
(REGNER, 1994, p. 123).

Ou seja, quando pensamos em uma concepção libertária de educação, é afim com a


prerrogativa do autor, segundo a qual não é condenável a ciência ser constrangida pelo
paradigma segundo o qual funciona, a questão central nesse sentido é poder assumir que se
trata de uma cosmovisão, nao da mais adequada e nao da verdade em si. A ciência, dessa
forma, não pode se assumir a medida objetiva de todas as ideologias. É preciso desmistificar
esse conto de que só “os fatos” e “a lógica” operam no conhecimento científico.
* Hierarquização de saberes — → Ensino multicultural, multiperspectivo, contextual.

Atico Chassot, ao escrever seus postulados sobre educação, se baseia na pluralidade


metodológica de Feyerabend. Para Chassot, a educação científica precisa articular saberes
populares com um saber escolar, e para isso, precisa construir uma metodologia holística, que
segundo ele:
Há nessa dimensão a busca de se investigar um ensino mais impregnado
com posturas mais holísticas, isto é, com um ensino de ciências que
contemple aspectos históricos, dimensões ambientais, posturas éticas e
políticas, mergulhadas na procura de saberes populares e nas dimensões
das etnociências, proposta que traz vantagens para uma alfabetização
científica mais significativa, como também confere dimensões
privilegiadas para a formação de professoras e professores. (Chassot,
2003, p.94)

QUESTÕES:

1) Não é curioso que, pensando Lakatos e Feyerabend, um passa a ser considerado


“amigo da ciência”, base importante para pensar a metodologia dos programas de pesquisa, e
outro passe a ser considerado por muitos “inimigo da ciência” – visto que ambos eram
amigos entre si e discutiam constantemente suas visões, influenciando-se mutuamente? Essa
dicotomia entre o que serve ou não já não estaria refletindo esse caráter estruturalista da
ciência moderna?

REFERÊNCIAS:

CHASSOT, Attico. Alfabetização científica: uma possibilidade para a inclusão social. Revista
brasileira de educação, p. 89-100, 2003.

FEYERABEND, P. Contra o Método: esboço de uma teoria anárquica do conhecimento.


Trad. Octanny S. da Mata. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977.

LATOUR, Bruno. Por que a crítica perdeu a força? De questões de fato a questões de
interesse. O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.29, n.46, p.173-204, jan.-jun.2020.

NETO, Carlos Gustavo Wolff. Comunidade científica em Feyerabend e Dascal. Controvérsia


– v.2, n.2, p. 01-11, jan-jun 2006.
REGNER, Anna Carolina Krebs Pereira. Feyerabend/Lakatos: "adeus à razão" ou construção
de uma nova racionalidade? In: PORTOCARRERO, V., org. Filosofia, história e sociologia
das ciências I: abordagens contemporâneas [online]. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ,
1994. 272 p. ISBN: 85-85676-02-7. Available from SciELO Books <http://books.scielo.org>.

REGNER, Anna Carolina Krebs Pereira. Feyerabend e o pluralismo metodológico.


Cad.Cat.Ens.Fis., v.13,n3: p.231-247, dez.1996.

RIBEIRO, Élida Santos. Negacionismo, relativismo e autoritarismo na ciência: do


desmascarar ao agregar realidades. ClimaCom – Diante dos Negacionismos [Online],
Campinas, ano 8, n. 21, abril. 2021. Disponível em:
http://climacom.mudancasclimaticas.net.br/negacionismo-relativismo-e-autoritarismo-na-cien
cia/.

1Disponível em:
<https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1996/5/10/caderno_especial/11.html>. Acesso em
15 set. 2023.

Você também pode gostar