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O APOIO

MÚTUO

Piotr Kropotkin

Traduzido e não revizado.


Jan/2006

1
ÍNDICE

3...INTRODUCCION À TERÇA EDICION EM ESPANHOL

10...PROLOGO AO “APOIO MÚTUO”, DE P. KROPOTKIN, NA EDICION


NORTE-AMERICANA

12...PROLOGO À PRIMEIRA EDICION RUSSA


PROLOGO

13...INTRODUCCION

19...CAPITULO I: A AJUDA MÚTUA ENTRE Os ANIMAIS

31...CAPITULO II: A AJUDA MÚTUA ENTRE Os ANIMAIS (Continuação)

48...CAPITULO III: A AJUDA MÚTUA ENTRE Os SELVAGENS

63...CAPITULO IV: A AJUDA MÚTUA ENTRE Os BARBAROS

77...CAPITULO V: A AJUDA MÚTUA NA CIDADE MEDIEVAL

90...CAPITULO VI: A AJUDA MÚTUA NA CIDADE MEDIEVAL

103...CAPITULO VII: A AJUDA MÚTUA NA SOCIEDADE MODERNA

118...CAPITULO VIII: A AJUDA MÚTUA NA SOCIEDADE MODERNA


(Continuação)

130...CONCLUSÃO

2
INTRODUCCION À TERÇA EDICION EM ESPANHOL

O apoio mútuo é a obra mais representativa da personalidade intelectual de Kropotkin. Nela se


encontram expressados por igual o homem de ciência e o pensador anarquista; o biólogo e o filósofo
social; ele historiador e o ideólogo. Trata-se de um ensaio enciclopédico, de um gênero cujos últimos
cultores foram positivistas e evolucionistas. Abarca quase todos os ramos do saber humano, desde a
zoologia à história social, desde a geografia à sociologia da arte, postas ao serviço de, uma tese
científico-filosófica que constitui, a sua vez, uma particular interpretação do evolucionismo
Darwiniano.
Pode dizer-se que dita tese chega a ser o fundamento de toda sua filosofia social e política e
de todas suas doutrinas e interpretações da realidade contemporânea Como gozne entre aquele
fundamento e estas doutrinas se encontra uma tica da expansão vital. Para compreender o sentido da
tese básica do apoio mútuo é necessário partir do evolucionismo darwiniano ao qual se adere
Kropotkin, considerando-o a última palavra da ciência moderna.
Até o século XIX os naturalistas tinham quase por axioma a idéia da firmeza e imobilidade
das espécies biológicas: Tot sunt species quot a princípio creavit infinitum ens. Ainda no século XIX,
o mais célebre dos cultores da história natural, o hugonote Cuvier, seguia impertérrito em seu fijismo.
Mas já em 1809 Lamarck, em seu Filosofia zoológica defendia, com grande escândalo da
Igreja e da Academia, a tese de que as espécies zoológicas se transformam, em resposta a uma
tendência imanente, de sua natureza e adaptando-se ao meio circundante. Há em cada animal um
impulso intrínseco (ou “conato”) que o leva a novas adaptações e o provê de novos órgãos, que se
agregam a seu fundo genético e se transmitem por herança. À idéia do impôs intrínseco e a formação
de novos órgãos exigidos pelo médio ambiente se adiciona a da transmissão hereditária. Tais idéias,
às que Cuvier opunha três anos mais tarde, em seu Discurso sobre as revoluções do balão, a teoria das
catástrofes geológicas e as sucessivas criações [1], encontrou indirecto apoio nos trabalhos do geólogo
inglês, Lyell, quem, em seus Princípios de geologia demonstrou a falsidade do catastrofismo de
Cuvier, provando que as causas da alteração da superfície do planeta não são diferentes hoje que nas
passadas eras [2]. Lamarck desce filosoficamente da filosofia da Ilustração, mas não eliminou do todo
a teleología. Para ele há na natureza dos seres vivos uma tendência contínua a produzir organismos
cada vez mais complexos [3].
Dita tendência atua em resposta a exigências do meio e não só cria novos carateres somáticos
senão que os transmite por herança Uma vontade inconsciente e genérica impulsiona, pois, a
mudança segundo uma lei geral que assinala o trânsito do simples ao complexo. Está lei servirá de
base à filosofia sintética de Spencer . Pese à importância da teoria de Lamarck na história da ciência
e ainda da filosofia, ela estava limitada por inegáveis deficiências. Lamarck não contribuiu muitas
provas a suas hipóteses; partiu de uma química precientífica; não considerou a evolução senão como
processo linear.
Darwin, em mudança, sei preocupou por acumular, sobretudo através de sua viagem ao
redor do mundo, no Beagle um grande cúmulo de observações zoológicas e botânicas; pôs-se ao dia
com a química iniciada por Lavoisier (ainda que ignorou a genética fundada por Mendel e teve da
evolução um conceito mais amplo e, complexo. Eliminou toda classe de teleologismo e se baseou, em
supostos estritamente mecanicistas. Suas notas revelam que tinha consciência das aplicações
materialistas de suas teorias biológicas. De fato, não só recibio a influência de seu avô Erasmus
Darwin e a do geólogo Lyell senão também as do economista Adam Smith, do demógrafo Malthus e
do filósofo Comte [4].
Em 1859 publicou sua Origem das espécies que conseguiu cedo universal celebridade; doze
anos mais tarde sacou à luz A descendência do homem[5]. Darwin aceita de Lamarck a idéia de
adaptação ao meio, mas se nega a admitir a da força imanente que impulsiona a evolução. Recusa, em
conseqüência, toda possibilidade de mudanças repentinas e só admite uma série de mudanças
graduais e acidentais. Formula, em substituição do princípio lamarckiano do impulso imanente, a lei
da seleção natural [6]. Partindo de Malthus, observa que há uma reprodução excessiva dos viventes,
que levaria de por se a que cada espécie enchesse toda a terra.

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Se isso não sucede é porque uma grande parte dos indivíduos perecem. Agora bem, o
desaparecimento dos mesmos obedece a um processo de seleção Dentro de cada espécie surgem
innúmeras diferenças; só sobrevivem aqueles indivíduos cujos carateres diferenciais os fazem mais
aptos para adaptar-se ao meio. De tal maneira, a evolução aparece como um processo mecânico, que
faz supérflua toda teleología e toda idéia de uma direção e de uma meta. Esta lei básica da seleção
natural e a sobrevivência do mais- apto (do que alguns filósofos comporáneos, como Popper,
consideram mera tautologia) compartilha a idéia da luta pela vida (struggle for life) [7]. Esta se
manifesta principalmente entre os indivíduos de uma mesma espécie, onde cada um luta pelo
predomínio e pelo acesso à reprodução (seleção sexual).
Herbert Spencer, quem, antes de Darwin, tinha esboçado já o plano de um vasto sistema de
filosofia sintética, estendeu a idéia da evolução, por uma parte, à matéria inorgânico (Primeiros
Princípios 1862, II Parte,) e, por outra parte, à sociedade e a cultura (Princípios de Sociologia
18761896). Para ele, a luta pela vida e a sobrevivência. do mais apto (expressão que usava desde
1852), representam não somente, o mecanismo pelo qual a vida se transforma e evolui sim não
também. a única via de todo progresso humano [8]. Senta assim as bases do que se chamará o
darwinismo social, cujos dois filhos, o feroz capitalismo manchesteriano e o ignominioso racismo
fuero talvez mais longe do do que aquele pacífico burguês podia imaginar. Th. Huxley, discípulo fiel
de Darwin publica, em fevereiro de 1888, em, a revista The Níneteenth Century, um artigo que
como seu mesmo título indica, é todo um manifesto do darwinismo social: The Struggle for life. A
Programme [9]. Kropotkin fica comovido por este trabalho, no qual vê expostas as idéias sociais
contra as que sempre tinha lutado, fundadas nas teorias científicas às que considerava como
culminação, do pensamento biológico contemporâneo. Reage contra ele e, a partir de 1890, propõe-
se refutá-lo numa série de artigos, que vão aparecendo também em The Nineteenth Century e que
mais tarde amplia e complementa, ao reuní-los num volume titulado O apoio mútuo. Um fator da
evolução.
Um caminho para refutar a Huxley e ao darwinismo social tivesse sido seguir os passos de
Russell Wallace, quem põe o cérebro do homem, à margem da evolução. Há que ter em conta que
este. ilustre sábio que formulou sua teoria da evolução das espécies quase ao mesmo tempo que
Darwin, ao fazer um lugar aparte para a vida moral e intelectual do ser humano, sustentava que desde
o momento em que este chegou a descobrir o fogo, entrou no campo da cultura e deixo de ser
afetado pela seleção natural [10]. Deste modo Wallace se sustrajo, bem mais do que Darwin ou
Spencer, ao preconceito racial [11]. mas Kropotkin, firme em seu materialismo, não podia seguir a
Wallace, quem não duvidava em postular a intervenção de Deus para explicar as características do
cérebro e a superioridade moral e intelectual do homem.
Por outra parte, como socialista e anarquista, não podia em, modo algum cohonestar as
conclusões de Huxley, nas que via sem dúvida um cômodo fundamento para a economia do irrestricto
“laissez faire” capitalista, para as teorias racistas de Gobineau (cujo Ensaio sobre a desigualdade das
raças humanas tinha sido publicados já em 1855), para o malthusianismo, para as elucubraciones
falsamente individualistas de Stirner e de Nietzsche.
Considera, pois, o manifesto huxleyano como uma interpretação unilateral e, por tanto falsa da
teoria darwinista do “struggle for life” e lhe propõe demonstrar que, junto ao princípio da luta (de
cuja vigência não dúvida), deve-se ter em conta outro, mais importante do que aquele para explicar a
evolução dos animais e o progresso do homem. Este princípio é o da ajuda mútua entre os indivíduos
de uma mesma espécie (e, as vezes, também entre as de espécies diferentes). O mesmo Darwin tinha
admitido este princípio. No prólogo à edição de 1920 do apoio mútuo, escrito poucos meses antes de
sua morte, Kropotkin manifesta sua alegria pelo fato de que o mesmo Spencer reconhecesse a
importância de “a ajuda mútua e seu significado na luta pela existência’ Nem Darwin nem Spencer
lhe outorgaram nunca, no entanto , a casta que lhe dá Kröpotkin ao pô-la ao mesmo nível (quando
não por em cima) da luta pela vida como fator de evolução.
Depois de um exame bastante minucioso da conduta de diferentes espécies animais, desde os
escaravelhos sepultureros e os caranguejos das Molucas até os insetos sociais (formigas, abelhas etc.),
para o qual aproveita as investigações de Lubbock e Fabre; desde a torneira-hálcón do Brasil até o
frailecico e o aguzanieves desde cánidos, roedores, angulados e ruminantes até elefantes, javalis,
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morsas e cetáceos; depois de ter descripto particularmente os hábitos dos macacos que são, entre
todos os animais ‘os mais próximos ao homem por sua constituição e por sua inteligência’, conclui
que em todos os níveis da escala zoológica existe vida social e que, à medida que se ascende em dita
escala, as colônias ou sociedades animais se tornam cada vez mais conscientes, deixam de ter um
mero alcance fisiológico e de fundamentar-se no instinto, para chegar a ser, ao fim, racionais.
Em lugar de sustentar, como Huxley, que a sociedade humana nasceu de um pacto de não
agressão, Kropotkin considera que ela existiu desde sempre e não foi criada por nenhum contrato,
senão que foi anterior inclusive à existência dos indivíduos. O homem, para ele, não é o que é senão
por sua sociabilidade, isto é, pela forte tendência ao apoio mútuo e à convivência permanente. Opõe-
se assim ao contractualismo, tanto na versão pessimista de Hobbes (honro homini lupus), que
fundamenta o absolutismo monárquico, como na otimista de Rousseau, sobre a qual se considera
baseada’ a democracia liberal. Para Kropotkin igual que par Aristóteles, a sociedade é tão connatural
ao homem como a linguagem. Ninguém como o homem merece o apelativo de “animal social”
(dsóon koinonikón). Mas a Aristóteles se opõe ao não admitir a equivalência que este estabelece entre
“animal social” e “animal político” (dsóon politikón). Segundo Kropotkin, a existência do homem
depende sempre de uma coexistência. O homem existe para a sociedade tanto como a sociedade para
o homem. É claro, por isso que sua simpatia por Nietzsche não podia se¡ profunda.
Considera ao nietzscheanismo, tão de moda em sua época como na nossa, “um dos
individualismos espúreos”. Identifica-o em definitiva com o individualismo burguês, ‘que só pode
existir sob a condição de oprimir às massas e do lacayismo, do servilismo para a tradição, da
obliteración da individualidade dentro do próprio opressor, como em seio da massa oprimida’ [12].
Ainda a Guyau, esse Nietzsche francês cuja moral sem obrigação nem sanção encontra tão
próxima à ética anarquista, reprocha-lhe o não ter compreendido que a expansão vital à qual aspira é
antes de mais nada luta pela justiça e a Liberdade do povo. Com maior força ainda se opõe ao
solipsismo moral e ao egotismo transcendental de Stirner, que considera “simplesmente a volta
dissimulada à atual educação do monopólio de uns poucos” e o direito ao desenvolvimento “para as
minorias privilegiadas” Sem deixar de reconhecer, pois, que a idéia da luta pela vida, tal como a
propuseram Darwin e Wallace, resulta sumamente fecunda,: quanto faz possível abarcar uma grande
quantidade de fatos sob um enunciado general, faz questão de que muitos darwinistas restringiram
aquela idéia a limites excessivamente estreitos e tendem a interpretar o mundo dos animais como um
sangrento palco de lutas ininterruptas entre seres sempre famintos e ávidos de sangue. Graças a eles
a literatura moderna se encheu com o grito de ‘vae victis” (¡ai dos vencidos!), grito que consideram
como a última palavra da ciência biológica. Elevaram a luta sem quartel à condição de princípio e lei
da biologia e pretendem que a ela se subordine o ser humano. Enquanto, Marx considerava que o
evolucionismo darwiniano, baseado na luta pela vida, fazia parte da revolução social [13] e, ao mesmo
tempo, os economistas manchesterianos o tinham como excelente suporte científico para sua teoria da
livre concorrência, na qual a luta de todos contra todos (a lei da selva) representa o único caminho
para, a prosperidade. Kropotkin coincide com Marx e Engels em que o darwinismo dió um golpe de
graça à teleología. À tentativa de aproveitar para os fins da revolução social a idéia darwinista da vida
(interpretada como luta de classes) atribui-lhe relativa importância.
Por outra parte, como Marx, ataca á Malthus, cujo primeiro adversário de talha tinha sido
Godwin, o precursor de Proudhon e do anarquismo. Mas a decidida oposição ao malthusianismo, que
propicia a morte em massa dos pobres por sua inadaptação ao meio, e a luta contra Huxley, que não
encontra outro fator de evolução fora da perene luta sangrenta, não significam que Kropotkin se adira
a uma visão idílica da vida animal e humana nem que se livre, como muitas vezes se disse, a um
otimismo desenfreado e ingênuo. Como naturalista e homem de ciência está longe dos rosados
quadros galantes e feriados do rococó, e não compartilha simples e claramente a idéia do bem
selvagem de Rousseau. Pretende situar-se num ponto intermédio entre este e Huxley.
O erro de Rousseau consiste em que perdeu de vista por completo a luta sustentada com
bicos e garras, e Huxley é culpada do erro de caráter oposto; mas nem o otimismo de Rousseau nem
o pessimismo de Huxley podem ser aceitados como uma interpretação desapasionada e cientista das
natureza. O ilustre biólogo Ashley Montagu escreve a este respecto: “É erro generalizado crer que

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Kropotkin se propôs demonstrar que é a ajuda mútua e não a seleção natural ou a concorrência
o principal ou único fator que atua no processo evolutivo”. Num livro de genética publicado
recentemente por uma grande autoridade na matéria, lemos: “O reconhecer a importância que tem a
cooperação e a ajuda mútua na adaptação não contradiz de jeito nenhum a teoria da seleção natural,
segundo interpretaram Kropotkin e outros”.
Os leitores do apoio mútuo cedo perceberão até que ponto é injusto este comentário. Kropotkin
não considera que a ajuda mútua contradiz a teoria da seleção natural. Uma e outra vez chama o
atendimento sobre o fato de que existe concorrência na luta pela vida (expressão que critica
acertadamente com razões sem dúvida aceitáveis para a maior parte dos darwinistas modernos), uma e
outra vez destaca a importância da teoria da seleção natural, que assinala como a mais significativa do
século XIX. O que encontra inaceitável e contraditório é o extremismo representado por Huxley em
seu ensaio “Struggle for Existence Manifesto”, e assim o demonstra ao qualificá-lo de “atroz” em
suas Memórias [14].
Efetivamente, em Memórias de um revolucionário relata: “Quando Huxley, querendo lutar
contra o socialismo, publicou em 1888 em Nineteenth Century, seu atroz articulo “A luta pela
existência é todo um programa”, decidi-me a apresentar em forma compreensível minhas objeções a
seu modo de entender a referida luta, o mesmo entre os animais que entre os homens, materiais que
estive acumulando durante seis anos” [15]. O propósito não teve calorosa acolhida entre os homens de
ciência amigos, já que a interpretação de “a luta pela vida como sinônimo de ¡ai dos vencidos!”,
elevado ao nível de um imperativo da natureza tinha-se convertido quase num dogma. Só duas
pessoas apoiaram a rebeldia de Kropotkin contra o dogma e a “atroz” interpretação huxleyana: James
Knowles, diretor da revista Nineteenth Century H.W. Bates, conhecido autor de Um naturalista no rio
Amazonas.
Pelo demais, a tese que pretendia defender, contra Huxley, tinha sido vai proposta pelo geólogo
russo Kessler, ainda que este a penas tinha alegado alguma prova em favor da mesma. Eliseo Reclus,
com sua autoridade de sábio, dará sua aberta adesão a dita tese e defenderá os mesmos pontos de
vista que Kropotkin [16].
Da grande massa de dados zoológicos que reuniu infere, pois, que ainda que é verdadeira a
luta entre espécies diferentes e entre grupos de uma mesma espécie, em termos gerais deve dizer-se
que a pacífica convivência e o apoio mútuo reinam dentro do grupo e da espécie, e, mais ainda, que
aquelas espécies nas quais mais desenvolvida está a solidariedade e a ajuda recíproca entre os
indivíduos tem maiores possibilidades de sobrevivência e evolução.
O princípio do apoio mútuo não constitui, por tanto, para Kropotkin, um ideal ético nem
também não uma mera anomalia que rompe as rígidas exigências da luta pela vida, senão um fato
cientificamente comprovado como fator da evolução, paralelo e contrário ao outro fator, o famoso
“struggle for life”. É claro que o princípio poderia interpretar-se como pura exigência moral do
espírito humano, como imperativo categórico ou como postulado ou fundacional da sociedade e da
cultura. Mas nesse caso teria que adotar uma posição idealista ou, pelo menos , renunciar ao
materialismo mecanicista e, ao naturalismo antiteológico que Kropotkin aceitou. Se tanto se esfuerza
por demonstrar que o apoio mútuo é um fator biológico, é porque só assim ficam igualmente
satisfeitas e harmonizadas suas idéias filosóficas e suas idéias sócio-políticas numa única
“Weitanschaung”, conforme, pelo demais, com o espírito da época.
A concepção huxleyana da luta pela vida, aplicada à história e a sociedade humana, tem uma
expressão antecipada em Hobbes, que apresenta o estado primitivo da humanidade como luta
perpétua de todos contra todos. Esta teoria, que muitos darwinistas como Huxley aceitam
comprazidos, funda-se, segundo Kropotkin, em supostos que a moderna etnología desmente, pois
imagina aos homens primitivos unidos só em famílias nômades e temporárias. Invoca, a este
respecto, o mesmo que Engels, o depoimento de Morgan e Bachofen. A família não aparece assim
tomo forma primitiva e originária de convivência senão como produto mais bem tardio da evolução
social. Segundo Kropotkin, a antropologia nos inclina a pensar que em suas origens o homem vivia
em grandes grupos ou rebanhos, similares aos que constituem hoje muitos mamíferos superiores.
Seguindo ao próprio Darwin, adverte que não foram macacos solitários, como o orangotango e
o gorila, os que originaram os primeiros homínidos ou antropoides, senão, ao invés, macacos menos
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fortes mas mais sociáveis, como ele chimpanzé. A informação antropológica e pré-histórica, obtida ao
que parece no Museu Britânico, é abundante e está muito atualizada para o momento.
Com ela crê Kropotkin demonstrar amplamente sua tese. O homem pré-histórico vivia em
sociedade: as grutas dos vales de Dordogne, por exemplo foram habitadas durante o paleolítico e
nelas se encontraram numerosos instrumentos de sílice. Durante o neolítico, segundo se infere dos
restos palafíticos de Suiça, os homens viviam e laboravam em comum e ao que parece em paz.
Também estuda, valendo-se de relatos de viajantes e estudos etnográficos, as tribos primitivas
que ainda habitam fora de Europa (bosquimanos, australianos, esquimós, hotentotes, papúes etc.), em
todas as quais encontra abundantes provas de altruísmo e espírito comunitário entre os membros do
clã e da tribo.
Adiantando-se em certa maneira a estudos etnográficos posteriores, tenta desmitologizar a
antropofagia, o infanticidio e outras práticas semelhantes (que antropólogos e missionários da época
utilizavam sem dúvida para justificar a opressão colonial). Põe de relevo, pelo contrário , a abnegação
dos indivíduos em pró da comunidade, o débil ou inexistente sentido da propriedade privada, a
atitude mais pacífica do que se costuma supor, a falta de governo. Neste, ponto, Kropotkin é
evidentemente um precursor da atual antropologia política de Clastres [17].
Ainda que considera inaceitável tanto a visão rousseauniana do homem primitivo qual modelo
de inocência e de virtude como a de Huxley e muitos antropólogos do século XIX, que o consideram
uma besta sanguinária e feroz, crê que esta segunda visão é mais falsa e anticientífica do que a
primeira. Em sua luta pela vida -diz Kropotkin- o homem primitivo chegou a identificar sua própria
existência com a da tribo, e sem tal identificação jamais tivesse negado a humanidade ao nível em do
que hoje se acha. Se os povos “bárbaros” parecem caracterizar-se por sua incessante atividade bélica,
isso se deve, em boa parte, segundo nosso autor, ao fato de que os cronistas e historiadores, os
documentos e os poemas épicos, só consideram dignas de menção as façanhas guerreiras e passam
quase sempre por alto as proezas do trabalho, da convivência e da paz.
Grande importância concede à comuna aldeana, instituição universal e célula de toda
sociedade futura, que existiu em todos os povos e sobrevive ainda hoje em alguns. Em lugar de ver
nela, como fazem não poucos historiadores, um resultado da servidão, øentende-a como organização
prévia e até contrária à mesma. Nela não só se garantiam a cada camponês os frutos da terra comum
senão também a defesa da vida e o solidário apoio em todas as necessidades da vida. Enuncia uma
espécie de lei sociológica ao dizer que, quanto mais íntegra se conserva a obsessão comunal, tanto
mais nobres e suaves são os costumes dos povos. De fato, as normas morais dos bárbaros eram muito
elevadas e o direito penal relativamente humano frente à crueldade do direito romano ou bizantino.
As aldeias fortificadas, converteram-se desde começos do Medioevo em cidades, que
chegaram a ser politicamente análogas às da antiga Grécia.
Seus habitantes, com unanimidade que hoje parece quase inexplicável, sacudiram por todos os
lados o jugo dos senhores e se rebelaram contra o domínio feudal. De tal modo, a cidade livre
medieval, surgida da comuna bárbara (e não do município romano, como sustenta Savigny), chega a
ser, para Kropotkin, a expressão talvez mais perfeita de uma sociedade humana, baseada no livre
acordo e no apoio mútuo. Kropotkin sustenta, a partir de aqui, uma interpretação da Idade Media que
contrasta com a historiografia da Ilustração e também, em grande parte, com a historiografia liberal, e
Marxista. Inclusive alguns escritores anarquistas, como Max Nettlau, consideram-na excessivamente
laudatoria e idealizada [18].
No entanto, dita interpretação supõe no Medioevo um claro dualismo por uma parte, o lado
escuro, representado pela estrutura vertical do feudalismo (cujo vértice ocupam o imperador e
o papa); por outra, o lado claro e luminoso, encarnado na estrutura horizontal das unes de cidades
livres (praticamente alheias a toda autoridade política). Grave erro de perspectiva seria, pois,
equiparar está reivindicação da idade Média, não digamos já com a que tentaram ultramontonos como
De Maistre ou Donoso Cortês senão inclusive com a que propuseram Augusto Comte e alguns outros
positivistas [19].
Para Kropotkin, a cidade livre medieval é como uma preciosa tela, cuja urdidura está
constituída pelos fios de grémios e guiadas. O mundo livre do Medioevo é, a sua vez, uma tela mais
vasta (que cobre toda Europa, desde Escócia a Sicilia e desde Portugal a Noruega), formada por
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cidades livremente federadas e unidas entre si por pactos de solidariedade análogos aos que unem
aos indivíduos em grémios e guiadas na cidade. Não lhe até, no entanto, explicar assim a estrutura do
medioevo libertário. Julga indispensável explicar também sua génese. E, ao fazê-lo, sublinha com
força essencial a luta contra o feudalismo, de tal modo que, se tal luta basta para dar razão do
nascimento de grémios, guiadas, cidades livres e unes de cidades, a culminação da mesma explica
seu apogeu, e a decadência posterior sua derrota e absorção pelo novo Estado absolutista da época
moderna.
As guiadas satisfaziam as necessidades sociais mediante a cooperação, sem deixar de respeitar
por isso as liberdades individuais. Os grémios organizavam o trabalho também sobre a base da
cooperação e com a finalidade de satisfazer as necessidades materiais, sem preocupar-se,
fundamentalmente par o lucro. As cidades, liberadas do jugo feudal estavam regidas na maioria dos
casos por uma assembléia popular. Grémios e guildas tinham, a sua vez, uma constituição mais
igualitária do que se costuma supor. a diferença entre maestro e aprendiz menos num começo uma
diferença de idade mais do que de poder ou riqueza, e não existia o regime do salariado.
Só na baixa Idade Média, quando as cidades livres, começaram a decair por influência de
uma monarquia em processo, de unificação e de absolutización do poder, o cargo de maestro de um
grémio começou, a ser hereditário e o trabalho dos artesãos começou a ser alugado a patronos
particulares Ainda então, o salário que percebiam era muito superior ao dos obreiros industriais do.
século XIX, realizava-se em melhores condições e em jornadas mais curtas (que, em Inglaterra não
somavam mais de 48 horas por semana) [20]. Com esta sociedade de trabalhadores livres solidários
se associava necessariamente, segundo Kropotkin, a arte grandiosa das catedrais, obra, comunitária
para o desfrute da comunidade A pintura não a executava um gênio solitário para ser depois guardada
nos salões de um duque nem os poetas compunham seus versos para que os lesse em sua alcova a
querida do rei.
Pintura e poesia, arquitetura a e música surgiam do povo e eram, por isso, muitas vezes,
anônimas; sua finalidade era também o goze coletivo e a elevação espiritual do povo. Ainda na
filosofia medieval vê Kropotkin um poderoso esforço “racionalista”, não desconectado com o espírito
das cidades livres. Isto, ainda que resulte estranho para muitos, parece coerente com toda a
argumentação anterior: Talvez a universidade, criação essencialmente medieval, não era em suas
origens um grémio (universitas magistrorum et scolarium), igual que os demais? [21].
A ressurreição do direito romano e a tendência a constituir Estados centralizados e unitários,
regidos por monarcas absolutos, caracterizou o começo da época moderna. Isto pôs fim não só ao
feudalismo (com a domesticação dos aristocratas, transformados em cortesanos) senão também nas
cidades livres (convertidas em partes integrantes de um calado unitário).
Os Ubres cidadãos se convertem em leais súbditos burgueses do rei. Não por isso desaparece
o impulso connatural para a ajuda mútua e para a liberdade, que se manifesta na prédica comunista e
libertária de muitos hereges (husitas, anabaptistas etc.). E ainda que é verdade que a idade moderna
compartilha um crescimento maligno do Estado que corno câncer devora as instituições sociais livres,
e promove um individualismo malsano (concomitante ou seqüela do regime capitalista), aquele
impulso não morreu. Manifesta-se durante o século XIX, nas uniões obreiras, que prolongam o
espírito de grémios e guiadas no contexto da luta obreira contra a exploração capitalista. Em
Inglaterra, por exemplo, onde Kropotkin vivia, a derrogação das leis contra tais uniões
(Combinatioms Laws), em 1825, produziu uma proliferação de associações gremiales e federações
que Owen, grande promotor do socialismo naquele país, conseguiu federar dentro da “Grande União
Consolidada Nacional”.
Pese aos contínuos entraves impostas par o governo da classe proprietária, os sindicatos (trade
unions) seguiram crescendo em Inglaterra O mesmo sucedeu em França e nos demais países
europeus e americanos, ainda que as vezes as perseguições os obrigassem a uma atividade clandestina
subterrânea. Kropotkin vê assim a luta obreira dos sindicatos e no socialismo a mais significativa
(ainda que não a única) manifestação da ajuda mútua e da solidariedade nos dias em do que lhe tocou
viver. O movimento obreiro se caracteriza, por ele, pela abnegação o espírito de sacrifício e o
heroísmo de seus militantes. Ao sustentar isto, não está sem dúvida exagerando nada, numa época em
que sindicatos estavam longe da burocratização e a mediatização estatal que hoje os caracteriza em
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quase todas partes, ainda que a Internacional tinha sido já dissolvida graças às maquinaciones
burocratizantes de Carlos Marx e seus amigos alemães.
Alguns sociólogos burgueses, que fazem gala de um “realismo” verdadeiramente irreal,
burlaram-se do “ingênuo otimismo” de Kropotkin e, em nome do evolucionismo darwiniano,
pretenderam negar-lhe sólidos fundamentos científicos. Isto não obstante, seu ingente esforço por
achar uma base biológica para o comunismo libertário, não pode ser tida hoje como inteiramente
descaminada. É verdade que, como diz o ilustre zoólogo Dobzhansky, foi pouco critico em algumas
das provas que alegou em apoio de suas opiniões. Mas de acordo com o mesmo autor, uma versão
modernizada de sua tese, tal como a apresentada por Ashley Montagu, resulta mais bem compatível
que contraditória com a moderna teoria da seleção natural.
Para Dobzhansky, um dos autores da teoria sintética da evolução, elaborada entre 1936 e 1947
como fruto das observações experimentais sobre a variabilidade das populações e a teoria
cromossômica da herança [22], a asseveração de que na natureza cada indivíduo não tem mais opção
do que a de comer ou ser comido resulta tão pouco fundada como a idéia de do que nela tudo é
doçura e paz. Faz notar que os ecólogos atribuem cada vez maior importância às comunidades da
mesma espécie e do que a espécie não poderia sobreviver sem certo grau de cooperação e ajuda
mútua [23].
Os trabalhos de C.H. Waddington, como Ciência e ética, por exemplo vão ainda além em sua
aproximação às idéias de Kropotkin sobre o apoio mútuo. Um etólogo da escola de Lorenz Irenaeus
Eibl-Eibesfeldt, sem aderir-se por completo às conclusões do apoio mútuo, reconhece que, no
referente ao altruísmo e a agressividade, elas estão mais próximas à verdade científica do que as de
seus adversários. Para Eibl- Eibesfeld, os impulsos agressivos estão compensados, no homem, por
tendências não menos arraigadas à ajuda mútua [24]. Pese aos anos decorridos, que não são. poucos se
se tem em conta a aceleração crescente das descobertas da ciência, a obra com que Kropotkin tentou
brindar uma base biológica ao comunismo libertário, não carece hoje de valor científico. Além de ser
um magnífico expoente da sonhada aliança entre ciência e revolução, constitui uma interpretação
equilibrada e basicamente aceitável da evolução biológica e social.
O já citado Ashley Montagu escreve: “Hoje em, dia O Apoio Mútuo é a mais famosa das
muitas obras escritas por Kropotkin; em rigor, é já um clássico. O ponto de vista que representa se
foi abrindo caminho lenta mas firmemente, e seguramente cedo entrará a fazer parte dos cânones
aceitados da biologia evolutiva”,[25].

Angel J. Cappelletti

NOTAS
[1] Cfr. H. Daudin, Cuvier et Lanzarck, Paris, 1926
[2] Cfr. G. Colosi, A doutrina dell evolua e lhe teorie evoluzionistiche, Florença,
1945
[3] S. J. Gould, Desde Darwin, Madri, 1983, p. 80
[4] R. Gordura Hernández, O evolucionismo: de Darwin à sociobiología, Madri, 1986
, p. 43
[5] Cfr. J. Rostand, Charles Darwin, Paris, 1948; P. Leonardi, Darwin Brescia, 1948;
M.T. Ghiselin, The Triumph of the Darwinian Method
Chicago, 1949
[6] Cfr. A. Pauli, Darwinisimusund Lamarckismus, Muninch, 1905.

[7] Cfr. G. De Beer, Charles Darwin, Evolution by Natural Selection Londres, 1963
[8] Cfr. W.H. Hudson, Introditction to the Philosophy of Herbert Spencer Londres,
1909
[9] Cfr. W. Irvine, T. H. Huxley Londres, 1960
[10] R. Gordura Hernández, op. cit. p. 57
[11] Cfr. W.B. George, Biologist philosopher.- A Study of the Life and Writings of A .
9
R. Wallace, Nova York, 1964
[12] Felix García Moriyón Do socialismo utópico ao anarquismo, Madri, 1985, p. 59
[13] J. Hewetson, “Mutual Aid and Social Evolution”, Anarchy 55 p.258
[14] Ashley Montagu, Prólogo ao Apoio Mútuo, Buenos Aires, 1970, Pp. VII - VIII.
[15] P. Kropotkin, Memórias de um revolucionário, Madri, 1973 p. 419
[16] Cfr. E. Reclus, Correspondance Paris, 1911 - 1925.
[17] Cfr. P. Clastres, A sociedade contra o Estado, Caracas, 1978
[18] Alvarez Junco, Introdução a Panfletos revolucionários de Kropotkin, Madri,
1977, p. 26
[19] D. Negro Pavón, Comte: Positivismo e revolução, Madri, 1985, Pp. 98 - 99
[20] Cfr. Thorold Rogers, Six Centuries of Wages.
[21] E. Bréhier, A philosophie du Moyen Age, Paris, 1971, p. 226
[22] R. Gordura Hernández, op. cit. p.91
[23] T. Dobzhansky, As bases biológicas da liberdade humana, Buenos Aires, 1957, p
. 58
[24] G. Eibl-Eibesfeldt, Amor e ódio. História das pautas elementares do
comportamento, México, 1974, p. 8
[25] Ashley Montagu, op. cit. p. IX.

PROLOGO À EDIÇÃO ESTADUNIDENSE

O “Apoio Mútuo”, de Kropotkin, é um dos grandes livros do mundo. Um fato que evidência
tal afirmação é o que está sendo continuamente reeditado e que também constantemente se encontra
esgotado. É um livro que sempre foi difícil de conseguir, inclusive em bibliotecas, pois parece estar
em demanda perene.
Quando Kropotkin decidiu marchar a Sibéria, em julho de 1862, a geografia, zoologia,
botânica e antropologia desta região era escassamente conhecida. Ali, seu trabalho de investigação
neste tema foi sobressalente. As publicações resultantes de suas observações meteorológicas e
geográficas foram publicadas pela Sociedade Geográfica Russa, e por este trabalho Kropotkin
recebeu uma de suas medalhas de ouro.
A teoria kropotkíniana sobre o desenvolvimento da estrutura geográfica de Ásia represento
uma das grandes generalizações da geografia científica, e é suficiente como para ‘dar-lhe um lugar
permanente na história desta ciência. Kropotkin manteve ao longo de toda sua vida um interesse ativo
por esta ciência, e, além de muitas conferências sobre o tema e artigos em revistas científicas e
publicações de caráter geral, escreveu artigos geográficos- na Geografia Universal de Reclus, na
Enciclopédia Chambers e na Enciclopédia Britânica.
O trabalho de Kropotkin em zoologia foi principalmente o de um naturalista de campo.
De 1862 a 1866, em que marchou de Sibéria, Kropotkin aproveitou ‘ao máximo as
oportunidades que teve para estudar a vida da natureza. Sob a influência do “Origem das espécies”, de
Darwin (1859), Kropotkin, como nos diz no primeiro parágrafo do presente livro, procurou
atenciosamente “essa amarga luta pela subsistência entre animais da mesma espécie” que era
considerada pela maioria dos Darwinistas (ainda que não sempre por Darwin mesmo” como a
característica dominante da luta pela vida e o principal fator de evolução.

10
O que Kropotkin viu com seus próprios olhos, sobre o terreno, motivou-lhe a desenvolver
certas dúvidas graves no que diz respeito à teoria de Darwin dúvidas que não chegariam, no entanto, a
encontrar expressão plena até que T. H. Huxley, em seu famoso “Manifesto da luta pela existência ,
(titulado “A luta pela existência: um programa”) deu-lhe ocasião para isso.
Outra grande mudança operado em Kropotkin por sua experiência siberiana foi sua tomada de
consciência da “absoluta impossibilidade de fazer nada realmente útil à massa do povo por meio da
maquinaria administrativa”.
“Deste engano -escreve em seus “Memórias”- me desprendi para sempre... perdi em Sibéria
toda classe de fé na disciplina estatal que antes tivesse tido. Estava preparado para converter-me num
anarquista”. E num anarquista se converteu, e permaneceu sendo-o toda sua vida.
Vivendo, como fez, entre os nativos de Sibéria, ao longo das ribeiras do Amur, Kropotkin
descobriu, impressionado, o papel que as massas desconhecidas jogam no desenvolvimento e
realização de todos os acontecimentos históricos. “Desde os dezenove aos vinte e cinco anos, escreve,
tive que projetar importantes planos de reforma, tratar com centos de homens no Amur, preparar e
levar a cabo arriscadas expedições com meios ridiculamente pequenos, etc.; e se todas estas coisas
terminaram com mais ou menos sucesso eu o achaco somente ao fato de do que cedo compreendido
que, em um trabalho sério, o comando e a disciplina são de pouco proveito.
Se requerem em todas partes homens de iniciativa; mas uma vez que o impulso foi dado, a
empresa deve ser conduzida, especialmente em Rússia, não ao modo militar, senão numa espécie de
maneira comunal, por meio do entendimento comum. Eu desejaria que todos os criadores de planos
de disciplina estatal pudessem passar pela escola da vida real antes de que começassem a projetar
suas utopias estatais.
Então escutaríamos muitos menos esforços de organização militar e piramidal da sociedade
que na atualidade.. Esta passagem é clave para o entendimento de Kropotkin como filósofo
anarquista. Para ele o anarquismo era uma parte da filosofia que devia ser tratada pelos mesmos
métodos que as ciências naturais. O via o anarquismo como o meio pelo qual podia ser estabelecida a
justiça (isto é, igualdade e reciprocidade), em todas as relações humanas, em toda a órbita da
humanidade.
Ainda que o “Apoio mútuo” teve inumeráveis admiradores e influiu no pensamento e a
conduta de muitas pessoas, também sofreu alguma falta de entendimento por parte daqueles que
conhecem o livro de segunda ou terceira mão, ou que lhe tendo lido em sua juventude não têm mais
do que uma vadia recordação de seu caráter, Um erro muito estendido é que Kropotkin pretendeu
mostrar que a ajuda mútua e não a seleção ou competição natural, é o principal ou o único fator
implicado no processo evolutivo. Num recente livro sobre genética de um grande maestro no tema se
afirma, que “o reconhecimento da importância adaptável da cooperação e o socorro mútuo não
contradiz, de nenhum modo, a teoria da seleção natural, como foi forçado a pensar por Kropotkin e
outros”. Os leitores de “O apoio mútuo” perceberão cedo o injusto deste comentário.
Kropotkin não considerou que a ajuda mútua contradissesse a teoria da seleção natural.
Uma e outra vez chama o atendimento do leitor sobre o fato da competição na luta pela
existência (frase que muito corretamente critica em termos que certamente seriam aceitáveis para a
maioria dos darwinistas modernos); uma e outra vez sublinha a importância da teoria de, a seleção
natural como a mais significativa generalização do século XIX. O que Kropotkin encontrou
inaceitável e contraditório era o extremismo evolucionista representado por Huxley em seu
“Manifesto da luta pela existência”. Isso lhe ia à filosofia da época, o laissez-faire, como anel ao
dedo. A Kropotkin não lhe agradavam seus envolvimentos, nem políticas nem quanto ao
evolucionismo. Tendo já dedicado durante vários anos muita reflexão a estas matérias, Kropotkin
decidiu contestasse Huxley com amplitude. Hoje “O apoio mútuo” é o mais famoso dos muitos livros
de Kropotkin. É um clássico.
O ponto de vista que representa se abriu caminho lenta, mas firmemente, e, em verdade,
pouco longe estamos do momento em que se converta em parte do cânon geralmente aceitado da
biologia evolucionista.
À luz da investigação científica, nos muitos campos que toca “O apoio mútuo” desde sua
publicação, os dados de Kropotkin e a discussão que baseia neles se mantêm notavelmente em pé. Os
11
trabalhos de ecólogos como Allen e seus alunos, de Wheeler, Emerson e outros, de antropólogos,
demasiado numerosos como para nomeá-los, sobre povos primitivos e sem literatura, e de naturalistas
serviram abundantemente cada um em seu campo para confirmar as principais teses de Kropotkin.
Novos dados podem chegar a ser obtidos, mas já podemos ver com segurança que todos eles servirão
mayormente para apoiar a conclusão de Kropotkin de que “no progresso ético do homem, o apoio
mútuo -e não a luta mútua- constituiu a parte determinantes.
Em sua ampla extensão, inclusive nos tempos atuais, vemos também a melhor garantia de
uma evolução ainda mais sublime de nossa raça.

Asmley Montagu.

PROLOGO À PRIMEIRA EDIÇÃO RUSSA

Enquanto preparava a impressão desta edição russa de meu livro -a primeira que foi traduzida
do livro Mutual aid: a Fator of Evolution, e não dos artigos publicados na revista inglesa- aproveitei
para revisar cuidadosamente todo o texto, corrigir pequenos erros e completar os apêndices baseando-
me em algumas obras novas, em parte com respeito à ajuda mútua entre os animais (apêndice III, VI
e VIII), e em parte com respeito à propriedade comunal em Suíça e Inglaterra (apêndices XVI e
XVII).
P. K.
Bromley, Kent. Maio 1907.

PRÓLOGO

Minhas investigações sobre a ajuda mútua entre os animais e entre os homens se imprimiram
por vez primeira na revista inglesa Nineteenth Century. Os dois primeiros capítulos sobre a:
sociabilidade nos animais e sobre a força adquirida pelas espécies sociáveis na luta pela existência,
eram resposta ao artigo desconhecido fisiologista e darwinista Huxley, aparecido em Nineteenth
Century em fevereiro de 1888 -“A luta pela existência: um programas em onde se pintava a vida dos
animais como uma luta desesperada de um contra todos. Depois da: aparição de meus dois artigos,
onde refutei essa opinião, o editor da revista, James Knowies, expressando muita simpatia para meu
trabalho, e rogando-me que o continuasse, observou: “É indubitável que você demonstrou sua posição
quanto aos animais mas qual é sua posição com respeito ao homem primitivo?”
Esta observação. alegrou-me muito, já que, indubitavelmente, refletia não só a opinião de
Knowles, senão também a de Herbert Spencer, com o qual Knowles se via com freqüência em
Brighton, onde ambos viviam muito próximos O reconhecimento por Spencer da ajuda mútua E seu
significado na luta pela existência era muito importante. Quanto a suas opiniões sobre o homem
primitivo, era sabido que estavam formadas sobre a base das deduções falsas a respeito dos selvagens,
feitas pelos missionários e os viajantes ocasionais do século dezoito e princípios do dezenove. Estes
dados foram reunidos para Spencer por três de seus colaboradores, e publicados por eles mesmos
sob o título de Dados da Sociologia, em oito grandes tomos; fundado nestes escreveu ele sua obra
Baseies da Sociologia.
Sobre a questão do homem respondi também em dois artigos, onde, depois de um estudo
cuidadoso da rica literatura moderna sobre as complexas instituições da vida tribal, que não podiam
analisar os primeiros viajantes e missionários, descrevi estas instituições entre os selvagens e os
chamados “bárbaros”. Esta obra, e especialmente o conhecimento da Comuna rural a princípios da
Idade Média, que desempenhou um enorme papel no desenvolvimento da civilização que renascia
novamente, conduziram-me ao estudo da etapa seguinte, ainda mais importante, do desenvolvimento
de Europa -da cidade medíeval livre e suas guiadas de artesãos.

12
Assinalando depois o papel corruptor do Estado militar que destruiu o livre desenvolvimento
das cidades livres, suas artes, ofícios, ciências e comércio, mostrei, no último artigo, que apesar da
descomposição das federações e uniões livres pela centralização estatal, estas federações e uniões
começam a desenvolver-se agora cada vez mais, e a apoderar-se de novos domínios. A ajuda mútua
na sociedade moderna constituiu, de tal modo, o último artigo de minha obra sobre a ajuda mútua.
Ao editar estes artigos em livro, introduz ao uns agregados essenciais, especialmente a
respeito da relação de minhas opiniões com respeito à luta darwiniana pela existência; e nos
apêndices citei alguns fatos novos e analisei algumas questões que, por causa de sua brevidade, tive
de omitir nos artigos da revista.
Nenhuma das edições em línguas européias ocidentais, e também não as escandinavas e
polacas foram feitas, naturalmente, dos artigos senão do livro, e é por isso que continham os
agregados feitos no texto e os apêndices. Das traduções russas só uma, aparecida em 1907, na
Editorial Conhecimentos (Znania) era completa; ademais, introduzi, fundado em novas obras, vários
apêndices novos, parte sobre a ajuda mútua entre os animais e parte sobre a propriedade comunal da
terra em Inglaterra e Suíça. As outras edições russas foram feitas dos artigos da revista inglesa, e não
do livro, e por isso não têm os agregados feitos por mim no texto, ou bem omitiram os ,apêndices. A
edição que se oferece agora contém completos todos os agregados e apêndices, e revisei novamente
todo o texto e a tradução.

P. K.
Dmitrof, março 1920.

INTRODUÇÃO

Dois rasgos característicos da vida animal da Sibéria Oriental e do Norte de Manchuria


chamaram poderosamente meu atendimento durante as viagens que, em minha juventude, realizei por
essas regiões do Ásia Oriental.
Me chamou o atendimento, por uma parte, a extraordinária dureza da luta pela existência que
devem sustentar a maioria das espécies animais contra a natureza inclemente, bem como a extinção de
grandes quantidades de indivíduos, que ocorria periodicamente, em virtude de causas naturais,
devido ao qual se produzia extraordinária pobreza de vida e despoblación na superfície dos vastos
territórios onde realizava eu minhas investigações.
A outra particularidade era que, ainda naqueles poucos pontos isolados em onde a vida animal
aparecia em abundância, não encontrei, apesar de ter procurado empeñosamente seus rastos, aquela
luta cruel pelos meios de subsistência entre os animais pertencentes a uma mesma espécie que a
maioria dos darwinistas (ainda que não sempre o mesmo Darwin) consideravam como o rasgo
predominante e característica da luta pela vida, e como a principal força ativa do desenvolvimento
gradual no mundo dos animais.
As terríveis tormentas de neve que açoitam a região norte de Ásia ao final do inverno, e o
congelamento que com freqüência sucede à tormenta; as geadas, as nevascas que se repetem todos os
anos na primeira quinzena de maio quando as árvores estão em plena floração e a vida dos insetos
em seu apogeu; as ligeiras geadas temporãs e, as vezes, as nevascas abundantes que caem já em julho
e em agosto, ainda nas regiões dos prados da Sibéria Ocidental, aniquilando, repentinamente, não só
miríadas de insetos, senão também a segunda nidada das aves; as chuvas torrenciais, devidas aos
monzones, que caem em agosto nas regiões temperadas do Amur e do Usuri, e se prolongam semanas
inteiras e produzem inundações nas terras baixas do Amur e do Sungari em proporções tão grandes
como só se conhece em América e Ásia Oriental, e, nos planaltos, grandísimas extensões se
transformam em pântanos comparáveis, por suas dimensões, com Estados europeus inteiros, e, por
último, as abundantes nevascas que caem as vezes a princípios de outubro, devido às quais um vasto
território, igual por sua extensão a França ou Alemanha, faz-se completamente inhabitable para os
13
ruminantes que perecem, então, por milhares; estas são as condições em que se sustenta a luta pela
vida no reino animal do Ásia Setentrional.
Estas difíceis condições da vida animal já então atraíram meu atendimento para a
extraordinária importância, na natureza, daquelas séries de fenômenos que Darwin chama “limitações
naturais à multiplicação em comparação com a luta pelos meios de subsistência.Esta última,
naturalmente, produz-se não só entre as diferentes espécies, senão também entre os indivíduos da
mesma espécie, mas jamais atinge a importância dos obstáculos naturais à multiplicação A escassez da
população, não o excesso, é o rasgo característico daquela imensa extensão do balão que chamamos
Ásia Setentrional.
Portanto, já desde então comecei a abrigar sérias dúvidas, que mais tarde não fizeram senão
confirmar-se, com respeito a essa terrível e suposta luta pelo alimento e a vida dentro dos limites de
uma mesma espécie, que constitui um verdadeiro credo para a maioria dos darwinistas.
Exatamente do mesmo modo comecei a duvidar com respeito à influência dominante que
exerce esta classe de luta, segundo as suposições dos darwinistas, no desenvolvimento das novas
espécies.
Ademais, onde quer que atingia a ver a vida animal abundante e bullente como, por exemplo,
nos lagos, onde, em primavera dezenas de espécies de aves e milhões de indivíduos se reúnem para
empollar suas crianças ou nas populosas colônias de roedores, ou bem durante a migração das aves
que se produzia, então, em proporções puramente “americanas” ao longo do vale do Usuri, ou durante
uma enorme emigração de gamos que tive oportunidade de ver no Amur, em que dezenas de
milhares destes inteligentes animais fugiam em grandes tropeles de um território imenso, procurando
salvar-se das abundantes neves caídas, e se reuniam em grandes rebanhos para atravessar o Amur no
ponto mais estreito, no Pequeno Jingan; em todas estas cenas da vida animal que se desenvolvia ante
meus olhos, via eu a ajuda e o apoio mútuo levado a tais proporções que involuntariamente me fez
pensar, na enorme importância que deve ter na economia da natureza, para a manutenção da existência
de cada espécie, sua conservação e seu desenvolvimento futuro.
Por último, tive oportunidade de observar entre o gado cornúpeta semisalvaje e entre os
cavalos na Transbaikalia, e em todas partes entre os esquilos e os animais selvagens em general, que
quando os animais tedian que lutar contra a escassez de alimento devida a uma das causas já
indicadas, então todo a parte da espécie a quem afetava esta calamidade saía da prova experimentada
com uma perda de energia e saúde tão grande que nenhuma evolução progressista das espécies podia
basear-se em semelhantes períodos de luta aguda. Devido às razões já expostas, quando mais tarde as
relações entre o darwinismo e a sociologia atraíram meu atendimento, não pude estar de acordo com
nenhum dos numerosos trabalhos que julgavam de um modo ou outro uma questão extremamente
importante. Todos eles tratavam de demonstrar que o homem, graças a sua inteligência superior e a
seus conhecimentos pode suavizar a dureza da luta pela vida entre os homens mas ao mesmo tempo,
todos eles reconheciam que a luta pelos meios de subsistência de cada animal contra todos seus
congéneres, e de cada homem contra todos os homens, é uma “lei. natural”.
No entanto , não podia estar de acordo com este ponto de vista já que me tinha convencido
antes de que, reconhecer a cruel luta interior pela existência nos limites de cada espécie, e considerar
tal guerra como uma condição de progresso, significaria aceitar algo que não só não foi demonstrado
ainda, senão que de nenhum modo é confirmado pela observação direta.
Por outra parte, tendo chegado a meu conhecimento a conferência “Sobre a lei da ajuda
mútua”, do professor Kessler, então decano da Universidade de São Petersburgo, que pronunciou
num Congresso de naturalistas russos, em janeiro de. 1880, vi que arrojava nova luz sobre toda esta
questão. Segundo a opinião de Kessler, além da lei de luta mútua, existe na natureza também a lei de
ajuda mútua, que, para o sucesso da luta pela vida e, particularmente, para a evolução progressiva das
espécies desempenha um papel bem mais importante do que a lei da luta mútua.
Esta hipótese, que não é em realidade mais do que o desenvolvimento máximo das idéias
anunciadas pelo mesmo Darwin em sua Origem do homem, pareceu-me tão justa e tinha tão enorme
importância, que, desde que tive conhecimento disso (em 1883 , comecei a reunir materiais para o
máximo desenvolvimento desta idéia que Kessler mal tocou, em seu discurso, e não teve tempo de
desenvolver já que morreu em 1881.
14
Somente num ponto não pude estar completamente de acordo com as opiniões de Kessler
Mencionava este os “sentimentos familiares” e os cuidados da descendência (veja-se capítulo 1) como
a fonte das inclinações mútuas dos animais. Mas creio que o determinar quanto contribuíram
realmente estes dois sentimentos ao desenvolvimento dos instintos sociais entre os animais e quanto
os outros instintos atuaram no mesmo sentido constitui uma questão aparte, e muito complexa, à qual
mal estamos, agora, em condições de responder.
Só depois que estabeleçamos bem os fatos mesmos da ajuda mútua entre as diferentes classes
de animais e sua importância para a evolução poderemos determinar que parte do desenvolvimento
dos instintos sociais corresponde aos sentimentos familiares e daí parte à sociabilidade mesma; e a
origem da última, evidentemente, tem-se de procurar nos estádios mais elementares de evolução do
mundo animal até, quiçá, nos “estádios coloniais”.
Devido a isto, dediquei todo meu atendimento a estabelecer antes de mais nada, a
importância da ajuda mútua como fator de evolução, especialmente da progressiva, deixando para
outros pesquisadores o problema da origem dos instintos de ajuda
mútua na Natureza, A importância do fator da ajuda mútua -“se tão só pudesse demonstrar-se
sua generalidade”- não escapou ao atendimento de Goethe, em quem de maneira tão brilhante se
manifestou o gênio do naturalista. Quando, certa vez, Eckerman contou a Goethe -sucedia isto no ano
1827- que dois pichoncillos de “reyezuelo”, que se lhe tinham escapado quando matou à mãe, foram
achados por ele, ao dia seguinte, num ninho de ruivos que os alimentavam asa par dos seus, Goethe
se emocionou muito por este relato. Viu em isso a confirmação de suas opiniões panteístas sobre a,
natureza e disse: “Se resultasse, verdade que alimentar aos estranhos é inerente à natureza toda, como
algo que tem caráter de lei geral, muitos enigmas ficariam então resolvidos. Voltou sobre esta questão
ao dia seguinte, -e rogou a Eckerman (quem, como é sabido, era zoólogo) que fizesse um estudo
especial dela, agregando que Eckerman, sem dúvida, poderia obter “resultados valiosos e
inapreciables” (Gespráche, edit. 1848, -tomo III, págs. 219, 221).
Por desgraça, tal estudo nunca foi empreendido, ainda que é muito provável que Brehm, que
reuniu em suas obras materiais tão ricos sobre a ajuda mútua entre os animais, poderia ter sido levado
a esta idéia pela observação citada de Goethe. durante os anos 1878-1886 se imprimiram várias
obras volumosas sobre a inteligência e a vida mental dos animais (essas obras se citam nas notas do
capítulo I deste livro), três das quais têm uma relação mais estreita com a questão que nos interessa, a:
saber: Lhes Sociétés animais, de Espinhas (Paris, 1887); A lutte pour I’existence et l’association pour
a lutte, conferência de Lanessan (abril 1881); e o livro, cuja primeira edição apareceu no ano 1881 ou
1882, e a segunda, consideravelmente aumentada, em 1885.
Mas, apesar da excelente qualidade de cada uma, estas obras deixam, no entanto, ampla
margem para uma investigação na que a ajuda mútua fora considerada não somente em qualidade de
argumento em favor da origem prehumano dos instintos morais, senão também como uma lei da
natureza e um fator de evolução.
Espinhas chamou especialmente o atendimento sobre as sociedades de animais (formigas,
abelhas) que estão fundadas nas diferenças fisiológicas de estrutura dos diversos membros da mesma
espécie e a divisão fisiológica do trabalho entre eles, e ainda que sua obra traz excelentes, indicações
em todos os sentidos possíveis, foi escrita numa época em que o desenvolvimento das sociedades
humanas, não podia ser examinado como podemos fazê-lo agora, graças ao volume de conhecimentos
acumulado desde então.
A conferência de Lanessan tem mais bem o caráter de um plano geral de trabalho,
brilhantemente exposto, como uma obra na qual fora examinado o apoio mútuo começando desde as
rochas a orlas do mar, e passando ao mundo dos vegetais dos animais e dos homens.
Quanto à obra recém editada de Büchner, apesar de que induz à reflexão sobre o papel da
ajuda mútua na natureza, e de que é rica em fatos, não estou de acordo com sua idéia dominante. O
livro se inicia com um hino ao amor, e quase todos os exemplos são tentativas para demonstrar a
existência do amor e a simpatia entre os animais. Mas, reduzir a sociabilidade dos animais ao amor e à
simpatíasignifica restringir sua universalidade e sua importância, exatamente o mesmo que uma ética
humana baseada no amor e a simpatia pessoal conduz nada mais que a restringir a concepção do
sentido moral em sua totalidade.
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De nenhum modo me guia o amor para o dono de uma determinada casa a quem muito com
freqüência nem sequer conheço quando, vendo sua casa presa das chamas, tomo um cubo com água e
corro para ela, ainda que não tema pela minha. Guia-me um sentimento mais amplo, ainda que é mais
indefinido, um instinto, mais exatamente dito, de solidariedade humana; isto é, de caução solidária
entre todos os homens e de sociabilidade.
O mesmo se observa também entre os animais. Não é o amor, nem sequer a simpatia
(compreendidos no sentido verdadeiro destas palavras) o que induz ao rebanho de ruminantes ou
cavalos a formar um círculo com o fim de defender-se das agressões dos lobos de nenhum modo é o
amor o que faz que os lobos se reúnam em manadas para caçar; exatamente o mesmo que não é o
amor o que obriga aos corderillos e aos gatinhos a entregar-se a seus jogos, nem é o amor o que junta
as crianças outonais das aves que passam juntas dias inteiros durante quase todo o outono.
Por último também não pode atribuir-se ao amor nem à simpatia pessoal o fato de que muitos
milhares de gamos, disseminados por territórios de extensão comparável à de França, reúnam-se em
dezenas de rebanhos isolados que se dirigem, todos, para um ponto conhecido, com o fim de
atravessar o Amur e emigrar a uma parte mais temperada da Manchuria. Em todos estes casos, o
papel mais importante o desempenha um sentimento incomparavelmente mais amplo do que o amor
ou a simpatia pessoal. Aqui entra o instinto de sociabilidade, que se desenvolveu lentamente entre os
animais e os homens em decorrência de um período de evolução extremamente longo, desde os
estádios mais elementares, e que ensinou por igual a muitos animais e homens a ter consciência
dessa força que eles adquirem praticando a ajuda e o apoio mútuos, e também a ter consciência do
prazer que se pode achar na vida social.
Uma importância desta distinção poderá ser apreciada facilmente por tudo aquele que estude a
psicologia dos animais, e mais ainda, a ética humana. O amor, a simpatia e o sacrifício de si mesmos,
naturalmente, desempenham um papel enorme no desenvolvimento progressivo de nossos
sentimentos morais. Mas a sociedade, na humanidade, de nenhum modo lhe criou sobre o amor nem
também não sobre a simpatia.
Criou-se sobre a consciência -ainda que seja instintiva- da solidariedade humana e da
dependência recíproca dos homens. Criou-se sobre o reconhecimento inconscientes semiconsciente da
força que a prática comum de dependência estreita da felicidade de cada indivíduo da felicidade de
todos, e sobre os sentimentos de justiça ou de equidade que obrigam ao indivíduo a considerar os
direitos de cada um dos outros como iguais a seus próprios direitos.
Mas esta questão ultrapassa os limites do presente trabalho, e eu me limitarei mais do que a
indicar minha conferência “Justiça e Moral”, que era contestação à Etica de Huxley , e na qual me
referia esta questão com maior detalhe.
Devido a tudo, o dito anteriormente, Pensei que um livro sobre “A ajuda mútua como lei da
natureza e fator de evolução” poderia encher uma lagoa muito importante. Quando Huxley publicou,
no ano 1888 seu “manifesto” sobre a luta pela existência (“Struggle for Existence and its Bearing
upon Man”) o qual, desde meu ponto de vista, era uma representação completamente infiel dos
fenômenos da natureza, tais como os vemos nas taigas e as estepes, dirigi-me ao redator da revista
Nineteenth Century rogando dar localização nas páginas, da revista que ele dirigia a uma critica
cuidadosa das opiniões de um dos mais marcantes darwinistas, e Mr. James Knowles acolheu meu
propósito com a maior simpatia por este motivo falei também, com W. Bates, com o grande
“naturalista do Amazonas”, quem reuniu, como é sabido, os materiais para Wallace e Darwin, e a
quem Darwin, com perfeita justiça, qualificou em sua autobiografia como um dos homens mais
inteligentes que tinha encontrado. “sim, por verdadeiro; isso é verdadeiro darwinismo exclamou
Bates, o que fizeram de Darwin é singelamente indignante. Escreva esses artigos e quando estejam
impressos lhe enviarei uma carta que poderá publica.
Por desgraça, a composição destes artigos me ocupou quase sete anos, e quando o último foi
publicado, Bates já não estava entre os vivos.
Depois de ter examinado a importância da ajuda mútua para o sucesso e desenvolvimento das
diferentes classes de animais, evidentemente, estava obrigado a julgar a importância daquele mesmo
fator no desenvolvimento do homem. Isto era ainda mais indispensável, porque existem evolucionistas
dispostos a admitir a importância da ajuda mútua entre os animais, mas, ao mesmo tempo, como
16
Herbert Spencer, negando-a ao com respeito ao homem. Para os selvagens primitivos -afirmam- a
guerra de um contra todos era a lei dominante do a vida. Tratei de analisar neste livro, nos capítulos
dedicados aos selvagens e bárbaros, até onde esta afirmação que com excessiva complacência repetem
todos sem a necessária comprovação desde a época de Hobbes, coincide com o que conhecemos com
respeito aos graus mais antigos do desenvolvimento do homem.
O número e a importância das diferentes instituições de ajuda mútua que se desenvolveram na
humanidade obrigado ao gênio criador as massas selvagens e semisalvajes, já durante o período
seguinte da comuna aldeana, e também a imensa influência que estas instituições antigas exerceram
sobre o, desenvolvimento posterior da humanidade até os tempos modernos, induziram-me a estender
o caminho de minhas investigações aos períodos dos tempos históricos mais antigos. Especialmente
me detive no período de maior interesse, o das cidades repúblicas, livres, da Idade Média, cuja
universalidade e cuja influência sobre nossa civilização moderna não foi suficientemente apreciada até
agora.
Por último, também tratei de indicar brevemente a enorme importância que têm ainda os
costumes de apoio mútuo transmitidas em herança pelo homem através de um período
extraordinariamente longo de seu desenvolvimento, sobre nossa sociedade contemporânea, apesar de
que se pensa e se diz que descansa sobre o princípio: “cada um para si e o Estado para todos”,
princípio que as sociedades humanas nunca seguiram por inteiro e que nunca será levado à realização,
integralmente.
Quiçá se me objetará que neste livro tanto os homens como os animais estão representados
desde um ponto de vista demasiado favorável: que suas qualidades sociais são marcantes em
excesso, enquanto suas inclinações antisociales, de afirmação de si mesmos, mal estão marcadas. No
entanto, isto era inevitável. Nos últimos tempos ouvimos falar tanto de “a luta dura e cruel pela vida
que aparentemente sustenta cada animal contra todos os outros, cada selvagem contra todos os demais
selvagens, e cada homem civilizado contra todos seus conciudadanos semelhantes opiniões se
converteram numa espécie de dogma, de religião da sociedade instrída-, que foi necessário, antes de
mais nada opor uma série ampla de fatos que mostram a vida dos animais e dos homens
completamente desde outro ângulo.
Era necessário mostrar, em primeiro lugar, o papel predominante que desempenham os
costumes sociais na vida da natureza e na evolução progressiva, tanto das espécies animais como
igualmente dos seres humanos.
Era necessário demonstrar que os costumes de apoio mútuo dão aos animais melhor proteção
contra seus inimigos, que fazem menos difícil obter alimentos (provisões invernais, migrações,
alimentação sob a vigilância de sentinelas, etc.), que aumentam o prolongamento da vida e devido a
isto facilitam o desenvolvimento das faculdades intelectuais; que deram aos homens, aparte das
vantagens citadas, comuns com as dos animais, a possibilidade de formar aquelas instituições que
ajudaram à humanidade a sobreviver na luta dura com a natureza e a aperfeiçoar-se, apesar de todas
as vicisitudes da história. Assim o fiz. E por isto o presente livro é livro da lei de ajuda mútua
considerada como uma das principais causas ativas do desenvolvimento progressivo, e não a
investigação de todos os fatores de evolução e seu valor respectivo. Era necessário escrever este livro
antes de que fuer a possível pesquisar a questão da importância respectiva dos diferentes agentes da
evolução.
E menos ainda, naturalmente, estou inclinado a menosprezar o papel que desempenhou a
autoafirmación do indivíduo no desenvolvimento da humanidade.
Mas esta questão, segundo minha opinião, exige um exame bastante mais profundo que o que
achou até agora. Na história da humanidade a autoafirmación do indivíduo com freqüência
representou, e continua representando, algo perfeitamente marcante, e algo mais amplo e profundo do
que essa mesquinha e irracional estreiteza mental do que a maioria dos escritores apresentam como
“individualismo” e “autoafirmação”.
De modo semelhante, os indivíduos impulsores da história não se reduziram somente àqueles
que os historiadores nos descrevem em qualidade de heróis. Devido a isto, tenho o propósito,
sempre que seja possível, de analisar em detalhe, posteriormente, o papel que desempenhou a

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autoafirmación do indivíduo no desenvolvimento progressivo da humanidade Por agora, limito-me a
fazer nada mais que a observação geral seguinte:
Quando as instituições de ajuda mútua isto é, a organização tribal, a comuna aldeana, as
guildas, a cidade da idade média começaram a perder em decorrência do processo histórico seu
caráter primitivo, quando começaram a aparecer nelas as excrecencias parasitarias que lhes eram
estranhas, devido ao qual estas mesmas instituições se transformaram em obstáculo para o progresso,
então a rebelião dos indivíduos na contramão destas instituições tomava sempre um caráter duplo.
Uma parte dos rebeldes se começava em purificar as velhas instituições dos elementos
estranhos a ela, ou em elaborar formas superiores de livre convivência, baseadas uma vez mais nos
princípios de ajuda mútua; trataram de introduzir, por exemplo, no direito penal, o princípio de
compensação (multa), em lugar da lei do Talión, e mais tarde, proclamaram o “perdão das ofensas”,
isto é, um ideal ainda mais elevado de igualdade ante a consciência humana, em lugar da
“compensação” que se pagava segundo o valor de classe do danificado.
Mas ao mesmo tempo, a outra parte desses indivíduos, que se rebelaram contra a organização
que se tinha consolidado, tentavam simplesmente destruir as instituições protetoras de apoio mútuo a
fim de impor, em lugar destas, sua própria arbitrariedade, acrecentar deste modo suas riquezas
próprias e fortificar seu próprio poder.
Nesta tríplice luta entre as duas categorias de indivíduos, os que se tinham rebelado e os
protetores do existente, consiste toda a verdadeira tragédia da história. Mas, para representar esta luta
e estudar honestamente o papel desempenhado no desenvolvimento da humanidade por cada uma das
três forças citadas, fará falta, pelo menos, tantos anos de trabalho como tive de dedicar a escrever
este livro. Das obras que examinam aproximadamente o mesmo problema, mas aparecidas já depois
da publicação de meus artigos sobre a ajuda mútua entre os animais, devo mencionar The Lowell
Lectures on the Ascent of Man, por Henry Drummond, Londres, 1894, e The Origin and Growth of
the Moral Instinct, por A. Sutherland, Londres, 1898. Ambos livros estão concebidos, em grau
considerável, segundo o mesmo plano do livro citado de Büchner, e no livro de Sutherland lhe
consideram com bastante detalhes os sentimentos paternais e familiares corno único fator no processo
de desenvolvimento dos sentimentos morais. A terceira obra desta classe que trata do homem e está
escrita segundo o mesmo plano é o livro do professor americano F. A. Giddings, cuja primeira edição
apareceu no ano 1896, em Nova York e em Londres, sob o título The Principles of Sociology, e cujas
idéias dominantes tinham sido expostas pelo autor num folheto, no ano 1894.
Devo, no entanto, deixar por completo à crítica literária o exame das coincidências similitudes
e divergências entre as duas obras citadas e a minha.
Todos os capítulos deste livro foram publicados primeiramente na revista Nineteenth Century
(“A ajuda mútua entre os animais”, em setembro e novembro de 1890; “A ajuda mútua entre os
selvagens”, em abril de 1891; “ajuda mútua entre os bárbaros”, em janeiro de 1892; “A ajuda mútua
na Cidade Medieval”, em agosto e setembro de 1884, e “A ajuda mútua na época moderna”, em
janeiro e junho de 1896 . Ao publicá-los em forma de livro, pensei, num princípio, incluir em forma
de apêndices a massa de materiais reunidos por mim que não pude aproveitar para os artigos que
apareceram na revista, bem como o juízo sobre diferentes pontos secundários que tive que omitir.
Tais apêndices teriam duplicado o tamanho do livro, e me vi obrigado a renunciar a sua
publicação ou, pelo menos, a adiá-la.
Nos apêndices deste livro está incluído somente o juízo sobre algumas poucas questões que
foram objeto de controvérsia científica no curso destes últimos anos; do mesmo modo no texto dos
artigos primitivos intercalei só o pouco material adicional que me foi possível agregar sem alterar a
estrutura geral desta obra.
Aproveito esta oportunidade para expressar ao editor de Nineteenth Century, James Knowles,
meu agradecimento, tanto pela amável hospitalidade que mostrou para a presente obra, mal se inteirou
de sua idéia geral, como por sua amável permissão para a reimpresión deste trabalho

P. K.
Bromley, Kent, 1902.

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CAPITULO I: A AJUDA MÚTUA ENTRE OS ANIMAIS

A concepção da luta pela existência como condição do desenvolvimento progressivo,


introduzida na ciência por Darwin e Wallace, permitiu-nos abarcar, numa generalização, uma
vastísima massa de fenômenos, e esta generalização foi, desde então, a base de todas nossas teorias
filosóficas, biológicas e sociais. Um número infinito dos mais diferentes fatos, que antes
explicávamos cada um por uma causa própria, foram encerrados por Darwin numa ampla
generalização. A adaptação dos seres viventes a seu médio ambiente, seu desenvolvimento
progressivo, anatômico e fisiológico, o progresso intelectual e ainda o aperfeiçoamento moral, todos
estes fenômenos começaram a apresentar-se como parte de um processo comum. Começamos a
compreendê-los como uma série de esforços ininterruptos, como uma luta contra diferentes condições
desfavoráveis, luta que conduz ao desenvolvimento de indivíduos raças, espécies e sociedades tais-
que representariam a maior plenitude, a maior variedade e a maior intensidade de vida.
É muito possível que, ao começo de seus trabalhos, o mesmo Darwin não tivesse consciência
de toda a importância e generalidade daquele fenômeno a luta pela existência, ao que recorreu
procurando a explicação de um grupo de fatos, a saber: a acumulação de desvios do tipo primitivo e
a formação de novas espécies. Mas compreendeu que o termo que ele introduzia na ciência perderia
seu sentido filosófico exato se era compreendido exclusivamente em sentido estreito, como luta entre
os indivíduos pelos meios de subsistência. Por isso ao começo mesmo de sua grande investigação
sobre a origem das espécies, fez questão de que se deve compreender “a luta pela existência em seu
sentido amplo e metafórico, isto é, incluindo nele a dependência de um ser vivente dos outros, e
também -o que é bastante mais importante- não só a vida do indivíduo mesmo, senão também a
possibilidade de que deixe descendência.
Deste modo, ainda que o mesmo Darwin, para seu propósito especial, utilizou a expressão
“luta pela existência” preferencialmente em seu sentido estreito, preveniu a seus sucessores na
contramão do erro (no qual parece que caiu ele mesmo numa época) do entendimento demasiado
estreita destas palavras. Em sua obra posterior, Origem do homem, até escreveu várias páginas belas e
vigorosas para explicar o verdadeiro e amplo sentido desta luta. Mostrou como, em inumeráveis
sociedades animais, a luta pela existência entre os indivíduos destas sociedades desaparece
completamente, e como, em lugar da luta, aparece a cooperação que conduz ao desenvolvimento das
faculdades intelectuais e das qualidades morais, e que assegura a tal espécie as melhores
oportunidades de viver e propasarse.
Assinalou que, de tal modo, nestes casos, não se mostram de jeito nenhum “mais aptos”
aqueles que são fisicamente mais fortes ou mais astutos, ou mais hábeis, senão aqueles que melhor
sabem unir-se e apoiar-se os uns aos outros -tanto os fortes como os débeis- para o bem-estar de toda
sua comunidade “Aquelas comunidades -escreveu- do que encerram a maior quantidade de membros
que simpatizam entre si, florescerão melhor e deixarão maior quantidade de descendentes- (segunda
edição inglesa, página 163).
A expressão, tomada por Darwin da concepção malthusiana da luta de todos contra um,
perdeu, de tal modo, sua estreiteza quando foi transformada na mente de um homem que
compreendia a natureza profundamente. Por desgraça, estas observações de Darwin, que poderiam
ter-se convertido em base das investigações mais fecundas, passaram inadvertidas, por causa da
massa de fatos em que entrava, ou se supunha, a luta real entre os indivíduos pelos meios de
subsistência.
E Darwin não submeteu a uma investigação mais severa a importância comparativa e a
relativa extensão das duas formas da “luta pela vida no mundo animal: a luta imediata entre as pessoas
isoladas, e a luta comum, entre muitas pessoas, em conjunto; também não escreveu a obra que se
propunha escrever sobre os obstáculos naturais à multiplicação excessiva dos animais, tais como a
seca, as inundações, os frios repentinos, as epidemias, etc.
No entanto, tal investigação era certamente indispensável para determinar as verdadeiras
proporções e a importância na natureza da luta individual pela vida entre os membros de uma mesma

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espécie de animais em comparação com a luta de toda a comunidade contra os obstáculos naturais e
os inimigos de outras espécies.
Mais ainda, neste mesmo livro sobre a origem do homem, onde escreveu as passagens citadas
que refutam o estreito entendimento malthusiana da “luta” se abriu passo novamente o fermento
malthusiano; por exemplo ali onde se fazia a pergunta: é mister conservar a vida dos “débeis de
mente e corpo” em nossas sociedades civilizados? (capítulo V). Como se milhares de poetas, sábios
inventores e reformadores “loucos”, E também os chamados “entusiastas débeis de mente não fossem
o arma mais forte da humanidade em sua luta pela vida, na luta que se sustenta com meios
intelectuais e- morais, cuja importância expôs tão bem o mesmo Darwin nos mesmos capítulos de seu
livro.
Depois sucedeu com a teoria de Darwin o que sucede com todas as teorias que têm relação
com a vida humana. Seus continuadores não só não a ampliaram, de acordo com suas indicações,
senão que, pelo contrário, restringiram-na ainda mais. E enquanto Spencer, trabalhando
independentemente, mas em análogo sentido, tratava até certo ponto de ampliar as investigações a
respeito da questão de quem é o mais apto (especialmente no apêndice da terceira edição de Data of
Ethics), numerosos continuadores de Darwin restringiram a concepção da luta pela existência até os
limites mais estreitos. Começaram a representar o mundo dos animais como um mundo de lutas
ininterruptas entre seres eternamente famintos e ávidos do sangue de seus irmãos. Encheram a
literatura moderna com o grito de ¡Ai dos vencidos! e apresentaram este grito como a última palavra
da biologia.
Elevaram a luta “sem quartel”, E em pos de vantagens individuais, à altura de um princípio,
de uma lei de toda a biologia, à qual o homem deve subordinar-se, caso contrário, sucumbirá neste
mundo que está baseado no extermínio mútuo. Deixando de lado aos economistas, os quais
geralmente mal conhecem, do campo das ciências naturais, algumas frases correntes, e essas
tomadas dos divulgadores de segundo grau, devemos reconhecer que ainda os mais autorizados
representantes das opiniões de Darwin empregam todas suas forças para sustentar estás falsas idéias.
Se tomamos, por exemplo, a Huxley, a quem se considera, sem dúvida, como um dos melhores
representantes da teoria do desenvolvimento (evolução) veremos então que no artigo titulado “A luta
pela existência e sua relação com o homem” não ensina que “desde o ponto de vista do moralista, o
mundo animal se encontra no mesmo nível que a luta de gladiadores: alimentam bem aos animais e os
arrojam à luta: em conseqüência, só os mais fortes, os mais ágeis e os mais astutos sobrevivem
unicamente para entrar em luta ao dia seguinte. Não é necessário que o espectador baixe o dedo para
exigir que sejam mortos os débeis- aqui, sem isso, não há quartel para ninguém”.
No mesmo artigo, Huxley diz mais adiante do que entre os animais, o mesmo que entre os
homens primitivos “os mais débeis e os mais estúpidos estão condenados a morte, enquanto
sobrevivem os mais astutos e aqueles a quem é mais difícil vulnerar, a que os que melhor souberam
adaptar-se às circunstâncias, mas que de nenhum modo são melhores nos outros sentidos. A vida -diz-
era uma luta constante e geral, e com exceção das relações limitadas e temporárias dentro da família, a
guerra hobbesiana de um contra todos era o estado normal da existências.
Até onde se justifica ou não semelhante opinião sobre a natureza, se verá nos fatos que este
livro contribui, tanto do mundo animal como da vida do homem primitivo. Mas podemos dizer já
agora que a opinião de Huxley sobre a natureza tem tão pouco direito a ser reconhecida enquanto
dedução científica, como a opinião oposta de Rousseau, que via na natureza somente amor, paz e
harmonia, perturbados pela aparição do homem. Em realidade, o primeiro passeio pelo bosque, a
primeira observação sobre qualquer sociedade animal ou até o conhecimento de qualquer trabalho
sério em onde se fala da vida dos animais nos continentes que ainda não estão densamente povoados
pelo homem (por exemplo de D’Orbigny, Audubon, Lhe Vaillant), devia obrigar ao naturalista a
reflexionar sobre o papel que desempenha a vida social no mundo dos animais, e preservar-lhe tanto
de conceber a natureza em forma de campo de batalha geral como do extremo oposto, que vê na
natureza só paz e harmonia.
O erro de Rousseau consiste em que perdeu de vista, por completo, a luta sustentada com
bicos e garras, e Huxley é culpada do erro de caráter oposto; mas nem o otimismo de Rousseau nem
o pessimismo de Huxley podem ser aceitados como uma interpretação desapasionada e cientista da
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natureza Conquanto, começamos a estudar os animais não unicamente nos laboratórios e museus
senão no bosque, nos prados, nas estepes e nas zonas montanhosas, em seguida observamos que,
apesar de que entre diferentes espécies e, em particular, entre diferentes classes de animais, em
proporções sumamente vastas, sustenta-se a luta e o extermínio, observa-se, ao mesmo tempo, nas
mesmas proporções, ou talvez maiores, o apoio mútuo, a ajuda mútua e a proteção mútua entre os
animais pertencentes à mesma espécie ou, pelo menos, à mesma sociedade. A sociabilidade é tanto
uma lei da natureza como o é a luta mútua.
Naturalmente, seria demasiado difícil determinar, ainda que fora aproximadamente, a
importância numérica relativa destas duas séries de fenômenos Mas se recorremos, à verificação
indirecta e perguntamos à natureza: “Quem são mais aptos, aqueles que constantemente lutam entre si
ou, pelo contrário, aqueles que se apóiam entre si?”, em seguida veremos que os animais que
adquiriram os costumes de. ajuda mútua resultam, sem dúvida alguma, os mais aptos. Têm mais
possibilidades de sobreviver como indivíduos e como espécie, e atingem em suas correspondentes
classes (insetos, aves, mamíferos) o mais alto desenvolvimento mental e organização física. Se
tomamos em consideração os Inumeráveis fatos que falam em apoio desta opinião pode-se dizer com
segurança que a ajuda mútua constitui tanto uma lei da vida animal como a luta mútua. Mais ainda.
Como fator de evolução, isto é, como condição de desenvolvimento em general provavelmente tem
importância muito maior do que a luta mútua, porque facilita o desenvolvimento dos costumes e
carateres que asseguram a sustentação e o desenvolvimento máximo da espécie junto com o máximo
bem-estar e goze da vida para cada indivíduo, e, ao mesmo tempo, com o mínimo de desgaste inútil
de energias, de forças.
Até onde eu saiba, dos sucessores científicos de Darwin, o primeiro que reconheceu na ajuda
mútua a importância de uma lei da natureza e de um fator principal da evolução, foi o muito
conhecido biólogo russo, ex-decano da Universidade de São Petersburgo, professor K. F. Kessler.
Desenvolveu este pensamento num discurso pronunciado em janeiro do ano 1880, alguns
meses antes de sua morte, no congresso de naturalistas russos, mas, como muitas coisas boas
publicadas, só na língua russa, esta conferência passou quase completamente inadvertida.
Como zoólogo velho -dizia Kessler-, sentia-se obrigado a expressar seu protesto contra o
abuso do termo “luta pela existência”, tomado da - zoologia, ou pelo menos contra a valoração
excessivamente exagerada de sua importância. -Especialmente na zoologia -dizia- nas ciências
consagradas ao estudo multilateral do homem, a cada passo se menciona a luta cruel pela existência, e
com freqüência se perde de vista por completo, que existe outra lei que podemos chamar da ajuda
mútua, e que, pelo menos ton relação aos animais, talvez seja mais importante -do que a lei da luta
pela existências.
Assinalou depois Kessler que a necessidade de deixar descendência, inevitavelmente une aos
animais e “quando mais se vinculam entre se os indivíduos de uma determinada espécie, quanto mais
ajuda mútua se prestam, tanto mais se consolida a existência da espécie e tanto mais se dão a!
possibilidades de que dita espécie vá mais longe em seu desenvolvimento e se aperfeiçoe, ademais,
em seu aspecto intelectual”. “Os animais de todas as classes, especialmente das superiores, prestam-
se ajuda mútua” -prosseguia Kessler (pág. 131), e confirmava sua idéia com exemplos tomados da
vida dos escaravelhos enterradores ou necróforos e da vida social das aves e de alguns mamíferos.
Estes exemplos eram pouco numerosos, como era mister num breve discurso de inauguração
mas pontos importantes foram claramente estabelecidos. Depois de ter assinalado depois que no
desenvolvimento da humanidade a ajuda mútua desempenha um papel ainda maior, Kessler concluiu
seu discurso com as seguintes observações.
“Certamente, não nego a luta pela existência, senão que sustento que, o desenvolvimento
progressivo, tanto de todo o reino animal como em especial da humanidade, não contribui tanto a
luta recíproca quanto a ajuda mútua.
São inerentes a todos os corpos orgânicos duas necessidades. essenciais: a necessidade de
alimento e a necessidade de multiplicação. A necessidade de alimentação os conduz à luta pela
subsistência e ao extermínio recíproco, e a necessidade da multiplicação os conduz a aproximar-se à
ajuda mútua.

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Mas, no desenvolvimento do mundo orgânico, na transformação de umas formas em outras,
quiçá exerça maior influência a ajuda mútua entre os indivíduos de uma mesma espécie do que a luta
entre eles”.
A exatidão das opiniões expostas mais acima chamou o atendimento da maioria dos presentes
no congresso dos zoólogos russos, e N. A. Syevertsof, cujas obras são bem conhecidas dos ornitólogos
e geógrafos, apoiou-as e ilustrou com alguns exemplos complementares.
Mencionou algumas espécies de falções dotados de uma organização quiçá ideal pára. os fins
de ataque, mas apesar disso, extinguem-se, enquanto -que as outras espécies de falções que praticam
a ajuda mútua prosperam. Por outra parte, tomai um ave tão social como o pato – disse - em general,
está mal organizado, mas pratica o apoio mútuo e, a julgar por suas inumeráveis espécies e
variedades, tende positivamente a estender-se por toda a terra”.
A disposição dos zoólogos russos a aceitar as opiniões de Kessler lhe explica muito
naturalmente porque quase todos eles tiveram oportunidade de estudar o mundo animal nas extensas
regiões deshabitadas do Ásia Setentrional ou de Rússia Oriental, e o estudo de tais regiões conduz,
inevitavelmente, a essas mesmas conclusões. Recordação a impressão que me produziu o mundo
animal de Sibéria quando eu explorava as terras altas de Oleminsk Vitimsk em companhia de tão-
marcante zoólogo como era minha, amigo Iván Simionovich Poliakof. Ambos estávamos sob a
impressão recente da origem das espécies, de Darwin mas eu procurava em vão essa aguçada
concorrência entre os animais da mesma espécie a que nos tinha preparado a leitura da obra de
Darwin, ainda depois de tomar em conta a observação feita no capitulo III desta obra (pág. 54).
-Onde está essa luta? -perguntava eu a Poliakof-. Víamos muitas adaptações para a luta, muito
com freqüência para a luta em comum, contra as condições climáticas desfavoráveis, ou contra
diferentes inimigos, e I. S . Poliakof escreveu algumas páginas formosas sobre a dependência mútua
dos carnívoros, ruminantes e roedores em sua distribuição geográfica. Por outra parte, vi eu ali, e no
Amur, numerosos casos de apoio mútuo, especialmente na época da emigração das aves e dos
ruminantes mas ainda nas regiões do Amur e do Ussuri, onde a vida animal se distingue por sua
grande abundância, muito raramente me ocorreu observar, apesar de que os procurava, casos de
concorrência real e de luta entre os indivíduos de -uma mesma espécie de animais superiores. A
mesma impressão brota dos trabalhos da maioria dos zoólogos russos, e esta circunstância quiçá aclare
por que as idéias de Kessler foram tão bem recebidas pelos darwinistas russos, enquanto semelhantes
opiniões não são correntes entre os continuadores de Darwin de Europa Ocidental, que conhecem o
mundo animal preferencialmente na Europa mais ocidental, onde o extermínio dos animais pelo
homem atingiu tais proporções que os indivíduos de muitas espécies, que foram em outros tempos
sociais, vivem agora solitários.
O primeiro que nos surpreende, quando começamos a estudar a luta pela existência tanto em
sentido direto como no figurado da expressão nas regiões ainda escassamente habitadas pelo homem,
é a abundância de casos de ajuda mútua praticada pelos animais não só com o fim de educar à
descendência, como está reconhecido pela maioria dos evolucionistas, senão também para a segurança
do indivíduo e para prover-se do alimento necessário. Em muitas vastas subdivisões do reino animal,
a ajuda mútua é regra geral. b ajuda mútua se encontra até entre os animais mais inferiores e
provavelmente conheceremos alguma vez, pelas pessoas que estudam a vida microscópica das águas
estancadas, casos de ajuda mútua inconsciente até entre os microorganismos menores.
Naturalmente, nossos conhecimentos da vida dos invertebrados -excluindo os cupins, formigas
e abelhas- são sumamente limitados; mas apesar disto, da vida dos animais mais inferiores podemos
citar alguns casos de ajuda mútua bem verificados.
Inumeráveis sociedades de lagostas, borboletas -especialmente vanessae-, grilos, escaravelhos
(cicindelae), etc., em realidade se acham completamente inexploradas, mas já o mesmo fato de sua
existência indica que devem estabelecer-se aproximadamente sobre os mesmos princípios que as
sociedades temporárias de formigas e abelhas com fins de migração. Quanto aos escaravelhos são
bem conhecidos casos exatamente observados de ajuda mútua entre os sepultureros (Necrophorus).
Precisam alguma matéria orgânica em descomposição para depositar os ovos e assegurar a
alimentação de suas larvas; mas a putrefacción desse material não deve produzir-se muito
rapidamente. Por isso, os escaravelhos sepultureros enterram os cadáveres de todos os animais
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pequenos com que se topam -casualmente durante suas buscas. Em geral os escaravelhos desta raça
vivem solitários; mas, quando algum deles encontra o cadáver de algum rato ou de um ave, que não
pode enterrar, convoca a vários outros sepultureros mais (se juntam as vezes até seis) para realizar
esta operação com suas forças associadas.
Se é necessário, transportam o cadáver a um solo mais conveniente e macio. Em geral, o
enterro se realiza de um modo sumamente meditado e sem a menor disputa com respeito a quem
corresponde desfrutar do privilégio de pôr seus ovos no cadáver enterrado. E quando Gleditsch atou
um pássaro morto a uma cruz feita de duas palitos, ou suspendeu uma rã de um pau fincado no solo,
os sepultureros, do modo mais amistoso, dirigiram a força de suas inteligências reunidas para vencer
a astúcia do homem. A mesma combinação de esforços se observa também nos escaravelhos do
esterco.
Mas, ainda entre os animais situados num grau de organização algo inferior, podemos
encontrar exemplos semelhantes. Certos caranguejos anfíbios das Índias Orientais e América do Norte
se reúnem em grandes massas quando se dirigem para o mar para depositar seus huevas, pelo qual a
cada uma destas migrações pressupõe certo acordo mútuo. Quanto aos grandes caranguejos das
Molucas (Limulus), surpreendeu-me ver no ano 1882, no aquário de Brighton, até que ponto são
capazes estes animais torpes de prestar-se ajuda entre si quando algum deles a precisa. Assim, por
exemplo, um se deu volta E ficou de costas num rincão da grande cuba onde se lhes guarda no
aquário, e sua pesada carapaça, parecida a uma grande caçarola, impedia-lhe tomar sua posição
habitual, tanto mais quanto que nesse rincão tinham feito uma divisão de ferro que dificultava mais
ainda suas tentativas de voltar-se.
Então, os colegas correram em sua ajuda, e durante uma hora inteira observei como tratavam
de socorrer a seu camarada de cativeiro. Ao princípio apareceram dois caranguejos, que empurraram
a seu amigo por embaixo, e depois de esforços empeñosos, conseguiram colocá-lo de custado, mas
a divisão de ferro impedíales terminar sua obra, e ele caranguejo cala de novo, pesadamente, de
costas.
Depois de muitas tentativas, um dos salvadores se dirigiu para o fundo da cuba e trouxe
consigo outros dois caranguejos, os quais, com forças frescas, entregaram-se novamente à tarefa de
levantar e empurrar ao camarada incapacitado. Permanecemos no aquário, mais de duas horas, e
quando nos íamos, acercamo-nos de novo a jogar; uma olhada à cuba: ¡o trabalho de libertação
continuava ainda! Depois de ter sido testemunha deste episódio, crio plenamente na observação feita
por Erasmo Darwin, a saber: que “o caranguejo comum, durante a muda, coloca em qualidade de
sentinela a caranguejos que não sofreram a muda ou bem a um indivíduo cuja carapaça se endureceu
já, a fim de proteger aos indivíduos que mudaram, em sua situação desamparada, contra a agressão
dos inimigos marinhos”.
Os casos de ajuda mútua entre os cupins, formigas e abelhas são tão conhecidos para quase
todos os leitores, em especial graças aos populares livros de Romanes, Büchner e John Lubbock, que
posso limitar-me a muito poucas citações. Se tomamos um formigueiro, não só veremos que todo
gênero de trabalho -a criança da descendência o abastecimento, a construção, a criança dos pulgões,
etc.-, realiza-se de acordo com os princípios de ajuda mútua voluntária, senão que, junto com Forel,
devemos também reconhecer que o rasgo principal, fundamental, da vida de muitas espécies de
formigas é que cada formiga compartilha e está obrigada a compartilhar seu alimento, já deglutido e
em parte digerido, com cada membro da comunidade que tenha manifestado sua demanda disso. Duas
formigas pertencentes a duas espécies diferentes ou a dois formigueiros inimigos, num encontro
casual, se evitarão a uma à outra. Mas duas formigas pertencentes - ao mesmo formigueiro, ou à
mesma colônia de formigueiros, sempre que se aproximam, mudam alguns movimentos de antena e,
-“se uma delas está faminta ou sente sede, e se especialmente nesse momento a outra tem o papo
cheio, então a primeira pede imediatamente alimento”. A formiga à qual se dirigiu o pedido de tal
modo, nunca se rehúsa; separa suas mandíbulas, e dando a seu corpo a posição conveniente, devolve
uma gota de líquido transparente, que a formiga faminta sorve.
A devolução de alimentos para nutrir a outros é um rasgo tão importante da vida da formiga
(em liberdade) e se aplica tão constantemente, tanto para a alimentação dos camaradas famintos como
para a nutrição das larvas que, segundo a opinião de Forel, os órgãos digestivos das formigas se
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compõem de duas partes diferentes; uma delas, a posterior, destina-se ao uso especial da formiga
mesma, e a outra, a anterior, principalmente a utilidade da comunidade. Se qualquer formiga com o
papo cheio, mostrasse ser tão egoísta que recusasse alimento a um camarada, a tratariam como
inimiga ou pior ainda. Se a negativa fora feita no momento em que seus congéneres lutam contra
qualquer espécie de formiga ou contra um formigueiro estranho, cairiam sobre sua cobiçosa parceira
com maior furor que sobre suas próprias inimigas.
Mas, se a formiga não se recusasse a alimentar a outra formiga pertencente a um formigueiro
inimigo, então as congéneres da última a tratariam como amiga. Tudo isto está confirmado por
observações e experiências sumamente precisas, que não deixam nenhuma dúvida sobre a
autenticidade dos fatos mesmos nem sobre a exatidão de sua interpretação.
De tal modo, nesta imensa divisão do mundo animal, que compreende mais de mil espécies e
é tão numerosa do que o Brasil, segundo a afirmação dos brasileiros, não pertence aos homens, senão
às formigas, não existe em absoluto luta nem concorrência pelo alimento entre os membros de um
mesmo formigueiro ou de uma colônia de formigueiros. Por terríveis que sejam as guerras entre as
diferentes espécies de formigas e os diferentes formigueiros, e quaisquer que sejam as atrocidades
cometidas durante a guerra, a ajuda mútua dentro da comunidade a abnegação em benefício comum,
transformou-se em costume, e o sacrifício, em bem comum, é a regra geral. As formigas, e os cupins
repudiaram deste modo a “guerra hobbesiana”, e saíram ganhando. Seus surpreendentes formigueiros,
suas construções, que ultrapassam pela altura relativa, às construções dos homens seus caminhos
pavimentados e galerias cobertas entre os formigueiros; suas espaçosas salas e celeiros; seus campos
trigo; suas colheitas, os grãos “malteados”, os “hortos” assombrosos da “formiga umbelífera”, que
devora folhas e abona trocitos de terra com bolitas de fragmentos de folhas mastigadas e por isso
cresce nestes hortos somente uma classe de fungos, e todos os outros são exterminados; seus
métodos racionais de cuidado dos ovos e das larvas comuns a todas as formigas, e a construção de
ninhos especiais e cercados para a criança dos pulgões, que Linneo chamou tão pintorescamente
“vacas das formigas” e, por último, sua bravura, atrevimento e elevado desenvolvimento mental; tudo
isto é a conseqüência natural da ajuda mútua que praticam a cada passo de sua vida ativa e laboriosa.
A sociabilidade das formigas conduziu também ao desenvolvimento de outro rasgo essencial de sua
vida, a saber: o enorme desenvolvimento da iniciativa individual que, a sua vez, contribuiu a que se
desenvolvessem na formiga tão elevadas e variadas capacidades mentais que produzem a admiração e
o assombro de todo observador.
Se não conhecêssemos nenhum outro caso da vida dos animais, aparte daqueles conhecidos
das formigas e cupins, poderíamos concluir com segurança que a ajuda mútua (que conduz à
confiança mútua, primeira condição da bravura) e a iniciativa pessoal (primeira condição do progresso
intelectual), são duas condições incomparavelmente mais importantes no desenvolvimento do mundo
dos animais do que a luta mútua. Em realidade, as formigas prosperam, apesar de que não possuem
nenhum dos rasgos “defensivos” sem os quais não pode passar-se animal algum que leve vida
solitária. Sua cor lhes faz muito visíveis para seus inimigos, e nos bosques e nos prados, os grandes
formigueiros de muitas espécies, chamam o atendimento em seguida. A formiga não tem carapaça
dura; seu ferrão, por mais do que resulte perigoso quando centenas se afundam no corpo de um
animal, não tem grande valor para a defesa individual. Ao mesmo tempo, as larvas e os ovos das
formigas constituem um manjar para muitos dos habitantes dos bosques Não obstante, as mal
defendidas formigas não sofrem grande extermínio por parte das aves nem ainda dos ursos
formigueiros; e infundem terror a insetos que são bastante mais fortes do que elas mesmas. Quando
Forel esvaziou um saco de formigas num prado, viu que -os grilos se dispersavam abandonando seus
ninhos ao pillaje das formigas; as aranhas e os escaravelhos abandonavam suas presas por medo a
encontrar-se em situação de vítimas”; as formigas se apoderam até dos ninhos de vespas depois de
uma batalha durante a qual muitas pereceram em bem da comunidade. Ainda os mais velozes insetos
não atingiram a salvar-se e Forel teve ocasião de ver, com freqüência, que as formigas atacavam e
matavam, inesperadamente, borboletas, mosquitos, moscas, etc. Sua força reside no apoio mútuo e na
confiança mútua. E se a formiga -sem falar de outros cupins mais desenvolvidos- ocupa a cume de
uma classe inteira de insetos por sua capacidade mental; se por sua bravura se pode equiparar aos
mais valentes vertebrados, e seu cérebro -usando as palavras de Darwin- “constitui um dos mais
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maravilhosos átomos de matéria do mundo, talvez ainda mais assombroso do que o cérebro do
homem” -não deve a formiga tudo isto a do que a ajuda mútua substitui completamente a luta mútua
em sua comunidade? O mesmo é verdadeiro também com respeito às abelhas. Estes pequenos
insetos, que poderiam ser tão fácil presa de numerosas aves, e cuja mel atrai a toda classe de
animais, começando pelo escaravelho e terminando com o urso, também não têm particularidade
alguma protetora na estrutura ou no que a mimetismo se refere, sem os quais os insetos que vivem
isolados mal poderiam evitar o extermínio completo.
Mas, apesar disso, devido à ajuda mútua praticada pelas abelhas, como é sabido, atingiram a
estender-se amplamente pela terra; possuem uma grande inteligência, e elaboraram formas de vida
social surpreendentes. Trabalhando em comum, as abelhas multiplicam em proporções inverosímeis
suas forças individuais, e recorrendo a uma divisão temporária do trabalho, pelo qual cada abelha
conserva sua aptidão para cumprir quando é necessário, qualquer classe de trabalho, atingindo tal
grau de bem-estar e segurança que não tem nenhum animal, por forte que seja ou bem armado que
esteja. Em suas sociedades, as abelhas com freqüência superam ao homem, quando este descuida as
vantagens de uma ajuda mútua bem planejada.
Assim, por exemplo, quando um enxame de abelhas se prepara a abandonar a colmeia para
fundar uma nova sociedade, certa quantidade de abelhas exploram previamente a vizinhança, e se
conseguem descobrir um lugar conveniente para moradia, por exemplo, um cesto velho, ou algo pelo
estilo, apoderam-se dele, e o limpam e o guardam, as vezes durante uma semana inteira, até que o
enxame se forma e se assenta no lugar eleito. ¡Em mudança, muito com freqüência os homens
tiveram de perecer em suas emigrações a novos países, só porque os emigrantes não compreenderam
a necessidade de unir seus esforços!
Com a ajuda de sua inteligência coletiva reunida, as abelhas lutam com sucesso contra as
circunstâncias adversas, as vezes completamente imprevistas e desusadas, como sucedeu, por
exemplo, na exposição de Paris, onde as abelhas fixaram com sua propóleo resinoso (cera) um
postigo que fechava uma janela construída na parede de suas colmeias.
Ademais, não se distinguem pelas inclinações sanguinárias, -e pelo amor aos combates inúteis
com que muitos escritores dotam tão gostosamente a todos os animais. Os sentinelas que guardam as
entradas das colmeias matam sem piedade a todas as abelhas ladras que tratam de penetrar nela; mas
as abelhas estranhas que caem por erro não são tocadas, especialmente se chegam carregadas com a
provisão do pólen recolhido, ou se são abelhas jovens, que podem errar facilmente o caminho. Deste
modo, as ações bélicas, reduzem-se às mais estritamente necessárias.
A sociabilidade das abelhas é tanto mais instrutiva quanto mais os instintos de rapiña e de
preguiça continuam existindo entre elas, e reaparecem de novo cada vez que as circunstâncias lhes
são favoráveis. Sabido é que sempre há um verdadeiro número de abelhas que preferem a vida de
ladrões à vida laboriosa de obreiras; pelo qual, tanto nos períodos de escassez de alimentos como
nos períodos de abundância extraordinária, o número das ladras cresce rapidamente. Quando a
recolha está finda e em nossos campos e pradarias fica pouco material para a elaboração do mel, as
abelhas ladras aparecem em grande número: por outra parte, nas plantações de açúcar das Índias
Orientais e nas refinarias de Europa, o roubo, a preguiça e, muito com freqüência, a embriaguez,
voltam-se fenômenos correntes entre as abelhas. Vemos, deste modo, que os instintos antisociales
continuam existindo; mas a seleção natural deve aniquilar incessantemente às ladras, já que, à longa, a
prática da reciprocidade se mostra mais vantajosa para a espécie do que o desenvolvimento dos
indivíduos dotados de inclinações de rapiña. “Os mais astutos e os mais inescrupulosos” dos que
falava Huxley como dos vencedores são eliminados para dar lugar aos indivíduos que compreendem
as vantagens da vida social e do apoio mútuo.
Naturalmente, nem as formigas nem as abelhas, nem sequer os cupins, elevaram-se até a
concepção de uma solidariedade mais elevada, que abraçasse toda sua espécie. Neste respecto,
evidentemente, não atingiram um grau de desenvolvimento que não nos encontrar sequer entre os
dirigentes políticos, científicos e religiosos, da humanidade. Seus instintos sociais quase não vão além
dos limites do formigueiro ou da colmeia Apesar disso, Forel descreveu colônias de formigas em
Mont Terei e na montanha Saleve, que incluíam não menos de duzentos formigueiros, e os habitantes
de tais colônias pertenciam a dois diferentes espécies (Formica exsecta e F. pressilabris).
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Forel afirma que cada membro destas colônias conhece aos membros restantes, e que todos
tomam parte na defesa comum. Mac Cook observou, em Pensilvânia uma nação inteira de formigas,
composta de 1600 a 1700 formigueiros, que viviam em completo acordo; e Bates descreveu as
enormes extensões dos campos brasileiros talheres de montículos de cupins, em doe alguns
formigueiros serviam de refúgio a dois ou três espécies diferentes, e a maioria destas construções
estavam unidas entre si por galerias abovedadas e arcadas cobertas. Deste modo alguns ensaios de
unificação de subdivisões bastante amplas de uma espécie, com fins de defesa mútua e de vida
social, encontra-se até entre os animais invertebrados. Passando agora aos animais superiores,
encontramos ainda mais casos de ajuda mútua, indubitavelmente consciente, que se pratica com todos
os fins possíveis, apesar de que, por outra parte, dever-nos observar que nossos conhecimentos da
vida, até dos animais superiores, ainda se distinguem no entanto, por sua grande insuficiência. Uma
multidão de casos deste gênero foram descritos por zoólogos eminentísimos, mas, no entanto, há
divisões inteiras do reino animal dos quais quase nada nos é conhecido.
Sobretudo, temos poucos depoimentos fidedignos com respeito aos peixes, em parte devido à
dificuldade das observações e em parte porque não se prestou a esta matéria a devida atendimento.
Quanto aos mamíferos, já Kessler observou o pouco que conhecemos de sua vida. Muitos deles só
saem de noite de suas tocas; outros, ocultam-se embaixo da terra os ruminantes, cuja vida social e
cujas migrações oferecem um interesse muito profundo, não permitem ao homem aproximar-se a seus
rebanhos. Das que sabemos mais, é das aves; no entanto , a vida social de muitas espécies continua
sendo ainda pouco conhecida para nós. Por outra parte, em general, não temos de que queixamos
pouca a falta de casos bem estabelecidos, como se verá a seguir. Chamo o atendimento unicamente
que a maior parte destes fatos foram reunidos por zoólogos indiscutivelmente eminentes -fundadores
da zoologia descritiva- sobre a base de suas próprias observações, especialmente em América, na
época em que ainda estava muito densamente povoada por mamíferos e aves. O grande
desenvolvimento da ajuda mútua que eles observaram, foi notado também recentemente no Africa
central, ainda pouco povoada pelo homem.
Não tenho necessidade de deter-me aqui sobre as associações entre macho e fêmea para a
criação da prole, para assegurar seu alimento nas primeiras épocas de sua vida e para a caça em
comum. É mister recordar somente que semelhantes associações familiares estão estendidas
amplamente até entre os carnívoros menos sociáveis e as aves de rapiña; seu maior interesse reside
em do que a associação familiar constitui o meio em onde se desenvolvem os sentimentos mais
ternos, até entre os animais muito ferozes em outros aspectos. Podemos, também, agregar que a
rareza de associações que traspassem os limites da família nos carnívoros e as aves de rapiña, ainda
que na maioria dos casos é resultado da forma de alimentação, no entanto, indubitavelmente constitui
também, até certo ponto, a conseqüência de mudanças no mundo animal, provocados pela rápida
multiplicação da humanidade. Até agora se prestou pouco atendimento a estas circunstâncias, mas
sabemos que há espécies cujos indivíduos levam uma vida completamente solitária em regiões
densamente povoadas, enquanto aquelas mesmas espécies ou suas congéneres mais próximos vivem
em rebanhos, em lugares não habitados pelo homem. Neste sentido podemos citar como exemplo aos
lobos, zorros, ursos e algumas aves de rapina.
Ademais, as associações que não traspassam os limites da família apresentam para nós
comparativamente pouco interesse; tanto mais quanto que são conhecidas muitas outras associações,
de caráter bastante mais geral, como, por exemplo, as associações formadas por muitos animais,
para a caça, a defesa mútua ou, simplesmente, para o goze da vida Audubon já mencionou que as
águias se reúnem as vezes em grupos de vários indivíduos, e seu relato sobre duas águias calvas,
macho e fêmea, que caçavam no Mississipi, é muito conhecido como modelo de descrição artístico,
mas uma das mais convincentes observações neste sentido Pertence a Syevertsof. Enquanto estudava
a fauna das estepes russas, viu certa vez um águia pertencente à espécie gregaria (fila branca,
Haliaetos abicilla) que se elevava para o alto; durante meia hora, o águia descreveu círculos amplos,
em silêncio e repentinamente ressoou seu penetrante graznido. Ao pouco tempo respondeu a este
grito o graznido de outro águia que se tinha acercado voando à primeira, seguiu-lhe uma terça, uma
quarta, etcétera, até que se reuniram nove ou dez, que cedo se perderam de vista. Depois de meio dia,
Syevertsof se dirigiu para o lugar onde notou que tinham voado as águias e, ocultando-se por trás de
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uma ondulação da estepe acercou-se à bandada e observou que se tinham reunido ao redor do cadáver
de um cavalo. As águias velhas, que geralmente se alimentam primeiro -tais são as regras da
urbanidade entre as águias-, já estavam posadas sobre as parvas de heno vizinhas, em qualidade de
sentinelas, enquanto as jovens continuam alimentando-se, rodeadas por bandadas de cornejas. Desta
e outras observações semelhantes Syevertsof deduziu que as águias de fila branca se reúnem para a
caça; elevando-se a grande altura, se são por exemplo ao redor de uma dezena, podem observar uma
superfície de cerca de 50 verstas quadradas, e, quanto descobrem algo, em seguida, consciente e
inconscientemente, avisam a seus colegas, que se acercam e sem discussão, repartem-se o alimento
achado. Em general, Syevertsof mais tarde teve várias vezes ocasião de convencer-se de do que as
águias de fila branca se reúnem sempre para devorar a carroña e do que algumas delas (ao começo do
banquete, as jovens) desempenham sempre o papel de vigilantes, enquanto as outras comem.
Realmente, as águias de fila branca, umas das mais bravas e melhores caçadoras, são, em
general, aves gregarias, e Brehm diz que, encontrando-se em cativeiro, se aficionan rapidamente ao
homem (I. c., pág. 499-501). A sociabilidade é o rasgo comum de muitas outras aves de rapiña. A
torneira falção brasileiro (Caravara), um dos rapaces mais “desavergonhados”, é, no entanto,
extraordinariamente sociável. Suas associações para a caça foram descritas por Darwin e outros
naturalistas, e está provado que, se se apoderam de uma presa demasiado grande, convocam então a
cinco ou seis de seus camaradas para levá-la. Pela tarde, quando estas aves, que se encontram sempre
em movimento, depois de ter voado todo o dia, dirigem-se a descansar e se posam sobre alguma
árvore isolada do campo, sempre se reúnem em bandadas pouco numerosas, e então se juntam com
elas os pernócteros, pequenos milanos de asas escuras, parecidos às cornejas, suas “verdadeiros
amigos”, como diz D’Orbigny. No velho mundo, nas estepes transcaspianas, os milanos, segundo as
observações de Zarudnyi, têm o mesmo costume de construir seus ninhos num mesmo lugar,
agrupando-se variados. A torneira social -uma das raças mais fortes dos milanos- recebeu seu próprio
nome por seu amor à sociedade Vivem em grandes bandadas, e no Africa se encontram montanhas
inteiras literalmente cobertas, em todo lugar livre,- por seus ninhos.
Decididamente, gozam da vida social e se reúnem em bandadas muito grandes para voar a
grande altura, o que constitui para eles uma espécie de esporte. “Vivem em grande amizade -diz Lhe
Vaillant-, e as vezes numa mesma gruta encontrei até três ninhos”.
Os milanos urubú, em Brasil, distinguem-se quiçá por uma maior sociabilidade do que as
cornejas de bico branco, diz Bates, o conhecido explorador do rio Amazonas. Os pequenos milanos
egípcios (Pernocterus stercorarius), também vivem em boa amizade. Jogam no ar, em bandadas,
passam a noite juntos, e, pela manhã, em montões, dirigem-se em procura de alimento, e entre eles
não se produz nem a menor rifía; assim o atesta Brehm, que teve possibilidade plena de observar sua
vida. O falção de pescoço vermelho se encontra também em bandadas numerosas nos bosques do
Brasil, e o falção vermelho cernícalo (Tinunculus cenchyis), depois de abandonar Europa e de ter
atingido em inverno as estepes e os bosques de Ásia, reúne-se em grandes sociedades. Nas estepes
meridionais de Rússia leva (mais exatamente, levava) uma vida tão social que Nordman o observou
em grandes bandadas juntos com outros gerifaltes (falco tinunculus, F. oesulon e F. subbuteo) que se
reuniam os dias claros arredor das quatro da tarde, e se recreavam com seus vôos até entrada a noite.
Geralmente voavam todos juntos, numa linha completamente reta, até um ponto conhecido e
determinado; depois do qual, voltavam imediatamente seguindo a mesma linha, e depois repetiam
novamente aquele vôo.
Tais vôos em bandadas pelo prazer mesmo do vôo são muito comuns entre as aves de todo
gênero. Ch. Dixon informa que, especialmente no rio Humber, nas planícies pantanosas, com
freqüência aparecem. a fins de agosto, numerosas bandadas de becasas (engule alpina; “arenero de
montanha” chamada também “buche negro”) e ficam durante o inverno. Os vôos destas aves são
sumamente interessantes, já que, reunidas numa enorme bandada, descrevem círculos no ar, depois se
dispersam e se reúnem de novo, repetindo esta manobra com a precisão de soldados bem instrídos.
Dispersos entre eles costumam encontrar-se areneros de outras espécies, cotovias de mar e chochas.
Enumerar aqui as diversas associações de caça das aves seria simplesmente impossível:
constituem o fenômeno mais corrente; mas, é mister, pelo menos, mencionar as associações de pesca
dos pelicanos, nas que estas torpes aves evidencian uma organização e uma inteligência notáveis.
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Dirigem-se à pesca sempre em grandes bandadas, E, elegendo uma baía conveniente, formam um
amplo semicírculo, frente à costa; pouco a pouco, este semicírculo se estreita, à medida que as aves
nadam para a costa, e, graças a esta manobra, todo peixe caído no semicírculo é atrapado. Nos rios,
canais, os pelicanos se dividem em duas partes, cada uma das quais forma seu semicírculo, e vai ao
encontro da outra, nadando, exatamente como iriam ao encontro duas partidas de homens com duas
longas redes, para recolher o peixe caído entre elas. À entrada da noite, os pelicanos voltam a seu
lugar de descanso habitual -sempre o mesmo para cada bandada- e ninguém observou nunca que se
tenham originado brigas entre eles por um lugar de pesca ou por um lugar de descanso.
Em América do sul, os pelicanos se reúnem em bandadas até 50.000 aves, uma parte das
quais se entrega ao sonho enquanto outras vigiam, e outra parte se dirige à pesca.
Finalmente, cometeria eu uma grande injustiça com nosso pardal doméstico, tão caluniado, se
não mencionasse cuán de bom girado compartilha toda a comida que encontra com os membros dê a
sociedade a que pertence. Este fato era bem conhecido pelos gregos antigos, e até nós chegou o relato
do orador que exclamou certa vez (cito de cor): “Enquanto vos falo, um pardal veio dizer aos outros
pardais que um escravo tem desparramado um saco de trigo, e todos s foram recolher o grão”. Muito
agradável foi para meu encontrar confirmação desta observação dos antigos no pequeno livro
contemporâneo de Gurney , o qual está completamente convencido que os pardais domésticos se
comunicam entre se sempre que possam conseguir comida em alguma parte. Diz: “Por longe do
pátio da granja que se tivessem debulhado as parvas de trigo, os pardais de dito pátio sempre
apareciam com os buches repletos de grãos”. Verdade é que os pardais guardam seus domínios com
grande zelo da invasão de estranhos, como, por exemplo os pardais do jardim de Luxemburgo, Paris,
que atacam com fiereza a todos os outros pardais que tratam, a sua vez, de aproveitar o jardim e a
generosidade de seus visitantes; mas dentro de suas próprias comunidades ou grupos praticam com
extraordinária amplitude o apoio mútuo apesar de que as vezes se produzem rinhas, como sucede, por
outra parte, entre os melhores amigos.
A caça em grupos e a alimentação em bandadas são tão correntes no mundo das aves que mal
é necessário citar mais exemplos: é mister considerar estes dois fenômenos como um fato plenamente
estabelecido. Quanto à força que dão às aves semelhantes associações, é coisa bem evidente. As aves
de rapiña maiores costumam verse obrigadas a ceder ante as associações dos pássaros menores. Até
as águias -ainda a poderosísima e terrível águia rapaz e o águia marcial, que se destacam por uma
força tal que podem levantar em suas garras uma lebre ou um antílope jovem- costumam versei
obrigadas a abandonar sua presa às bandadas de milanos, que empreendem uma caça regular delas,
não bem notam que alguma fez uma boa presa. Os milanos também dão caça ao rápido gavião
pescador, e lhe tiram o pescado capturado; mas ninguém teve ocasião de observar que os milanos se
brigassem pela posse da presa arrebatada de tal modo. Na ilha Kerguelen o doutor Coués tem visto
que o Buphagus, a pequena galinha marinha, dos pescadores de focas persegue às gaivotas com o fim
de obrigá-las a vomitar o alimento; apesar de que, por outra parte, as gaivotas, unidas às andorinhas
marinhas, afugentam à pequena galinha de mar quanto se aproxima a suas posses, especialmente
durante o anidamiento.
Os frailecicos (Vanellus oristatus), pequenos mas muito rápidos, atacam osadamente aos
buhardos, aos mochuelos, ou a uma corneja ou águia que atisban seus ovos, é um espetáculo
instrutivo. Sente-se que estão seguros de. a vitória, e se vê a decepção do ave de rapiña . Em
semelhantes casos, as avefrías se apóiam mutuamente, à perfeição, e a bravura de cada uma aumenta
com o número.
Ordinariamente perseguem ao malfeitor de tal modo que este prefere abandonar a caça com tal
de afastar-se de suas atormentadores. O frailecico mereceu bem o apelido de “boa mãe” que lhe
deram os gregos, já que jamais recusa defender às outras aves aquáticas, dos ataques de seus
inimigos.
O mesmo é mister dizer a respeito do pequeno habitante de nossos jardins, a branca nevatilla,
ou aguzanieve (Motacilla alva), cuja longitude total atinge mal a oito polegadas. Obriga até ao
cemicalo a suspender a caça. “Não bem as aguzanieves vêem ao ave de rapiña -escreveu Brehm, pai-
lançando um grito forte a perseguem, prevenindo assim a todas as outras aves, e, de tal modo,
obrigam a muitos abutres a renunciar à caça. Com freqüência admirei sua coragem e sua agilidade, e
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estou firmemente convencido de que só o falção, rapidísimo e nobre, é capaz de capturar à
nevatilla... Quando suas bandadas obrigam a qualquer ave de rapiña a afastar-se, ensurdecem com
seus gritos triunfantes e depois se separam” (Brehm tomo terceiro, pág. 950). Em tais casos, reúnem-
se com o fim determinado de dar caça ao inimigo, exatamente o mesmo tive oportunidade de
observar na população volátil de um bosque que se elevava inesperadamente ante o anúncio da
aparição de alguma ave noturna, e todos, tanto as aves de rapiña como- os pequenos e inofensivos
cantores, começavam a perseguir ao recém vindo e, finalmente, obrigavam-lhe a voltar a seu
refúgio.
Que diferença enorme entre as forças do milano, do cernícalo ou do gavião e a de tão
pequenos pajarillos, como a nevatilla do prado, no entanto , estes pequenos pajarillos obrigado a sua
ação conjunta e sua bravura, prevalecem sobre as rapaces, que estão dotadas de vôo poderoso e
armadas de maneira excelente para o ataque. Em Europa, as nevatillas não só perseguem às aves de
rapiña que podem ser perigosas para elas, senão também aos gaviões pescadores, “mais bem para
entreter-se do que para fazer-lhes dano” -diz Brehm. Na Índia, segundo o depoimento do Dr. Jerdón,
os grajos, perseguem ao milano gowinda “simplesmente para distrair-se”. E Wied diz que com
freqüência rodeiam ao águia brasileira urubitinga inumeráveis bandadas de tucanos (“zombadores”) e
caciques (ave que está estreitamente emparentado com nossas cornejas de Bico branco) e se burlam
dele. -“O cernícalo -agrega Wied-, ordinariamente suporta tais moléstias com muita tranqüilidade;
ademais, de tanto em tanto, pega a um dos zombadores que o rodeiam”. Vemos, de tal modo, em
todos estes casos (e se poderia citar dezenas de exemplos semelhantes), que os pequenos pássaros,
imensamente inferiores por sua força ao ave de rapiña, mostram-se, apesar disso, mais fortes do que
ela obrigado a do que atuam em comum. Dois grandes famílias de aves, a saber, as grullas e os
papagayos tingiram os mais admiráveis resultados no que respecta à segurança individual, ao goze da
vida em comum. As grullas são sumamente sociáveis, e vivem em excelentes relações não só com
suas congéneres, senão também com a maioria das aves aquáticas. Sua prudência não é menos
assombrosa que sua inteligência. Imediatamente discernem as condições novas e atuam de acordo
com as nove exigências. Suas sentinelas vigiam sempre que as bandadas comem ou descansam, e os
caçadores sabem, por experiência, cuán difícil é aproximar-se. Se o homem consegue pegá-las
desprevenidas, não voltam mais a esse lugar sem enviar primeiro um explorador, e depois dele uma
partida de exploradores; e quando esta partida volta com a notícia de que não se vislumbra perigo,
enviam uma segunda partida exploradora para comprovar o relatório dos primeiros, antes de que toda
a bandada se decida a adiantar-se. Com espécies próximas, as grullas contraem verdadeiras amizades,
e, em cativeiro, nenhuma outra ave, exceção feita somente do não menos social e inteligente
papagayo, contrai uma amizade tão verdadeira com o homem.
“A grulla não vê no homem um amoo, senão um amigo, e trata de demonstrar-se de todos
modos” -diz Brehm baseado em sua experiência pessoal. Desde a manhã temporão até bem entrada a
noite, a grulla se encontra em incessante atividade; mas, consagra ao todo algumas horas da manhã à
busca do alimento, em especial o alimento vegetal; o resto do tempo se entrega à vida social.
“Estando com ânimo de brincar -escreve Brehm- a grulla levanta da terra dançando,
piedrecillas, pedacinhos de madeira, øarroja-os ao ar tratando de agarrá-los torce o pescoço, desprega
as asas, dança, pula, corre, e, por todos os meios, expressa seu bom humor, e sempre é formosa e
engraçada. Já que vivem constantemente em sociedade, quase não têm inimigos, apesar de que
Brehm teve ocasião de ver, as vezes , que alguma era atrapada acidentalmente por um crocodilo, mas
com exceção do crocodilo, não conhece a grulla nenhum outro inimigo.
A prudência da grulla, que se fez proverbial, a salva de todos os inimigos, e, em general, vive
até uma idade muito avançada. Por isto não é surpreendente que a grulla, para conservar a espécie,
não tenha necessidade de criar uma descendência numerosa e, geralmente, não põe mais de dois
ovos. Quanto ao elevado desenvolvimento de sua inteligência, bastará dizer que todos os
observadores reconhecem unanimemente que a capacidade intelectual da grulla recorda
poderosamente a capacidade do homem.
Outra ave sumamente social, o papagayo, ocupa, como é sabido, pelo desenvolvimento de sua
capacidade intelectual, o primeiro posto em todo mundo volátil.
Seu modo de vida está tão excelentemente descrito por Brehm, que meserá suficiente reproduzir o bo
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cado seguinte, como a melhor característica:
“Os papagayos -diz- vivem em sociedades ou bandadas muito numerosas, exceto durante
período de aparejamiento. Elegem como viviendaun lugar do bosque, de onde saem todas as manhãs
para suas expedições de caça.Os membros de cada bandada estão muito unidos
entre si, compartilham tanto a dor corno a alegria. Todas as manhãs se dirigem juntosal campo, ao hort
o, ou a qualquer árvore frutífera, paraalimentarse de frutas.
Apostan sentinelas para proteger a toda a bandada e seguem conatención suas advertências. Em caso
de perigo, seapresuran todos a voar, prestando-e mútuo apoio, e pela tarde, todos voltam ao lugarde d
escanso ao mesmo tempo. Dito másbrevemente, vivem sempre em união estreitamente amistosa.”Enc
ontram também prazer na sociedade de outras aves. Na Índia: -diz Leyard- vos grajos e vos corvos c
obrem voando uma distância de muitas milhas, para passar a noite junto com vos papagayos, nas es
pesuras de bambús

Quando se dirigem à caça, os papagayos não só demonstram um talento e uma prudência


surpreendentes, senão também capacidade para adaptar-se às circunstâncias. Assim, por exemplo,
uma bandada de cacatúas brancas de Austrália, antes de iniciar o saque de um trigal,
indefectiblemente envia uma partida de exploradores, que se distribui nas árvores mais altas da
vizinhança do campo citado, enquanto outros exploradores se posam sobre as árvores intermédias

entre o campo e o bosque, e transmitem sinais. Se os sinais comunicam que “tudo está em
ordem, então uma dezena de cacatúas se separa da bandada, traça vários círculos no ar e se dirige
para as árvores mais próximas ao campo. Esta segunda partida, a sua vez, observa com bastante
detenção os arredores, e só depois dessa observação, dá o sinal para o traslado geral; depois, toda ¡-a
bandada
se eleva ao mesmo tempo e saqueia rapidamente o campo. Os colonos australianos vencem
com muita dificuldade a vigilância dos papagayos; mas, se o homem, com toda sua astúcia e suas
armas, consegue matar algumas cacatúas, então se voltam tão vigilantes e prudentes, que desbaratam
todas as artimanhas dos inimigos. Não há dúvida alguma de que só graças ao caráter social de sua
vida, puderam os papagayos atingir esse elevado desenvolvimento da inteligência e dos sentidos (que
encontramos neles) e que quase chega ao nível humano. Sua elevada inteligência induziu aos
melhores naturalistas a chamar a algumas espécies -especialmente ao papagayo cinza-
“avehombres”.
Quanto a seu afeto mútuo, sabido é que se ocorre que um da bandada é morto por um
caçador, os restantes começam a voar sobre o cadáver de seu camarada lançando gritos lastimeros e
“caem eles mesmos vítimas de sua afecção amistosa” -como escreveu Audubon-, e se duas papagayos
cativos, ainda que sejam pertencentes a duas espécies diferentes, contraíssem amizade, e um deles
morresse
acidentalmente, não é raro então que o outro também pereça de tristeza e de pena por seu
amigo morto.
Não é menos evidente do que em suas associações os papagayos encontrem uma proteção
contra os inimigos incomparavelmente superior à que poderiam encontrar por meio do
desenvolvimento mais ideal de seus “bicos e garras”. Muito escassas aves de rapiña e mamíferos se
atrevem a atacar aos papagayos -e isto somente às espécies pequenas- e Brehm tem toda a razão
quando diz, falando dos papagayos, que eles, igual que as grullas e os macacos sociais, mal têm outro
inimigo fora do homem; e agrega: “Muito provavelmente, a maioria dos papagayos grandes morrem
de velhice e não nas garras de seus inimigos”.
Unicamente o homem, graças a sua superior inteligência, e a suas armas -que também
constituem o resultado de sua vida em sociedade-, pode, até certo ponto, exterminar aos papagayos.
Sua mesma
longevidade se deve de tal modo ao resultado da vida social. E, muito provavelmente, é
necessário dizer o mesmo com respeito a sua memória surpreendente, cujo desenvolvimento, sem
dúvida, favorece a vida em sociedade, e também a longevidade, acompanhada pela plena
conservação, tanto
30
das capacidades físicas como intelectuais até uma idade muito avançada.
Se vê, por tudo o que precede que a guerra de todos contra cada um não é, de nenhum modo,
a lei dominante da natureza. A ajuda mútua é lei da natureza tanto como a guerra mútua e esta lei se
faz para nós mais exigente quando observamos algumas outras associações de aves e observamos a
vida social dos mamíferos. Algumas rápidas referências à importância da lei da ajuda mútua na
evolução do reino animal foram já feitas nas páginas precedentes; mas sua importância se aclarará
com maior precisão quando, citando alguns fatos, possamos fazer, baseados neles, nossas conclusões.
CAPITULO II: A AJUDA MÚTUA ENTRE Os ANIMAIS (Continuação)

Mal volta a primavera à zona temperada, miríadas de aves, dispersas pelos países
temperados do sul, reúnem-se em bandadas inumeráveis e se apressam, cheias de alegre
energia, a ir para o norte para criar sua descendência. Cada cerca-viva, cada bosquecillo, cada rocha
da costa do oceano, cada lago ou estanque dos que se acha semeado o norte de América
o norte de Europa, e -o norte de Ásia, poderiam dizer-nos, nessa época do ano, que representa
a ajuda mútua na vida das aves que força, que energia e quanta proteção dão a cada ser vivente por
débil e indefeso que seja de por si.
Tomai, por exemplo, um dos inumeráveis lagos das estepes russas ou siberianas, ao princípio
da primavera. Suas orlas estão povoadas de miríadas de aves aquáticas, pertencentes pelo menos a
vinte espécies diferentes que vivem em pleno acordo e que se protegem entre si constantemente.
Tenho aqui como descreve Syevertsof uno destes lagos:
“O lago se acha oculto entre as areias de cor vermelha amarelo, devasta-las verde escuro e
as canas. Aquilo é um hervidero de aves, um redemoinho que nos maré... O espaço, cheio de
gaivotas (Larus rudibundus) e andorinhas marinhas (Sterna hirundo) é comovido por seus gritos
sonoros. Milhares de avefrías percorrem as orlas e assobiam... Além, quase sobre cada onda,
um pato se mece e grita. No alto se estendem as bandadas de patos kazarki; mais abaixo, de
tanto em tanto, voam sobre o lago os ‘podorliki’ (Aquila clanga) e os buhardos de pântano, seguidos
imediatamente pela bandada bullanguera dos pescadores. Meus olhos se foram em pos deles”.
Por todas partes brota a vida. Mas tenho aqui as rapaces, “as mais fortes e ágeis” -como diz
Huxley- e -idealmente dotadas para o ataque” -como diz Syeverstof. Ouvem-se suas vozes famintas e
ávidas e seus gritos exasperados quando, durante horas inteiras, esperam uma ocasião conveniente
para atrapar, nesta massa de seres viventes, sequer um só indivíduo indefeso.
Não bem se acercam, dezenas de sentinelas voluntários avisam sua aparição, e em seguida
centenas de gaivotas e andorinhas marinhas iniciam a perseguição do rapaz. Enlouquecido pela fome,
deixa de lado por último suas precauções habituais; arroja-se de improviso sobre a massa viva de
aves; mas, atacado por todas partes, de novo é obrigado a retirar-se. Num arranque de fome
desesperada, arroja-se sobre os patos selvagens; mas, as engenhosas aves sociais, rapidamente,
reúnem-se numa bandada e fogem se o rapaz é um águia pescadora; se é um falção, se zambullen no
lago; se é um abutre, levantam nuvens de salpicaduras de água e somem ao rapaz numa confusão
completa. E enquanto a vida continua pululando no lago, como antes, o rapaz foge com gritos
coléricos em procura de carroña, ou de algum pajarilla jovem ou rato de campo, ainda não
acostumado a obedecer a tempo as advertências dos camaradas. Em presença de toda esta vida que
flui a torrentes, o rapaz, armado idealmente, tem que se contentar só com os refugos dela.
Ainda mais longe, para o norte, nos arquipélagos árticos, “podeis navegar milhas inteiras ao
longo da orla e vereis que todos os saledizos, todas as rochas e os rincões das brincos das montanhas
até
duzentos pés, e as vezes até quinhentos sobre o nível do mar, estão literalmente cobertos de
aves marinhas, cujos peitos brancos se destacam sobre o fundo das rochas sombrias, de tal modo
que parecem salpicadas de creta. O ar, tanto de perto como ao longe, está repleto de aves
Cada uma destas “montanhas de aves” constitui um exemplo vivente da ajuda mútua, e
também da variedade sem fim de carateres, individuais e específicos,- que são resultado da vida
social. Assim, por exemplo, o ostrero é conhecido por sua presteza em atacar a qualquer ave de
presa.

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O arga dos pântanos é renomada por sua vigilância e inteligência como guia de aves mais
pacíficas. Parente da anterior, o revuelve pedras, quando está rodeado de camaradas pertencentes a
espécies maiores , deixa que se ocupem eles da proteção de todos, e até se volta um ave bastante
tímida; mas quando está rodeado de pássaros menores, tomada a seu cargo, em interesse da
sociedade
o serviço de sentinela, e faz que lhe obedeçam, diz Brehm.
Pode-se observar aqui aos cisnes, dominadores, e simultaneamente deles, às gaivotas Kitty-
Wake -extremamente sociáveis e até ternas e entre as quais, como diz Nauman, as disputas se
produzem muito raramente e sempre são breves; vê-se às atrativas kairas polares, que continuamente
se esbanjam carícias; às ganso-egoístas, que entregam aos caprichos da sorte os órfãos da camarada
morta, e junto a elas, a outras ganso que adotam aos órfãos e nadam rodeadas de cinquenta
ou sessenta pequeñuelos, dos quais cuidam como se fossem seus próprios filhos. Junto aos
pingüins, que se roubam os ovos uns a outros, vêem-se as calandrias marinhas, cujas relações
familiares são ,”tão encantadoras e comovedoras” que nem os caçadores apaixonados se decidem a
disparar à fêmea rodeada de sua criança; ou aos gansos do norte, entre os quais (como os patos
velludos ou “coroyas” das sabanas), várias fêmeas empollan os ovos num mesmo ninho; ou os kairas
(Uria troile) que -afirmam observadores dignos de fé- as vezes se sentam por turno sobre o ninho
comum. A natureza
é a variedade mesma, e oferece todos os matizes possíveis de carateres, até o mais elevado:
por isso não é possível representá-la numa afirmação generalizada. Menos ainda pode julgar-se desde
o ponto de vista moral, já que as opiniões mesmas do moralista são resultado -a maioria das vezes
inconsciente- das observações sobre a natureza.
O costume de reunir-se no período de anidamiento é tão comum entre a maioria das aves, que
mal é necessário dar outros exemplos. As cumes de nossas árvores estão coroadas por grupos de
ninhos de pequenos pássaros; nas granjas anidan colônias de andorinhas nas torres velhas e
campanários se refugiam centenas de aves noturnas; e fácil seria encher páginas inteiras com as mais
encantadoras descrições da paz e harmonia que se encontram em quase todas estas sociedades
voláteis para o anidamiento. E até onde tais associações servem de defesa às aves mais débeis, é
evidente de por si. Um excelente observador, como o americano Dr. Couës, viu, por exemplo, que as
pequenas andorinhas (cliff swallaws) construíam seus ninhos na vizinhança imediata de um falção
das estepes
(Falco polyargus). O falção tinha construído seu ninho na cúspide de um daqueles minaretes
de argila dos que tantos há no Canhão do Colorado, e a colônia de andorinhas vivia imediatamente
embaixo dele. Os pequenos pássaros pacíficos não temiam a seu rapaz vizinho: simplesmente não lhe
permitiam acercar-se a sua colônia. Se o fazia, imediatamente o rodeavam e começavam corrê-lo, de
maneira que o rapaz tinha de afastar-se em seguida.
A vida em sociedades não cessa quando terminou a época do anidamiento; tomada somente
nova forma. As crianças jovens se reúnem em outono em sociedades juvenis, nas que ordinariamente
ingressam várias espécies. A vida social é praticada nesta época principalmente pelos prazeres que ela
proporciona, e também, em parte, por sua segurança. Assim encontramos em outono, em nossos
bosques, sociedades compostas de picamaderos jovens (Sitta coesia), junto com diversos
desempregos, trepadores, reyezuelos, pinzones de montanha e pássaros carpinteiros. Em Espanha, as
andorinhas se encontram em companhia de cernícalos, atrapamoscas e até de pombas.
No Far West americano, as jovens calandrias copetudas (Horned Park) vivem em grandes
sociedades, conjuntamente com outras espécies de cogujadas (Spragues Lark), com o pardal
da sabana (Savannah sparoow) e algumas outras espécies de verderones e hortelões.
Em realidade seria mais fácil descrever todas as espécies que levam vida isolada do que
enumerar aquelas espécies cujos pichones constituem sociedades, cujo objeto de nenhum modo é
caçar ou anidar, senão somente desfrutar da vida em comum e passar o tempo em jogos e esportes,
depois das poucas horas que devem consagrar à busca de alimento. Por último, temos ante nós,
ainda, um campo amplísimo de estudo da ajuda mútua nas aves, durante suas migrações, e a tal ponto
é amplo que só posso mencionar, em poucas palavras, este grande fato da natureza Bastará
dizer que as aves que viveram, até então, meses inteiros em pequenas bandadas disseminadas por
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uma superfície vasta, começam a reunir-se na primavera ou no outono a milhares; durante vários
dias seguidos, as vezes uma semana ou ‘ mais, vão a um lugar determinado, antes de pôr-se em
caminho, e tagarelam com vivacidade, provavelmente sobre a migração iminente. Algumas espécies,
todos os dias, antes de anoitecer, exercitam-se em vôos preparatórios, alistando-se para a longa
viagem. Todas esperam a seus congéneres atrasadas, e, por último, todas juntas desaparecem um
bom dia; isto é voam, numa direção determinada, sempre bem escolhida, que representa, sem dúvida,
o fruto da experiência coletiva acumulada. Os indivíduos fortes voam à cabeça da bandada, mudando-
se por turno para cumprir com esta difícil obrigação. De tal modo, as aves atravessam até os vastos
mares, em grandes bandadas compostas tanto de aves grandes como de pequenas; e, quando, na
primavera
seguinte voltam ao mesmo lugar, cada ave se dirige ao mesmo lugar bem conhecido, e na
maioria dos casos, até cada casal ocupa o mesmo ninho que consertou ou construiu o ano anterior.
Leste, fenômeno de migração se acha tão estendido, e está ao mesmo tempo tão
eficientemente estudado, criou tantos costumes assombrosas de ajuda mútua -e estes costumes e o
fato mesmo da migração requereriam um trabalho especial- que me vejo obrigado a abster-me
de dar maiores detalhes. Mencionarei somente as reuniões numerosas e
animadas que têm lugar de ano em ano no mesmo lugar, antes de empreender sua longa
viagem ao norte ou ao sul; e, do mesmo modo, as reuniões que se podem ver no norte, por exemplo,
nas desembocaduras do Yenesei, ou nos condados do norte de Inglaterra, quando as aves
voltam do sul a seus lugares habituais de anidamiento , mas não se assentaram ainda em seus
ninhos. Durante muitos dias, as vezes até um mês inteiro, reúnem-se todas as manhãs e passam juntas
ao redor em media hora, antes de jogar a voar em procura de alimento, quiçá deliberando sobre os
lugares onde se disporão a construir seus ninhos. se durante a migração sucede que as colunas de
aves que emigram são surpresas por uma tormenta, então a desgraça comum une às aves das espécies
mais diferentes. A diversidade de aves que, surpreendidas por uma nevasca durante a migração,
golpeiam contra os vidros dos faróis de Inglaterra, singelamente é assombrosa. Necessário é observar
também que as aves não migratórias, mas que se deslocam lentamente para o norte ou sul, conforme à
época do ano; isto é, as chamadas aves nômades, também realizam seus traslados em pequenas
bandadas.
Não emigram isoladas, para assegurar-se de tal modo, e por separado, o melhor alimento e
encontrar melhor refúgio na nova região senão, que sempre se esperam mutuamente e se reúnem em
bandadas antes de começar sua lenta mudança de lugar para o norte ou o sul.
Passando agora aos mamíferos, o primeiro que nos assombra nesta vasta classe de animais é a
enorme supremacia numérica das espécies sociais sobre aqueles poucos carnívoros que vivem
solitários. As mesetas, as regiões montanhosas, estepes e depressões do novo e velho mundo,
literalmente fervem de rebanhos de veados, antílopes, gacelas, búfalos, cabras e ovelhas selvagens;
isto é, de todos os
animais que são sociais. Quando os europeus começaram a penetrar nas pradarias de América
do Norte, acharam-nas a tal ponto densamente povoados por búfalos, que sucedia que os pioneiros
tinham, as vezes, que se deter, e durante muito tempo, quando as colunas de búfalos em densa coluna
se prolongava as vezes até duas ou três dias; e quando os russos ocuparam Sibéria, encontraram nela
uma quantidade tão enorme de veados, antílopes, corzos, esquilos e outros animais, que a conquista
dê Sibéria não foi mais do que uma expedição cinegética que se prolongou durante dois séculos. As
planícies herbosas de Africa oriental ainda agora estão repletas de zebras, girafas e diversas
espécies de antílopes. Até faz um tempo não muito longínquo, os rios pequenos de América
do Norte e da Sibéria Setentrional estavam ainda povoados por colônias de castores, e na Rússia
européia, toda sua parte norte, ainda no século XVIII, estava coberta por colônias semelhantes. As
planícies
dos quatro grandes continentes estão ainda agora povoadas de inumeráveis colônias de
toupeiras
ratos, marmotas, tarbaganes, “esquilos de terra e outros roedores.
Nas latitudes mais baixas de Ásia e Africa, nesta época, os bosques são refúgios de
numerosas famílias de elefantes rinocerontes, hipopótamos e de inumeráveis sociedades de macacos.
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No longínquo norte, os veados se reúnem em inumeráveis rebanhos, e ainda mais ao norte,
encontramos rebanhos de touros almizcleros e incontáveis sociedades de zorros polares. As costas do
oceano
estão animadas por manadas de focas e morsas, e suas águas por manadas de animais sociais
pertencentes à família das baleias; por último, e ainda nos desertos do planalto do Ásia central,
encontramos manadas de cavalos selvagens, asnos selvagens, camelos selvagens e ovelhas selvagens.
Todos estes mamíferos vivem em sociedades e em grupos que contam, as vezes , centos de milhares
de indivíduos, apesar de que agora, depois de três séculos de civilização a base de pólvora, ficam
unicamente restos lastimáveis daquelas incontáveis sociedades animais que existiam em tempos
passados.
¡Que insignificante, em comparação com ela, é o número dos carnívoros! ¡E daí errôneo, em
conseqüência, o ponto de vista daqueles que falam do mundo animal como se estivesse composto
somente de leões e hienas que fincam seus caninos ensangüentados na presa É o mesmo que se
afirmássemos que toda a vida da humanidade se reduz somente às guerras e aos massacres.
As associações e a ajuda mútua são regra na vida dos mamíferos. O costume da vida social se
encontra até nos carnívoros, e em toda esta vasta classe de animais somente podemos nomear uma
família de felinos (leões, tigres, leopardos, etc.), cujos membros realmente preferem a vida solitária à
vida social, e só raramente se encontram, pelo menos agora, em pequenos grupos. Ademais, ainda
entre os leões “o fato mais comum é caçar em grupos”, diz o célebre caçador e ciente S.
Baker. Faz pouco, N. Schillings, que estava caçando no este do Africa Equatorial, fotografou de noite
-ao fogonazo repentino da luz de magnésio- leões que se tinham reunido em grupos de três
indivíduos adultos, e que caçavam em comum; pela manhã, contou no rio, onde durante a seca iam de
noite
a beber os rebanhos de zebras, as impressões de uma quantidade maior ainda de leões -
até trinta- que iam caçar zebras, e naturalmente, nunca, em muitos anos, nem Schillings nem
outro algum, ouviram dizer que os leões se brigassem ou se disputassem a presa. Quanto aos
leopardos
e essencialmente ao puma sulamericano (gênero de leão), sua sociabilidade é bem conhecida.
O puma, em conseqüência, como o descreveu Hudson, faz-se amigo do homem gostosamente.
Na família dos viverridoe, carnívoros que representam algo intermédio entre os gatos e as
martas, e na família das martas (marta, armiño, doninha, garduña, tejón, etc.), também predomina a
forma de vida solitária.
Mas pode considerar-se plenamente estabelecido que em épocas não mais temporãs do que o
final do século XVIII, a doninha vulgar (mustela, vulgaris) era mais social que agora; encontrava-se
então em Escócia e também no cantón de Unterwald, em Suiça, em pequenos grupos.
Quanto à vasta família canina (cachorros, lobos, chacais, zorros e zorros polares), sua
sociabilidade, suas associações com fins de caça podem considerar-se como rasgo característico de
muitas variedades desta família. É por todos sabido que os lobos se reúnem em manadas para caçar, e
o pesquisador da natureza dos Alpes, Tschudi, deixou uma descrição excelente de como, dispondo-se
em semicírculo rodeiam à vaca que pasta na brinco montanhosa e, depois, saltando subitamente,
lançando um forte aullido, fazem-na cair ao precipício, Audubon, no ano 1830 viu também que os
lobos do Lavrador caçavam em manadas e que uma manada perseguiu a um homem até sua choça e
destroçou a seus cachorros. Nos crus invernos, as manadas de lobos voltam tão numerosas que são
perigosas para as populações humanas, como sucedeu em França pelo ano 1840. Nas estepes russas,
os lobos nunca atacam aos cavalos se não é em manadas e devem suportar uma luta feroz,
durante a qual os cavalos (segundo o depoimento de Kohl), a: vezes passam ao ataque; em tal caso,
se
os lobos não se apressam a retroceder.. correm risco de ser rodeados pelos cavalos, que os
matam a patadas.
Sabido é, também, que os lobos das pradarias americanas (canis latrans) reúnem-se em
manadas de 20 e 30 indivíduos para atacar ao búfalo que se separou acidentalmente do rebanho. Os
chacais, que se distinguem por sua grande bravura e podem ser considerados entre os mais

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inteligentes representantes da família canina, sempre caçam em manadas; reunidos de tal modo, não
temem aos carnívoros maiores.
Quanto aos cachorros selvagens do Ásia (Jolzuni ou Dholes), Williamson viu que seus grandes
manadas atacam determinadamente a todos os animais grandes, exceto elefantes e rinocerontes, e que
até conseguem vencer aos ursos e tigres, a quem, como é sabido, arrebatam sempre os cachorros.
As hienas vivem sempre em sociedades e caçam em manadas, e Cummings se refere com
grande elogio às organizações de caça das hienas manchadas (Lycain). Até os zorros, que em nossos
países civilizados indefectiblemente vivem solitários, reúnem-se as vezes para caçar, como o
testemunham alguns observadores. Também o zorro polar, isto é, o zorro ártico, é ou mais exatamente
era, nos tempos de Steller, na primeira metade do século XVIII, um dos animais mais sociáveis.
Lendo o relato de Steller sobre a luta que teve que sustentar a infortunada tripulação de
Behring com estes pequenos e inteligentes animais, não se sabe de que assombrar-se mais: da
inteligência
não comum dos zorros polares e do apoio mútuo que revelavam ao desenterrar os alimentos
ocultos embaixo das pedras ou colocados sobre pilares (um deles, em tal caso, trepava à cume do
pilar e arrojava os alimentos aos colegas que esperavam abaixo), ou da crueldade do homem, levado
ao desespero por suas numerosas manadas.
Até, alguns ursos vivem em sociedades nos lugares onde o homem não os molesta. Assim,
Steller viu numerosas bandas de ursos negros de Kamchatka , e, as vezes, encontrou-se ursos polares
em pequenos grupos. Nem sequer os insectívoros, não muito inteligentes, desdenham sempre a
associação.
Por outra parte, encontramos as formas mais desenvolvidas de ajuda mútua especialmente
entre os roedores, ungulados e ruminantes. Os esquilos são individualistas em grau
considerável. Cada uma delas constrói seu cômodo ninho e acumula sua provisão.
Estão inclinadas à vida familiar, e Brehm achou que se sentem muito felizes quando as duas
crianças do mesmo ano se juntam com seus pais em algum rincão apartado do bosque. Mas, apesar
disto, os esquilos mantêm relações recíprocas, e se no bosque onde vivem se produz uma escassez de
pinhas emigram em destacamentos inteiros. Quanto aos esquilos negros do Far West americano,
destacam-se especialmente por sua sociabilidade. Com exceção de algumas horas dedicadas
diariamente ao abastecimento, passam toda sua vida em jogos, juntando-se para isto em numerosos
grupos. Quando se multiplicam demasiado rapidamente em alguma região, como sucedeu, por
exemplo, em Pensylvania em 1749 reúnem-se em manadas quase tão numerosas como nuvens de
lagostas e avançam -neste caso- para o Sudoeste, devastando em seu caminho bosques, campos e
hortos.
Naturalmente, por trás de suas densas colunas se introduzem os zorros, as garduflas, os
falções e toda
classe de aves noturnas, que se alimentam com os indivíduos rezagados. O parente do esquilo
comum, burunduk, distingue-se por uma sociabilidade ainda maior. É um grande acaparador, e
em suas galerias subterrâneas acumula grandes provisões de raízes comestíveis e nozes, que
geralmente são saqueadas em outono pelos homens. Segundo a opinião de alguns observadores, o
burunduk conhece, até certo ponto, as alegrias que experimenta um avarento. Mas, apesar disso, é um
animal social.
Vive sempre em grandes populações, e quando Audubon abriu, em inverno, algumas tocas de
“hackee” (o congénere americano mais próximo de nosso burunduk) encontrou vários indivíduos
num refúgio. As provisões em tais grutas, tinham sido preparadas pelo esforço comum.
A grande família das marmotas, na que entram três grandes gêneros: as marmotas
propriamente ditas, os susliki e os “cachorros das pradarias americanas (Arctomys, Spermophilus e
Cynomys), distingue-se por uma sociabilidade e uma inteligência ainda maior. Todos os
representantes desta família preferem ter cada qual sua toca, mas vivem em grandes populações. O
terrível inimigo dos trigales
do Sul de Rússia -o suslik- dos quais o homem só extermina anualmente ao redor de dez
milhões, vive em inumeráveis colônias; e enquanto as assembléias estaduais (Ziemstvo) russas,
discutem seriamente os meios de liberar-se deste “inimigo social”, os susliki, reunidos a milhares em
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seus povoados, desfrutam da vida. Seus jogos são tão encantadores que não existe observador algum
que não tenha expressado sua admiração e referido seus concertos melodiosos, formados pelos apitos
agudos dos machos e os apitos melancólicos das fêmeas antes de que, recordando suas
obrigações cidadãs, dedicassem-se à invenção de diferentes meios diabólicos para o extermínio destes
saqueadores. Já que a reprodução de todo gênero de aves rapaces e bestas de presa para a luta com-
os susliki resultou infrutuosa, atualmente a última palavra da ciência nesta luta consiste em
inocularles o cólera.
As Populações dos cachorros das pradarias” (Cynomys), nas planícies da América do Norte
, apresentam um dos espetáculos mais atrayentes. Até onde o olho pode abarcar a extensão da
pradaria se vêem, por todos os lados , pequenos montículos de terra, e sobre cada um se encontra uma
bestezuela, em conversa animadísima com seus vizinhos, valendo-se de sons entrecortados parecidos
ao ladrido.
Quando alguém dá o sinal da aproximação do homem, todos, num instante, se zambullen em
suas pequenas grutas, desaparecendo como por encanto. Mas não bem o perigo passou, as bestezuelas
saem imediatamente. Famílias inteiras saem de suas grutas e começam a jogar. Os jovens se
arranham e provocam mutuamente, enojam-se, páranse graciosamente sobre as patas traseiras,
enquanto os velhos vigiam. Famílias inteiras se visitam, e os caminhos bem debulhados entre os
montículos de terra, demonstram que tais visitas se repetem muito com freqüência. Dito mais
brevemente, algumas das melhores páginas de nossos melhores naturalistas estão dedicadas à
descrição das sociedades dos cachorros das pradarias de América, das marmotas do Velho
Continente e das marmotas polares das regiões alpinas. Apesar disso, tenho que repetir, com
respeito às marmotas o mesmo que disse sobre as abelhas. Conservaram seus instintos bélicos,
que se manifestam também em cativeiro. Mas em suas grandes associações, em contato
com a natureza livre, os instintos antisociales não encontram terreno para seu
desenvolvimento, e o resultado final é a paz e a harmonia.
Ainda animais tão resmungões como as ratas, que sempre se brigam em nossos porões, são o
bastante inteligentes não só para não se enojar quando se entregam ao saque das despensas, senão para
prestar-se ajuda mútua durante seus assaltos e migrações. Sabido é que as vezes até alimentam a seus
inválidos. Quanto ao castor ou rata almizclera do Canadá (nossa ondrata) e a desman, distinguem-se
por sua elevada sociabilidade. Audubon fala com admiração de suas “comunidades pacíficas, que,
para ser felizes, só precisam que não se lhes perturbe”.
Como todos os animais sociais, estão cheios de alegria de viver, são brincalhões e facilmente
se unem com outras espécies de animais, e, em general pode-se dizer que atingiram um grau elevado
de desenvolvimento intelectual. Na construção de seus povoados, situados sempre a orlas dos lagos
e dos rios, evidentemente tomam em conta o nível variável das águas diz Audubon; suas casas
cupuliformes, construídas com arca e canas, possuem rincões apartados para os detritus orgânicos; e
suas salas, na época invernal, estão bem tapizadas com folhas e ervas: são mornas, e ao mesmo
tempo estão dotados de um caráter sumamente simpático; seus assombrosos diques e povoados, nos
quais vivem e morrem gerações inteiras sem conhecer mais inimigos do que a lontra e o
homem, constituem assombrosas mostras do que a ajuda mútua pode dar ao animal para a conservação
da espécie, a formação dos costumes sociais e o desenvolvimento das capacidades intelectuais.
Os diques e povoados dos castores são bem conhecidos por todos os que se interessam na vida
animal, e por isto não me deterei mais neles.
Observarei unicamente que nos castores, ratas almizcleras e alguns outros roedores,
encontramos já
aquele rasgo que é também característico das sociedades humanas, ou seja, o trabalho em
comum
Passarei em silêncio dois grandes famílias, em cuja composição entram os ratos saltadores (a
yerboa egípcia ou pequeno emuran, e o alataga), a chinchilla, a vizcacha (lebre americana subterrânea)
e os tushkan (lebre subterrânea do sul de Rússia), apesar de que os costumes de todos estes
pequenos roedores poderiam servir como excelentes mostras dos prazeres que os animais obtêm da
vida social. Precisamente dos prazeres, já que é sumamente difícil determinar que é o que faz reunir-se
aos animais: se a necessidade de proteção mútua ou simplesmente o prazer, o costume, de sentir-se
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rodeados de seus congéneres. Em todo caso, nossas lebres vulgares, que não se reúnem em
sociedades para a vida em comum, e mais ainda, que não estão dotadas de sentimentos paternais
especialmente fortes, não podem viver, no entanto, sem reunir-se para os jogos comuns. Dietrich de
Winckell , considerado o melhor ciente da vida das lebres ødescreve-as como jogadoras apaixonadas;
se embriagan de tal maneira com o processo do jogo, que é conhecido o caso de umas livres que
tomaram a um zorro, que se aproximou discretamente, como colega de jogo Quanto aos coelhos,
vivem constantemente em sociedades e toda sua vida repousa sobre ele princípio da antiga família
patriarcal; os jovens obedecem cegamente ao pai, e até o avô. Com respeito a isto, até sucede algo
interessante; estas duas espécies próximas, os coelhos e as lebres, não se toleram mutuamente, e não
porque se alimentam da mesma classe de comida, como costumam explicar-se casos semelhantes,
senão, o que é mais provável, porque a apaixonada lebre, que é uma grande individualista, não pode
travar amizade com uma criatura tão calma, aprazível e humilde como o coelho.
Seus temperamentos são tão diferentes, que devem constituir um obstáculo para sua amizade.
Na vasta família dos equinos, na que entram os cavalos selvagens e asnos selvagens de Ásia,
as zebras, os mustangos, os cimarrones das pampas e os cavalos semisalvajes de Mongólia e Sibéria,
encontramos de novo a sociabilidade mais estreita. Todas estas espécies e raças vivem em rebanhos
numerosos, cada um dos quais se compõe de muitos grupos, que compreendem várias éguas sob a
direção de um padrinho. Estes inumeráveis habitantes do velho e do novo mundo -falando em
general bastante debilmente organizados para a luta com seus numerosos inimigos e também para
defender-se das condições climáticas desfavoráveis- desapareceriam da face da terra se não fora por
seu espírito social. Quando se aproxima um açougueiro, reúnem-se imediatamente vários grupos;
recusam o ataque do carnívoro e, as vezes, até o perseguem; devido a isto, nem o lobo, nem sequer o
leão, podem capturar um cavalo, nem ainda uma zebra enquanto não se tenha separado do grupo. Até,
de noite, graças a sua não comum prudência gregaria e à inspeção preventiva do lugar, que realizam
indivíduos experimentados, as zebras podem ir a abrevar ao rio, apesar dos leões que
espreitam nos matorrais.
Quando a seca queima a erva das pradarias americanas, os grupos de cavalos e zebras se
reúnem em rebanhos cujo número atinge, as vezes , até dez mil cabeças, e emigram a novos lugares.
E quando em inverno, em nossas estepes asiáticas, rogem as nevascas, os grupos se mantêm perto
uns de outros e juntos procuram proteção em qualquer quebrada. Mas, se a confiança mútua, por
alguma razão, desaparece no grupo, ou o pânico faz presa dos cavalos e os dispersa, então a
maior parte perece, e se encontra aos sobrevivientes, depois da nevasca, médio mortos de
cansaço. A união é, de tal modo, sua arma principal na luta pela existência, e o homem, seu principal
inimigo. Retirando-se ante o número crescente deste inimigo os antecessores de nossos cavalos
domésticos
(denominados por Poliakof Equus Przewalski), preferiram emigrar às mais selvagens e menos
acessíveis partes do planalto das fronteiras do Tibet, onde sobreviveram até agora, rodeados em
verdade de carnívoros e num clima que pouco cede por sua crueza à região ártica, mas num lugar
ainda inacessível ao homem.
Muitos exemplos surpreendentes de sociabilidade poderiam ser tomados da vida dos veados
e em especial da vasta divisão dos ruminantes na que podem incluir-se aos gamos, antílopes,
as gacelas, cabras, ibex, etcétera, em soma da vida de três famílias numerosas: antilopides, caprides e
ovides. A vigilância com que preservam seus rebanhos dos ataques dos carnívoros; a ansiedade
demonstrada pelo rebanho inteiro de camurças, enquanto não atravessaram todos um lugar
perigoso através dos penhascos rochosos; a adoção dos órfãos; o desespero da gacela, cujo
macho ou cuja fêmea, ou até um colega do mesmo sexo, foram mortos; os jogos dos jovens, e muitos
outros rasgos, podríase agregar para caracterizar sua sociabilidade. Mas, quiçá, constituam o exemplo
mais surpreendente de apoio mútuo as migrações ocasionais dos corzos, parecidas às que observei
uma vez no Amur. Quando cruzei os planaltos do Ásia Oriental e sua corrente limítrofe, o Grande
Jingan, pelo caminho de Transbaikalia a Merguen, e depois segui viagem pelas altas planicies de
Manchuria, em minha marcha para o Amur pode comprovar cuán escassamente povoadas de corzos
se acham
estás regiões quase inhabitables.
37
Dois anos mais tarde, viajava eu a cavalo Amur aporta e, a fins de outubro, atingi a comarca
inferior daquela pitoresca paisagem estreito com o qual o Amur penetra através de Dousse-Alin
(Pequeno Jingan), antes de atingir as terras baixas, onde se une com o Sungari. Nas stanitsas
distribuídas nesta parte do pequeno Jingan, encontrei aos cosacos Henos da maior excitação, pois
sucedia que milhares e milhares de corzos cruzavam a nado o Amur ali, no lugar estreito do grande
rio, para chegar às serras baixas do Sungari. Durante alguns dias, numa extensão de arredor de
sessenta verstas rio acima, os cosacos massacraram infatigavelmente aos corzos que cruzavam a nado
o Amur, o qual já então levava muito gelo.
Matavam milhares por dia, mas o movimento de corzos não se interrompia Nunca tinham
visto antes uma migração semelhante, e é necessário procurar suas causas, com toda probabilidade, no
fato de que no Grande Jingan e em seus declives orientais tinham caído então neves temporãs
desusadamente copiosas, que tinham obrigado aos corzos a fazer a tentativa desesperada de atingir as
terras baixas do Leste do Grande Jingan. E em realidade, passados alguns dias, quando comecei a
cruzar estas últimas montanhas, achei-as profundamente cobertas de neve porosa que atingia duas e
três pés de profundidade.
Vale a pena reflexionar sobre esta migração de corzos. Necessário é imaginar-se o território
imenso (umas 200 verstas de largo por 700 de longo), de onde deveram reunir-se os grupos
de corzos dispersos nele, para iniciar a emigração, que empreenderam sob a pressão de
circunstâncias
completamente excepcionais. Necessário é imaginar-se, depois, as dificuldades que deveram
vencer os corzos antes de chegar a um pensamento comum sobre a necessidade de cruzar o Amur,
não em qualquer parte, senão justo mais ao sul, onde seu leito se estreita numa corrente e onde ao
cruzar o rio, cruzariam ao mesmo tempo a corrente e sairiam às terras baixas temperadas. Quando se
imagina tudo isto concretamente, não é possível deixar de sentir profunda admiração ante o grau e a
força da sociabilidade evidenciada no caso presente por estes inteligentes animais.
Não menos assombrosas, também, no que respecta à capacidade de união e de ação comum,
são as migrações de bisões e búfalos que têm lugar em América do Norte. Verdade é que os búfalos
ordinariamente pastavam em quantidades enormes nas pradarias, mas essas massas estavam
compostas de um número infinito de pequenos rebanhos que nuca se misturavam. E todos estes
pequenos grupos, por mais dispersos que estivessem sobre o imenso território, em caso de
necessidade, reuniam-se e formavam as enormes colunas de centenas de milhares
de indivíduos de que falei numa das páginas precedentes.
Deveria dizer, também, sequer umas poucas palavras das “famílias compostas” dos elefantes
de seu afeto mútuo, da maneira meditada como apostan suas sentinelas, e dos sentimentos de
simpatia que se desenvolvem entre eles sob a influência dessa vida, plena de estreito apoio mútuo.
Poderia fazer menção, também, dos sentimentos sociais existentes entre os javalis, que não gozam de
boa fama, e só poderia alabá-los por sua inteligência ao unir-se no caso de ser atacados por um
animal carnívoro. Os hipopótamos e os rinocerontes devem também ter seu lugar num trabalho
consagrado à sociabilidade dos animais.
Se poderia escrever também várias páginas assombrosas sobre a sociabilidade e o mútuo afeto
das focas e morsas; e finalmente, poderia mencionar-se os bons sentimentos desenvolvidos entre as
espécies sociais da família dos cetáceos. Mas é necessário, ainda, dizer algo sobre as sociedades dos
macacos que são especialmente interessantes porque representam a transição às sociedades
dos homens primitivos.
Mal é necessário recordar que estes mamíferos que ocupam a cume mesma do mundo animal,
e são os mais próximos ao homem, por sua constituição e por sua inteligência, destacam-se por sua
extraordinária sociabilidade.
Naturalmente, em tão vasta divisão do mundo animal, que inclui centenas de espécies,
encontramos inevitavelmente a maior diversidade de pareceres e costumes. Mas, tomando tudo isto
com
consideração, é necessário reconhecer que a sociabilidade, a ação em comum, a proteção
mútua e o elevado desenvolvimento dos sentimentos que são conseqüência necessária da vida social,
são os rasgos distintivos de quase toda a vasta divisão dos macacos. Começando pelas espécies
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menores e terminando pelas maiores, a sociabilidade é a régia, e tem só muito poucas
exceções.
As espécies de macacos que vivem solitários são muito raras. Assim, os macacos noturnos
preferem a vida isolada; os capuchinos (Cebus capacinus), e os “ateles” -grandes graciosos
aulladores que se encontram no Brasil- e os aulladores em general, vivem em pequenas famílias;
Wallace nunca encontrou aos orangotangos de outro modo que isolados ou em pequenos
grupos de três a quatro indivíduos; e os gorilas, segundo parece, nunca se reúnem em grupos.
Mas todas as restantes espécies de macacos:
chimpanzés. gibones, os macacos arbóreos de Ásia e Africa, os macacos, mogotes, todos os
pavianos parecidos a cachorros, os mandriles e todos os pequenos brincalhões, são sociáveis em alto
grau.
Vivem em grandes bandas e algumas reúnem várias espécies diferentes. A maioria deles se
sentem completamente infelizes quando se acham solitários. O grito de telefonema de cada macaco
imediatamente reúne a toda a banda, e todos juntos recusam valentemente os ataques de quase
todos os animais carnívoros e aves de rapiña. Nem sequer as águias se decidem a atacar aos
macacos. Saqueiam sempre nossos campos em bandas, e então os velhos se encarregam da tarefa de
cuidar a segurança da sociedade Os pequenas titíes, cujas caritas infantis tanto assombraram a
Humboldt, abraçam-se E protegem mutuamente da chuva enrolando a fila ao redor do pescoço do
camarada que treme de frio.
Algumas espécies tratam a seus camaradas feridos com extrema solicitação, e durante a
retirada nunca abandonam a um ferido antes de convencer-se de que morreu, que está fora de suas
forças o voltá-lo à vida. Assim, James Forbes refere em seus Oriental Memoirs com que persistência
reclamaram os macacos a sua partida a entrega do cadáver de uma fêmea morta, e que esta exigência
foi feita em forma tal que compreendeu perfeitamente por que “as testemunhas desta extraordinária
cena decidiram em, adiante não disparar nunca mais contra os macacos”.
Os macacos de algumas espécies reúnense variados quando querem volcar uma pedra e
recolher os ovos de formigas que se encontram sob ela. Lhes pavianos de Africa do Norte
(Hamadryas), que vivem em grandes bandas, não só colocam sentinelas, senão que observadores
dignos de toda fé os viram formar uma corrente para transportar a lugar seguro os frutos roubados.
Sua coragem é bem conhecida, e bastará recordar a descrição clássica de Brehm, que referiu
detalhadamente a luta regular sustentada por sua caravana antes de que os pavianos lhes permitissem
prosseguir viagem no vale de Mensa, em Abissínia.
São conhecidas também as travesuras dos macacos de fila, que os fizeram merecedores de seu
próprio nome (brincalhões), e graças a este rasgo de suas sociedades, também é conhecido o afeto
mútuo que reina nas famílias de chimpanzés. E se entre os macacos superiores há duas espécies
(orangotango e gorila) que não se distinguem pela sociabilidade, necessário é recordar que ambas
espécies estão limitadas a superfícies muito reduzidas (uma vive em Africa Central e a outra nas ilhas
de Borneo e Sumatra), e com toda evidência constituem os últimos restos moribundos de duas
espécies que foram antes incomparavelmente mais numerosas. O gorila, pelo menos assim parece, foi
sociável em tempos passados, sempre que os macacos citados pelo cartaginés Hannon na descrição
de sua viagem (Periplus) tenham sido realmente gorilas.
De tal modo, ainda em nossa rápida olhadela vemos que a vida em sociedades não constitui
exceção no mundo animal; pelo contrário, é regra geral -lei da natureza- e atinge sua mais pleno
desenvolvimento nos vertebrados superiores. Há muito poucas espécies que vivam
solitárias ou somente em pequenas famílias, e são comparativamente pouco numerosas.
Apesar disso, há fundamentos para supor que, com poucas exceções, todas as aves e os mamíferos que
no presente não vivem em rebanhos ou bandadas viveram antes em sociedades, até que o gênero
humano se multiplicou sobre a superfície da terra e começou a livrar contra eles uma guerra de
extermínio, e do mesmo modo começou a destruir as fontes de seus alimentos.
“On ne s’associe pas pour mourir” -observou justamente Espinhas (no livro Lhes Sociétés
animais). Houzeau, que conhecia bem o mundo animal de algumas partes de América antes de que
os animais sofressem o extermínio em grande escala de que os fez objeto o homem, expressou em
seus escritos o mesmo pensamento.
39
A vida social se encontra no mundo animal em todos os graus de desenvolvimento; e de
acordo
com a grande idéia de Herbert Spencer, tão brilhantemente desenvolvida no trabalho de
Perrier, Colonies Animais, as “colônias”, isto é, sociedades estreitamente unidas, aparecem já no
princípio mesmo do desenvolvimento do mundo animal. À medida que nos elevamos na escala da
evolução, vemos como as sociedades dos animais se voltam mais e mais conscientes. Perdem seu
caráter
puramente físico, depois cessam de ser instintivas e se fazem raciocinadas. Entre os
vertebrados superiores, a sociedade é já temporaria, periódica, ou serve para a satisfação de alguma
necessidade
definida, por exemplo a reprodução, as migrações, a caça ou a defesa mútua. Faz-se até
acidental, por exemplo, quando as aves se reúnem contra um rapaz, ou os mamíferos se juntam para
emigrar sob a pressão de circunstâncias excepcionais. Neste último caso, a sociedade se converte num
desvio voluntária do modo habitual de vida. Ademais, a união as vezes é de duas ou três graus: ao
princípio, a família; depois, o grupo, e por último, a sociedade de grupos, ordinariamente dispersos,
mas que se reúnem em caso de necessidade, como vimos no exemplo dos búfalos e outros
ruminantes durante
suas mudanças de lugar. A associação também toma formas mais elevadas, e então assegura
maior independência para cada indivíduo, sem privá-lo, ao mesmo tempo, das vantagens da vida
social. De tal modo, na maioria dos roedores, cada família tem sua própria moradia, à que pode
retirar-se se de ea o isolamento; mas essas moradias se distribuem em povos e cidades inteiras, de
maneira que assegurem a todos os habitantes as comodidades todas e os prazeres da vida social. Por
último,
em algumas espécies, como, por exemplo, as ratas, marmotas, lebres, etc.... a sociabilidade da
vida se mantém apesar de seu caráter pendenciero, ou, em general, apesar das inclinações egoístas
dos indivíduos tomados separadamente.
Nestes casos, a vida social, portanto, não está condicionada, como nas formigas e abelhas, pela
estrutura fisiológica; aproveitam dela, pelas vantagens que apresenta, a ajuda mútua ou pelos prazeres
que proporciona. E isto, finalmente, manifesta-se em todos os graus possíveis, e a maior variedade de
carateres individuais e específicos e a maior variedade de formas de vida social é sua conseqüência, e
para nós uma prova mais de sua generalidade.
A sociabilidade, isto é, a necessidade experimentada pelos animais de associar-se com
seus semelhantes, o amor à sociedade pela sociedade unido ao “goze da vida”, só agora
começa a receber a devida atendimento por parte dos zoólogos. Atualmente sabemos que todos os
animais, começando pelas formigas, passando às aves e terminando com os mamíferos superiores,
amam os jogos, agradam de lutar e correr um em pos de outro, tratando de atrapar-se mutuamente,
agradam de burlar-se etcétera, e assim muitos jogos são, por assim dizê-lo, a escola preparatória para
os indivíduos jovens, preparando-os para fazer convenientemente quando entrem na maturidade;
simultaneamente deles, existem também jogos que, aparte de seus fins utilitários, junto com as danças
e canções, constituem a simples manifestação de um excesso de forças vitais, “de um goze da vida”,
e expressam o desejo de entrar, de um modo ou outro, em sociedade com os outros indivíduos de
sua mesma espécie, ou até de outra.
Dito mais brevemente, estes jogos constituem a manifestação da sociabilidade no verdadeiro
sentido da palavra como rasgo distintivo de todo mundo animal. Já seja o sentimento de medo
experimentado ante a aparição de um ave de rapiña, ou uma “explosão de alegria” que se manifesta
quando os animais estão sãos e, em especial são jovens, ou bem singelamente o desejo de liberar-se
do excesso de impressões e da força vital bullente, a necessidade de comunicar suas impressões aos
demais, a necessidade do jogo em comum, de tagarelar, ou simplesmente a sensação da proximidade
de outros seres vivos, parentes, esta necessidade se estende a toda a natureza; e em tal alto grau
como qualquer função fisiológica, constitui o rasgo característico da vida e a impresionabilidad em
general Esta necessidade atinge sua mais elevado desenvolvimento e tomada as formas mais belas nos
mamíferos, especialmente nos indivíduos jovens, e mais ainda nas aves; mas ela se estende a toda a
natureza.
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Foi detenidamente observada pelos melhores naturalistas, incluindo a Pierre Huber, ainda
entre as formigas; e não há dúvida de que essa mesma necessidade, esse mesmo instinto, reúne às
borboletas e
outros insetos em, as enormes colunas de que falamos antes.
O costume das aves de reunir-se para dançar juntas e enfeitar os lugares onde se entregam
habitualmente às danças provavelmente é bem conhecida pelos leitores, ainda que seja graças às
páginas que Darwin dedicou a esta matéria em sua Origem do Homem (cap. XIII).
Os visitantes do jardim zoológico de Londres conhecem também a glorieta, belamente
enfeitada, do “passarinho acetinado” construída com esse mesmo fim. Mas este costume de dançar
resulta bem mais estendida do que antes se supunha, e W. Hudson, em sua obra mestra sobre a região
do Prata, faz uma descrição sumamente interessante das complicadas danças executadas por
numerosas espécies de aves: rascones, jilgueros, avefrías.
O costume de cantar em comum que existe em algumas espécies de aves, pertence à mesma
categoria de instintos sociais. Em grau assombro está desenvolvida no chajá sulamericano
(Chauna Chavarria, de raça próxima ao ganso) e ao que os ingleses deram o apelido mais prosaico de
“copetuda gritona”. Estas aves se reúnem, as vezes, em enormes bandadas e em tais casos organizam
com freqüência todo um concerto, Hudson as encontrou certa vez em quantidades inumeráveis,
pousadas ao redor de um lago das Pampas, em bandadas separadas de umas quinhentas aves.
“Cedo -diz- uma das bandadas que se achava próxima a mim começou a cantar, e este coro
poderoso não cessou durante três ou quatro minutos.
Quando teve cessado, a bandada vizinha começou o canto, e, a seguir dela, a seguinte, e assim
sucessivamente até que chegou o canto da bandada que se achava na orla oposta do lago, e cujo som
se transmitia claramente pelo água; depois, pouco a pouco, calaram-se e de novo começou a ressoar a
meu lado.”
Outra vez o mesmo zoólogo teve ocasião de observar a uma inumerável bandada de chajás
que cobria toda a Ranhura, mas esta vez dividida não em seções, senão em casais e em grupos
pequenos. Ao redor de. as nove da noite “de repente toda esta massa de aves, que cobria os pântanos
em milhas inteiras à redonda, estourou num poderoso canto vespertino...
Valia a pena cavalgar uma centena de milhas para escutar tal concerto”.
À observação precedente se pode agregar que o chajá, como todos os animais sociais,
domestica-se facilmente e se aficiona muito ao homem. Dize-se que “são aves pacíficas que raramente
disputam” apesar de estar bem armadas e provistas de espolones bastante ameaçadores nas asas. A
vida em sociedade, no entanto, faz supérflua este arma. O fato de que a vida social sirva de arma
poderosísima na luta pela existência (tomando este termo no sentido amplo da palavra é confirmado,
como vimos nas páginas precedentes, por exemplos bastante diversos, e de tais exemplos, se
necessário fora, se poderia citar um número incomparavelmente maior. A vida em sociedade, como
vimos, dá aos insetos mais débeis, às aves mais débeis e aos mamíferos mais débeis, a
possibilidade de defender-se dos ataques das aves e animais carnívoros mais temíveis, ou prevenir-se
deles. Ela lhes assegura a longevidade; dá às espécies a possibilidade de criar uma descendência com
o mínimo de desgaste desnecessário de energias e de sustentar seu número ainda em caso de
natalidade muito baixa; permite ao animais gregarios realizar suas migrações e encontrar novos
lugares de residência. Por isto, ainda reconhecendo inteiramente que a força, a velocidade, a
coloração protetora, a
astúcia, e a resistência ao frio e fome, mencionadas por Darwin e Wallace realmente constitui
qualidades que fazem ao indivíduo ou às espécies mais aptos em algumas circunstâncias, nós, junto
com isto, afirmamos que a sociabilidade é a vantagem maior na luta pela existência em todas as
circunstâncias naturais, sejam cuales fossem. As espécies que voluntária ou involuntariamente
renegam dela, estão condenadas a. a extinção, enquanto os animais que sabem unir-se do melhor
modo, têm maiores oportunidades para subsistir e para um desenvolvimento máximo, apesar
de ser inferiores aos outros em cada uma das particularidades enumeradas por Darwin e Wallace,
com
exceção somente das faculdades intelectuais. Os vertebrados superiores, e em especial ele
gênero humano, servem como a melhor demonstração desta afirmação.
41
Quanto às faculdades intelectuais desenvolvidas, tudo darwinista está de acordo com Darwin
em que elas constituem o instrumento mais poderoso na luta pela existência e a força mais poderosa
para o desenvolvimento máximo; mas deve estar de acordo, também, em que as faculdades
intelectuais, mais ainda do que todas as outras, estão condicionadas em seu desenvolvimento pela
vida social.
A língua, a imitação, a experiência acumulada, são condições necessárias para o
desenvolvimento das faculdades intelectuais, e precisamente os animais não sociáveis costumam estar
desprovidos delas. Por isso nós encontramos que na cume das diversas classes se acham animais tais
como a abelha, a formiga e cupim, nos insetos, entre os quais está altamente desenvolvida a
sociabilidade, e com ela, naturalmente, as faculdades intelectuais.
“Os mais aptos”, os melhor dotados para a luta com todos os elementos hostis são, de tal
modo, os animais sociais, de maneira que se pode reconhecer a sociabilidade como o fator principal
da evolução progressiva, tanto indirecto, porque assegura o bem-estar da espécie junto com a
diminuição do gasto inútil de energia, como direto, porque favorece o crescimento das faculdades
intelectuais”.
Ademais, é evidente que a vida em sociedade seria completamente impossível sem o
correspondente desenvolvimento dos sentimentos sociais, em especial, se o sentimento coletivo de
justiça (princípio fundamental da moral) não se tivesse desenvolvido e convertido em costume. Se
cada indivíduo abusasse constantemente de suas vantagens pessoais e os restantes não interviessem
em favor do ofendido, nenhuma classe de vida social seria possível. Por isto, em todos os animais
sociais, ainda que seja pouco, deve desenvolver-se o sentimento de justiça. Por grande que seja a
distância de onde vêm as andorinhas ou as grullas, tanto as unas como as outras voltam a cada uma ao
mesmo ninho que construíram ou consertaram o ano anterior. Se algum pardal preguiçoso (ou jovem)
trata de apoderar-se de um ninho que constrói seu camarada, ou ainda roubar dele algumas piajuelas,
todo o grupo local de pardais intervém na contramão do camarada preguiçoso; o mesmo em muitas
outras aves, e é evidente que, se semelhantes intervenções não fossem a regra geral, então as
sociedades de aves
para o anidamiento seriam impossíveis.
Os grupos separados de pingüins têm seu lugar de descanso e seu lugar de pesca e não se
brigam por eles. Os rebanhos de gado cornúpeta de Austrália têm cada um seu lugar
determinado, onde invariavelmente se dirigem dia a dia a descansar, etcétera.
Dispomos de grande quantidade de observações diretas que falam do acordo que reina entre
as sociedades de aves anidadoras, nas populações de roedores, nos rebanhos de herbívoros, etc.; mas
por outra parte, sabemos que são muito poucos os animais sociais que disputam constantemente entre
si, como fazem as ratas de nossas despensas, ou as morsas que brigam pelo lugar para esquentar-se ao
sol nas ribeiras que ocupam. A sociabilidade, de tal modo, põe limites à luta física e dá
lugar ao desenvolvimento dos melhores sentimentos morais.
É bastante conhecido o elevado desenvolvimento do amor paternal em todas as classes
de animais, sem exceptuar sequer aos leões e tigres. E quanto às aves jovens e aos mamíferos,
que vemos constantemente em relações mútua!, em suas sociedades recebem já o máximo
desenvolvimento, a simpatia, a comunidade de sentimentos e não o amor de si mesmos.
Deixando de lado os atos realmente comovedores de afeiçoo e compaixão que se observaram
tanto entre os animais domésticos como entre os selvagens mantidos em cativeiro, dispomos de um
número suficiente de fatos plenamente comprovados que testemunham a manifestação do sentimento
de compaixão entre os animais selvagens em liberdade. Max Perty e L. Büchner reuniram não
poucos de tais fatos. O relato de Wood de como uma marta apareceu para levantar e levar-se a uma
colega magoada. goza de uma popularidade bienmerecida. À mesma categoria de fatos se
refere a conhecida observação do capitão Stanbury, durante sua viagem pela altiplanicie de Utah
nas Montanhas Rochosas, citada por Darwin. Stanbury observou a um pelicano cego que era
alimentado, e bem alimentado, por outros pelicanos, que lhe traziam pescado desde quarenta e cinco
verstas. H. Weddell, durante sua viagem por Bolívia e Peru, observou mais de uma vez que,
quando um rebanho de vicuñas é perseguido por caçadores, os machos fortes cobrem a

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retirada do rebanho, separando-se a propósito para proteger aos que se retiram. O mesmo se
observa constantemente em Suíça entre as cabras selvagens. Casos de compaixão dos animais para
seus camaradas feridos são constantemente citados pelos zoólogos que estudam a vida da natureza: e
só tem de assombrar-se um pela vanagloria do homem, que deseja indefectiblemente apartar-se do
mundo animal, quando se vê que semelhantes casos não são geralmente reconhecidos. Ademais, são
perfeitamente naturais.
A compaixão necessariamente se desenvolve na vida social. Mas a compaixão, a sua vez,
indica um progresso geral importante no campo das faculdades intelectuais e da sensibilidade. É o
primeiro passo para o desenvolvimento dos sentimentos morais superiores, e, a sua vez, volta-se
agente
poderoso do máximo desenvolvimento progressivo, da evolução Se as opiniões expostas nas
páginas precedentes são corretas, então surge, naturalmente, a questão: até onde concordam com a
teoria da luta pela existência, da maneira como foi desenvolvida por Darwin Wallace e seus
continuadores? E eu contestarei brevemente agora a esta importante questou. Antes de mais nada, n
enhum naturalista duvidará de que a idéia da luta pela existência, conduzida através de toda a naturez
a orgânica, constitui a maior generalização de nosso século. A vida é luta, e nesta luta sobrevivem os
mais aptos. Mas, a questão reside em isto: chega esta concorrência até os limites supostos por Darwi
n ou, ainda, por Wallace? e, desempenhou no desenvolvimento do reino animal o papel que se lhe atr
ibui? A idéia que Darwin levou através de todo seu livro sobre a origem das espécies é, sem dúvida,
a idéia da existência de uma verdadeira concorrência, de uma luta dentro de cada grupo animal pelo
alimento, a segurança e a possibilidade de deixar descendência. Com freqüência fala de regiões satur
adas de vida animal até os limites máximos, e de tal saturação deduz a inevitabilidade da concorrênci
a, da luta entre os habitantes. diz ele o seguinte:
“Podemos conjeturar (dimley see) por que a concorrência deve ser tão rigorosa entre as formas
emparentadas que enchem quase um mesmo lugar na natureza; mas, provavelmente em nenhum caso
poderíamos determinar com precisão por que uma espécie conseguiu a vitória sobre outras na grande
batalha da vida.
Quanto a Wallace, que cita em sua exposição do darwinismo os mesmos fatos, mas sob o
título ligeiramente modificado (“A luta pela existência entre os animais e as plantas estreitamente
emparentadas com freqüência é rigurosísima”), faz a observação seguinte, que dá aos fatos
acima citados um aspecto completamente diferente. Diz (as cursivas são minhas): “Em alguns
casos, sem dúvida, livra-se uma verdadeira guerra entre duas espécies, e a espécie mais forte mata à
mais débil; mas isto de nenhum modo é necessário e podem dar-se casos em que espécies mais
débeis fisicamente podem vencer, devido a seu maior poder de multiplicação rápida, à maior
resistência com respeito às condições climáticas hostis ou à maior astúcia que lhes permite evitar os
ataques de seus inimigos comuns.”
De tal maneira, em casos semelhantes, o que se atribui à concorrência, à luta, pode ocorrer
que de nenhum modo seja concorrência nem luta. De nenhum modo uma espécie desaparece porque
outra espécie a exterminou ou a fez morrer de consunción tomando-lhe os meios de subsistência,
senão porque não pôde adaptar-se bem a novas condições, enquanto a outra espécie consegui fazê-lo.
A expressão “luta pela existência” talvez se emprega aqui, uma vez mais, em seu sentido figurado, e
pelo visto não tem outro sentido. Quanto à concorrência real pelo alimento entre os indivíduos
de uma mesma espécie que Darwin ilustrou em outro lugar com um exemplo tomado da vida
do gado cornúpeta de América do Sul durante uma seca, o valor deste exemplo diminui
significativamente porque foi tomado da vida de animais domésticos. Em circunstâncias
semelhantes, os bisões emigram com o objeto de evitar a concorrência pelo alimento.
Por mais rigorosa do que seja a luta entre as plantas -e está plenamente demonstrada-,
podemos só repetir com respeito a ela a observação de Wallace: “Que as plantas vivem ali
onde podem”, enquanto os animais, em grau considerável, têm a possibilidade de eleger-se eles
mesmos o lugar de residência. E nós nos perguntamos de novo: em que medida existe
realmente a concorrência, a luta, dentro de cada espécie animal? Em que está baseada esta
suposição?
A mesma observação tenho que fazer com respeito ao argumento “indirecto” em favor
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da realidade de uma concorrência rigorosa e a luta pela existência dentro de cada espécie, que
se pode deduzir do “extermínio das variedades de transição”, mencionadas tão com freqüência
por Darwin. O que passa é o seguinte:
Como é sabido, durante muito tempo confundiu a todos os naturalistas, e ao mesmo Darwin a
dificuldade que ele via na ausência de uma grande corrente de formas intermédias entre espécies
estreitamente emparentadas; e sabido é que Darwin procurou a solução desta dificuldade no
extermínio suposto por ele de todas as formas intermédias.
No entanto, a leitura atenciosa dos diferentes capítulos nos que Darwin e Wallace tinham desta
matéria, facilmente levam à conclusão de que a palavra “extermínio” empregada por eles de nenhum
modo se refere ao extermínio real, e menos ainda ao extermínio por falta de alimento e, em general,
pela superpoblación.
A observação que fez Darwin a respeito do significado de sua expressão: “luta pela
existência”, evidentemente se aplica em igual medida também à palavra “extermínio”: a última de
jeito nenhum pode ser compreendida em seu sentido direto, senão unicamente no sentido
“metafórico” figurado.
Se partimos da suposição que uma superfície determinada está saturada de animais até os
limites máximos de sua capacidade, e que, devido a isto, entre todos seus habitantes se livra uma luta
aguda pelos meios de subsistência indispensáveis -e em cujo caso cada animal está obrigado a lutar
contra todos seus congéneres para obter o alimento cotidiano-, então a aparição de uma variedade
nova, e que teve sucesso, sem dúvida consistirá em muitos casos (ainda que não sempre) na aparição
de indivíduos tais que poderão apoderar-se de uma parte dos meios de subsistência maior que
a que lhes corresponde em justiça; então o resultado seria realmente que semelhantes indivíduos
condenariam à consunción tanto à forma paterna original que não brigue a nova modificação,
como a todas as formas intermédias que nem possuíssem a nova especialidade no mesmo grau que
eles. É muito possível que ao princípio Darwin compreendesse a aparição das novas variedades
precisamente em tal aspecto; pelo menos, o uso frequente da palavra “extermínio” produz tal
impressão. Mas tanto ele como Wallace conheciam demasiado bem a natureza para não ver que de
nenhum modo
esta é a única solução possível e necessária.
Se as condições físicas e biológicas de uma superfície determinada e também a extensão
ocupada por certa espécie, e o modo de vida de todos os membros desta espécie, permaneceram
sempre invariáveis, então a aparição repentina de uma variedade realmente poderia levar à
consunción e ao extermínio de todos os indivíduos que não possuíssem, na medida necessária, o novo
rasgo que caracteriza à nova variedade. Mas, precisamente, não vemos na natureza semelhante
combinação
de condições, semelhante invariabilidad. Cada espécie tende constantemente à expansão de
seu lugar de residência, e a emigração a novas residências é regra geral, tanto para as aves dei vôo
rápido como para o caracol de marcha lenta. Depois, em cada extensão determinada da superfície
terrestre, produzem-se constantemente mudanças físicas, e o rasgo característico das novas variedades
entre
os animais num imenso número de casos -quiçá na maioria- não é de nenhum modo a
aparição de novas adaptações para arrebatar o alimento da boca de suas congéneres -o alimento é só
uma das centenas de condições diversas da existência-, senão, como o mesmo Wallace demonstrou
num formoso parágrafo sobre a divergência das carateres” (Darwinism, página 107), o princípio da
nova
variedade pode ser a formação de novos costumes, a migração a novos lugares de residência
e a transição a novas formas de alimentos.
Em todos estes casos, não ocorrerá nenhum extermínio, até faltará ¡a luta pelo alimento
já que a nova adaptação servirá para suavizar a concorrência, se a última existisse realmente, e
no entanto, se produzirá, decorrido certo tempo, uma ausência de elos intermédias como resultado da
simples sobrevivência daqueles que estão melhor adaptados às novas condições.

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Se realizará isto também, sem dúvida, como se ocorresse o extermínio das formas originais
suposto pela hipótese Mal é necessário agregar que, se admitimos junto com Spencer, junto com todos
os lamarckianos e o mesmo Darwin, a influência modificadora do médio ambiente nas espécies
que vivem nele -e a ciência contemporânea se move mais e mais nesta direção- então terá
menos necessidade ainda da hipótese do extermínio das formas intermédias.
A importância das migrações dos animais para a aparição e o afiançamento das novas
variedades, e, por último, das novas espécies, que assinalou Moritz Wagner, foi bem reconhecida
posteriormente pelo mesmo Darwin. Em realidade, não é raro que parte dos animais de uma espécie
determinada sejam submetidos a novas condições de vida, e a vezes separados da parte restante de
sua espécie,
pelo qual aparece e se afiança uma nova raça ou variedade. Isto foi reconhecido já por Darwin
mas as últimas investigações sublinharam ainda mais a importância deste fator, e mostraram
também de que modo a amplitude do território ocupado por esta determinada espécie a esta
amplitude Darwin, com fundamentos plenos, atribuía grande importância para a aparição de novas
variedades pode estar unida ao isolamento de certa parte de uma espécie determinada, em virtude
das mudanças
geológicas locais ou a aparição de obstáculos locais.
Entrar aqui a julgar toda esta ampla questão seria impossível, mas bastarão algumas
observações para ilustrar a ação combinada de tais influências. Corro é sabido, não é raro que parte de
uma espécie determinada recorra a um novo gênero de alimento. Por exemplo, se se produz uma
escassez de pinhas nos bosques de alerces, os esquilos se transladam aos pinhais e esta mudança de
alimento, como assinalou Poliakof, produz mudanças fisiológicas determinados no organismo desses
esquilos. Se esta mudança de costumes não se prolonga, se ao ano seguinte há outra vez abundância
de pinhas nos sombrios bosques de alerces, então, evidentemente, não se forma nenhuma variedade
nova. Mas se parte da imensa extensão ocupada pelos esquilos começa a mudar de caráter
físico, digamos devido à suavização do clima, ou à desecación, e estas duas causas facilitassem o
aumento da superfície dos pinhais em desmedro dos bosques de alerces, e se algumas outras
condições contribuíssem a fazer que parte dos esquilos se mantivessem nos bordes da região, então
aparecerá
uma nova variedade, isto é, uma espécie nova de esquilos. Mas a aparição desta variedade
não irá acompanhada, decididamente, por nada que pudesse merecer o nome, de extermínio
entre esquilos. Cada ano sobreviverá uma proporção algo maior, em comparação com outras, de
esquilos
desta variedade nova e melhor adaptada, e os elos intermédios se extinguirão em decorrência
do tempo, de ano em ano, sem que seus competidores malthusianos as condenem de nenhum modo a
morte por fome.
Precisamente processos semelhantes se realizam ante nossos olhos, devidos às grandes
mudanças físicos que se produzem nas vastas extensões de Ásia Central em consequência da
desecación que evidentemente se vem produzindo ali desde o período glacial. Tomemos outro
exemplo. Foi demonstrado pelos geólogos que o atual cavalo selvagem (Equus Przewalski) é o
resultado do lento
processo de evolução que se realizou em decorrência das últimas partes do período terciário e
de todo o quaternário (o glacial e o posglacial), e durante o corso desta longa série de séculos, os
antecessores do cavalo atual não permaneceram em nenhuma superfície determinada do balão
terrestre. Pelo contrário, erraram pelo velho e o novo mundo, e com toda probabilidade, por último,
voltaram completamente transformados no curso de suas numerosas migrações, aos mesmos
pastos que deixaram em outros tempos. Disto resulta claro que, se não encontramos agora em
Ásia todos os elos intermédios entre o cavalo selvagem atual e seus ascendentes asiáticos
posterciarios, de nenhum modo significa que os elos intermédios fossem exterminados. Semelhante
extermínio jamais ocorreu. Nem sequer pode ter tão elevada mortandade entre as espécies ancestrais
do cavalo
atual: os indivíduos que pertenciam às variedades e espécies intermédias pereceram nas
condições mais comuns -com freqüência ainda no meio da abundância de alimento- e seus restos se
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acham dispersos agora no seio da terra por todo o balão terráqueo. Dito mais brevemente, se
reflexionamos sobre esta matéria e relemos atenciosamente o que o mesmo Darwin escreveu sobre
ela, veremos que se empregamos já a palavra “extermínio” em relação com as variedades transitórias,
há que a utilizar uma vez mais no sentido metafórico, figurado.
O mesmo é mister observar com respeito a expressões tais como “rivalidade” ou
“concorrência” (competition). Estas duas expressões foram empregadas também constantemente por
Darwin (veja-se por exemplo, o capítulo “Sobre a extinção”) mais bem como imagem ou como meio
de expressão, não lhe dando o significado de luta real pelos meios de subsistência Entre as duas
partes de uma mesma espécie. Em todo caso, a ausência das formas intermédias não constitui um
argumento em favor da luta recrudecida e da concorrência aguda pelos meios de subsistência -da
rivalidade, prolongando-se ininterruptamente dentro de cada espécie animal- é, segundo a expressão
do professor Geddes, o “argumento aritmético” tomado em empréstimo a Malthus.
Mas este argumento não prova nada semelhante. Com o mesmo direito poderíamos tomar
algumas aldeias do Sudeste de Rússia, cujos habitantes não sofreram pela carência de alimento, mas
que, ao mesmo tempo, nunca tiveram classe alguma de instalações sanitárias; e tendo observado que
nos últimos setenta ou oitenta anos a natalidade média atinge nelas ao 60 por 1.000, e, no entanto, a
população durante este tempo não aumentou -tenho em minhas mãos tais fatos concretos-
poderíamos quiçá chegar à conclusão de que um terço dos recém nascidos morre cada ano sem ter
chegado ao sexto mês de vida; a metade dos meninos morre no curso dos quatro anos seguintes, e de
cada centena de nascidos, só 17 atingem a idade de vinte anos.
De tal modo os recém vindos ao mundo se vão dele antes de atingir a idade em que
pudessem chegar a ser competidores. É evidente, no entanto , que se algo semelhante ocorre no meio
humano. isso é mais provável ainda entre os animais. E realmente, no mundo dos plumíferos se
produz a destruição de ovos em medida tão colossal que ao princípio do verão os ovos constituem o
alimento
principal de algumas espécies de animais. Não falo já das tormentas e inundações que
destroem por milhões os ninhos em América e em Ásia, e das mudanças bruscas de tempo pelos
quais
perecem em massa os indivíduos jovens dos mamíferos. Cada tormenta, cada inundação, cada
mudança brusca de temperatura, cada incursão das ratas aos ninhos das aves, destroem àqueles
competidores que parecem tão terríveis no papel. Quanto aos fatos da multiplicação extremamente
rápida dos cavalos e do gado cornúpeta de América e também dos porcos e dos coelhos de Nova
Zelândia, desde que os europeus os introduziram nesses países, e ainda dos animais selvagens
importados de Europa (onde sua quantidade diminui pela ação do homem e não pela dos
competidores) é evidente que mais bem contradizem a teoria da superpoblación. Se os cavalos e o
gado cornúpeto puderam multiplicar-se em América com tal velocidade, demonstra isto simplesmente
que, por numerosos que fossem os bisões e outros ruminantes no Novo Mundo naqueles tempos
sua população herbívora, no entanto, estava muito por embaixo da quantidade que tivesse
podido alimentar-se nas pradarias.
Se milhões de novos imigrantes acharam, não obstante, alimento suficiente sem obrigar a
sofrer fome à população anterior das pradarias, deveríamos chegar mais bem à conclusão de do que
os
europeus acharam em América uma quantidade não excessiva, senão insuficiente de
herbívoros,
apesar da quantidade incrivelmente enorme de bisões ou de pombas silvestres que foi
encontrada pelos primeiros exploradores de América do Norte.
Ademais, permito-me dizer do que existem bases sérias para pensar do que tal escassez de
população
animal constitui a situação natural das coisas sobre a superfície de todo o balão terrestre, com
poucas exceções, que são temporárias, a esta regra geral. Em realidade, a quantidade de animais
existentes numa extensão determinada da terra de nenhum modo se determina pela capacidade
máxima de abastecimento deste espaço, senão pelo que oferece cada ano nas condições menos
favoráveis.
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O importante não é saber quantos milhões de búfalos cabras, veados, etc., podem alimentar-se
num território determinado durante um verão exuberante e de chuvas moderadas, senão quantos
sobreviverão se se produz um desses verões secos em que toda a erva se queima, ou um verão úmido
em que territórios semelhantes à. Europa central se convertem em pântanos contínuos, como vi na,
meseta de Vitimsk - ou quando as pradarias e os bosques se incendeiam em milhares de
verstas quadradas, como vimos em Sibéria e em Canadá. Tenho aqui por que, devido a esta só cansa,
a concorrência, a luta pelo alimento, dificilmente pode ser condição normal da vida. Mas, aparte disto,
outras causas há que a sua vez rebaixam ainda mais este nível não tão alto de população
Se tomamos os cavalos (e também o gado cornúpeta) que passam todo o inverno pastando nas
estepes da Transbaikalia, encontramos, ao finalizar o inverno, a todos eles olha, enfraquecidos e
exaustos. Este esgotamento, por outra parte, não é resultado da carência de alimento, já que embaixo
da delgada capa de neve, por todos os lados, há pasto em abundância: sua causa reside o, a
dificuldade de extrair o pasto que está embaixo da neve, e esta dificuldade é a mesma para todos os
cavalos. Ademais, a princípios da primavera costuma ter geada, e se se prolonga esta alguns dias
sucessivos os cavalos são vítimas de uma exaustão ainda maior. Mas freqüentemente, a seguir
sobrevem as
nevascas, as tormentas de neve, e então os animais, já debilitados, costumam verse obrigados
a permanecer alguns dias completamente privados de alimento, e por isso caem quantidades muito
grandes. As perdas durante a primavera costumam ser tão elevadas, que se esta se distinguiu por uma
extrema crueza não podem ser consertadas nem ainda pelo novo aumento, tanto mais quanto que todos
os cavalos costumam estar esgotados e os potrillos nascem débeis. A quantidade de cavalos e de gado
cornúpeto sempre se mantém, de tal modo, consideravelmente inferior ao nível em que poderiam
manter-se se não existisse esta causa especial: a primavera fria e tormentosa.
Durante todo o ano há alimento em abundância: atingiria para uma quantidade de animais
cinco ou dez vezes maior da que existe In realidade; e no entanto , a população animal das
estepes cresce forma extremamente lenta, mas mal os buriatos, amoos do vontade e de
os rebanhos de cavalos começam a fazer ainda a mais insignificante provisão de heno nas
estepes, e lhes permitem o acesso durante a geada ou as neves profundas, imediatamente se
observará o aumento de seus rebanhos.
Nas mesmas condições se encontram quase todos os animais herbívoros que vivem
em liberdade, e muitos roedores de Ásia e América; por isso podemos afirmar com
segurança que sua número não se reduz por obra da rivalidade e da luta mútua; que em nenhuma
época têm
que, lutar por alimentos: e que se nunca se reproduzem até chegar ao grau de superpoblación
, a razão reside em o clima, e não na luta mútua pelo alimento.
A importância na natureza de os obstáculos naturais à reprodução excessiva: e em especial
sua relação com a hipótese da Concorrência aparentemente nunca foi tomada ainda em consideração
na medida devida. Estes obstáculos, ou, mais exatamente, alguns deles se citam de passagem, mas,
até agora, não se examinou em detalhe sua ação. No entanto, se se compara a ação real das causas
naturais sobre a vida de as espécies animais, com a ação possível da rivalidade dentro das espécies,
devemos reconhecer em seguida que a última não suporta nenhuma comparação com a anterior.
Assim, por exemplo Bates menciona a quantidade singelamente inimaginável de formigas
aladas que perecem quando enjambran. Os corpos mortos ou semimuertos da formiga de fogo
(Myrmica saevissima), arrastados ao rio durante uma tormenta, “apresentavam uma linha de
uma
polegada ou duas de alto e da mesma largura, e a linha se estendia sem interrupção na
extensão de algumas milhas, ao borde do água”. Miríadas de formigas costumam ser destruídas de
tal
modo, no meio de uma natureza que poderia alimentar mais mil vezes formigas das que
viviam
então neste lugar.
O Dr. Altum, florestal alemão que escreveu um livro muito instrutivo os animais daninhos a
nossos bosques, contribui também muitos fatos que demonstram a grande importância dos obstáculos
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naturais à multiplicação excessiva. Diz que uma sucessão de tormentas ou o tempo frio e neblinoso
durante a enjumbrazón da polilla de pinheiro (Bombyx Pini), ødestrói-a em quantidades
inverosímeis, e na primavera do ano 1871 todas estas polillas desapareceram inesperadamente,
provavelmente destruídas por uma sucessão de noites frias. Se poderiam citar exemplos semelhantes,
relativos aos insetos de diferentes partes de Europa. O Dr. Altum também menciona as aves que
devoram às e a enorme
quantidade de ovos deste inseto destruídos pelos zorros; mas agrega que os fungos parasitas
que a atacam periodicamente são inimigos da polilla consideravelmente mais terríveis do que qualquer
ave, já que destroem à polilla inesperadamente, numa extensão enorme.
Quanto às diferentes espécies de ratos (Mus sylvaticus, Arvicola orvalis, e Aeagretis) Altum,
expondo uma longa lista de seus inimigos, observa: “No entanto, os inimigos mais terríveis dos ratos
não são os outros animais, senão as mudanças bruscas de tempo que se produzem quase todos os
anos”. Se as geadas e o tempo temperado se alternam, destroem aos ratos em quantidades
inumeráveis; “uma só mudança brusco de tempo pode deixar, de muitos milhares de ratos, nada
mais que alguns indivíduos vivos”. Por outra parte, um inverno temperado, ou um inverno que avança
paulatinamente, dá-lhes a possibilidade de multiplicar-se em proporções ameaçantes, apesar
de quaisquer inimigos; assim foi nos anos 1876 e 1877. A rivalidade é, de tal modo, com
respeito aos ratos, um fator completamente insignificante em comparação com o tempo. Fatos do
mesmo gênero são citados pelo mesmo autor também com respeito aos esquilos.
Quanto às aves, todos sabemos bem como sofrem pelas mudanças bruscas de tempo As
nevascas a fins da primavera são tão ruinosas para as aves nos pântanos de Inglaterra como na
Sibéria e Ch. Dixon teve ocasião de ver às gelinotas reduzidas pelo frio de invernos
excepcionalmente crus, a tal extremo, que abandonavam lugares selvagens em grandes quantidades
“e conhecemos casos em que eram pegadas nas ruas de Sheffield”. O tempo úmido e prolongado
-agrega- é também quase desastroso para elas”.
Por outra parte, as doenças contagiosas que afetam de tempo em tempo à maioria
das espécies animais, destroem-nas em tal quantidade que com freqüência as perdas não
podem ser repostas durante muitos anos, nem ainda entre os animais que se multiplicam mais
rapidamente. Assim por exemplo, lá pelo ano 40, os susliki subitamente desapareceram dos arredores
de Sarepta, na Rússia suroriental, devido a certa epidemia, e durante muitos anos não foi possível
encontrar nestes lugares nem um susliki. Passaram muitos anos antes de que se multiplicassem como
anteriormente.
Se poderia agregar em quantidade feitos semelhantes, cada um dos quais diminui a
importância atribuída à concorrência e à luta dentro da espécies. Naturalmente, se poderia contestar
com as palavras de Darwin, de que no entanto, cada ser orgânico, “em qualquer período de sua
vida, em decorrência de qualquer estação do ano, em cada geração, ou de tempo em tempo, deve
lutar pela existência e sofrer uma grande destruição”, e de que só os mais aptos sobrevivam a tais
períodos de dura luta pela existência. Mas se a evolução do mundo animal estivesse baseada
exclusivamente, ou ainda preferencialmente na sobrevivência dos mais aptos em períodos de
calamidades, se
a seleção natural estivesse limitada em sua ação aos períodos de seca excepcional, ou
mudanças bruscas de temperatura ou inundações, então a regra geral no mundo animal séria a
regressão, e não o progresso. Aqueles que sobrevivem à fome, ou a uma epidemia severa de cólera,
varíola ou
difteria, que dizimam em tais medidas como as que se observam em países incivilizados, de
jeito nenhum são nem mais fortes, nem mais sãos nem mais inteligentes. Nenhum progresso poderia
basear-se sobre semelhantes sobrevivências, tanto mais quanto que todos os que sobreviveram
ordinariamente saem da experiência com a saúde quebrantada, como os cavalos de
Transbaikalia que mencionamos antes, ou as tripulações dos barcos árticos, ou as guarnições das
fronteiras obrigadas a viver durante alguns meses a média ração e que, ao levantar-se o lugar, saem
com a saúde destroçada e com uma mortalidade completamente anormal como conseqüência.
Tudo o que a seleção natural pode fazer nos períodos de calamidade se reduz à conservação
dos indivíduos dotados de uma maior resistência para suportar toda classe de privações. Tal é o papel
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da seleção natural entre os cavalos siberianos e o gado cornúpeto. Realmente se distinguem por sua
resistência; podem alimentar-se, em caso de necessidade, com abedul polar, podem defrontar ao frio
e à fome, mas, em mudança, o cavalo siberiano só pode levar a metade do ônus
que leva o cavalo europeu sem esforço; nenhuma vaca siberiana dá a metade da quantidade
de leite que dá a vaca Malha, e nenhum indígena dos países selvagens suporta a comparação
com os europeus. Esses indígenas podem resistir mais facilmente a fome e o frio, mas suas forças
físicas são consideravelmente inferiores às forças do europeu que se alimenta bem, e seu progresso
intelectual se produz com uma lentidão desesperante. “O mau não pode engendrar o bom”, como
escreveu
Chemishevsky num ensaio notável consagrado ao darwinismo.
Por fortuna, a concorrência não constitui regra geral nem para o mundo animal nem para a
humanidade. Limita-se, entre os animais, a períodos determinados, e a seleção natural encontra
melhor terreno para sua atividade. Melhores condições para a seleção progressiva são criadas
por meio da eliminação da concorrência, por meio da ajuda mútua e do apoio mútuo. Na
grande luta pela existência -pela maior plenitude e intensidade de vida possível com o mínimo de
desgaste desnecessário de energia- a seleção natural procura continuamente médios, precisamente
com o fim de evitar a concorrência quanto seja possível. As formigas se unem em ninhos e tribos;
fazem provisões, crían “vacas” para suas necessidades, e de tal modo evitam a concorrência; e a
seleção
natural escolhe de todas as formigas aquela espécies que melhor sabem evitar a concorrência
intestina, com suas conseqüências perniciosas inevitáveis. A maioria de nossas aves se
transladam lentamente ao Sul, à medida que avança o inverno, ou se reúnem em sociedades
inumeráveis e empreendem viagens longas, e de tal modo evitam a concorrência. Muitos
roedores se entregam ao sonho invernal quando chega a época da possível concorrência, outras raças
de roedores se provêem de alimento para o inverno e vivem em comum em grandes
populações a fim de obter a proteção necessária durante o trabalho. Os veados, quando os
líquenes se secam no interior do continente emigram em direção do mar. Os búfalos atravessam
continentes imensos em procura de alimento abundante. E as colônias de castores, quando se
reproduzem demasiado num rio, dividem-se em duas partes: os velhos descem o rio, e os jovens o
remontam, para evitar a concorrência.
E se, por último, os animais não podem entregar-se ao sonho invernal nem emigrar, nem fazer
provisões de alimentos, nem cultivar eles mesmos o alimento necessário como fazem as
formigas, então se portam como os desempregos (veja-se a formosa descrição de Wallace
em Darwinism; cap. V); a saber: recorrem a uma nova classe de alimento, e, de tal modo,
uma vez mais, evitam incompetências.
“Evitai a concorrência. Sempre é daninha para a espécie, e vocês tendes abundância de meios
para evitá-la”. Tal é a tendência da natureza não sempre realizável por ela, mas sempre inerente a ela.
Tal é a consigna que chega até nós desde os matorrais. bosques, rios e oceanos.
“Portanto: ¡Uni-vos! ¡Praticai a ajuda mútua! É o meio mais justo para garantir a segurança
máxima
tanto para cada um em particular como para todos em general; é a melhor garantia para
a existência e o progresso físico, intelectual e moral”.
Tenho aqui o que nos ensina a natureza; e esta voz sua a escutaram todos os animais que
atingiram a mais elevada posição em suas classes respectivas. A esta mesma ordem da natureza
obedeceu o homem -o mais primitivo- e só devido a isso atingiu a posição que ocupa agora. Os
capítulos seguintes, consagrados à ajuda mútua nas sociedades humanas, convencerão ao leitor da
verdade disto.

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CAPITULO III: A AJUDA MÚTUA ENTRE Os SELVAGENS

Consideramos rapidamente, nos dois capítulos precedentes, o enorme papel da ajuda


mútua e do apoio mútuo no desenvolvimento progressivo do mundo animal. Agora temos que
jogar uma mirada ao papel que os mesmos fenômenos desempenharam na evolução da humanidade.
Vimos cuán insignificante é o número de espécies animais que levam uma vida solitária, e,
pelo contrário, cuán inumeráveis a quantidade de espécies que vivem em sociedades, unindo-se com
fins de defesa mútua, ou bem para caçar e acumular depósitos de alimentos, para criar a
descendência ou, simplesmente, para o desfrute da vida em comum. Vimos, também, que ainda que a
luta que se livra entre as diferentes classes de animais, diferentes espécies, ainda entre os diferentes
grupos da mesma espécie, não é pouca, no entanto, falando em general, dentro do grupo e da espécie
reinam a paz e
o apoio mútuo; e aquelas espécies que possuem maior inteligência para unir-se e evitar a
concorrência e a luta, têm também melhores oportunidades para sobreviver e atingir o máximo
desenvolvimento progressivo.
Tais espécies florescem enquanto as espécies que desconhecem a sociabilidade vão à
decadência.
Evidente é que o homem séria a contradição de tudo o que sabemos da natureza se fosse a
exceção a esta regra geral: se um ser tão indefeso como o homem na aurora de sua existência tivesse
achado proteção e um caminho de progresso, não na ajuda mútua, como nos outros animais, senão na
luta irrazonada por vantagens pessoais, sem prestar atendimento aos interesses de todas as espécies.
Para
toda inteligência identificada com a idéia da unidade da natureza, tal suposição parecerá
completamente inadmissível. E no entanto, apesar de seu inverosimilitud e sua falta de lógica,
encontrou sempre partidários.
Sempre teve escritores que olharam à humanidade como pessimistas. Conheciam ao homem,
mais ou menos superficialmente, segundo sua própria experiência pessoal limitada: na história se
limitavam ao conhecimento do que nos contavam os cronistas que sempre prestaram
atendimento principalmente às guerras, às crueldades à opressão; e estes pessimistas chegaram à
conclusão de que a humanidade não constitui outra coisa que uma sociedade de seres debilmente
unidos e sempre dispostos a brigar-se entre si, e que só a intervenção de alguma autoridade impede o
estalido de uma contenda geral.
Hobbes, filósofo inglês do século XVII, o primeiro depois de Bacon que se decidiu a explicar
que as concepções morais do homem não tinham nascido das sugestões religiosas, colocou-se,
como é sabido, precisamente em tal ponto de vista. Os homens primitivos, segundo sua opinião,
viviam numa eterna guerra intestina, até que apareceram entre eles os legisladores, sábios e poderosos
que assentaram o princípio da convivência pacífica. No século XVIII, naturalmente, tinha pensadores
que trataram de demonstrar que em nenhum momento de sua existência -nem sequer no período
mais primitivo- viveu a humanidade em estado de guerra ininterrupta, que o homem
era um ser social ainda em “estado natural” e que mais bem a falta de conhecimentos do que
as más inclinações naturais levaram à humanidade a todos os horrores que caracterizaram sua vida
histórica passada. Mas, os numerosos continuadores de Hobbes prosseguiram, no entanto
, sustentando que o chamado “estado natural” não era outra coisa que uma luta contínua entre
os homens agrupados casualmente pelas inclinações de sua natureza de besta.
Naturalmente, desde a época de Hobbes a ciência fez progressos e nós pisamos agora um
terreno mais seguro que o que pisava ele, ou o que pisavam na época de Rousseau. Mas a filosofia de
Hobbes ainda agora tem bastante adoradores, e nos últimos tempos se formou toda uma escola de
escritores que, armados, não tanto das idéias de Darwin como de sua terminologia, aproveitaram-se
desta última para pregar em favor das opiniões de Hobbes sobre o homem primitivo; e conseguiram
até dar a esta prédica um verdadeiro ar de aparência científica. Huxley, como é sabido, encabeçava
esta escola, e em sua conferência, lida no ano 1888, apresentou aos homens primitivos como algo a
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modo de tigres ou leões, desprovidos, de toda classe de concepções sociais, que não se detinham
ante nada na luta pela existência, e cuja vida inteira decorria numa -“pendencia contínua”.
“Além dos limites familiares orgânicos e temporários, a guerra hobbesiana de cada um contra
todos era -diz- o estado normal de sua existência”.
Foi observado mais de uma vez do que o erro principal de Hobbes, e em general dos
filósofos
do século XVIII, consistia em que se representavam o gênero humano primitivo em forma de
pequenas famílias nômades, a semelhança das famílias -limitadas e temporais” dos animais
carnívoros algo maiores. No entanto, estabeleceu-se agora positivamente que semelhante
hipótese é por completo incorreta. Naturalmente, não temos fatos diretos que testemunhem o modo de
vida
dos primeiros seres antropoides. Nem sequer a época da primeira aparição de tais seres está
ainda estabelecida com precisão, já que os geólogos contemporâneos estão inclinados a ver suas
impressões já nos depósitos plicénicos e até nos miocénicos do período terciário. Mas temos a nossa
disposição o método indirecto, que nos dá a possibilidade de alumiar até certo grau ainda esse período
longínquo. Efetivamente, durante os últimos quarenta anos se fizeram investigações muito cuidadosas
das instituições humanas das raças mais inferiores, e estas investigações revelaram, nas instituições
atuais dos povos primitivos, as impressões de instituições mais antigas, faz muito
desaparecidas, mas que, no entanto, deixaram signos indubitáveis de sua existência. Pouco a pouco,
uma ciência inteira, a
etnología, consagrada ao desenvolvimento das instituições humanas, foi criada pelos trabalhos
de Bachofen, Mac Lennan, Morgan, Edward B. Tylor, Maine, Pós, Kovalevsky e muitos outros. E
esta
ciência estabeleceu agora, fora de toda dúvida, que a humanidade não começou sua vida
em forma de pequenas famílias solitárias. A família não só não foi a forma primitiva de
organização, senão que, pelo contrário, é um produto muito tardio da evolução da humanidade. Por
mais longe do que nos remontemos na profundidade da história mais remota do homem, encontramos
por todos os lados que os homens viviam já em sociedades, em grupos, semelhantes aos rebanhos
dos mamíferos
superiores. Foi necessário um desenvolvimento muito lento e prolongado para levar estas
sociedades até a organização do grupo (ou clã), que a sua vez deveu sofrer outro processo de
desenvolvimento também muito prolongado, antes de que pudessem aparecer os primeiros germes da
família,
polígama ou monógama.
Sociedades, bandas, clãs, tribos -e não a família- foram de tal modo a forma primitiva de
organização da humanidade e seus antecessores mais antigos. A tal conclusão chegou a etnología,
depois de investigações cuidadosas, minuciosas. minuciosas. Em soma, esta conclusão poderiam tê-
la predito os zoólogos, já que nenhum dos mamíferos superiores, com exceção de bastante poucos
carnívoros e algumas espécies de macacos que indubitavelmente se extinguem (orangotangos e
gorilas), vivem em pequenas famílias, errando solitárias pelos bosques.
Todos os outros vivem em sociedades e Darwin compreendeu também que os macacos que
vivem isolados nunca poderiam ter-se desenvolvido em seres antropoides, e estava inclinado a
considerar ao homem como descendente de alguma espécie de macaco, comparativamente débil, mas
indefectiblemente social, como o chimpanzé, e não de uma espécie mais forte, mas insociable,
como o gorila. A zoologia e a paleontologia (ciência do homem mais antigo) chegam, de tal modo, à
mesma conclusão: a forma mais antiga da vida social foi o grupo, o clã e não a família. As primeiras
sociedades humanas simplesmente foram um desenvolvimento maior daquelas sociedades
que constituem a essência mesma da vida dos animais superiores.
Se passamos agora aos dados positivos, veremos que as impressões mais antigas do homem,
que datam do período glacial ou posglacial mais remoto, apresentam provas indubitáveis de que o
homem vivia já então em sociedades Muito raramente costuma encontrar-se um instrumento de
pedra

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isolado, ainda na idade de pedra mais antiga; pelo contrário, onde queira que se encontrou um
ou dois instrumentos de pedra, cedo se encontraram ali outros, quase sempre em quantidades muito
grandes. Naqueles tempos em que os homens viviam ainda em cavernas ou nas fendas das rochas,
como em Hastings, ou somente se refugiavam sob as rochas salientes, junto com mamíferos desde
então
desaparecidos, e mal sabiam fabricar machados de pedra da forma mais tosca, já conheciam as
vantagens da vida em sociedade. Em França nos vales dos afluentes do Dordogne, toda a superfície
das rochas está coberta, de tanto em tanto, de cavernas que serviam de refúgio ao homem
paleolítico, isto é, ao homem da idade de pedra antiga. As vezes as moradias das cavernas estão
dispostas em andares e, sem dúvida, recordam mais os ninhos de uma colônia de andorinhas do que
a toca de animais de presa. Quanto aos instrumentos de sílice achados nestas cavernas, segundo a
expressão de Lubbock, “sem exagero pode dizer-se que são inumeráveis”. O mesmo é verdade com
respeito a todas as outras estações paleolíticas. A julgar pelas explorações de Lartet, os habitantes da
região de Aurignac, no sul de França, organizavam festines tribais nos entierros de seus mortos. De
tal modo, os homem viviam em sociedades, e nelas apareceram os germes do rito religioso tribal, já
naquela época muito longínqua, na aurora da aparição dos primeiros antropoides.
O mesmo se confirma, com maior abundância ainda de provas com respeito ao período
neolítico, mais recente, da idade de pedra. As impressões do homem se encontram aqui em enormes
quantidades, de maneira que por elas se pôde reconstituir em grau considerável toda sua maneira de
viver Quando a capa de gelo (que em nosso hemisfério devia estender-se das regiões
polares até o centro de França, Alemanha e Rússia, e cobria o Canadá e também uma parte
considerável do território ocupado agora pelos Estados Unidos), começou a derreter-se, as
superfícies livradas do gelo se cobriram primeiro de ciénagas e pântanos, e depois de
inumeráveis
lagos. Naquela época os lagos, evidentemente, enchiam as depressões e as dilatações dos vales
antes de que as águas cavassem os leitos permanentes, que na época seguinte se converteram em
nossos rios. E onde quer nos dirijamos agora, a Europa, Ásia ou América, encontramos que as orlas
dos inumeráveis lagos deste período -que com justiça deberíase chamar período lacustre-, estão
cobertas de impressões do homem neolítico. Estas impressões são tão numerosas que só
podemos assombrar-nos da densidade da população naquela época Nas sacadas que agora marcam as
orlas dos antigos lagos, as “estações” do homem neolítico se seguem de perto, e em cada uma delas
se encontram instrumentos de pedra em tais quantidades que não fica nem a menor dúvida de do que
durante um tempo muito longo estes lugares foram habitados por tribos de homens bastante
numerosas’ Ateliês inteiros de instrumentos de sílice que, a sua vez, atestam a quantidade de
trabalhadores que se reuniam num lugar, foram descobertos pelos arqueólogos.
Achamos os rastos de um período mais avançado, caracterizado já pelo uso de produtos de
olaria, nos chamados “refugos culinários” de Dinamarca. Como é sabido, estes montões de conchas,
de 5 a 10 pés de espessura, de 100 a 200 pés de largura e 1.000 e mais pés de longitude estão tão
estendidos em alguns lugares do litoral marítimo de Dinamarca que durante muito tempo foram
considerados como formações naturais. E, no entanto, compõem-se “exclusivamente dos materiais
que foram usados de um modo ou outro pelo homem”, e estão de tal modo repletos de
produtos do trabalho humano, que Lubbock, durante uma estadia de só dois dias em Milgaard, achou
191
peças de instrumentos de pedra e quatro fragmentos de produtos de olaria. As medidas
mesmas e a extensão destes montões de restos culinários provam que, durante muitas e muitas
gerações, nas orlas de Dinamarca se assentaram centenas de pequenas tribos ou clãs que sem
nenhuma dúvida viviam tão pacificamente entre si como vivem agora os habitantes de Terra do Fogo,
quem também
acumulam agora semelhantes montões de conchas e toda classe de refugos.
Quanto às construções lacuestres de Suiça, que representam um grau muito avançado no
caminho da civilização, constituem ainda melhores provas de que seus habitantes viviam em
sociedades e trabalhavam em comum.

52
Sabido é que, já na idade de pedra, as orlas dos lagos suíços estavam semeadas de séries de
aldeias, compostas de várias choças, construídas sobre uma plataforma sustentada por numerosos
pilotes fincados no fundo do lago. Não menos de vinte e quatro aldeias, a maioria das quais
pertenciam à idade de pedra, foram descobertas nos últimos anos nas orlas do lago de Genebra, trinta
e dois no lago Costanza, e quarenta e seis no lago de Neufehatel , etc., a cada uma como depoimento
da imensa quantidade de trabalho realizado em comum, não pela família, senão pela tribo inteira.
Alguns pesquisadores até supõem que a vida destes habitantes dos lagos estava em grau
notável livre de choques bélicos; e esta hipótese é muito provável se se toma em consideração a vida
das tribos primitivas, que ainda agora vivem em aldeias semelhantes, construídas envelope pilotes a
orlas do mar.
Desprende-se de tal modo, ainda do breve esboço precedente, que ao final de conta, nossos
conhecimentos do homem primitivo de nenhum modo são tão pobres, e em todo caso refutam mais
do que confirmam as hipóteses de Hobbes e de seus continuadores contemporâneos. Ademais,
podem ser completadas em medida considerável se se recorre à observação direta das tribos
primitivas que no presente se acham ainda no mesmo nível de civilização em que estavam os
habitantes de Europa nos tempos pré-históricos.
Já foi plenamente provado por Edit. B. Tylor e J. Lubbock que os povos primitivos que
existem agora de nenhum modo representam -como afirmaram alguns sábios- tribos que degeneraram
e que em outros tempos conheceram uma civilização mais elevada, que depois perderam.
Por outra parte, às provas alegadas contra a teoria da degeneração se pode agregar ainda o
seguinte: com exceção de poucas tribos que se mantêm nas regiões montanhosas pouco acessíveis, os
chamados “selvagens” ocupam uma zona que rodeia a nações mais ou menos civilizadas,
preferencialmente os extremos de nossos continentes, que em sua maior parte conservaram até agora
o caráter da época posglacial antiga ou que faz pouco ainda o tinha.
A estes pertencem os esquimós e seus congéneres em Groenlândia, América Artica e Sibéria
Setentrional, e no hemisfério Sur, os indígenas australianos, papúes, os habitantes de Terra de Fogo e,
em parte, os bosquímanos; e nos limites da extensão ocupada por povos mais ou menos
civilizados, semelhantes tribos primitivas se encontram só no Himalaya, nas terras altas do
Sudeste de Ásia e na meseta brasileira. Não se deve esquecer que o período glacial não terminou
inesperadamente
em toda a superfície do balão terrestre; prolonga-se até agora em Groenlândia. Devido a isto
na época em que as regiões litorais do oceano Indico, do mar Mediterrâneo, do golfo de
México gozavam já de um clima mais temperado e neles se desenvolvia uma civilização mais
elevada, imensos territórios de Europa Central, Sibéria e América do Norte, e também da Patagônia,
Sul do Africa, Sudeste de Ásia e Austrália, permaneciam ainda nas condições do período posglacial
antigo, que as fizeram inhabitables para as nações civilizadas da zona tórrida e temperada. Nessa
época, as zonas citadas constituíam algo bem como os atuais e terríveis “urman” da Sibéria do
Noroeste, e sua população, inacessível à civilização e não tocada por ela, conservou o caráter do
homem posglacial antigo.
Somente mais tarde, quando a desecación fez estes territórios mais aptos para a agricultura,
começaram a povoar-se de imigrantes mais civilizados; e então, parte dos habitantes anteriores se
fundiram pouco a pouco com os novos colonos, enquanto outra parte se retirava mais e mais longe em
direção às zonas subglaciales e se assentava nos lugares onde os encontramos agora. Os territórios
habitados por eles no presente conservaram até agora, ou conservavam até uma época não muito
longínqua, em seu aspecto físico, um caráter quase glacial; e as artes e os instrumentos de
seus habitantes até agora não saíram ainda do período neolítico, isto é, a idade de pedra posterior. E
apesar
das diferenças de raça e da extensão que separa estas tribos entre si, seu modo de vida e suas
instituições sociais são assombrosamente parecidos.
Por isto podemos considerar a estes “selvagens” como resto da população do posglacial
antigo.

53
O primeiro que nos assombra, não bem começamos a estudar aos povos primitivos, é a
complexidade da organização das relações maritais em que vivem. Na maioria deles, a família, no
sentido como a
compreendemos nós, existe somente em estado embrionário. Mas ao mesmo tempo, os
“selvagens” de nenhum modo constituem “uma multidão de homens e mulheres pouco unidos entre
si, que se
reúnem desordenadamente sob a influência de caprichos do momento”. Todos eles, pelo
contrário, submetem-se a uma organização determinada, que Luis Morgan descreveu em seus rasgos
típicos e chamou organização “tribalo de clã”.
Expondo brevemente esta matéria, muito ampla, podemos dizer que atualmente não existem
mais dúvidas sobre o fato de do que a humanidade, no princípio de sua existência, passou pela etapa
das relações conjugais que pode chamar-se “casal tribal ou comunal”; isto é, os homens ou as
mulheres, em tribos inteiras, viviam entre si como os maridos com suas esposas, prestando muito
pouco
atendimento ao parentesco sanguíneo. Mas é indubitável também que algumas restrições a
estas
relações entre os sexos foram estabelecidas pelo costume já num período muito antigo. As
relações conjugais foram cedo proibidas entre os filhos de uma mesma mãe e a irmã dela, suas netas e
tias. Mas tarde tais relações foram proibidas entre os filhos e filhas de uma mesma mãe, e seguiram
cedo
outras restrições.
Pouco a pouco se desenvolveu a idéia de clã (gens) que abarcava a todos os descendentes
reais ou supostos de uma raiz comum (mais bem a todos os unidos num grupo de clã pelo suposto
arentesco). E quando o clã se multiplicou pela subdivisão em alguns clãs, cada um dos quais se
dividia, a sua vez, em classes (habitualmente em quatro classes), o casal era permitido só entre
classes determinadas, estritamente definidas. Pode-se observar um estado semelhante ainda agora
entre os
indígenas de Austrália, seus primeiros germes apareceram na organização de clã. A mulher
feita prisioneira durante a guerra com qualquer outro clã, num período mais tardio, o que a tinha
tomado prisioneira a guardava para si, sob a observação, ademais, de determinados deveres para o
clã. Podia ser localizada por ele numa choupana separada depois de ter pago ela certo gênero de
tributo a cada
membro do clã; então ela podia fundar dentro do clã uma família separada, cuja aparição
evidentemente, abriu uma nova fase da civilização Mas em nenhum caso a esposa que assentava a
base da família especialmente patriarcal podia ser tomada de seu próprio clã. Podia provir somente de
um clã estranho.
Se consideramos que esta organização complexa se desenvolveu entre homens que ocupavam
os degraus mais baixos de desenvolvimento que conhecemos, e que se manteve em sociedades que
não conheciam mais autoridade do que a autoridade da opinião pública, compreenderemos em
seguida
cuán profundamente arraigados deviam estar os instintos sociais na natureza humana até nos
degraus mais baixos de seu desenvolvimento. O selvagem, que podia viver em tal organização,
submetendo-se por própria vontade às restrições que constantemente chocavam com seus desejos
pessoais, naturalmente não se parecia a um animal desprovido de todo princípio ético e cujas paixões
não conheciam freio.
Mas este fato se faz ainda mais assombroso se tomamos em consideração a antigüidade
inconmensurablemente longínqua da organização de clã Atualmente é sabido que os semitas
primitivos, os gregos de Homero, os romanos pré-históricos, os germanos de Tácito, os antigos celtas
e eslavos, passaram todos pelo período de organização de clã dos australianos os índios peles
vermelhas, esquimós e outros habitantes do “cinto de selvagens”.
De tal modo, devemos admitir das duas uma: ou bem o desenvolvimento dos costumes
conjugais, por algumas razões, encaminhou-se numa mesma direção em todas as raças humanas; ou
bem os rudimentos das restrições de clã se desenvolveram entre alguns antepassados comuns que
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foram o tronco genealógico dos semitas, arianos, polinesios, etc., antes de que estes antepassados se
dividissem em raças separadas, e estas restrições se conservaram até o presente entre raças que muito
tem se separaram da raiz comum. Ambas possibilidades, em igual grau, assinalam, no entanto,
a assombrosa tenacidade desta instituição -tenacidade que não pôde destruir durante muitas dezenas
de milênios nenhum atentado que contra ela perpetrasse o indivíduo-. Mas a mesma força da
organização do clã demonstra até onde é falsa a opinião em virtude da qual se representa à
humanidade
primitiva em forma de uma multidão desordenada de indivíduos que obedecem só a suas
próprias paixões e que se serve cada um de sua própria força pessoal e sua astúcia para impor-se a
todos
os outros.
O individualismo desenfreado é manifestação de tempos mais modernos, mas de jeito nenhum
era próprio do homem primitivo.
Passando agora aos selvagens existentes no presente, podemos começar com os bosquímanos,
que ocupam um degrau muito baixo de desenvolvimento tão sob que nem sequer têm moradias e
dormem em grutas cavadas na terra ou, simplesmente, sob a coberta de ligeiros painéis de ervas e
ramos que os protegem do vento. É sabido que quando os europeus começaram a colonizar seus
territórios e
destruir enormes rebanhos selvagens de veados que pastavam até então nas planícies, os
bosquímanos começaram a roubar gado cornúpeta aos colonos, e estes emigrantes iniciaram então
uma guerra desesperada contra aqueles; começaram a exterminá-los com uma bestialidad da que
prefiro não falar aqui.
Quinhentos bosquímanos foram exterminados de tal modo em 1774; nos anos 1801 - 1809, a
união de granjeiros destruiu três mil, etc. EXTERMINAVAM-NOS como a ratas, deixando-
lhes
carne envenenada, a estes homens levados à fome, ou os caçavam a tiros como bestas,
emboscando-se por trás do cadáver de um animal posto como isca; matavam-nos onde os
encontravam.
De tal modo, nosso conhecimento dos bosquímanos, recebido, na maioria dos casos dos
mesmos que os exterminavam, não pode destacar-se por uma especial simpatia. No entanto, sabemos
que durante a aparição dos europeus os bosquímanos viviam em pequenos clãs que as vezes se
reuniam em federações; que caçavam em comum e se repartiam a presa, sem brigas nem disputas;
que nunca abandonavam aos feridos e demonstravam um sólido afeto para seus camaradas.
Lichtenstein refere
um episódio sumamente comovedor de um bosquímano que esteve a ponto de afogar-se no
rio e foi salvado por seus camaradas. Se tiraram de em cima suas peles de animais para cobrí-lo
enquanto eles tremiam de frio; secaram-no, esfregaram-no ante o fogo e lhe untaron o corpo com
gordura morna, até que por fim lhe voltaram à vida. E quando os bosquímanos encontraram, na
pessoa de Johann vão der Walt, um homem que os tratava bem, expressaram-lhe seu reconhecimento
com manifestações do afeto mais comovedor. Burchell e Moffat os descrevem como de bom coração,
desinteressados, fiéis a suas promessas e agradecidos qualidades todas elas que puderam desenvolver-
se só sendo constantemente praticadas no seio da tribo Quanto a seu amor aos meninos, bastará
recordar que quando um europeu queria ter a uma mulher bosquímana como escrava, arrebatava-lhe o
filho; a mãe sempre se apresentava por si mesma e se fazia escrava para compartilhar a sorte de seu
menino.
A mesma sociabilidade se encontra entre os hotentotes, que ultrapassam um pouco aos
bosquímanos no desenvolvimento. Lubbock fala deles como dos “animais mais sujos”, e realmente
são muito sujos. Toda sua vestimenta consiste numa pele de animal pendurada ao pescoço, que levam
até que cai a pedaços; e suas choças consistem em algumas varetas unidas pelas pontas e cobertas
por esteras: no interior das choças não há móvel algum. Apesar de que crían bois e ovelhas, e,
segundo parece,
conheciam o uso do ferro antes de encontrar-se com s europeus, no entanto, estão até agora
num dos mais baixos degraus do desenvolvimento humano. Não obstante isso, os europeus que
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conheciam de perto suas vidas, mencionavam com grandes elogios sua sociabilidade e sua
presteza em ajudar-se mutuamente. Se se dá algo a um hotentote, em seguida divide o
recebido entre todos os presentes, cuja costume, como é sabido, assombrou também a Darwin nos
habitantes
da Terra de Fogo. O hotentote não pode comer só, e por mais faminto que esteja, chama aos
que passam e compartilha com eles seu alimento. E quando Kolben, por esta causa, expressou seu
assombro, contestaram-lhe: “Tal é o costume dos hotentotes”.
Mas este costume não é próprio somente dos hotentotes: é um costume quase universal,
observada pelos viajantes em todos os “selvagens”.
Kolben, que conhecia bem aos hotentotes e que não passava em silêncio seus defeitos, não
pode deixar de elogiar seu moral tribal.
“A palavra dada é sagrada para eles” -escreve-. “Ignoram por completo a corrupção e
a deslealdade dos europeus”. “Vivem muito pacificamente e raramente guerream com seus
vizinhos”... Um dos maiores prazeres para os hotentotes é a mudança de presentes e
serviços>, ... “Por sua honestidade, pela celeridade e exatidão no exercício da justiça por sua
castidade, os hotentotes ultrapassam a todos, ou quase todos os outros povos.
Tachart, Barrow e Moodie confirmam plenamente as palavras de Kolben. Só é necessário
notar que quando Kolben escreveu dos hotentotes que “em suas relações mútuas são o povo mais
amistoso, generoso e benévolo, que jamais tenha existido na terra” (I, 332), deu a definição que
repetem continuamente, desde então, os viajantes, em suas descrições dos mais diferentes selvagens.
Quando os europeus incultos chocaram pela primeira vez com as raças primitivas, habitualmente
apresentavam suas vidas de modo caricaturesco; mas bastou que um homem inteligente vivesse entre
selvagens um tempo mais prolongado, para que os descrevesse como o povo “mais manso” ou -mais
nobre- do mundo. Justamente com essas mesmas palavras, os viajantes mais dignos de fé
caracterizaram aos ostiakos samoyedos, esquimós, dayacos, aleutas, papúes, etc. Semelhante
declaração tive ocasião de ler sobre os tunguses, os chukchis, os índios sioux e algumas outras tribos
selvagens. A repetição mesma de semelhantes elogios diz mais do que tomos inteiros de
investigações especiais.
Os indígenas de Austrália ocupam, por seu desenvolvimento, um lugar não mais alto do que
seus
irmãos surafricanos. Suas choças têm o mesmo caráter, e muito com freqüência os homens se
conformam até com simples painéis ou biombos de ramos secos para proteger-se dos ventos
frios. Em seu alimento não se destacam por seu discernimento; em caso de necessidade
devoram carroña em completo estado de putrefacción, e quando sobreve a fome recorrem
então até ao canibalismo.
Quando os indígenas australianos foram descobertos por vez primeira pelos europeus, viu-se
que não tinham nenhum outro instrumento que os fatos, na forma mais grosseira, de pedra ou osso.
Algumas tribos não tinham sequer piraguas e desconheciam por completo o escambo comercial. E no
entanto
, depois de um estudo cuidadoso de seus costumes e hábitos, viu-se que têm a mesma
organização elaborada de clã da que se falou mais aporta.
O território em que vivem está dividido habitualmente entre diferentes clãs, mas a região na
qual cada clã realiza a caça ou a pesca permanece sendo de domínio comum, e os produtos da caça e
a pesca vão a todo o clã. Também pertencem ao clã os instrumentos de caça e de pesca. A comida se
realiza em comum. Como muitos outros selvagens, os indígenas australianos se atem a determinadas
regras
com respeito à época em que se permite recolher diversas espécies de gomeros e ervas.
Quanto a seu moral em general, o melhor é citar aqui as seguintes respostas às perguntas da
Sociedade Antropológica de Paris, dadas por Lumholtz, um missionário que viveu em North
Queesland. “Conhecem o sentimento de amizade; está fortemente desenvolvido neles. Os
débeis
gozam da ajuda comum; cuidam muito aos enfermos Nunca os abandonam ao capricho da
sorte e não os matam. Estas tribos são antropófagas, mas raramente comem aos membros de sua
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própria tribo (se não me equivoco, somente quando matam por razões religiosas); comem só aos
estranhos. Os pais amam a seus filhos jogam com eles e os mimam. Pratica-se o infanticidio só com o
consentimento comum. Tratam aos anciãos muito bem e nunca os matam. Não têm religião nem
ídolos, e somente existe o temor à morte. O casal é polígamo. As disputas surgidas dentro da tribo se
resolvem por duelos com espadas de madeira e escudos de madeira. Não existe a escravatura; não
têm agricultura alguma; não possuem produtos de olaria; não têm vestidos, exceptuando um avental
que as vezes usam as mulheres. O clã se compõe de duzentas pessoas divididas em quatro classes de
homens e quatro classes de mulheres; permite-se o casal somente entre as classes habituais, mas
nunca
dentro do mesmo clã”.
Com respeito aos papúes, parentes próximos dos australianos, temos o depoimento de G
. L. Bink, que viveu em Nova Guiné, principalmente em Geelwink Bay, desde 1871 até 1883.
Trazemos a essência de suas respostas às mesmas perguntas.
“Os papúes são sociáveis e de um humor muito alegre. Riem-se muito. Mais bem tímidos
que valentes. A amizade é bastante forte entre membros dos diferentes clãs e ainda mais forte
dentro do mesmo clã. O papú, com freqüência paga as dívidas de seu amigo, a condição de que este
último pague esta dívida, sem interesses, a seus filhos. Cuidam aos enfermos e anciões; nunca
abandonam aos anciãos, nem os matam, com exceção dos escravos que têm estado enfermos muito
tempo. As vezes devoram aos prisioneiros de guerra. Mimam e amam aos meninos. Matam aos
prisioneiros de guerra anciões e débeis, e vendem aos restantes como escravos. Não têm religião, nem
deuses, nem ídolos, nem classe alguma de autoridade; o membro mais ancião da família é o juiz. Em
caso
de adultério (isto é, violação de seus costumes matrimoniais) o culpado paga uma multa,
parte da qual vai a favor da “negoria” (comunidade). A terra é domínio comum, mas os frutos da terra
pertencem àquele que os cultivou. Os papúes têm vasilhas de argila e conhecem o escambo
comercial, e segundo um costume elaborado, o comerciante lhes dá mercadoria e eles voltam a suas
casas e trazem os produtos indígenas que precisa o comerciante; se não podem obter os produtos
necessários, então devolvem ao comerciante sua mercadoria européia. Os papúes “caçam cabeças”
-isto é, praticam a vingança de sangue-. Ademais, “as vezes -diz Finsch-, o assunto se submete à
consideração do Rajah de Namototte , quem o resolve impondo uma multa”.
Quando se trata bem aos papúes, então são muito bondosos. Mikluho-Maclay desembarcou,
como é sabido, na costa orienta] de Nova Guiné, em companhia de um só marinheiro, viveu ali dois
anos inteiros entre tribos consideradas antropófagas e se separou delas com pesar; prometeu voltar e
cumpriu sua palavra, e passou de novo um ano, e durante todo esse tempo não teve nenhum choque
com os indígenas.
Verdade é que manteve a regra de não lhes dizer nunca, sob nenhum pretexto, algo que não
fora verdadeiro, nem fazer promessas que não pudesse cumprir. Estas pobres criaturas, que não
sabiam sequer fazer fogo e que por isto conservavam cuidadosamente o fogo em suas choças, vivem
em condições de um comunismo primitivo, sem ter chefe algum, e em seus povoados quase nunca
se produzem disputas das que valha a pena falar. Trabalham em comum, só o necessário para obter o
alimento de cada dia; crían a seus filhos em comum; e pelas tardes se ataviam o mais coquetamente
do que podem e se entregam às danças. Como todos os selvagens, agradam apaixonadamente das
danças, que constituem um gênero de mistérios tribais. Cada aldeia tem sua “barla” ou “barlai” -casa
“longa” ou “grande”- para os solteiros, nas que se realizam reuniões sociais e se julgam os
acontecimentos públicos, um rasgo mais do que é comum a todos os habitantes das ilhas do oceano
Pacífico, e também aos esquimós, índios peles vermelhas, etc. Grupos inteiros de aldeias mantêm
relações amistosas, e se visitam mutuamente coincidindo toda a comunidade.
Por desgraça, entre as aldeias, com freqüência surge inimizade, não por “o excesso de
densidade
da população” ou “da concorrência agudizada” e outros inventos semelhantes de nosso século
mercantilista, senão principalmente devido à crendice ou superstição. Se adoece algum, reúnem-se
seus amigos e parentes e do modo mais cuidadoso discutem o problema de quem pode ser

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o culpado da doença. Então, consideram a todos os possíveis inimigos, cada um confessa sua
mínima disputa e finalmente se acha a causa verdadeira da doença. MANDOU-A algum inimigo da
aldeia vizinha, e por isto resolvem fazer alguma incursão a essa aldeia. Devido a isso, as rinhas são
correntes, ainda entre as aldeias do litoral, sem falar já dos antropófagos, que vivem nas montanhas,
aos que se considera como verdadeiros bruxos e inimigos, apesar de que um conhecimento mais
estreito demonstra do que não se distinguem em nada de seu vizinho que vive nas costas marítimas.
Muitas páginas assombrosas se poderiam escrever sobre a harmonia que reina nas aldeias dos
habitantes polinesios das ilhas do Oceano Pacífico. Mas eles ocupam já um degrau mais elevado de
civilização, e por isto tomaremos outros exemplos da vida dos habitantes do longínquo norte.
Agregarei somente, antes de abandonar o hemisfério sul; que até os habitantes de Terra do Fogo, que
gozam de tão má fama, começam a ser alumiados com luz mais favorável à medida que os
conhecemos melhor.
Alguns missionários franceses, que vivem entre eles, “não podem queixar-se de nenhum ato
hostil”. Vivem em clãs de cento vinte a cento cinquenta almas, e também praticam o comunismo
primitivo como os papúes. Repartem-se tudo entre eles, e tratam bem aos anciãos. A paz
completa rainha entre estas tribos. Nos esquimós e seus mais próximos congéneres, os thlinkets,
koloshes e aleutas, achamos uma semelhança mais aproximada ao que era o homem durante o período
glacial. Os instrumentos que eles empregam mal se diferenciam dos instrumentos do paleolítico, e
algumas destas tribos até agora não conhecem a arte da pesca: simplesmente matam aos peixes
com o arpón. Conhecem o uso do ferro, mas o obtêm somente dos europeus ou do que
encontram nos esqueletos dos barcos depois dos naufrágios. Sua organização social se distingue por
sua primitivismo completo, apesar de que já saíram do estádio do “casal comunal”, ainda com suas
restrições de “classe . Vivem já em famílias, mas os laços familiares ainda são débeis, já que
de tanto em tanto se produz neles uma mudança de esposas e esposos. No entanto, as
famílias permanecem reunidas em clãs, e não pode ser de outro modo. Como tivessem podido
suportar a dura luta pela existência se não reunissem suas forças do modo mais estreito? Assim
se portam eles, E os laços de clã são mais estreitos ali onde a luta pela vida é mais dura, a saber, no
nordeste de Groenlândia Vivem habitualmente numa “casa longa. na que se alojam várias famílias,
separadas entre si por pequenos tabiques de peles rasgadas, mas com um corredor comum para todos.
As vezes a casa tem a forma de uma cruz, e em tal caso, em seu centro colocam um lar
comum. A expedição alemã que passou um inverno cerca de uma dessas “casas longas” se
pôde convencer de que durante todo o inverno ártico não perturbou a paz nem uma briga, e que não
se
produziu discussão alguma pelo uso destes “espaços estreitos”. Não se admitem as
advertências, e nem sequer as palavras inamistosas de outro modo que não seja sob a forma legal de
uma canção burlesca (nigthsong), que cantam as mulheres em coro. De tal maneira, a convivência
estreita e a estreita dependência mútua são suficientes para manter, de século em século, o respeito
profundo aos interesses da comunidade que é característico da vida dos esquimós. Ainda nas comunas
mais vastas dos esquimós “a opinião pública é um verdadeiro tribunal e o castigo habitual
consiste em envergonhar ao culpado ante todos”.
A vida dos esquimós está baseada no comunismo. Tudo o que obtêm por meio da caça ou
pesca pertence a todo o clã. Mas, em algumas tribos, especialmente no Ocidente, sob a influência dos
dinamarqueses, começa a desenvolver-se a propriedade privada. No entanto , empregam um meio
bastante original para diminuir os inconvenientes que surgem do acumulamiento pessoal da riqueza,
que cedo poderia perturbar a unidade tribal. Quando o esquimó começa a enriquecer-se
excessivamente, convoca a todos os membros de seu clã a um banquete, e quando os hóspedes se
saciam, distribui toda sua riqueza. No rio Yukon, em Alaska, Dall viu que uma família aleutiana
repartiu de tal modo dez espingardas, dez vestidos de peles completos, duzentos fios de contas,
numerosos cobertores, dez peles de lobo, duzentas peles de castor e quinhentas de armiño.
Depois, os donos se tiraram seus vestidos de festa e os repartiram, vestindo-se suas velhas
peles, dirigiram aos membros de seu clã um breve discurso dizendo que apesar de que agora se
tinham voltado mais pobres do que cada um de seus hóspedes, no entanto tinham ganhado sua
amizade.
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Tais distribuições de riqueza se converteram aparentemente em costume arraigado entre os
esquimós, e se pratica numa época determinada todos os anos, depois de uma exibição preliminar de
tudo o que foi obtido durante o ano. Constitui, aparentemente, um costume. O costume de enterrar
com o morto, ou de destruir sobre sua tumba, todos seus bens pessoais -que encontramos em todas
as raças primitivas-, aparentemente deve ter a mesma origem. Em realidade, enquanto tudo o
que pertencia pessoalmente ao morto se queima ou se rompe sobre sua tumba, as coisas que lhe
pertenceram conjuntamente com toda sua tribo; como, por exemplo, as piraguas, redes da comuna,
etc., deixam-se intactas. Está sujeita à destruição só a propriedade pessoal. Numa época posterior, este
costume se converte num rito religioso: se lhe dá interpretação mística, e a destruição é prescrita pela
religião quando a opinião pública, só, mostra-se já carente de forças para impor a todos a observação
obrigatória do costume Finalmente, a destruição real se substitui por um rito simbólico, que consiste
em queimar sobre a tumba simples modelos de papel, ou representações, dos bens do morto (assim
se faz na Chinesa); ou se levam à tumba os bens do morto e trazem de volta à casa
ao finalizar a cerimônia funerária; nesta forma, conservou-se o costume até agora, como é
sabido, entre os europeus com respeito aos cavalos dos chefes militares, as espadas, cruzes e outros
signos de distinção oficial.
O alto nível da moral tribal dos esquimós se menciona bastante com freqüência na literatura
geral. No entanto, as observações seguintes dos costumes dos aleutas -congéneres próximos
dos esquimós- não estão desprovidas de interesse, tanto mais quanto que podem servir de boa
ilustração da moral dos selvagens em general. Pertencem à pluma de um homem extraordinariamente
distinto, o missionário russo Venlaminof, que as escreveu depois de uma permanência de dez
anos entre os aleutas e de ter relações estreitas com eles.
RESUMO-AS, conservando no possível as expressões próprias do autor. “A resistência
-escreveu- em seu rasgo característico, e, em verdade, é colossal. Não só se banham todas as manhãs
no mar coberto de gelo e depois ficam nus na praia, respirando o ar gelado, senão que sua resistência,
até num trabalho pesado e com alimento insuficiente, ultrapassa tudo o que se pode imaginar. Se
sobreve uma escassez de alimento o aleuta se ocupa, antes de mais nada, de seus filhos; dá-lhes tudo
o que tem, e ele mesmo jejua. Não se inclinam ao roubo, como foi observado já pelos primeiros
imigrantes russos. Não é que não tenham roubado nunca; tudo aleuta reconhece que alguma vez
roubou algo, mas se trata sempre de alguma fruslería, e tudo isto tem caráter completamente infantil.
O afeto dos pais pelos filhos é muito comovedor, apesar de que nunca o expressam com carícias ou
palavras. O
aleuta dificilmente se decide a fazer alguma promessa, mas uma vez feita, mantém-a custe o
que custe. Um aleuta presenteou a Venlaminof um face de pescado seco, mas, não apresuramiento
dá partida foi esquecido na orla, e ou aleuta se ou levou de volta a sua casa. Nou se apresentou a
oportunidade de enviá -o a Venlaminof atei janeiro, e enquanto, em novembro e dezembro, entre
estes aleutas, teve uma grande escassez de víveres Mas vos famintos nou tocaram ou
pescado já presenteado, e em janeiro foi enviado a seu destino.
Seu código moral é variado e severo. Assim por exemplo , considera-se vergonhoso: temer a
morte inevitável; pedir piedade ao inimigo; morrer sem ter matado nenhum inimigo; ser surpreendido
em roubo; soçobrar a canoa não porto; temer sair ao mar com tempo tempestuoso; desfalecer antes
que vos outros camaradas se sobreve uma escassez de alimentos durante uma viagem longa:
manifestar cobiça durante a partilha dá presa -em cujo caso, para envergonhar ao camarada
cobiçoso, vos restantes lhe cedem sua parte.
Estima-se vergonhoso também: divulgar um segredo público a sua esposa; sendo dois na caça,
não oferecer a melhor parte da presa ao camarada; jactarse de suas façanhas, e especialmente das
imaginadas; xingar-se com malícia; também mendigar, acariciar a sua esposa em presença dos outros
e dançar com ela; comerciar pessoalmente; toda venda deve ser feita por meio de uma terceira
pessoa, quem determina o preço. Estima-se vergonhoso para a mulher: não saber costurar e, em
general, cumprir torpemente qualquer trabalho feminino; não saber dançar; acariciar a seu esposo e a
seus meninos, ou até falar com o esposo em presença de estranhos” Tal é a moral dos aleutas, e uma
confirmação maior dos fatos poderia ser tomada facilmente de seus contos e lendas. Só agregarei

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que quando Venlaminof escreveu suas Memórias (o ano 1840), entre os aleutas, que
constituíam uma população de sessenta mil homens, em sessenta anos teve somente um homicídio, e
durante quarenta anos, entre 1.800 aleutas não se produziu nenhum delito criminoso. Isto, por outra
parte, não parecerá estranho se se recorda que todo gênero de querelas e expressões grosseiras são
absolutamente desconhecidas na vida dos aleutas. Nem sequer seus filhos brigam, e jamais se xingam
mutuamente de palavra. A expressão mais forte em seus lábios são frases como:
“Tua mãe não sabe costurar”, ou “teu pai é caolho”.
Muitos rasgos da vida dos selvagens continuam sendo, no entanto, um enigma para os
europeus. Em confirmação do elevado desenvolvimento da solidariedade tribal entre os selvagens e
suas boas relações mútuas, se poderia citar os depoimentos mais dignos de fé na quantidade que se
queira. E, no entanto, não é menos verdadeiro do que estes mesmos selvagens praticam o infanticidio,
e que em alguns casos matam a seus anciãos, e que todos obedecem cegamente ao costume da
vingança de sangue. Devemos, por isto, tratar de explicar a existência simultânea dos fatos que para
a mente européia parecem, a primeira vista, completamente incompatíveis.
Acabamos de mencionar como o aleuta jejuará dias inteiros, e até semanas, entregando tudo
comestível a seu menino; como a mãe bosquímana se faz escrava para não se separar de seu filho, e
se poderiam encher páginas inteiras com a descrição das relações realmente ternas existentes entre os
selvagens e seus filhos. Nos relatos de todos os viajantes se encontram continuamente fatos
semelhantes. Num ledes sobre o terno, amor da mãe; em outro, o relato de um pai que corre
loucamente pelo bosque, levando sobre seus ombros a um menino mordido por uma serpente;
ou algum missionário narra o desespero dos pais ante a perda de um menino, ao que já tinham
salvado de ser levado ao sacrifício imediatamente depois de ter nascido; ou bem, inteirais-vos de
que
as mães “selvagens” amamentam habitualmente a seus meninos até o quarto ano de idade, e
que nas ilhas da Novas Hébridas, em caso da morte de um menino especialmente querido, sua mãe
ou tia se suicidam para cuidar a seu amado no outro mundo. E assim sem fim.
Fatos semelhantes se citam em quantidade; e por isso, quando vemos que os mesmos pais
amantes praticam o infanticidio, devemos reconhecer necessariamente que tal costume (quaisquer que
sejam suas ulteriores transformações) surgiu sob a pressão direta da necessidade como resultado do
sentimento de dever para a tribo, e para ter a possibilidade de criar aos meninos já crescidos. Falando
em general os selvagens de nenhum modo “se reproduzem sem medida”, como expressam
alguns escritores ingleses. Pelo contrário, tomam todo gênero de medidas para diminuir a
natalidade. Justamente com este objeto existe entre eles uma série completa das mais diversas
restrições, que aos europeus indubitavelmente até lhes pareceriam molestas em excesso e que são, no
entanto, severamente observadas pelos selvagens.
Mas, com tudo, os povos primitivos não podem criar a todos os meninos que nascem, e então
recorrem ao infanticidio.
Por outra parte, foi observado mais de uma vez que conquanto conseguem aumentar seus
recursos
correntes de existência, em seguida deixam de recorrer a esta medida, que, em general, os
pais cumprem muito a contragosto, e na primeira possibilidade recorrem a todo gênero de
compromissos com tal de conservar a vida de suas recém nascidos. Como foi dito já por meu amigo
Elíseo
Reclus em seu formoso livro sobre os selvagens, por desgraça insuficientemente conhecido,
eles inventam, por esta razão, os dias de nascimentos faustos e nefastos, para salvar sequer a vida dos
meninos nascidos nos dias faustos; tratam de tal modo de pospor a execução algumas horas e dizem
depois que se o menino já viveu um dia, está destinado a viver toda a vida. Ouvem os gritos dos
meninos pequenos como se viessem do bosque, e asseguram que se se ouve tal grito anuncia desgraça
para toda a tribo; e já que não têm nodrizas especiais nem casa de expósitos que os ajudem a
desfazer-se dos meninos cada um se estremece ante a idéia de cumprir a cruel sentença, e por isso
preferem expor ao menino no bosque, antes que lhe tirar a vida por um meio violento. O
infanticidio é sustentado, deste modo, pela insuficiência de conhecimentos, e não por crueldade; e
em lugar de encher aos selvagens com sermões, os missionários fariam muito melhor se seguissem o
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exemplo de Venlaminof, quem todos os anos, até uma idade muito avançada, cruzava o mar de Ojots
numa miserável goleta para visitar aos tunguses e kamchadales, ou viajava, levado por cachorros,
entre os chukchis, abastecendo-os de pão e utensílios para a caça.
De tal modo conseguiu realmente extirpar o infanticidio.
O mesmo é verdadeiro, também, com respeito ao fenômeno que observadores superficiais
chamaram parricídio. Acabamos de ver que o costume de matar aos velhos não está de
nenhum modo tão estendida como a referiram alguns escritores. Em todos estes relatos há muitos
exageros; mas é indubitável que tal costume se encontra temporariamente entre quase todos os
selvagens, e tais casos se explicam pelas mesmas razões que o abandono dos meninos. Quando o
velho selvagem
começa a sentir que se converte num ônus para sua tribo; quando todas as manhãs vê que
tiram aos meninos a parte de alimento que lhe toca -e os pequenos que não se distinguem pelo
estoicismo de seus pais, choram quando têm fome-; quando todos os dias os jovens têm que o
carregar sobre seus ombros para levá-lo pelo litoral pedregoso ou pela selva virgem, já que os
selvagens não têm
cadeirões com rodas para enfermos nem indigentes para levar tais cadeirões então o velho
começa a repetir o que até agora repetem os camponeses velhos de Rússia: Chuyoi viék zaidaiu: pora
na
pokoi (literalmente: vivo a vida alheia, é hora de ir-me a descansar). E vão descansar. Obra da
mesma forma que faz um soldado, em tais casos. Quando a salvação de um destacamento depende de
seu máximo avanço, e o soldado não pode avançar mais, e sabe que deve morrer se fica rezagado,
suplica a seu melhor amigo que lhe preste o último serviço antes de do que o destacamento avanço.
E o amigo descarrega, com mão trémula, sua espingarda no corpo moribundo.
Assim fazem também os selvagens. O selvagem velho pede a morte; ele mesmo faz questão de
o
cumprimento deste último dever seu para sua tribo.
Mas, falando em general é tão repulsivo para os selvagens verter sangue fora das batalhas, que
ainda nestes casos nenhum deles se encarrega do homicídio, e por isso recorrem, a toda classe de
meios indirectos que os europeus não compreenderam e que interpretaram de um modo
completamente
falso. Na maioria dos casos deixam no bosque ao velho que se decidiu a morrer, dando-lhe
uma porção de comida, maior do que a devida, da provisão comum.
¡Quantas vezes as partidas exploradoras das expedições polares tiveram de fazer exatamente
do mesmo modo quando não tinham forças para levar a um camarada enfermo! “Aqui tens provisões.
Vive ainda alguns dias. Talvez chegue de alguma parte uma ajuda inesperada”.
Os sábios de Europa ocidental, encontrando-se ante tais fatos, mostram-se decididamente
incapazes de compreendê-los; não podem reconciliarlos com os fatos que testemunham o elevado
desenvolvimento da moral tribal, e por isso preferem arrojar uma sombra de dúvida sobre as
observações absolutamente fidedignas, referentes à última, em lugar de procurar explicação
para a existência paralela de um duplo gênero de fatos: a elevada moral tribal e, junto a ela, o
homicídio dos pais muito anciões e os recém nascidos. Mas se os mesmos europeus, a sua vez,
referissem a um selvagem que pessoas sumamente amáveis, afetos a seus meninos, e tão
impresionables que choram quando vêem no palco de um teatro uma desgraça imaginária, vivem em
Europa ao lado de aquizamíes onde os meninos morrem simplesmente por insuficiência de
alimentos, então o selvagem também não os compreenderia.
Recordação cuán vagamente me empenhei em explicar a meus amigos tunguses nossa
civilização construída sobre o individualismo; não me compreendem e
recorriam às conjecturas mais fantásticas. O fato é que o selvagem educado nas idéias de
solidariedade tribal, praticada em todas as ocasiões, más e boas, é tão exatamente incapaz de
compreender ao europeu “moral” que não tem nenhuma idéia de tal solidariedade, como o
europeu médio é incapaz de compreender ao selvagem.
Ademais, se nosso sábio tivesse que viver entre uma tribo semihambrienta de selvagens, cujo
alimento total disponível não atingisse para alimentar alguns dias a um homem, então compreenderia
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quiçá que é o que guia aos selvagens em seus atos. Do mesmo modo, se um selvagem vivesse entre
nós e recebesse nossa “educação”, quiçá compreendesse a insensibilidade européia para nossos
semelhantes e essas comissões reais que se ocupam da questão da prevenção das diversas formas
legais de homicídio que se praticam em Europa. “Em casa de pedra, os corações se voltam
de pedra”, dizem os camponeses russos; mas o “selvagem” teria que ter vivido primeiro numa casa
de pedra. Observações semelhantes poderiam fazer-se também com respeito à antropofagia.
Se se
tomam em conta todos os fatos que foram elucidados recentemente, durante a consideração
deste problema, na Sociedade Antropológica de Paris, e também muitas observações casuais
disseminadas na literatura sobre os “selvagens”, estaremos obrigados a reconhecer que a antropofagia
foi provocada pela necessidade apremiante; e que só sob a influência dos preconceitos e da religião
se desenvolveu até atingir as proporções horríveis que atingiu nas ilhas de Fiji e em México,
sem nenhuma necessidade, quando se converteu num rito religioso.
É sabido que até a época presente muitas tribos de selvagens costumam verse obrigadas, de
tempo em tempo, a alimentar-se com carroña quase em completo estado de putrefacción, e em
casos de carência completa de alimentos, algumas tiveram que violar sepulturas e alimentar-se com
cadáveres humanos, ainda em épocas de epidemia. Tais fatos são completamente fidedignos. Mas se
nos transladamos mentalmente às condições que teve que suportar o homem durante o período glacial,
num clima úmido e frio, não tendo a sua disposição quase nenhum alimento vegetal; se temos em
conta as terríveis devastações produzidas ainda hoje pelo escorbuto entre os povos semisalvajes
famintos e recordamos que a carne e o sangue fresco eram os únicos meios conhecidos por
eles para fortificar-se, deveremos admitir que o homem, que foi primeiramente um animal granívoro,
fez-se carnívoro, com toda probabilidade, durante o período glacial, em que desde o norte avançava
lentamente uma capa enorme de gelo, e com seu hálito frio, esgotava toda a vegetação.
Naturalmente, naqueles tempos provavelmente tinha abundância de toda classe de bestas;
mas é sabido que nas regiões árticas as bestas com freqüência empreendem grandes migrações, e as
vezes desaparecem por completo durante alguns anos de um território determinado.
Com o avanço. da capa glacial as bestas, evidentemente, afastaram-se para o sul, como o
fazem agora os corzos, que fogem, em caso de grandes nevascas, da orla norte do Amur à
meridional. Em tais casos, o homem se via privado dos últimos meios de subsistência.
Sabemos, ademais, que até os europeus, durante duras experiências semelhantes, recorreram à
antropofagia; não é de estranhar que recorressem a ela também os selvagens. Até na época presente
costumam verse obrigados, temporariamente. a devorar os cadáveres de seus mortos, e em épocas
anteriores, em tais casos, viam-se obrigados a devorar também aos moribundos Os anciãos morriam
então convencidos de que com sua morte prestavam o último serviço a sua tribo. Tenho aqui por que
algumas tribos atribuem ao canibalismo origem divina, representando-o como algo sugerido
por ordem de um enviado do céu.
Posteriormente, a antropofagia perdeu o caráter de necessidade e se converteu numa
“sobrevivência” supersticiosa. Necessário era devorar aos inimigos para herdar sua coragem; depois,
numa época posterior, com esse propósito só se devorava o coração do inimigo ou seus olhos. Ao
mesmo tempo, em outras tribos, nas que se tinha desenvolvido um clero numeroso e elaborado uma
mitologia complexa, inventaram-se deuses malignos, sedentos de sangue humano, e os sacerdotes
exigiram sacrifícios humanos para apaziguar aos deuses. Nesta fase religiosa de sua existência, o
canibalismo atingiu sua forma mais repulsiva.
México é bem conhecido neste sentido como exemplo, e nas Fiji, onde o rei podia devorar a
qualquer de seus súbditos, encontramos também uma casta poderosa de sacerdotes, uma complexa
teologia e um desenvolvimento complexo do poder ilimitado dos reis. De tal modo o canibalismo,
que
nasceu pela força da necessidade, converteu-se num período posterior em instituição religiosa,
e nesta forma existiu durante muito tempo, depois de ter desaparecido, fazia muito, entre tribos que
indubitavelmente o praticavam em épocas anteriores, mas que não atingiram a forma religiosa de
desenvolvimento. O mesmo pode dizer-se com respeito ao infanticidio e ao abandono dos pais muito

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anciões aos caprichos da sorte. Em alguns casos estes fenômenos se mantiveram também como
sobrevivência de tempos antigos, em forma de tradição conservada religiosamente.
Finalmente, citarei aqui ainda um costume extraordinariamente importante e generalizada que
deu motivo, na literatura, às conclusões mais errôneas. Refiro-me ao costume da vingança de sangue.
Todos os selvagens estão convictos de que o sangue vertido deve ser vingada com sangue. Se alguém
foi ferido e seu sangue vertido, então o sangue do que produziu a ferida também deve ser vertida. Não
se admite exceção alguma a esta regra; estende-se até aos animais; se um caçador verteu sangue
-matando a um urso ou a um esquilo-, seu sangue deve ser vertido a sua volta da caça. Tal é a
concepção que até agora se conserva na Europa ocidental com respeito ao homicídio.
Enquanto o ofensor e o ofendido pertencem à mesma tribo, o assunto se resolve muito
simplesmente: a tribo e as pessoas afetadas resolvem por si mesmas o assunto. Mas quando o
delinquente pertence a outra tribo, e esta tribo, por qualquer razão, se rehúsa a dar satisfação, então a
tribo ofendida se encarrega da vingança. Os homens primitivos concebem os atos de cada um em
particular como
assuntos de toda sua tribo, que receberam a aprovação dela e, por isso, estimam a toda a tribo
responsável dos atos de cada um de seus membros. Devido a isto, a vingança pode cair sobre
qualquer membro da tribo a que pertence o ofensor. Mas com freqüência sucede que a vingança
ultrapassou à ofensa. Com intenção de produzir só uma ferida, os vingadores puderam matar ao
ofensor ou ferí-lo mais gravemente do que tinham suposto; então se produz uma nova ofensa, da outra
parte, que exige uma nova vingança tribal; o assunto se prolonga deste modo, sem fim. E, por
isso, os primitivos legisladores estabeleciam muito cuidadosamente os limites exatos do desquite: olho
por olho, dente por dente e sangue por sangue. Mas, ¡não mais! É notável, no entanto, que na
maioria dos povos primitivos, semelhantes casos de vingança de sangue são incomparavelmente
mais raros
do que se poderia esperar, apesar de que neles atingem um desenvolvimento completamente
anormal, especialmente entre os montañeses, arrojados à montanha pelos imigrantes estrangeiros,
como, por exemplo, nos montañeses do Cáucaso e especialmente entre os dayacos em Borneo
. Entre os dayacos -segundo as palavras de alguns viajantes contemporâneos- se teria chegado
a tal ponto que um homem jovem não pode casar-se nem ser declarado maior de idade antes de ter
trazido sequer uma cabeça de inimigo. Assim, pelo menos, referiu com todos os detalhes verdadeiro
Carl Bock. Parece, no entanto, que os relatórios publicados ao respecto são exagerados em extremo.
Em todo caso, o que os ingleses chamam “caçar cabeças” se apresenta sob uma luz completamente
diferente quando nos inteiramos que o suposto “caçador” de nenhum modo “caça”, e nem sequer se
guia por um sentimento pessoal de vingança.
Obra de acordo com o que estima uma obrigação moral para sua tribo, e por isso faz o mesmo
que o juiz europeu, que obedecendo evidentemente ao mesmo princípio falso: “sangue por sangue”,
entrega ao condenado por ele em mãos do verdugo.
Ambos -tanto o dayaco como nosso juiz experimentariam até arrependimento de consciência
se por um sentimento de compaixão perdoassem ao homicida. Tenho aqui por que os dayacos,
fora desta esfera dos homicídios cometidos sob a influência de suas concepções da justiça, são,
segundo o depoimento ecuánime de todos os que os conhecem bem, um povo extraordinariamente
simpático. O
mesmo Carl Bock, que fez tão terrível pintura da “caça de cabeças”, escreve:
“Quanto à moral dos dayacos, devo atribuir-lhes o elevado lugar que merecem no
concerto dos outros povos... O pillaje e o roubo são completamente desconhecidos entre eles.
Distinguem-se também por uma grande veracidade... Se não sempre cheguei a obter deles ‘toda a
verdade’, no entanto, nunca lhes ouvi dizer nada salvo a verdade. Por desgraça, não se pode
dizer o mesmo dos malayos”... (págs. 209 e 210).
O depoimento de Bock é corroborado totalmente por Ida Pfeiffer: “compreendi plenamente
-escreveu esta- que continuaria com prazer viajando entre eles. Geralmente os achava honestos, bons e
modestos... em grau bastante maior do que qualquer dos outros povos do que eu conhecia”. Stoltze,
falando dos dayacos, usa quase as mesmas expressões.

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Habitualmente os dayacos não têm mais do que uma só esposa, e a tratam bem. São muito
sociáveis, e todas as manhãs o clã inteiro vai em partidas numerosas a pescar, a caçar ou a realizar
seus labores de horta Suas aldeias se compõem de grandes choças, em cada uma das quais se alojam
ao redor de uma dúzia de famílias, e as vezes uma centena de homens, e todos eles vivem entre si
muito pacificamente. Com grande respeito tratam a suas esposas E amam muito a seus filhos;
quando
algum enferma, as mulheres o cuidam por turno. Em general, são muito moderados na
comida
e na bebida. Tales são os dayacos em sua vida cotidiana real.
Citar mais exemplos da vida dos selvagens significaria somente repetir, uma e outra vez, o que
se disse já. Onde quer que nos dirijamos, achamos por todos os lados os mesmos costumes sociais, o
mesmo espírito comunal. E quando tratamos de penetrar nas trevas dos séculos passados, vemos neles
a mesma vida tribal, e as mesmas uniões de homens ainda que muito primitivas, para o apoio mútuo.
Por isto Darwin teve perfeita razão quando viu nas qualidades sociais dos homens a principal
força ativa de seu desenvolvimento máximo, e os expositores de Darwin de nenhum modo têm razão
quando afirmam o contrário.
“A debilidade comparativa do homem e a pouca velocidade de seus movimentos - escreveu-, e
também a insuficiência de suas armas naturais, etcétera, foram mais do que compensadas em
primeiro lugar por suas faculdades mentais (as que , como observou Darwin em outro lugar,
desenvolveram-se principalmente, ou quase exclusivamente, em interesse da sociedade); e
em segundo lugar, por suas qualidades sociais, em virtude das quais prestou ajuda. “
No século XVIII estava em voga idealizar “aos selvagens” e a “vida em estado natural”.
Agora os homens de ciência caíram no extremo oposto, em especial desde que alguns deles,
pretendendo demonstrar a origem animal do homem, mas não conhecendo a sociabilidade dos animais
começaram a acusar aos selvagens de todas as inclinações “bestiais” possíveis e imagináveis.
É evidente, no entanto, que tal exagero é mais científica do que a idealização de Rousseau. O homem
primitivo não pode ser considerado como ideal de virtude nem como ideal de “selvageria”. Mas tem
uma qualidade elaborada e fortificada pelas mesmas condições de sua dura luta pela existência:
identifica sua própria existência com a vida de sua tribo; e, sem esta qualidade, a humanidade nunca
tivesse atingido o nível em que se encontra agora.
Os homens primitivos, como dissemos antes, a tal ponto identificam sua vida com a vida de
sua tribo, que cada um de seus atos, por mais insignificante do que seja em se mesmo, considera-se
como um assunto de toda a tribo.
Toda sua conduta está regulada por uma série completa de regras verbais de decoro, que são
fruto de sua experiência geral, com respeito ao que deve considerar-se bom ou mau; isto é, benéfico
ou pernicioso para sua própria tribo. Naturalmente, os raciocínios em que estão baseadas estas regras
de decência costumam ser, as vezes , absurdos em extremo. Muitos deles têm seu princípio nas
crendices.
Em general, faça o que faça um selvagem só vê as conseqüências mais imediatas de seus
fatos; não pode prever suas conseqüências indirectas e mais longínquas; mas em isto só exageram o
erro que Bentham reprochava aos legisladores civilizados. Podemos encontrar absurdo o
direito comum dos selvagens, mas obedecem a suas prescrições, por mais do que lhes sejam
embarazosas. OBEDECEM-NAS mais cegamente ainda do do que o homem civilizado obedece as
prescrições de suas leis. O direito comum do selvagem é sua religião; é o caráter mesmo de
sua vida.
A idéia do clã está sempre presente em sua mente; e por isso as autolimitações e o sacrifício
em interesse do clã é o fenômeno mais cotidiano. Se o selvagem infringiu algumas das regras
menores estabelecidas por sua tribo, as mulheres o perseguem com suas burlas. Se a infração tem
caráter mais sério, atormenta-o então, dia e noite, o medo de ter atraído a desgraça sobre toda sua
tribo, até que a tribo o absolve de sua culpa.
Se o selvagem acidentalmente feriu a alguém de seu próprio clã, e de tal modo cometeu o
maior dos delitos, converte-se em homem completamente azarado: foge ao bosque e está disposto a
terminar consigo se a tribo não o absolve da culpa, provocando-lhe alguma dor física ou vertendo
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certa quantidade de seu próprio sangue. Dentro da tribo tudo é distribuído em comum; cada bocado
de alimento, como vimos, reparte-se entre os presentes; até no bosque o selvagem convida a todos os
que desejam compartilhar sua comida.
Falando com mais brevidade, dentro da tribo, a regra: “cada um para todos”, rainha
incondicionalmente até que o surgimento da família separada começa a perturbar a unidade tribal.
Mas esta regra não se estende aos clãs ou tribos vizinhas, nem sequer se se aliaram para a
defesa mútua. Cada tribo ou clã representa uma unidade separada. Bem como entre os
mamíferos e as aves, o território não fica indiviso, senão que é repartido entre famílias separadas, do
mesmo modo se lhe distribui entre as tribos separadas e, exceptuando épocas de guerra, estes limites
se observam religiosamente. Ao penetrar em território vizinho, cada um deve mostrar que não tem
más intenções; quanto mais ruidosamente anuncia sua aproximação, tanto mais goza de confiança; se
entra numa casa deve então deixar seu machado à entrada. Mas nenhuma tribo está obrigada a
compartilhar seus alimentos com outras tribos; livre é de fazê-lo ou não. Devido a isto, toda a vida
do homem
primitivo se descompõe em dois gêneros de relações, e deve ser considerada desde dois
pontos de vista éticos: as relações dentro da tribo e as relações fora dela; e (como nosso direito
internacional) o direito “intertribal” se diferencia muito do direito tribal comum.
Devido a isto, quando se chega até a guerra entre duas tribos, as crueldades mais indignantes
para o inimigo podem ser consideradas como algo merecedor do maior elogio.
Tal dupla concepção da moral atravessa, por outra parte, todo o desenvolvimento da
humanidade
e se conservou até os tempos presentes. Nós, europeus, fizemos algo -não muito, em todo
caso- pára
apartamos desta dobro moral; mas necessário é, também, dizer que se até um verdadeiro grau
estendemos nossas idéias de solidariedade -pelo menos em teoria- a toda a nação, e as vezes também
a outras nações, ao mesmo tempo debilitamos os laços de solidariedade dentro de nossa
nação e até dentro de nossa mesma família.
A aparição das famílias separadas dentro do clã perturbou de maneira inevitável a unidade
estabelecida. A família isolada conduz, inevitavelmente, à propriedade privada e à acumulação de
riqueza pessoal. Vimos, no entanto, como os esquimós tratam de obviar os inconvenientes deste novo
princípio na vida tribal. Num desenvolvimento mais avançado da humanidade, a mesma tendência
toma novas formas: e seguir as impressões das diferentes instituições vitais (as comunas aldeanas,
guildas, etc.), com ajuda das quais as massas populares se empenharam em manter a unidade tribal,
apesar das influências que se tinham empenhado em destruí-la, constituiria uma das investigações
mais instrutivas. Por outra parte, os primeiros rudimentos de conhecimentos aparecidos em
épocas extremamente longínquas, em que se confundiam com a hechicería, também se fizeram em
mãos
do indivíduo uma força que podia dirigir-se contra os interesses da tribo.
Estes rudimentos de conhecimentos se conservavam então em grande segredo, e se
transmitiam somente aos iniciados nas sociedades secretas de feiticeiros, shamanes e sacerdotes que
encontramos em todas as tribos decididamente primitivas. Ademais, ao mesmo tempo,
as guerras e incursões criavam o poder militar e também a casta dos guerreiros, cujas
associações e “clubs” pouco a pouco adquiriram enorme força. Mas com tudo, nunca, em nenhum
período da vida da humanidade, as guerras foram a condição normal da vida.
Enquanto os guerreiros se destruíam entre si, e os sacerdotes glorificavam estes homicídios, as
massas populares prosseguiam levando a vida cotidiana e fazendo seu trabalho habitual de cada dia.
E seguir esta vida da massa, estudar os métodos com cuja ajuda mantiveram sua organização social,
baseada em suas concepções da igualdade da ajuda mútua e do apoio mútuo -isto é, seu direito
comum-, ainda
então, quando estavam submetidos à teocracia ou aristocracia mais brutal no governo, estudar
esta face do desenvolvimento da humanidade é muito importante atualmente para uma verdadeira
ciência da vida.

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CAPITULO IV: A AJUDA MÚTUA ENTRE Os BARBAROS

Ao estudar aos homens primitivos é impossível deixar de admirar-se do desenvolvimento da


sociabilidade que o homem evidenció desde os primerísimos passos de sua vida. Acharam-se
impressões de sociedades humanas nos restos da idade de pedra, tanto neolítica como
paleolítica; e quando começamos a estudar aos selvagens contemporâneos, cujo modo de vida
não se distingue do modo de vida do homem neolítico, encontramos que estes selvagens estão unidos
entre si por uma organização de clã extremamente antiga que lhes dá possibilidade de unir suas
débeis forças individuais, gozar da vida em comum e avançar em seu desenvolvimento. O homem,
de tal modo, não constitui uma exceção na natureza. Também ele está sujeito ao grande princípio da
ajuda mútua, que assegura as melhores oportunidades de sobrevivência só a quem mutuamente se
prestam ao máximo apoio na luta pela existência Tales são as conclusões a que chegamos no capítulo
precedente.
No entanto, não bem passamos a um grau mais elevado de desenvolvimento e recorremos à
história
que já pode dizer-nos algo a respeito deste grau costumam consternar-nos as lutas e os
conflitos que esta história nos descobre. Os velhos laços parecem estar completamente rompidos.
As tribos lutam contra as tribos, uns clãs contra outros, os indivíduos entre si, e, deste choque
de forças hostis, sai a humanidade dividida em castas, escravizada pelos déspotas,
despedaçada em estados separados que sempre estão dispostos a guerrear o um contra o outro. E
tenho aqui que, folheando tal história da humanidade, o filósofo pessimista chega triunfante à
conclusão de que a guerra e a opressão são a verdadeira essência da natureza humana; que os instintos
guerreiros e de rapiña do homem podem ser, dentro de determinados limites, refreados só por
alguma autoridade poderosa que, por meio da força, estabelecesse a paz e desse de tal modo a alguns
poucos
homens nobres a possibilidade de preparar uma vida melhor para a humanidade do futuro.
No entanto, basta submeter a um exame mais cuidadoso a vida cotidiana do homem
durante o período histórico, como fizeram nos últimos tempos muitos pesquisadores sérios das
instituições humanas, v esta vida imediatamente adquire uma tintura completamente
diferente. Deixando de lado as idéias preconcebidas da maioria dos historiadores, e
sua evidente predileção pela parte dramática da vida humana, vemos que os mesmos
documentos que aproveitam eles habitualmente são, por sua essência tais, que exageram a parte da
vida
humana que se entregou à luta e não apreciam devidamente o trabalho pacífico da humanidade
Os dias claros e ensolarados se perdem de vista por obra das descrições das tempestades e dos
terremotos.
Ainda em nossa época, os volumosos anais que armazenamos para o historiador futuro em
nossa imprensa, nossos juízos, nossas instituições governamentais e até em nossas novelas, contos,
dramas e na poesia padecem da mesma unilateralidad. Transmitem à posteridade as descrições mais
detalhadas de cada guerra, combate e conflito, de cada discussão e ato de violência; conservam os
episódios de todo gênero de sofrimentos pessoais; mas neles mal se conservam as impressões
precisas dos numerosos atos de apoio mútuo e de sacrifício que cada um de nós conhece por
experiência própria; neles quase não se presta atendimento ao que constitui a verdadeira essência de
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nossa vida cotidiana, a nossos instintos e costumes sociais. Não é de assombrar-se por isto se os
anais dos tempos passados se mostraram tão imperfeitos. Os analistas da antigüidade inscreveram
invariavelmente em suas crônicas todas as guerras miúdas e todo gênero de calamidades que
sofreram seus contemporâneos; mas não prestaram atendimento alguma à vida das massas
populares, apesar de que justamente as massas se dedicavam, sobretudo, ao trabalho
pacífico, enquanto a minoria se entregava às excitações da luta.
Os poemas épicos, as inscrições dos monumentos, os tratados de paz, numa palavra, quase
todos os
documentos históricos, têm o mesmo caráter; tratam das perturbações da paz e não da paz
mesma. Devido a isto, ainda aqueles historiadores que procederam ao estudo do passado com as
melhores intenções, inconscientemente traçaram uma imagem troncha da época que tratavam de
apresentar; e para restabelecer a relação real entre a luta e a união que existia na vida, devemos
ocupar-nos agora
da análise dos fatos pequenos e das indicações débeis que foram conservadas acidentalmente
nos monumentos do passado, e explicá-los com ajuda da etnología comparativa. Depois de ter ouvido
tanto sobre o que dividia aos homens, devemos reconstruir, pedra a pedra, as instituições que os
uniam.
Provavelmente não está já longínqua a época em que se terá de escrever novamente toda a
história da humanidade num novo sentido, tomando em conta ambas correntes da vida
humana já citada e apreciando o papel que a cada uma delas desempenhou no desenvolvimento da
humanidade. Mas, enquanto isto não foi ainda fato, podemos já aproveitar o enorme trabalho
preparatório realizado
nos últimos anos e que nos dá a possibilidade de reconstruir, ainda em linhas gerais, a
segunda corrente, que foi descuidada durante muito tempo. De períodos da história que estão melhor
estudados, podemos esboçar alguns quadros da vida das massas populares e mostrar que papel
desempenhou nelas, durante estes períodos, a ajuda mútua.
Observarei que, em bem da brevidade, não estamos obrigados a começar indefectiblemente
pela história egípcia, nem sequer grega ou romana, porque em realidade a evolução da humanidade
não teve o caráter de uma corrente ininterrupta de, acontecimentos. Algumas vezes
sucedeu que a civilização ficava interrompida em certo lugar, em certa raça, e começava de
novo em outro lugar, no meio de outras raças. Mas, tudo novo surgimento começava sempre desde
a mesma organização tribal que acabamos de ver nos selvagens. De maneira que se tomamos a
última forma de nossa civilização atual -desde a época em que começou de novo nos primeiros
séculos de nossa era, entre aqueles povos que os romanos chamaram “bárbaros”- teremos uma gama
completa da evolução, começando pela organização tribal e terminando pelas instituições de nossa
época. A estes
quadros estarão consagradas as páginas seguintes.
Os homens de ciência ainda não se puseram de acordo sobre as causas que, faz ao redor de
duas mil anos, moveram a povos inteiros de Ásia a Europa e provocaram as grandes migrações dos
bárbaros que puseram fim ao império romano de Occidente.
No entanto, apresenta-se de modo natural ao geógrafo uma causa possível, quando contempla
as ruínas das que foram outrora cidades densamente povoadas dos desertos atuais de Ásia Central, ou
bem segue os velhos leitos de rios agora desaparecidos, e os restos de lagos que outrora foram
enormes e que agora ficaram reduzidos quase às dimensões de pequenos estanques. A causa é a
desecación: uma desecación recente que continua ainda, com rapidez que antes considerávamos
impossível admitir. Contra semelhantes fenômeno, o homem não pôde lutar.
Quando os habitantes de Mongólia ocidental e de Turquestán oriental viram que o água se
lhes ia, não lhes ficou outra saída que descer ao longo dos amplos vales que conduzem às terras baixas
e
pressionar para o oeste aos habitantes destas terras.
Tribo depois de tribo, de tal modo, foram deslocadas para Europa, obrigando às outras

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tribos a pôr-se em movimento uma e outra vez durante uma série inteira de séculos; para o
Oeste, ou de volta ao Leste, em procura de novos lugares de residência mais ou menos permanente.
As raças se misturaram, durante estas migrações; os aborígenes com os imigrantes, os arianos com
os uralaltaicos; e não sério nada assombroso, se as instituições sociais que os uniam em suas
pátrias, desaprumassem-se completamente durante esta estratificação de raças diferentes que se
realizava então em Europa e Ásia.
Mas estas instituições não foram destruídas; só sofreram a transformação que requeriam as
novas condições de vida. A organização social dos teutones, celtas, escandinavos, eslavos e outros
povos,
quando pela primeira vez entrou em contato com os romanos, encontrava-se em estado de
transição. Suas uniões tribais, baseadas na comunidade de origem real ou suposta, serviram para uní-
los durante muitos milênios. Mas semelhantes uniões responderam a seu fim só até que apareceram
dentro do clã mesmo as famílias separadas.
No entanto, em virtude das razões expostas mais acima, as famílias patriarcais separadas,
lenta, mas inconteniblemente, formavam-se dentro da organização tribal e sua aparição, ao final de
contas,
evidentemente conduziu à acumulação de riquezas e de poder, a sua transmissão hereditária
na família e à descomposição do clã. As migrações frequentes e as guerras que as acompanhavam só
puderam apressar a desintegração dos clãs em famílias separadas, e a dispersão das tribos
durante as migrações e sua mistura com os estrangeiros constituíam exatamente as condições com as
que se facilitou a desintegração das uniões anteriores baseadas sobre laços de parentesco. AOS
bárbaros -isto é, aquelas tribos que os romanos chamaram “bárbaros” e que, seguindo as classificações
de Morgan, chamarei com esse mesmo nome para diferenciá-los das tribos mais primitivas, dos
chamados “selvagens”- se apresentava de tal modo uma disyuntiva: deixar seu clã e dissolver-se em
grupos de famílias debilmente unidas entre, sim, das quais, as famílias mais ricas (especialmente
aquelas em quem as riquezas se uniam às funções do sacerdocio ou à glória militar) se
adueñarían do poder sobre os outros; ou bem procurar alguma nova forma de estrutura social fundada
sobre algum princípio novo.
Muitas tribos foram impotentes para opor-se à desintegração: dispersaram-se e perdiéronse
para a história. Mas as tribos mais enérgicas não se dividiram; saíram da prova elaborando uma
estrutura social nova: a comuna aldeana, que continuou unindo-as durante os quinze séculos seguintes,
ou mais ainda. Nelas se elaborou a concepção do território comum, da terra adquirida e defendida com
suas
forças comuns, e esta concepção ocupou o lugar da concepção da origem comum, que já se
extinguia. Seus deuses perderam paulatinamente seu caráter de ascendentes e receberam um novo
caráter local,
territorial. Converteram-se em divindades ou, posteriormente, em patronos de um verdadeiro
lugar.
A “terra” se identificava com os habitantes. Em lugar das uniões anteriores pelo sangue
cresceram as uniões territoriais, e esta nova estrutura evidentemente oferecia muitas vantagens em
determinadas condições.
Reconhecia a independência da família e até aumentava esta independência, já que a comuna
aldeana renunciava a todo direito a inmiscuirse no que ocorria dentro da família mesma;
dava também uma liberdade consideravelmente maior à iniciativa pessoal; não era um
princípio hostil à união entre pessoas de origem diferente, e ademais, mantinha a coesão necessária
nos atos e nos pensamentos dos membros da comunidade; e, finalmente, era o bastante forte para
opor-se às tendências de domínio da minoria, composta de feiticeiros, sacerdotes e guerreiros
profissionais ou
distintos que pretendiam adueñarse do poder. Devido a isto, a nova organização se converteu
na célula primitiva de toda vida social futura; e em muitos povos, a comuna aldeana conservou este
caráter até o presente.
Já é sabido agora -e mal se discute- que a comuna aldeana de nenhum modo foi rasgo
característico dos eslavos ou dos antigos germanos. Estava estendida em Inglaterra, tanto no período
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sajón como em. o normando, e se conservou em alguns lugares até o século dezenove; foi a base da
organização social da antiga Escócia, a antiga Irlanda e o antigo Gales. Em França, a posse comum e
a divisão comunal da terra arable pela assembléia aldeana se conservou desde os primeiros séculos de
nossa era até a época de Turgut, que achou as assembléias comunais “demasiado ruidosas” e por isso
começou a destruí-las. Em Itália, a comuna sobreviveu ao domínio romano e renasceu depois da
queda do império romano. Foi regra geral entre os escandinavos, eslavos, fineses (na pittüyü, e
provavelmente na kihlakunta), cure-los e os lives. A comuna aldeana na Índia -passada e presente,
ariana e não ariana- é bem conhecida graças aos trabalhos de sir Henry Maine, que fizeram época
neste domínio; e Elphistone a descreveu nos afegãos øENCONTRAMO-LA também no ulus mogol,
na cabila thaddart, na dessa javanesa, na kota ou tofa malaya e, sob diferentes designações, em
Abissínia, Sudan, no interior de Africa , nas tribos indígenas de ambas Américas, e em todas as
tribos, pequenas e grandes, das ilhas do oceano Pacífico. Numa palavra, não conhecemos nenhuma
raça humana, nenhum povo, que não tivesse passado em determinado período pela comuna aldeana.
Já este só fato refuta a teoria segundo a qual se tratou de representar à comuna aldeana de
Europa
como um produto da servidão. Formou-se muito antes que a servidão e nem sequer a
submissão servil pôde destruí-la. Ela constitui uma fase geral do desenvolvimento do gênero humano,
um renascimento natural da organização tribal, pelo menos em todas as tribos que desempenharam ou
desempenham até a época presente algum papel na história.
A comuna aldeana constituía uma instituição crescida naturalmente, e por isso não podia ser
de estrutura completamente uniforme. Falando em general era uma união de famílias que se
consideravam originárias de uma raiz comum e que possuíam em comum uma verdadeira terra. Mas
em algumas tribos, em circunstâncias determinadas, as famílias cresceram extraordinariamente antes
de que delas brotassem novas famílias; em tais casos, cinco, seis ou sete gerações continuaram
vivendo sob um teto ou dentro de um recinto, possuindo em comum o cultivo e o gado, e reunindo-se
para a comida ante um lar comum. Então se formou o que se conhece na etnología com o nome de
“família indivisa- ou “economia doméstica indivisa”, que nós achamos ainda agora em toda a
Chinesa, na Índia, na zadruga dos eslavos meridionais e, ocasionalmente, em Africa, América,
Dinamarca, Rússia setentrional, em Sibéria (as semieskie), e em França ocidental.
Em outros povos, ou em outras circunstâncias que ainda não estão determinadas com
precisão, as famílias não atingiram tão grandes proporções; os netos, e as vezes também os
filhos, saíam do lar imediatamente depois de contrair casal, e cada um deles assentava o princípio de
sua própria célula. Mas tanto as famílias divididas como as indivisas, tanto as que se estabeleceram
juntas como as que se estabeleceram disseminadas pelos bosques, todas elas se uniram em comunas
aldeanas. Algumas aldeias se uniram em clãs, ou tribos, e algumas tribos em uniões ou
federações. Tal era a organização, social que se desenvolveu entre os assim chamados bárbaros
quando
começaram a assentar-se em residências mais ou menos permanentes em Europa. Necessário
é recordar, no entanto, que as palavras “bárbaros” e “período bárbaro” se empregam aqui
seguindo a Morgan e outros antropólogos -investigadores da vida das sociedades humanas-
exclusivamente para designar o período da comuna aldeana que seguiu à organização tribal, até a
formação dos Estados
contemporâneos.
Uma longa evolução foi necessária para que o clã chegasse a reconhecer dentro dele a
existência separada da família patriarcal que vivia numa choça separada; mas, no entanto, ainda
depois de tal reconhecimento, o clã, falando em general, ainda não reconhecia a herança pessoal da
propriedade. Sob a organização tribal, as poucas coisas que podiam pertencer a um indivíduo se
destruíam sobre sua tumba ou se enterravam junto a ele. A comuna aldeana, pelo contrário,
reconhecia plenamente a
acumulação privada de riquezas dentro da família, e sua transmissão hereditária. Mas a
riqueza se estendia exclusivamente em forma de bens móveis, incluindo neles o gado, os
instrumentos e a louça, as armas, e a casa-habitação que, “como todas as coisas que podiam ser

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destruídas pelo fogo”, contavam-se nessa mesma categoria. Quanto à propriedade privada territorial, a
comuna aldeana não
reconhecia e não podia reconhecer nada semelhante, e falando em general, não reconhece tal
gênero de propriedade também não agora.
A terra era propriedade comum de todo o clã ou da tribo inteira e a mesma comuna aldeana
possuía sua parte de território tribal, só até onde o clã ou a tribo não é possível estabelecer aqui
limites precisos não achava necessária uma nova distribuição das parcelas aldeanas. Já que o desbroce
da terra arborizada, e o desmonte das terras virgens, na maioria dos casos, eram realizados por toda a
comuna ou, pelo menos, pelo trabalho conjunto de várias famílias -sempre com o
consentimento da comuna- as parcelas voltadas a limpar passavam a ser de cada família por quatro,
doze, vinte anos, depois do qual, consideravam-se já como parte da, terra arable pertencente a toda a
comuna. A propriedade privada ou o domínio “perpétuo” da terra era também incompatível com as
concepções
fundamentais das idéias religiosas da comuna aldeana, como antes eram incompatíveis com as
concepções de clãs; de maneira que foi necessária a influência prolongada do direito romano e da
igreja cristã, que assimilou presto as leis da Roma pagã, para acostumar aos bárbaros à practicabilidad
da propriedade privada territorial.
Mas, ainda então, quando a propriedade privada ou o domínio por tempo, indeterminado foi
reconhecido, o proprietário de uma parcela separada seguia sendo, ao mesmo tempo, copropietário de
uma parcela dos bosques e das dehesas comuns. Ademais, vemos continuamente, em especial na
história de Rússia, que quando várias famílias, atuando completamente por separado, tinham tomado
posse de alguma terra pertencente às tribos que consideravam como estrangeiras, as famílias dos
usurpadores se uniam em seguida entre si e formavam uma comuna aldeana que, na terça ou quarta
geração, já acreditava em a comunidade de sua origem. Sibéria está cheia até agora de tais
exemplos. Uma série completa de instituições, em parte herdadas do período tribal, começou
então a elaborar-se sobre esta base do domínio comum da terra, e continuou elaborando-se
através das longas séries de séculos que foram necessários para submeter aos comuneros à autoridade
dos Estados, organizados segundo o modelo romano ou bizantino. A comuna aldeana não só
era uma sociación para assegurar a cada um a parte justa no desfrute da terra comum; era, também,
uma associação para o cultivo comum da terra, para o apoio mútuo em todas as formas possíveis, para
a defesa contra a violência e para o máximo desenvolvimento dos conhecimentos, os laços nacionais e
as concepções morais; e cada mudança no direito jurídico, militar, educacional ou econômico da
comuna era decidido por todos, na reunião do mir da aldeia, a assembléia da tribo, ou na assembléia
da confederação das tribos e comunas. A comuna, sendo continuação do clã, herdou todas suas
funções. Representava à universitas, o mir em si mesmo.
A caça em comum, øpesca-a em comum e o cultivo comunal das plantações frutíferas, era a
regra geral sob os antigos ordens tribais. Do mesmo modo, o cultivo comum dos campos se fez regra
nas comunas aldeanas dos bárbaros. É verdadeiro que temos muito poucos depoimentos diretos neste
sentido, e que na literatura antiga encontramos ao todo algumas frases de Diodoro e Julio César que
se referem aos habitantes das ilhas de Lipari, a uma das tribos celtiberas e aos suevos. Mas não
existe, no entanto, insuficiência de fatos que provem que o cultivo comum da terra era praticado entre
algumas tribos germânicas, entre os francos e entre os antigos escoceses, irlandeses e galeses. Quanto
às últimas sobrevivências do cultivo comunal, são simplesmente inumeráveis.
Até na França completamente romanizada, o arar em comum era um fenômeno corrente faz
mal uns vinte e cinco anos; em Morbihan (Bretaña).
Achamos o antigo cyvar galês, ou o “arado conjunto”, por exemplo, no Cáucaso, e o cultivo
comum da terra entregada em usufruto ao santuário da aldeia constitui um fenômeno corrente nas
tribos do Cáucaso, menos tocadas pela civilização; fatos semelhantes se encontram constantemente
entre os camponeses russos.
Ademais, é bem sabido que muitas tribos do Brasil, de América Central e México cultivavam
seus campos em comum, e que o mesmo costume está amplamente difundida, ainda agora, entre os
malayos, em Nova Celedonia, entre algumas tribos negras, etc.. Falando mais brevemente, o cultivo
comunal da terra constitui um fenômeno tão corrente em muitas tribos arianas, uralaltaicas,
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mogólicas, negras e peles vermelhas, malayas e melanesias, que devemos considerá-lo como uma
forma geral - ainda que não a única possível- de agricultura primitiva.
Necessário é recordar, no entanto, que o cultivo comunal da terra não implica ainda o
necessário consumo comum. Já na organização tribal vemos, com freqüência, que quando os
botes carregados de frutas ou pescados voltam à aldeia, o alimento transportado neles se reparte
entro as choças separadas e as “casas longas” (nas que se alojam já várias famílias, já os
jovens) e o alimento se prepara em cada fogo separado. O costume de sentar-se à mesa num círculo
mais estreito de parentes ou camaradas, de tal modo, aparece já no período antigo da vida tribal. Na
comuna aldeana se converte em regra.
Até os produtos alimentícios cultivados em comum, habitualmente se dividiam entre os donos
de casa depois que uma parte tinha sido armazenada para uso comum. Ademais, a tradição dos
festines comunais se conservava piedosamente. Em cada caso oportuno, como, por exemplo, nos dias
consagrados à recordación dos antepassados, durante as festas religiosas, ao começo ou ao final dos
labores campestres e, também com motivo de acontecimentos tais como nascimento dos meninos,
casamentos e entierros, a comuna se reunia num banquete comunal.
Ainda era a época presente, em Inglaterra, encontramos uma sobrevivência deste costume bem
conhecida sob o nome de jantar da colheita (Harvest Supper): conservou-se mais do que todas os
outros costumes. Ainda muito tempo depois que os campos deixaram de ser cultivados conjuntamente
por toda a comuna, vemos que alguns labores agrícolas continuam realizando-se por meio dela. Certa
parte da terra comunal, ainda agora, em muitos lugares é cultivada em comum, com o objeto de
ajudar aos indigentes, e também para formar depósitos comunais ou para usar os produtos de
semelhante trabalho durante as festas religiosas. Os canais de irrigação e as acequias são cavadas e
consertadas em comum. Os prados comunais são ceifados pela comuna; e um dos espetáculos mais
inspiradores o constitui a comuna aldeana russa durante a ceifa, na qual os homens rivalizam entre si
na, amplitude do corte de guadaña e a rapidez das ceifas e as mulheres removem a erva cortada e a
recolhem em gavillas; vemos aqui que poderia ser e daí deveria ser o trabalho humano.
Em tais casos, reparte-se o heno entre os lares separados, e é evidente que nenhum tem direito
a tomar o heno do henar de seu vizinho sem sua permissão; mas a restrição a esta regra geral, que se
encontra nos osietinos, no Cáucaso, é muito instrutiva: nem bem começa a cantar o cuclillo
anunciando a entrada da primavera, que cedo vestirá todos os prados de erva, adquirem todos o
direito de tomar do henar vizinho o heno que precisem para alimentar a seu gado. De tal modo,
afirmam-se uma vez mais os antigos direitos comunais, como para demonstrar com isso até que ponto
o individualismo sem restrições contradiz à natureza humana.
Quando o viajante europeu desembarca em alguma isleta do oceano Pacífico, e vendo de
longe
um grupo de palmeiras se dirige para ali, geralmente lhe assombra a descoberta de que as
aldehuelas dos indígenas estão unidas entre si por caminhos pavimentados com grandes pedras,
perfeitamente cômodos para os aborígenes descalços, e que em muitos sentidos recordam aos “velhos
caminhos” das montanhas suíças. Caminhos semelhantes foram traçados pelos “bárbaros” por toda
Europa, e é necessário viajar pelos países selvagens, pouco povoados, que estão situados longe das
linhas principais das comunicações internacionais, para compreender as proporções desse trabalho
colossal que realizaram as comunas bárbaras para vencer a aspereza das imensas extensões
arborizadas e pantanosas que apresentava Europa ao redor de duas mil anos atrás. As famílias
separadas, débeis e sem os instrumentos necessários, não tivessem podido jamais vencer a selva,
virgem. O bosque e o pântano as tivessem vencido. Somente as comunas aldeanas, trabalhando em
comum, puderam
conquistar estes bosques selvagens, estas ciénagas absorventes e as estepes Limitadas. Os
caminhos, os caminhos de fajinas, as balsas e as pontes levianas que se tiravam em inverno e se
construíam de novo depois das crescidas de primavera, as trincheiras e paliçadas com as que se
cercavam as aldeias,
as fortalezas de terra, as pequenas torres e ata layas de que estava semeado o território, tudo
isto foi obra das mãos das comunas aldeanas.

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E quando a comuna cresceu, começou o processo de jogar surtos. A alguma distância da
primeira, brotou uma nova comuna, e de tal modo, passo a passo, os bosques e as estepes caíram sob
o poder do homem. Todo o processo da formação das nações européias foi em essência o fruto de tal
surto das comunas aldeanas. Até na época presente os camponeses russos, se não estão completamente
abrumados pela necessidade, emigram em comunas , cultivam a terra virgem em comum e, também,
em comum, cavam as choças de terra e depois constroem as casas, quando se assentam nas cuencas
do Amur ou em Canadá. Até os ingleses, ao princípio da colonização de América, voltaram ao antigo
sistema: assentaram-se e viveram em comunas.
A comuna aldeana era então o arma principal na dura luta contra a natureza hostil. Era,
também, o laço que os camponeses opunham à opressão de parte dos mais hábeis e fortes, que
tratavam de reforçar sua autoridade naqueles agitados tempos. O “bárbaro” imaginário, isto é, o
homem que luta e mata aos homens por bagatelas, existiu tão pouco na realidade como o
“sanguinário” selvagem de nossos literatos.
O bárbaro comunal, pelo contrário, em sua vida se submetia a uma série inteira e completa de
instituições, imbuidas de cuidadosas considerações sobre que pode ser útil ou nocivo para sua tribo
ou sua confederação; e as instituições deste gênero foram transmitidas religiosamente de geração em
geração em versos e cantos, em provérbios e tríades, em sentenças e instruções.
Quanto mais estudamos este período, tanto mais nos convencemos dos laços estreitos que
uniam aos homens em seus comunas. Toda rinha surgida entre dois paisanos se considerava assunto
que concernia a toda a comuna, até as palavras ofensivas que escapassem durante uma rinha se
consideravam ofensas à comuna e a seus antepassados. Era necessário consertar semelhantes ofensas
com desculpas e uma multa leviana em benefício do ofendido e em benefício da comuna. Se a rinha
terminava em briga e feridas, o homem que a presenciasse e não interviesse para suspendê-la era
considerado como se ele mesmo tivesse produzido as feridas causadas.
O procedimento jurídico estava imbuido do mesmo espírito. Toda rinha, antes de mais nada,
ubmetia-se à consideração de mediadores ou árbitros, e a maioria dos casos eram resolvidos por eles,
já que o árbitro desempenhava um papel importante na sociedade bárbara. Mas se o assunto era
demasiado sério e não podia ser resolvido pelos mediadores, submetia-se ao juízo da assembléia
comunal, que tinha o dever de “achar a sentença” e a pronunciava sempre em forma condicional: isto
é, “o ofensor deverá pagar tal compensação ao ofendido se a ofensa é provada”. A ofensa era provada
ou negada por seis ou doze pessoas, quem confirmavam ou negavam o fato da ofensa sob juramento:
recorria-se à ordalía somente no caso de que surgisse contradição entre os dois corpos de júris de
ambas partes
litigantes. Semelhante procedimento, que esteve em vigor mais de dois mil anos, fala
suficientemente por si mesmo; mostra cuán estreitos eram os laços que uniam entre si a todos os
membros da comuna.
Não está a mais recordar aqui do que, aparte de sua autoridade moral, a assembléia comunal
não
tinha nenhuma outra força para fazer cumprir sua sentença. A única ameaça possível era
declarar ao rebelde, proscrito, fora da lei; mas ainda esta ameaça era um arma de duplo fio. Um
homem descontente com a decisão da assembléia comunal podia declarar que abandonava sua tribo e
que se unia a outra, e esta era uma ameaça terrível, já que, segundo a convicção geral, atraía
ndefectiblemente todas as desgraças possíveis sobre a tribo, que podia ter cometido uma injustiça com
um de seus membros. A oposição a uma decisão justa, baseada sobre o direito comum, era
singelamente “inimaginável” segundo a expressão muito afortunada de Henry Maine, já que “a lei,
a moral e o fato constituíam, naqueles tempos, algo inseparável”. A autoridade moral da
comuna era tão grande que até numa época consideravelmente posterior, quando as comunas aldeanas
foram submetidas aos senhores feudais, conservaram, no entanto, a autoridade jurídica; só permitiam
ao senhor ou a seu representante “achar” as sentenças acima citadas condicionais, de acordo com o
direito comum que ele jurava manter em sua pureza; e se lhe permitia perceber em seu
benefício a multa (fred) que antes se percebia em favor da comunal Mas, durante muito tempo, o
mesmo senhor

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feudal, se era copropietário dos baldios e dehesas comunais, submetia-se, nos assuntos
comunais, à decisão da comuna.
Pertencesse já à nobreza ou ao clero, devia submeter-se à decisão da assembléia comunal.
“Wer daselbst Wasser und Weid gerusst, muss gehorsan sein” -quem goza do direito ao água e aos
pastos, deve obedecer-, diz uma antiga sentença. Até quando os camponeses se converteram em
escravos dos senhores feudais, os últimos estavam obrigados a apresentar-se ante a assembléia
comunal se os citavam.
Em suas concepções da justiça, os bárbaros evidentemente não se afastaram muito dos
selvagens
Também eles consideravam que todo homicídio devia implicar a morte do homicida; que a
ferida produzida devia ser castigada, produzindo, ponto por ponto, a mesma ferida, e que a família
ofendida devia cumprir, ela mesma, a sentença pronunciada ou a virtude do direito comum; isto é,
matar ao homicida ou a algum de seus congéneres, ou produzir um determinado gênero de feridas ao
ofensor ou a um de seus chegados. Isto era para eles um dever sagrado, uma dívida fazia os
antepassados que devia ser cumprida completamente em público e de nenhum modo em segredo, e
devia dar-se
a mais ampla publicidade. Por isto, as passagens mais inspiradas das sagas e de todas as obras
da poesia épica em general daquela época estão consagrados a glorificar o que sempre se considerou
justo, isto é, a vingança tribal. Os mesmos deuses se uniam aos matadores em tais casos, e os
ajudavam.
Ademais, o rasgo predominante da justiça dos bárbaros é já, por uma parte, a tentativa de
limitar a quantidade de pessoas que podem ser arrastadas numa guerra de dois clãs por causa da
vingança de sangue, e por outra parte, a tentativa de extirpar a idéia brutal da necessidade de pagar
sangue por sangue e ferida por ferida, e o desejo de estabelecer um sistema de indenizações ao
ofendido, pela ofensa.
Os códigos de leis bárbaras que constituíam coleções de resoluções de direito comum,
escritos para gula dos juízes, “ao princípio permitiam e depois estimulavam e por último exigiam” a
substituição da vingança de sangue pela indenização, como o observou Kbnigswarter. Mas
representar este sistema de compensações judiciais pelas ofensas como um sistema de multas que era
igual que se
desse ao homem rico carta blanche isto é, pleno direito a fazer como se lhe antojara,
demonstra uma incompreensão completa desta instituição. A compensação monetária, isto é,
Wehrgeld, que se pagava ao ofendido, é completamente diferente da pequena multa ou fred que se
pagava à comuna ou a seu representante. A compensação monetária que se fixava comummente para
todo gênero de violência era tão elevada que, naturalmente, não era um estímulo para semelhante
gênero de delitos. Em caso
de homicídio, a compensação monetária comummente excedia todos os bens possíveis do
homicida. “Dezoito vezes dezoito vacas” -tal era a indenização dos osietinos, que não sabiam contar
além de dezoito; nas tribos africanas, a compensação monetária por um homicídio atinge a
oitocentos vacas
ou cem camelos com sua criança, e só nas tribos mais pobres se reduzia a 416 ovelhas. Em
general
na enorme maioria dos casos, era impossível pagar a compensação monetária por um
homicídio, de maneira que só restava ao homicida fazer uma coisa: convencer à família ofendida, com
seu arrependimento, de que o adotasse.
Até agora, no Cáucaso, quando uma guerra de tribos, por vingança de sangue, termina em
paz, o ofensor toca com seus lábios o peito da mulher mais anciã da tribo e de tal modo se converte
em “irmão de leite” de todos os homens da família ofendida. Em algumas tribos africanas, o
homicida
deve dar em casal sua filha ou irmã a um dos membros da família do morto; em outras tribos
deve casar-se com a viúva do morto; e em todos os casos se converte, depois disto, em membro da
família, cuja opinião é escutada em todos os assuntos familiares importantes.

73
Ademais, os bárbaros não só não menosprezavam a vida humana, senão que de nenhum modo
conheciam os castigos horríveis que foram introduzidos mais tarde pela legislação laica e canónica
sob a influência de Roma e Bizancio.
Se o direito sajón fixava a pena de morte com bastante facilidade, ainda em caso de incêndio
e assalto a mão armada, os outros códigos bárbaros recorriam a ela só em caso de traição a sua
tribo e de sacrilegio para os deuses comunais. Viam na pena de morte o único meio de apaziguar aos
deuses.
Tudo isto, evidentemente, está muito longe do suposto “desenfreio moral dos bárbaros . Pelo
contrário, não podemos fazer menos do que admirar os princípios profundamente morais que foram
elaborados pelas antigas comunas aldeanas e que acharam sua expressão nas tríades galesas, nas
lendas do Rei Arturo, nos comentários irlandeses, “Brehon”, nas antigas lendas germânicas, etcétera, e
também agora se expressam nos provérbios dos bárbaros modernos. Em sua introdução a
The Story of Brunt Njal, George Dasent caracterizou muito fielmente, do modo seguinte, as
qualidades do normando, tal como se precisam sobre a base das sagas: “Fazer franca e varonilmente o
que tem de fazer-se, sem temer aos inimigos, nem às doenças nem ao destino ... ; ser livre e atrevido
em todos
os atos; ser gentil e generoso com os amigos e congéneres; ser severo e temível com os
inimigos (isto é, com aqueles que caíam sob a lei do talión), mas cumprir, ainda com eles, todas as
obrigações devidas... Não romper os armisticios, não ser murmurador nem calumniador. Não dizer em
ausência de uma pessoa nada que não se atreva a dizer em sua presença. Não arrojar do umbral de
sua casa ao homem que peça alimento ou refúgio, ainda que fosse o próprio inimigo”.
De tais, ou ainda mais elevados princípios, está imbuida toda a poesia épica e as tríades
galesas. Fazer “com doçura e segundo os princípios da equidade com os outros, sem distinção de que
sejam inimigos ou amigos, e “consertar o mal ocasionado”, tais são os mais elevados deveres do
homem, -o mau é a morte, e o bem é a vida-, exclama o poeta legisladora.
“O mundo séria absurdo se os acordos feitos verbalmente não fossem respeitados” -diz a lei de
Brehon-. E o aprazível shaman mordvino, depois de ter alabado qualidades semelhantes, agrega, em
seus princípios dei direito comum, que “entre os vizinhos, a vaca e a vasilha de ordenhar é um bem
comum”, e que “necessário é ordenhar a vaca para si e para aquele que possa pedir leite”; que “o
corpo do olho enrojece pelos golpes, mas o rosto do que golpeia ao menino enrojece de vergonha”,
etc. Se poderia encher muitas páginas com a exposição de princípios morais similares, que os
-bárbaros” não só expressaram, senão que seguiram.
Necessário é mencionar aqui ainda um mérito das antigas comunas aldeanas. E é que
paulatinamente ampliaram o círculo das pessoas que estavam estreitamente unidas entre si. No
período de que falamos, não só as classes se uniram em tribos, senão que a sua vez, as tribos, ainda
sendo de origens diferentes, uniram-se em federações e confederações. Algumas federações eram tão
estreitas que, por exemplo, os vándalos que ficaram no lugar, depois que parte de sua confederação
foi para o Rhin e de ali a Espanha e Africa, durante quarenta anos, cuidaram as terras comunais e as
aldeias abandonadas de suas confederados; não tomaram posse delas até que seus enviados especiais
os convenceram de que seus confederados não tinham intenção de voltar mais. Entre outros bárbaros,
encontramos que a terra era cultivada por uma parte da tribo, enquanto a outra parte combatia nas
fronteiras de seu território comum, ou além de seus limites. Quanto às unes entre várias tribos,
constituíam o fenômeno mais corrente.
Os sicambrios se uniram com os keruscos e suevos; os cuados com os sármatas; os sármatas
com os alanos, carpios e hunos.
Mais tarde, vemos também como a concepção de nação se desenvolve gradualmente em
Europa, consideravelmente antes de que algo do gênero de Estado começasse a formar-se em lugar
algum da parte do continente ocupada pelos bárbaros. Estas nações -porque não é possível
negar o nome de nação à França merovingia ou a Rússia do século décimo primeiro ou
décimo segundo-, estas nações não estavam, no entanto, unidas entre si por outra coisa que não fora a
unidade da língua e o acordo tácito de suas pequenas repúblicas de eleger seus duques (protetores
militares e juízes) de entre uma família determinada.

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Naturalmente, as guerras eram inevitáveis: as migrações inevitavelmente levam consigo as
guerras, mas já sir Henry Maine, em seu notável trabalho sobre a origem tribal do direito
internacional, demonstrou plenamente que “o homem nunca foi tão brutal nem tão estúpido como para
submeter-se a um mau como a guerra sem fazer alguns esforços para conjurá-la”.
Mostrou também cuán grande era -o número das antigas instituições que revelam a intenção de
prevenir a guerra ou encontrar-lhe algumas alternativas. Em realidade, o homem, a despeito das
suposições correntes, é um ser tão antiguérrero que quando os bárbaros se assentaram finalmente em
seus lugares, perderam o hábito da guerra tão rapidamente que cedo deveram estabelecer caudilhos
militares especiais, acompanhados por Scholae especiais ou mesnadas guerreiras para a defesa de
suas aldeias na contramão de possíveis ataques. Preferiram o trabalho pacífico à guerra, e o mesmo
pacifismo do homem foi causa da especialização da profissão militar, e se obteve corno
resultado desta especialização, posteriormente, a escravatura e as guerras “do período estatal”
da história da humanidade.
A história encontra grandes dificuldades em suas tentativas para restabelecer as instituições do
período bárbaro. A cada passo, o historiador acha débeis indícios de uma ou outra instituição. Mas o
passado se alumia com luz brilhante nem bem recorremos às instituições das numerosas tribos que
ainda vivem sob uma organização social que quase é idêntica à organização da vida de nossos
antepassados, os bárbaros. Aqui encontramos tal abundância de material que a dificuldade se
apresenta na seleção já que as ilhas do oceano Pacífico, as estepes de Ásia e as mesetas de Africa são
verdadeiros museus históricos que contêm mostras de todas as possíveis instituições intermédias
pelas que atravessou a humanidade em seu passo da condição tribal dos selvagens à organização
estatal. Examinemos algumas destas mostras.
Se tomamos, por exemplo, as comunas aldeanas dos mogoles buriatos, especialmente
daqueles que vivem na estepe de Kudinsk, no Lena superior, e que evitaram mais do que os outros a
influência russa, temos neles uma mostra bastante boa dos bárbaros em estado de transição da
pecuária à agricultura. Estes buriatos vivem, até agora, em “famílias indivisas”, isto é, que apesar de
que cada filho depois de seu casamento, vai-se a viver a uma choça separada, no entanto as choças
de pelo
menos três gerações se encontram dentro de um recinto, e a família indivisa trabalha em
comum em seus campos e possui em comum seus bens domésticos, o gado e também os “teliátniki”
(pequenos espaços cercados nos que guardam o pasto terno para alimentar aos bezerros).
Comummente cada família se reúne para comer em sua choça; mas quando se assa carne, todos os
membros da família
indivisa, de vinte a sessenta pessoas, banquetean juntos. Várias de tais grandes famílias, que
vivem em grupo, e também famílias de menor proporção, assentadas no mesmo lugar (na maioria
dos casos
constituem restos de famílias indivisas, disgregadas por qualquer razão), formam um “ulus”
ou comuna aldeana. Vários “ulus” compõem um clã -mais exatamente uma tribo- e cada quarenta e
seis “clãs” da estepe de Kudinsk estão unidos numa confederação. Em caso de necessidade,
provocada por tais ou cuales circunstâncias especiais, vários “clãs- ingressam em uniões menores,
mas mais
estreitas. Estes buriatos não reconhecem a propriedade privada agrária, que os “ulus” possuem
a terra em comum, ou mais exatamente, øpossui-a toda a confederação, e de ser preciso se procede à
redistribuição das terras entre os diferentes “ulus”, na assembléia de todo o clã, e entre os quarenta e
seis clãs na assembléia da confederação.
Mister é observar que a mesma organização têm todos os 250.000 buriatos da Sibéria Oriental,
apesar de que já faz mais de trezentos anos que se encontram sob o domínio de Rússia e
conhecem bem as instituições russas.
Não obstante tudo o dito, a desigualdade de fortunas se desenvolve rapidamente entre os
buriatos, especialmente desde que o governo russo começou a atribuir importância excessiva aos
“taisha” (príncipes) eleitos pelos buriatos, a quem consideram angariadores responsáveis de impostos
e representantes da confederação em suas relações administrativas e até comerciais com os russos. De
tal modo, oferecem-se numerosos caminhos para o enriquecimento de uma minoria que marcha
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simultaneamente com o empobrecimento da massa, devido à usurpação das terras buriatas pelos
russos. No entanto, entre os buriatos, especialmente os de Kudinsk, conserva-se o costume (e o
costume é mais forte do que a lei) segundo a qual se uma família perdeu seu gado, as famílias
mais ricas lhe dão algumas vacas e cavalos para consertar a perda. Quanto aos pobres sem família,
comem em casa de suas congéneres; o pobre penetra na choça e ocupa -por direito não por
caridade- um lugar junto ao fogo e recebe uma porção de comida que se divide sempre do modo mais
escrupuloso em partes iguais; fica a dormir ali onde jantou. Em general, os conquistadores russos da
Sibéria
se surpreenderam tanto dos costumes comunistas dos buriatos, que os chamaram “bratskyie”
(os fraternais) e informaram a Moscou “o têm tudo em comum-; tudo o que possuem
é dividido entre todos.
Até na atualidade, os buriatos de Kudinsk, quando vendem o trigo ou mandam a vender seu
gado ao açougueiro russo, todas as famílias do “ulus”, ou até da tribo, vertem seu trigo num lugar e
reúnem seu gado num rebanho, vendendo tudo por atacado, como se pertencesse a uma pessoa.
Ademais, cada “ulus” tem seu depósito de grãos para empréstimo em caso de necessidade, seus
fornos comunais para cozer o pão (o four banal das antigas comunas francesas), e seu ferreiro, quem
como o ferreiro das aldeias índias, sendo membro da comuna, nunca recebe pagamento por seu
trabalho dentro dela. Deve efetuar gratuitamente todo o trabalho de ferraria necessário, e se utiliza
suas horas de lazer para fabricar discos de ferro cincelados e plateados, que servem aos buriatos para
enfeitar os vestidos, pode vendê-los a uma mulher de outro clã, mas só pode presenteá-los à mulher
que pertence a seu próprio clã. A compra de nenhum modo pode ter lugar dentro da comuna, e esta
regra é observada tão severamente que quando uma família buriata acomodada tomada a um
trabalhador, deve fazê-lo de outro clã ou dos russos. Observarei que tal costume com respeito à
compra-venda não
existe só nos buriatos: está tão vastamente difundida entre os comuneros contemporâneos -os
“bárbaros”- arianos e uralaltaicos, que deve ter sido geral entre nossos antepassados.
O sentimento de união dentro da confederação é mantido pelos interesses comuns de todos os
clãs, suas conferências comunais e os festejos que geralmente têm lugar em conexão com as
conferências. O mesmo sentimento é mantido, ademais, também por outra instituição: pela caça
tribal, aba, que evidentemente constitui uma reminiscência de um passado muito longínquo. Cada
outono se reúnem todos os quarenta e seis clãs de Kudinsk para tal caça, cuja presa é repartida depois
entre todas as famílias. Ademais, de tempo em tempo, convoca-se a uma aba nacional, para afirmar
os sentimentos de união de toda a nação buriata. Em tais casos, todos os clãs buriatos dispersos em
centenas de verstas ao este e oeste do lago Baikal devem enviar caçadores especialmente eleitos para
este fim. Milhares de pessoas se reúnem para esta caça nacional, e cada uma traz provisões para um
mês
inteiro. Todas as porções de provisão devem ser iguais, e por isso antes de depositá-las todas
juntas, cada porção é sopesada por um ancião (starschiná) eleito (indefectiblemente “a mão : a
balança seria uma infração ao costume antigo). A seguir disto, os caçadores se dividem em
destacamentos, a razão de vinte homens cada um, e começam a caça segundo um plano traçado de
antemão. Em tais
caças nacionais, toda a nação buriata revive as tradições épicas daqueles tempos em que
estava unida numa federação poderosa.
Posso também agregar que semelhantes caçadas são um fenômeno corrente entre os índios
peles vermelhas e entre os chineses das orlas do Usuri (kada).
Nos kabdas, cujo modo de vida foi tão bem descrito por dois pesquisadores franceses, temos
aos representantes dos “bárbaros” que fizeram algum progresso mais na agricultura. Seus campos
estão regados por acequias , abonados e, em general, bem trabalhados, e nas zonas montanhosas,
todo pedaço de terra apto é lavrado a bico. Os kabilas passaram por não poucas vicisitudes em sua
história: seguiram por algum tempo a lei muçulmana sobre a herança, mas não puderam conformar-se
com ela, e faz uns cento cinquenta anos voltaram a seu anterior direito comum tribal. Devido a isto,
a posse da terra tem neles um caráter misto, e a propriedade privada da terra existe junto com a posse
comunal. Em todo caso, a base da organização comunal atual é a comuna aldeana (thaddart), que
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geralmente se compõe de algumas famílias indivisas (klaroubas), que reconhecem a comunidade de
sua origem, e também, em menor proporção, de algumas famílias de estrangeiros. As aldeias se
agrupam em clãs ou tribos (arch); vários clãs constituem a confederação (thak’ ebilt); e finalmente,
várias confederações se constituem as vezes numa une cujo fim principal é a proteção armada.
Os kabilas não conhecem autoridade alguma fora de sua djemda ou assembléia da comuna
aldeana. Participam nela todos os homens adultos, e se reúnem simplesmente sob o céu aberto, ou
bem num edifício especial que tem assentos de pedras. As decisões da djemda, evidentemente, devem
ser tomadas por unanimidade, isto é, o juízo se prolonga até que todos os presentes estão de acordo
em tomar uma decisão determinada, ou em submeter-se a ela. Já que na comuna aldeana não existe
autoridade que possa obrigar à minoria a submeter-se à decisão da maioria, o sistema de decisões
unânimes era praticado pelo homem em todas partes onde existiam tais comunas, e se pratica ainda
agora ali onde continuam existindo, isto é, entre várias centenas de milhões de homens, sobre toda a
extensão do balão terrestre. A djemaa kabileña mesma designa seu poder executivo ao ancião,
ao escreva e ao tesoureiro; ela mesma determina seus impostos e administra a repartição das terras
comunais, o mesmo que todos os trabalhos de utilidade pública. Uma parte importante do trabalho é
efetuado em comum; os caminhos, as mesquitas, as fontes, os canais de irrigação, as torres de defesa
contra as incursões, cerca-las das aldeias, etc., tudo isto é construído pela comuna aldeana,
enquanto os grandes caminhos, as mesquitas de maiores dimensões e os grandes mercados são obras
da tribo inteira.
Muitas impressões do cultivo comuna¡ existem ainda hoje, e as casas seguem sendo
construídas por toda a aldeia, ou bem, com ajuda de todos os homens e mulheres da aldeia. Em
general, recorrem à
“ajuda” quase diariamente, para o cultivo dos campos, para a recolha, as construções, etc.
Quanto aos trabalhos artesãos, cada comuna tem seu ferreiro a quem se dá parte da terra comunal, e
ele trabalha para a comuna. Quando se aproxima a época de arar, percorre todas as casas e conserta
gratuitamente os arados e outros instrumentos agrícolas; o forjar um arado novo é considerado uma
obra piedosa
que não pode ser recompensada com dinheiro nem, em general, com nenhuma classe de paga.
Já que nos kabilas existe já a propriedade privada, evidentemente existem entre eles ricos e
pobres. Mas, como todos os homens que vivem em estreita relação e sabem como e onde começa a
pobreza, consideram que a pobreza é uma eventualidade que pode apresentar-se a todos. “Da miséria
e do cárcere ninguém está livre” -dizem os camponeses russos-; os kabilas levam à prática este
provérbio, e em seu meio é impossível notar nem a mais ligeira diferença no trato entre
pobres e ricos; quando um pobre solicita “ajuda”, o rico trabalha em seu campo exatamente o
mesmo que o pobre trabalha, em caso parecido, no campo do rico.
Ademais, a djemáa aparta determinados hortos e campos, as vezes cultivados em comum, em
benefício dos membros mais pobres da comuna. Muitos costumes parecidas se conservaram até hoje.
Já que as famílias mais pobres não estão em condições de comprar-se carne, regularmente compra
com a soma formada pelo dinheiro das multas, das doações em benefício da
djemáa, ou do pagamento para o uso dos depósitos comunais de extração de azeite de oliva;
e esta carne se reparte equitativamente entre aqueles que por sua pobreza não estão em condições de
comprá-la.
Exatamente o mesmo, quando alguma família sacrifica uma ovelha ou um boi em dia que não
é de mercado, o pregoeiro da aldeia o anuncia por todas as ruas para que os enfermos e as mulheres
encinta possam receber quanta carne precisem.
O apoio mútuo atravessa como um fio vermelho toda a vida dos kabilas, e se um deles, durante
uma viagem fora dos limites da terra natal, encontra a outro kabila precisado, deve prestar-lhe ajuda,
ainda que para isto tivesse que arriscar seus próprios bens e sua vida. Se tal coisa não fora prestada, a
comuna a que pertence o que foi danificado por semelhante egoísmo, pode queixar-se e então a
comuna do egoísta o indeniza imediatamente. No caso que tratamos, tropeçamos de tal modo
com um costume que conhece bem aquele que estudou as guildas comerciais medievais.
Tudo estrangeiro que aparece na aldeia kabila tem direito, em inverno, a refugiar-se numa
casa, e seus cavalos podem pastar durante um dia nas terras comunais. Em caso de necessidade,
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pode, ademais, contar com um apoio quase ilimitado. Assim, durante a fome dos anos 1867-1868, os
kabilas aceitavam e alimentavam, sem fazer diferença de origem, a todos aqueles que procuravam
refúgio em suas aldeias. No distrito de Deflys se reuniram não menos de doze mil pessoas, negadas
não somente de todas as partes de Argélia, senão até de Marrocos e os kabilas as alimentaram a
toda!. Enquanto por toda Argélia a gente se morria de fome, na terra kabileña não teve um só caso de
morte por fome; as comunas kabileñas, com freqüência privando-se do mais necessário, organizaram
a ajuda, sem pedir nenhum socorro ao governo e sem queixar-se pelo ônus; consideravam-na como
seu dever natural.
E enquanto entre os colonos europeus se tomavam todas as medidas policiais possíveis para
prevenir o roubo e a desordem originados pela afluência de estrangeiros, não foi necessário nenhuma
vigilância semelhante para o território kabileño; as djemáas não tiveram necessidade de defesa
nem de ajuda exterior.
Posso citar, só brevemente, dois rasgos extraordinariamente interessantes da vida kabileña, a
saber: o estabelecimento do telefonema anaya, que tem por objeto vigiar, em caso de guerra, os
poços, as acequias de rego, as mesquitas, as vagas dos mercados e alguns caminhos, e, também, a
instituição dos Cofs, da que falarei mais abaixo. Na anaya temos propriamente uma série completa de
disposições que tendem a diminuir o mal causado pela guerra, e a conjurá-la. Assim, a vaga do
mercado é anaya, especialmente se se acha cerca da fronteira e serve de lugar de encontro dos kabilas
com os estrangeiros; ninguém se atreve a perturbar a paz no mercado; e se se produzissem bagunces,
em seguida são reprimidos pelos mesmos estrangeiros reunidos na cidade. O caminho por onde as
mulheres aldeanas vão por água à fonte, considera-se também anaya em caso de guerra, etc. A
mesma instituição se encontra em certas ilhas do Oceano Pacífico.
Quanto ao Cof, esta instituição constitui uma forma vastamente estendida de associação
em certos respectos, análoga às sociedades e guildas medievais (Bürgschaften ou Gegilden), e
também constitui uma sociedade existente tanto para a defesa mútua como para diversos
fins intelectuais, políticos, religiosos, morais, etc., que não podem ser satisfeitos pela
organização
territorial da comuna, do clã ou da confederação O Cof não conhece limitações territoriais;
recruta seus membros em diferentes aldeias, até entre os estrangeiros, e oferece a seus membros
proteção em todas as circunstâncias possíveis da vida. Em general, é uma tentativa de completar a
associação territorial por meio de uma agrupação extraterritorial, com o fim de dar expressão à
afinidade mútua
de todo gênero de aspirações que vai além dos limites de um lugar determinado. De tal
modo, as livres associações internacionais de gostos e idéias, que nós consideramos uma das
melhores expressões de nossa vida contemporânea, tem seu princípio no período bárbaro antigo.
A vida dos montañeses caucasianos oferece outra série de exemplos do mesmo gênero,
sumamente instrutiva. Estudando os costumes contemporâneos dos osietines -suas famílias indivisas,
suas comunas e suas concepções jurídicas-, o professor M. Kovalevsky, em sua notável obra Os
costumes modernos e a lei antiga, pôde, passo a passo, compará-las com disposições similares das
antigas leis bárbaras, e até teve possibilidade de observar o nascimento primitivo do feudalismo. Em
outras
tribos caucasianas, encontramos as vezes indícios do modo como se originou a comuna
aldeana nos casos em que não era tribal, senão que tinha nascido, da união voluntária entre famílias
de diferentes
origens. Tal caso se observou, por exemplo, recentemente nas aldeias dos jevsures, cujos
habitantes prestavam juramento de “comunidade e fratemidad”. Em outra parte do Cáucaso, no
Daghestan, vemos as origens das relações feudais entre duas tribos, conservando-se ambas, ao mesmo
tempo, constituídas em comunas aldeanas e conservando até as impressões das “classes” da
organização
tribal.
Neste caso, temos, deste modo, um exemplo vivo das formas que tomou a conquista de Itália e
da Galia pelos bárbaros. Os vencedores lezhinos, que submeteram a várias aldeias georgianas e

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tártaras do distrito de Zakataly, não submeteram estas aldeias à autoridade das famílias separadas;
organizaram um clã feudal, composto agora de doze mil lares divididos em três aldeias, e possuindo
em comum não menos de doze aldeias georgianas e tártaras. Os conquistadores repartiram
suas próprias terras entre seus clãs, e os clãs, a sua vez, dividiram-na em partes iguais entre suas
famílias; mas não intervêm nos assuntos das comunas de seus tributários, quem até agora praticam o
costume mencionado por Julio César, a saber: a comuna decide anualmente que parte da terra
comunal deve ser cultivada, e esta terra se reparte em parcelas segundo a quantidade de famílias, e
ditas
parcelas se distribuem por sorteio.
É mister observar que apesar de que os proprietários não são raros entre os lezhinos -que
vivem sob o sistema da propriedade territorial privada e a posse comum dos escravos-, são muito raros
entre os georgianos submetidos à servidão e que continuam mantendo suas terras em propriedade
comunal. Quanto ao direito comum dos montañeses georgianos, é muito similar ao direito dos
longobardos e os francos sálicos, e algumas de suas disposições arrojam nova luz sobre o
procedimento jurídico do período bárbaro. Destacando-se por seu caráter muito impresionable, os
habitantes do Cáucaso empregam todas suas forças para que suas rinhas não cheguem até o homicídio:
assim, por exemplo, entre os jevsures cedo se despem os sabres, mas se vai uma mulher e arroja entre
os contendentes um bocado de lenço que serve às mulheres como enfeite da cabeça os sabres voltam
em seguida a suas bainhas e se interrompe a rinha.
O enfeite de cabeça das mulheres neste caso é anaya.
Se a rinha não se interrompesse a tempo e terminasse com um homicídio, a compensação
monetária imposta ao homicida é tão grande, que o culpado fica arruinado para toda a vida, se
não o adota como filho a família do morto; se recorreu ao punhal numa rinha sem importância e
produzido feridas, perde para sempre o respeito de seus congéneres.
Em todas as rinhas, os assuntos passam a mão de mediadores: eles elegem aos juízes
entre seus congéneres -seis se os assuntos são mais bem pequenos, e de dez a quinze nos
assuntos mais sérios- e observadores russos atestam a absoluta incorruptibilidad dos juízes. O
juramento tem tal importância, que as pessoas que gozam de respeito geral são dispensadas
dele, confirmação simples que é plenamente suficiente, tanto mais quanto que nos assuntos sérios o
jevsur nunca vacila em reconhecer sua culpa (naturalmente, refiro-me ao jevsur não tocado ainda pela
chamada “cultura”). O juramento se reserva principalmente para assuntos tais como as disputas sobre
bens, nas quais, aparte do simples estabelecimento dos fatos, requer-se ademais um
determinado gênero de apreciação deles.
Em tais casos, os homens, cuja afirmação influi de maneira decisiva na solução da discussão
atuam com a maior circunspección. Em general, pode dizer-se que as sociedades “bárbaras”
do Cáucaso se distinguem por sua honestidade e seu respeito aos direitos dos congéneres.
As diferentes tribos africanas apresentam tal diversidade de sociedades, interessantes em grau
sumo, e situadas em todos os graus intermédios de desenvolvimento, começando pela
comuna aldeana primitiva e terminando pelas monarquias bárbaras despóticas, que devo abandonar
todo pensamento de dar sequer os resultados mais importantes do estudo comparativo de suas
instituições. Será suficiente dizer que, ainda sob o despotismo mais cruel dos reis, as assembléias das
comunas
aldeanas e seu direito comum seguem dotadas de plenos poderes sobre um amplo circulo de
toda classe de assuntos. A lei de Estado permite ao rei tirar a vida a qualquer súbdito, por simples
capricho, ou até para satisfazer seu glotonería, mas o direito comum do povo continua
conservando aquela rede de instituições que servem para o apoio mútuo, que existe entre outros
“bárbaros” ou existia entre nossos antepassados. E em algumas tribos em melhor situação (em
Bornu, Uganda e Abissínia), e em especial entre os bogos, algumas disposições do direito comum
estão espiritualizadas por sentimentos realmente extraordinários e refinados.
As comunas aldeanas dos indígenas de ambas Américas tinham o mesmo caráter. Os tupíes de
Brasil, quando foram descobertos pelos europeus viviam em “casas longas” ocupadas por clãs
inteiros que cultivavam em comum seus sementeras de grão e seus campos de mandioca ARAM-

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NOS¡, que avançaram mais no caminho da civilização, cultivavam seus campos em comum; o
mesmo os ucagas, que permanecendo sob o sistema do comunismo primitivo e das “casas longas”
aprenderam a traçar bons caminhos e em alguns domínios da produção doméstica não eram
inferiores aos artesãos do período antigo da Europa medieval. Todos eles obedeciam ao mesmo
direito comum, cujos exemplos citamos nas páginas precedentes.
No outro extremo do mundo encontramos o feudalismo malayo, o qual, no entanto, mostróse
impotente para desarraigar a negaria; isto é , a comuna aldeana, com seu domínio comuna¡, pelo
menos, sobre uma parte da terra e sua redistribuição entre as negarias da tribo inteira. Nos alfurus de
Minahasa encontramos o sistema comunal de labranzas de três amelgas; na tribo índia dos wyandots
encontramos a redistribuição periódica da terra, realizada por todo o clã.
Principalmente em todas as partes de Sumatra, onde o direito muçulmano ainda não
conseguiu destruir por completo a antiga organização tribal, achamos à família indivisa (suka) e à
comuna
aldeana (kohta) que conservam seus direitos sobre a terra, ainda nos casos em que parte
dela foi desbrozada sem permissão da comunal Mas dizer isto significa dizer, ao mesmo
tempo, que todos os costumes que servem para a proteção mútua e a conjuración das guerras tribais
por causa da vingança de sangue e, em general, de todo gênero de guerra -costumes que
assinalamos brevemente
mais aporta como costumes típicos da comuna-, também existem no caso que nos ocupa. Mais
ainda: quando mais completa se conservou a posse comunal, tanto melhores e mais suaves são os
costumes.
De Stuers afirma positivamente que em todas partes onde a comuna aldeana foi menos
oprimida pelos conquistadores, observa-se menos desigualdade de bens materiais, e as mesmas
prescrições de vingança de sangue se distinguem por uma crueldade menor; e, pelo contrário
em todas partes onde a comuna aldeana foi destruída definitivamente, “os habitantes sofrem
uma opressão insuportável de parte dos governantes despóticos”. E isto é completamente natural. De
maneira que quando Waitz observou que as tribos que conservaram suas confederações tribais se
acham num nível mais elevado de desenvolvimento e possuem uma literatura mais rica do que as
tribos nas cuales estes laços foram destruídos, expressou justamente o que se tivesse podido prever
antecipadamente.
Citar mais exemplos significaria já repetir-se, tão surpreendentemente se parecem as comunas
bárbaras entre si, apesar da diversidade de climas e de raças. Um mesmo processo de
desenvolvimento se produziu em toda a humanidade, com uniformidade assombrosa. Quando,
destruída interiormente pela família separada, e exteriormente pelo desmembramento dos clãs
que emigravam e pela necessidade de aceitar em seu meio aos estrangeiros, a organização
tribal começou a descompor-se, em sua substituição apareceu a comuna aldeana, baseada sobre a
concepção de território comum. Esta nova organização, crescida de modo natural da
organização
tribal precedente, permitiu aos bárbaros atravessar o período mais turvo da história sem
desintegrar-se em famílias separadas, que tivessem perecido inevitavelmente na luta pela existência.
Sob a nova organização se desenvolveram novas formas de cultivo da terra, a agricultura atingiu uma
altura que a
maioria da população do balão terrestre não ultrapassou até os tempos presentes; a produção
artesana doméstica atingiu um elevado nível de perfeição. A natureza selvagem foi vencida;
praticaram-se caminhos através dos bosques, e pântanos, e o deserto se povoou de aldeias, brotadas
como enxames das comunas maternas. Os mercados, as cidades fortificadas, as igrejas, cresceram
entre
os bosques desertos e as planícies. Pouco a pouco começaram a elaborar-se as concepções de
uniões mais amplas, estendidas a tribos inteiras, e a grupos de tribos, diferentes por sua origem. As
velhas concepções da justiça que se reduziam simplesmente à vingança, de modo lento sofreram uma
transformação profunda e o dever de consertar o prejuízo produzido ocupou o lugar da idéia de
vingança.

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O direito comum, que até agora segue sendo lei da vida cotidiana para as duas terceiras partes
da humanidade, se não mais, elaborou-se pouco a pouco sob esta organização, o mesmo que um
sistema de costumes que tendiam a prevenir a opressão das massas pela minoria, cujas forças
cresciam à medida que aumentava a possibilidade da acumulação individual de riqueza.
Tal era a nova forma em que se encaminhou a tendência das massas ao apoio mútuo. E nós
veremos nos capítulos seguintes que o progresso -econômico, intelectual e moral- que atingiu a
humanidade sob esta forma nova popular de organização foi tão grande, que quando mais tarde
começaram a formar-se os Estados, simplesmente se apoderaram, em interesse das minorias, de
todas as funções
jurídicas, econômicas e administrativas que a comuna aldeana desempenhava já em benefício
de todos.

CAPITULO V: A AJUDA MÚTUA NA CIDADE MEDIEVAL

A sociabilidade e a necessidade de ajuda e apoio mútuo são coisas tão inatas da natureza
humana, que não encontramos na história épocas em que os homens tenham vivido dispersos
em pequenas famílias individuais, lutando entre si pelos meios de subsistência. Pelo contrário
, as investigações modernas demonstraram, como vimos nos dois capítulos precedentes, que
desde os tempos mais antigos de sua vida pré-histórica, os homens se uniam já em clãs mantidos
juntos
pela idéia da unidade de origem de todos os membros do clã e pela veneração dos
antepassados comuns. Durante muitos milênios, a organização tribal serviu, de tal modo, para
unir aos homens, apesar de que não existia nela decididamente nenhuma autoridade
para fazê-la obrigatória; e esta organização de vida deixou uma impressão profunda em todo
o desenvolvimento subsequente da humanidade.
Quando os laços da origem comum começaram a debilitar-se por causa das migrações
frequentes e longínquas, e o desenvolvimento da família separada dentro do clã mesmo,
também destruiu a antiga unidade tribal; então, uma nova forma de união, fundada no princípio
territorial -isto é, a comuna aldeana’ foi chamada à vida pelo gênio social criador
do homem. Esta instituição, a sua vez, serviu para unir aos homens durante muitos séculos,
dando-lhes a possibilidade de desenvolver mais e mais suas instituições sociais, e junto com isso,
ayudándalos a atravessar os períodos mais sombrios da história sem ter-se desintegrado em
conglomerados de famílias e indivíduos a quem nada unia entre si. Graças a isto, como vimos nos
dois capítulos precedentes, o homem pôde avançar ao máximo em seu desenvolvimento e
elaborar uma série de instituições sociais secundárias, muitas das quais sobreviveram até o
presente.
Agora temos que seguir o desenvolvimento mais avançado daquela tendência à ajuda mútua,
sempre inerente ao homem. Tomando as comunas aldeanas dos chamados bárbaros na época em que
entraram no novo período de civilização, depois da queda do império romano de Occidente, devemos
estudar agora as novas formas em que se encaminharam as necessidades sociais das massas durante a
idade média, e especialmente, as guildas medievais na cidade medieval Os assim chamados
bárbaros dos primeiros séculos de nossa era, o mesmo que muitas tribos mogólicas, africanas, árabes,

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etc., que ainda agora se encontram no mesmo nível de desenvolvimento, não só não se pareciam aos
animais
sanguinários com os que se lhes compara com freqüência , senão que, pelo contrário,
invariavelmente preferiam a paz à guerra.
Com exceção de algumas poucas tribos, que durante as grandes migrações foram arrojadas aos
desertos estéreis ou às altas zonas montanhosas, e de tal modo se viram obrigadas a viver de
incursões periódicas contra seus vizinhos mais afortunados; com exceção destas tribos
dizíamos, a grande maioria dos germanos, sajones, celtas, eslavos, etc., quanto se assentaram
em suas terras recém conquistadas, imediatamente se voltaram ao arado, ou ao bico, e a seus
rebanhos. Os códigos bárbaros mais antigos nos descrevem já sociedades compostas de comunas
agrícolas pacíficas, e de jeito nenhum hordas desordenadas de homens que se achavam em guerra
ininterrupta entre si.
Estes bárbaros cobriram os piases ocupados por eles de aldeias e granjas; desbrozaron os
bosques, construíram pontes sobre os torrentes bravíos, levantaram caminhos de trânsito sobre os
pântanos, colonizaram o deserto completamente inhabitable até então, e deixaram as arriscadas
ocupações guerreiras às irmandades, scholae, mesnadas de homens inquietos que se reuniam
alderedor de caudilhos temporarios, que iam de lugar em lugar oferecendo sua paixão de aventuras,
suas
armas e conhecimentos dos assuntos militares para proteger a população que desejava só uma
coisa: que a permitissem viver em paz. Bandas de tais guerreiros iam e vinham, livrando entre sim
guerras tribais por vinganças de sangue; mas a massa principal da população continuava
arando a terra, prestando muito pouco atendimento a seus pretendidos caudilhos, enquanto não
perturbasse a independência das comunas aldeanas. E esta massa de novos pobladores. de Europa
elaborou, já então, sistemas de posse da terra e métodos de cultivo que até agora permanecem
em vigor e em uso entre centenas de milhões de homens. Elaboraram seu sistema de compensação
pelas ofensas inferidas, em lugar da antiga vingança de sangue;
aprenderam os primeiros ofícios; ofícios; e depois de ter fortificado suas aldeias com
paliçadas, cidadelas de terra e torres, em onde podiam ocultar-se em caso de novas incursões, cedo
entregaram a proteção destas torres e cidadelas a quem faziam da guerra um ofício.
Precisamente este pacifismo dos bárbaros, e de nenhum modo os supostos instintos bélicos,
converteu-se de tal maneira na fonte do sojuzgamiento dos povos pelos caudilhos militares que
seguiu a este período. É evidente que o mesmo modo de vida das irmandades armadas dava às
mesnadas oportunidades consideravelmente maiores para o enriquecimento que as que poderiam
apresentar-se aos lavradores que levavam uma vida pacífica em suas comunas agrícolas.
Ainda hoje vemos que os homens armados, de tanto em tanto, empreendem incursões de pirataria
para matar aos matabeles africanos e tirar-lhes seus rebanhos, apesar de que os matabeles só aspiram
à paz e estão dispostos a comprá-la ainda que seja a um preço elevado; assim na antigüidade os
mesnaderos evidentemente não se distinguiam por uma escrupulosidad maior do que seus
descendentes contemporâneos. Deste modo se apropriaram de gado, ferro (que tinha naqueles tempos
um valor muito elevado) e escravos; e apesar de que a maior parte dos bens saqueados se gastava ali
mesmo nos gloriosos festines que canta a poesia épica, de todos modos uma verdadeira parte ficava e
contribuía a um enriquecimento maior.
Naqueles tempos existiam ainda abundância de terras incultas e não tinha escassez de homens
dispostos a cultivá-la sempre que pudessem conseguir o gado necessário e os instrumentos de
trabalho. Aldeias inteiras levadas à miséria pelas doenças, as epizootias do gado, os incêndios ou
ataques de novos imigrantes, abandonavam suas casas e se iam à desbandada em busca de novos
lugares de residência o mesmo que em Rússia ainda no presente há aldeias que vagam dispersas
pelas mesmas causas. E tenho aqui que se alguns dos hirdmen, isto é, chefes de mesnaderos,
ofereciam entregar aos camponeses algum gado para iniciar seu novo lar, ferro para forjar o
arado, se não o arado mesmo, e também proteção contra as incursões e os saques,
e se declarava que por alguns anos os novos colonos estariam isentos de toda paga antes de
começar a amortizar a dívida, então os imigrantes de bom grau se assentavam em sua

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terra. Portanto, quando depois de uma luta obstinada com as más colheitas, inundações e
febres, estes pioneiros começavam a reembolsar suas dívidas, facilmente se convertiam em servos do
protetor do distrito.
Assim se acumulavam as riquezas; e por trás das riquezas segue sempre o poder. Mas, no
entanto, quanto mais penetramos na vida daqueles tempos -século sexto e sétimo- tanto mais nos
convencemos de do que para o estabelecimento do poder da minoria se requeria, além da riqueza e da
força militar, ainda um elemento. Este elemento foi a lei e o direito, o desejo das massas de manter a
paz e estabelecer o que consideravam justiça; e este desejo deu aos caudilhos das mesnadas, aos
knyazi, príncipes, reis, etc., a força que adquiriram duas ou três séculos depois. A mesma idéia da
justiça, nascida no período tribal, mas concebida agora como a compensação devida pela ofensa
causada, passei como um fio vermelho através da história de todas as instituições seguintes; e em
medida
consideravelmente maior do que as causas militares ou econômicas, serviu de base sobre a
qual
se desenvolveu a autoridade dos reis e dos senhores feudais.
Em realidade, a principal preocupação das comunas aldeanas bárbaras era então (como
também agora nos povos contemporâneos nossos, situados no mesmo nível de desenvolvimento) a
rápida suspensão das guerras familiares, surgidas da vingança de sangue, devidas às concepções da
justiça, correntes então. Não bem se produzia uma rinha entre duas comuneros, imediatamente a
comuna, e a
assembléia comunal, depois de escutar o caso, fixava a compensação monetária (wergeld), isto
é, a compensação que devia pagar ao prejudicado ou a sua família, e de modo igual também o monto
da multa (fred) pela perturbação da paz, que se pagava à comuna.
Dentro da mesma comuna as disensiones se arrumavam facilmente deste modo. Mas quando se
produzia um caso de vingança de sangue entre duas tribos diferentes, ou duas confederações de
tribos -então, apesar de todas as medidas tomadas para conjurar tais guerras- era difícil encontrar o
árbitro ou conhecedor do direito comum, cuja decisão fora aceitável para ambas partes, por confiança
em sua imparcialidade e em seu conhecimento das leis mais antigas. A dificuldade se Complicava
ainda mais porque o direito comum das diferentes tribos e confederações não determinava igualmente
o monto da compensação monetária nos diferentes casos.
Devido a isto, apareceu o costume de tomar um juiz de entre as famílias ou clãs conhecidos
por que conservavam a lei antiga em toda sua pureza, e possuíam o conhecimento das canções,
versos, sagas, etcétera, com cuja ajuda se retinha a lei na memória. A conservação da lei, deste modo,
fez-se um gênero de arte, “mistério”, cuidadosamente transmitido de geração em geração, em
determinadas
famílias. Assim, por exemplo, em Islândia e nos outros países escandinavos, em cada
Alithing ou assembléia nacional, o lövsögmathr (recitador dos direitos cantava de cor todo o direito
comum, para edificação dos reunidos e em Irlanda, como é sabido, existia uma classe especial de
homens que tinham a reputação de ser cientes das tradições antigas, e devido a isto gozavam de
grande autoridade em qualidade de juízes. Por isto, quando encontramos nos anais russos notícias de
que
algumas tribos de Rússia noroccidental, vendo as desordens que iam em aumento e que
tinham sua origem no fato de que “o clã se levanta contra o clã”, foram aos varingiar normandos e
lhes pediram que se convertessem em seus juízes e em comandantes de seus mesnadas; quando
vemos mais tarde aos knyazi, eleitos invariavelmente durante os dois séculos seguintes de uma
mesma família
normanda, devemos reconhecer que os eslavos admitiam nestes normandos um melhor
conhecimento das leis de direito comum, o qual os diferentes clãs eslavos reconheciam como
conveniente
para eles. Neste caso, a posse das runas, que serviam para anotar os antigos costumes, foi então
uma vantagem positiva em favor dos normandos; apesar de que em outros casos existem também
indicações de que iam em tenta de juízes ao clã mais “antigo”, isto é , ao ramo que se considerava
materna, e que as resoluções destes juízes eram consideradas justísimas. Por último, numa época
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posterior vemos a inclinação mais notória a eleger juízes entre o clero cristão, que então se
atenta ainda ao princípio fundamental do cristianismo, agora esquecido: que a vingança não constitui
um ato de justiça.
Então o clero cristão abria suas igrejas como lugar de refúgio aos homens que fugiam da
vingança de sangue, e de bom grau intervinha em qualidade de mediador nos assuntos criminosos,
opondo-se sempre ao antigo princípio tribal: “vida por vida e sangue por sangue”.
Numa palavra, quanto mais profundamente penetramos na história das antigas instituições,
tanto menos encontramos fundamentos para a teoria da origem militar da autoridade que sustenta
Spencer. Julgando por tudo isso até a autoridade que mais tarde se converteu em fonte de opressão
teve sua origem nas inclinações pacíficas das massas. Em todos os casos jurídicos, a multa (fred) que
com freqüência atingia à metade do monto da compensação monetária (wergeld) punha-se a
disposição
da assembléia comunal, e desde tempos inmemoriales se empregava em obras de utilidade
comum, ou que serviam para a defesa.
Até agora tem o mesmo destino (ereção de torres) entre os kabilas e algumas tribos mogólicas;
e temos depoimentos históricos diretos de que ainda bastante mais tarde, as multas judiciais, em
Pskov e em algumas cidades francesas e alemãs, empregavam-se na reparação das muralhas da
cidade. Por isto era perfeitamente natural que as multas se confiassem aos juízes (knyaziá), condes,
etc., quem, ao
mesmo tempo, deviam manter a mesnada de homens armados para a defesa do território, e
também deviam fazer cumprir a sentença.
Isto se fez costume geral nos séculos oitavo e nono, até nos casos em que atuava como juiz
um bispo eleito. De tal modo apareceram os germes da fusão numa mesma pessoa do que agora
chamamos
poder judicial e executivo.
Ademais, a autoridade do rei, knyaz, conde, etc., estava estritamente limitada, a estas duas
funções. Não era, de nenhum modo, o governador do povo, o poder supremo pertencia ainda à
assembléia popular; não era nem sequer comandante da milícia popular, já que quando o povo tomava
as armas se achava sob o comando de um caudilho também eleito, que não estava submetido ao rei ou
ao knyaz, senão que era considerado seu igual. O rei ou o knyaz era senhor todo-poderoso só em seus
domínios
pessoais. Praticamente, na língua dos bárbaros a palavra knung, konung, koning ou cyning
-sinônimo do rex latino-, não tinha outro significado que o de simples caudilho temporário ou chefe
de um
destacamento de homens. O comandante de uma flotilla de barcos, ou até de um simples
navio pirata, era também konung; ainda agora em Noruega o pescador que dirige a pesca local
se chama Not-kcing (rei das redes).
As honras com que mais tarde começaram a rodear a personalidade do rei ainda não existiam
então, e enquanto o delito de traição ao clã se castigava com a morte, pelo assassinato do rei se
impunha somente uma compensação monetária, em cujo caso somente se valorizava o rei tantas vezes
mais do que um homem livre comum. E quando o rei (ou Kanut) matou a um dos membros de seu
mesnada, a saga lhe representa convocando-os à assembléia (thing), durante a qual se pôs de joelhos
suplicando perdão. Sua culpa foi perdoada, mas só depois de ter aceitado pagar uma compensação
monetária nove vezes maior que a habitual, e desta compensação recebeu ele mesmo uma terceira
parte, pela perda de seu homem, uma terceira parte foi entregada aos parentes do morto e uma terceira
parte (em qualidade de fred , isto é multa) à mesnada. Em realidade, foi
necessário que se efetuasse a mudança mais completa nas concepções correntes, sob a
influência da Igreja e o estudo do direito romano, antes de que a idéia da sagrada inviolabilidade
começasse a aplicar-se à pessoa do rei.
Me sairia eu, no entanto, dos limites dos ensaios presentes se quisesse seguir desde os
elementos acima citados o desenvolvimento paulatino da autoridade. Historiadores tais como Green e
a senhora de Green com respeito a Inglaterra Agustin Thierry, Michelet e Luchaire em França;
Kaufmann, Janssen e até Nitzsch em Alemanha; Leio e Botta em Itália, e Bielaief, Kostomarof e seus
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continuadores em Rússia, e muitos outros, referiram-nos isto detalhadamente. Mostraram como a
população, plenamente livre e que tinha lembrado somente “alimentar” a determinada quantidade de
seus protetores militares, paulatinamente se converteu em serva destes protetores; como o
entregar-se à proteção da Igreja, ou do senhor feudal (commendation), converteu-se numa
onerosa necessidade para os cidadãos livres, sendo a única proteção contra os outros depredadores
feudais; como o castelo do senhor feudal e do bispo se converteu num ninho de assaltantes numa
palavra, como se introduziu o jugo do feudalismo e como as cruzadas, livrando a todos os que
levavam a cruz, deram o primeiro impulso para a libertação do povo. Mas não temos necessidade de
referir aqui
tudo isto, pois nossa tarefa principal é seguir agora a obra do gênio construtor das massas
populares, em suas instituições, que serviam à obra de ajuda mútua. Na mesma época em que
parecia que as últimas impressões da liberdade tinham desaparecido entre os bárbaros, e que Europa,
queda sob o
poder de mil pequenos governantes, encaminhava-se diretamente ao estabelecimento dos
Estados
teocráticos e despóticos que comummente seguiam ao período bárbaro na época precedente de
civilização, ou se encaminhava à criação das monarquias bárbaras, como as que agora vemos em
Africa, nesta mesma época, dizíamos, a vida em Europa tomava uma nova direção. Encaminhou-se
em direção semelhante à que já tinha sido tomada uma vez pela civilização das cidades
da antiga Grécia.
Com unanimidade que nos parece agora quase incompreensível, e que durante muito tempo
realmente não foi observada pelos historiadores, as populações urbanas, até os burgos menores,
começaram a sacudir o jugo de seus senhores temporários e espirituais. A vila fortificada se rebelou
contra o castelo do senhor feudal; primeiramente sacudiu sua autoridade, depois atacou ao
castelo, e finalmente o destruiu. O movimento se estendeu de uma cidade a outra, e em breve
tempo participaram dele todas as cidades européias. Em menos de cem anos, as cidades livres
cresceram a orlas do Mediterrâneo, do mar do Norte, do Báltico, o oceano Atlântico e dos fiordos de
Escandinavia; ao pé dos Apeninos, Alpes Schwarzenwald, Grampianos, Cárpatos; nas planícies de
Rússia, Hungria, França e Espanha. Por todos os lados ardiam as mesmas rebeliões, que tinham em
todas partes os mesmos carateres, passando em todas partes aproximadamente através das mesmas
formas e conduzindo aos mesmos resultados.
Em cada cidade pequena, em qualquer parte onde os homens encontravam ou pensavam
encontrar certa proteção depois das muralhas da cidade ingressavam nas “conjuraciones”
(cojurations), “irmandades e amizades” (amicia), unidas por um sentimento comum, e iam
atrevidamente ao encontro da nova vida de ajuda mútua e de liberdade. E conseguiram realizar suas
aspirações tanto que, em trezentos ou quatrocentos anos mudou por completo o aspecto de Europa.
Cobriram o país de cidades nas que se elevaram edifícios formosos e suntuosos que eram expressão
do gênio das uniões livres de homens livres, edifícios cuja beleza e expressividade ainda não
superamos.
Deixaram em herança às gerações seguintes, artes e ofícios completamente novos, e toda
nossa educação moderna, com todos os sucessos que obteve e todos os que se esperam no futuro,
constituem somente um desenvolvimento ulterior desta herança.
E quando agora tratamos de determinar que forças produziram estes grandes resultados,
øencontramo-las não no gênio dos heróis individuais nem na poderosa organização dos grandes
Estados, nem no talento político de seus governantes, senão na mesma corrente de ajuda mútua e
apoio mútuo, cuja obra vimos na comuna aldeana, e que se animou e renovou na Idade Média
mediante um novo gênero de uniões, as guildas, inspiradas pelo mesmo espírito, mas que se tinha
encaminhado já numa nova forma.
Na época presente, é bem sabido que o feudalismo não implica a descomposição da comuna
aldeana, apesar de que os governantes feudais conseguiram impor o jugo da servidão aos camponeses
e apropriar-se dos direitos que antes pertenciam à comuna aldeana (contribuições, mão-morta,
impostos à herança e casamentos), os camponeses, apesar de tudo, conservaram dois direitos
comunais fundamentais: a posse comunal da terra e a jurisdição própria. Em tempos passados,
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quando o rei enviava a seu vogt Guez) à aldeia, os camponeses iam ao encontro do novo juiz com
flores numa mão e um arma na outra, e lhe perguntavam que lei tinha intenção de aplicar, se a que
ele achava na aldeia ou a que ele trazia. No primeiro caso, entregavam-lhe as flores e o aceitavam, e
no segundo,
entablaban guerra contra ele. Agora os camponeses tinham de aceitar ao juiz enviado pelo rei
ou o senhor feudal, já que não podiam recusá-lo; mas apesar de tudo, retinham o direito de jurisdição
para a assembléia comunal, e eles mesmos designavam seis, sete ou doze juízes que atuavam
conjuntamente com o juiz do senhor feudal, em presença da assembléia comunal, em qualidade de
mediadores ou pessoas que “achavam as sentenças”. Na maioria dos casos, nem sequer ficava ao juiz
real ou feudal mais do que confirmar a resolução dos juízes comunais e receber a multa (fred)
habitual.
O preciso direito ao procedimento judicial próprio, que naquele tempo implicava o direito à
administração própria e à legislação própria, conserva-se no meio de todas as guerras e conflitos.
Nem sequer os jurisconsultos que rodeavam a Carlomagno puderam destruir
este direito; viram-se obrigados a confirmá-lo. Ao mesmo tempo, em todos os assuntos
relativos às posses comunais, a assembléia comunal conservava a soberania e, como foi
demonstrado por Maurer, com freqüência exigia a submissão de parte do mesmo senhor feudal nos
assuntos
relativos à terra.
O desenvolvimento mais forte do feudalismo não pôde quebrantar a resistência da comuna
aldeana: se aferraba firmemente a seus direitos; e quanto, no século nono e no décimo, as invasões
dos normandos, árabes e húngaros, mostraram claramente que as mesnadas guerreiras em realidade
eram impotentes para proteger o país das incursões, por toda Europa os camponeses
mesmos começaram a fortificar suas populações com muros de pedras e fortines. Milhares
de centros fortificados foram erigidos então, graças à energia das comunas aldeanas; e uma
vez que ao redor das comunas se erigiram baluartes e muralhas, e neste novo santuário se criaram
novos interesses comunais, os habitantes compreenderam em seguida que agora, por trás de seus
muros, podiam resistir não só os ataques dos inimigos exteriores, senão também os ataques de. os
inimigos
interiores, isto é, os senhores feudais. Então uma nova vida livre começou a desenvolver-se
dentro destas fortalezas.
Tinha nascido a cidade medieval.
Nenhum período da história serve de melhor confirmação das forças criadoras do povo do que
os séculos décimo e décimo primeiro, em que as aldeias fortificadas e as vilas comerciais que
constituíam um gênero de “oásis na selva feudal” começaram a liberar-se do jugo dos senhores
feudais e a elaborar lentamente a organização futura da cidade. Por desgraça os depoimentos
históricos deste período se distinguem por sua extrema escassez: conhecemos seus resultados, mas
muito pouco chegou até nós sobre os meios com que estes resultados foram obtidos. Sob a proteção de
seus muros, as assembléias urbanas - algumas completamente independentes, outras sob a
direção das principais famílias de nobres ou de comerciantes- conquistaram e consolidaram o
direito a eleger o protetor militar da cidade (defensor municipit) e o do juiz supremo, ou pelo menos o
direito de eleger entre aqueles que expressassem seus desejos de ocupar este posto. Em Itália, as
comunas jovens expulsavam continuamente a seus protetores (defensores ou domina) e até sucedeu
que as
comunas deveram lutar com os que não consentiam em ir-se de bom grau. O mesmo sucedia
no Leste. Em Boêmia, tanto os pobres como os ricos (Bohemicae gentis magni et parvi, nobiles et
ignobiles), tomavam igualmente parte nas eleições; e as assembléias populares (viéche) das cidades
russas regularmente elegiam, elas mesmas, a suas knyaz -sempre de uma mesma família, os Rurik-;
contraíam pactos (convenções) e expulsavam ao knyaz se provocava descontente. Ao mesmo tempo,
na maioria das cidades do Oeste e Sul de Europa existia a tendência a designar em qualidade de
protetor da cidade (defensor) ao bispo, que a cidade mesma elegia; e os bispos com freqüência
sobressaíram tanto na defesa dos privilégios (imunidades) e das liberdades urbanas, que muitos
deles, depois de mortos, foram reconhecidos como santos ou patronos especiais de suas diferentes
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cidades. San Uthelred de Winchester, San Ulrico de Augsburg, San Wolfgang de Ratisbona, San
Heriberto de Colônia, San Adalberto de Praga, etc., e numerosos abates e monges se converteram em
santos de suas cidades por ter defendido seus direitos populares. E com a ajuda destes novos
defensores, laicos e clérigos, os cidadãos conquistaram para sua assembléia popular plenos
direitos à independência na jurisdição e administração.
Todo o processo de libertação foi avançando pouco a pouco, graças a uma série ininterrupta
de atos em que se manifestava sua fidelidade à obra comum e que eram realizados por homens
saídos das massas populares, por heróis desconhecidos, cujos mesmos nomes não foram conservados
pela história. O assombroso movimento, conhecido sob o nome de “paz de Deus (treuga Dei)”, com
cuja ajuda as massas populares tratavam de pôr limite às intermináveis guerras tribais por vingança
de sangue que se prolongava entre as famílias dos notáveis nasceu nas jovens cidades livres, e
os bispos e os cidadãos se esforçavam por estender à nobreza a paz que estabeleceram entre eles,
dentro de suas muralhas urbanas.
Já neste período, as cidades comerciais de Itália, e em especial Amalfi (que tinha
cônsules eleitos desde o ano 844) e com freqüência mudavam a seu dux no século décimo,
elaboraram o direito comum marítimo e comercial, que mais tarde serviu de exemplo para toda
Europa.
Ravenna elaborou, na mesma época, sua organização artesanal, e Milão, que fez sua primeira
revolução no ano 980, converteu-se em shopping importante e seu comércio gozava de uma
completa independência já no século décimo primeiro. O mesmo pode dizer-se com respeito a Bruxas
e Gante, e também a várias cidades francesas nas que o Mahl ou forum (assembléia popular)
tinha-se feito já uma instituição completamente independente. Já durante este período começou a obra
de embelezamento artístico das cidades com as produções da arquitetura que admiramos ainda, e que
atestam eloquentemente o movimento intelectual que se produzia então. “Quase por todo mundo
se renovavam os templos” -escrevia em sua crônica Raúl Cylaber, e alguns dos monumentos
mais maravilhosos da arquitetura medieval datam deste período: a assombrosa igreja antiga de
Bremen foi construída no século nono; a catedral de San Marcos, em Veneza foi terminada no ano
1071, e a formosa catedral de Pisa, no ano 1063.
Em realidade, o movimento intelectual que se descreveu com o nome de Renascimento do
século décimo segundo e de racionalismo do século décimo segundo, que foi precursor da Reforma,
tem seu princípio neste período em que a maioria das cidades constituíam ainda simples
aglomerações de pequenas comunas aldeanas, rodeadas por uma muralha comum, e algumas se
converteram já em comunas independentes.
Mas se requeria ainda outro elemento, a mais da comuna aldeana, para dar a estes centros
nascentes de liberdade e ilustração a unidade de pensamento e ação e a poderosa força de iniciativa
que criaram sua poderío no século décimo segundo e décimo terceiro. Sob a crescente diversidade de
ocupações, ofícios e artes, e o aumento do comércio com países longínquos, requeria-se uma forma de
união que não tinha dado ainda a comuna aldeana, e este novo elemento necessário foi encontrado nas
guildas.
Muitos volumes se escreveram sobre estas uniões que, sob o nome de guildas, irmandades,
drúzhestva, minne, artiél, em Rússia; esnaf em Servia e Turquia, amkari em Geórgia, etc.,
adquiriram grande desenvolvimento na Idade Média. Mas os historiadores tiveram de
trabalhar
mais de sessenta anos sobre esta questão antes de do que fora compreendida a universalidade
desta instituição e explicado seu verdadeiro caráter. Só agora, que já estão impressos e estudadas
centenas de estatutos de guildas e se determinou sua relação com os collegia romana, e
também com as uniões ainda mais antigas de Grécia e Índia, podemos afirmar com plena segurança
que estas irmandades são somente o desenvolvimento maior daqueles mesmos princípios cuja
aparição vimos já na organização tribal e na comuna aldeana.
Nada pode ilustrar melhor estas irmandades medievais do que as guildas temporárias que
se formavam nas naves comerciais.
Quando a nave hanseática se tinha feito à mar, costumava ocorrer que, passado o primeiro
meio dia
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desde a saída do porto, o capitão ou skiper (Schiffer) geralmente reunia em coberta a toda a
tripulação e aos passageiros e lhes dirigia, segundo o depoimento de um contemporâneo, o discurso
seguinte:
“Como nos achamos agora a graça da vontade de Deus e das ondas -dizia- devemos ser iguais
entre nós. E já que estamos rodeados de tempestades, altas ondas, piratas marítimos e outros perigos,
devemos manter um ordem estrito, a fim de levar nossa viagem a um feliz termo. Por isto devemos
rogar que tenha vento favorável e bom sucesso e, segundo a lei marítima, eleger àqueles que ocuparão
o assento dos juízes (Schöffenstellen)”. E depois a tripulação elegia a um Vogt e quatro scabini
que se convertiam em juízes. Ao final da navegação, o Vogt e os scabini se despojavam de sua
obrigação e dirigiam à tripulação o seguinte discurso: “Devemos perdoar-nos tudo o que
sucedeu na nave e considerá-lo morto (todt und ab sein lassen). Julgamos com retitude e em
interesse da justiça. Por isto, rogamos a todos vocês, em nome da justiça honesta, esquecer toda
animosidad que podais albergar o um contra o outro e jurar sobre o pão e o sal que não recordareis o
passado com rancor. Mas se algum se considera ofendido, que se dirija ao Landvogt (juiz de terra) e,
antes da queda do sol, solicite justiça ante ele”. “Ao desembarcar a terra todas as multas (fred)
cobradas no caminho se entregavam ao Vogt portuário para ser distribuídas entre os pobres”.
Este simples relato quiçá caracterize melhor do que nada o espírito das guildas medievais.
Organizações semelhantes brotavam doquiera aparecesse um grupo de homens unidos por alguma
atividade comum: pescadores, caçadores, comerciantes, viajantes, construtores, ou artesãos
assentados, etc.
Como vimos, na nave já existia uma autoridade, em mãos do capitão, mas, para o sucesso da
empresa comum, todos os reunidos na nave, ricos e pobres, os amoos e a tripulação, o capitão e os
marinheiros, lembravam ser iguais em suas relações pessoais -lembravam ser simplesmente homens
obrigados a ajudar-se mutuamente- e se obrigavam a resolver todos os desacordos que pudessem
surgir entre eles com a ajuda dos juízes eleitos por todos Exatamente o mesmo quando certo número
de artesãos pedreiros, carpinteiros, picapedreros, etc., uniam-se para a construção, por exemplo de
uma catedral, apesar de que todos eles pertenciam à cidade, que tinha sua organização política, e
apesar de que cada um deles, ademais, pertencia a sua corporação, no entanto , ao juntar-se para uma
empresa comum -para uma atividade que conheciam melhor do que as outras- se uniam ademais numa
organização fortalecida por laços mais estreitos, ainda que fossem temporarios: fundavam uma
guilda, um artiél, para a construção da catedral. Vemos o mesmo, também atualmente, no kabileño. Os
kabilas têm seu comuna aldeana, mas resulta insuficiente para a satisfação de todas suas necessidades
políticas, comerciais e pessoais de união, devido ao qual se constitui uma irmandade mais estreita em
forma de cof.
Quanto ao caráter fraternal das guildas medievais, para sua explicação, pode aproveitar-se
qualquer estatuto de guilda. Se tomamos, por exemplo, a skraa de qualquer guilda dinamarquesa
antiga, lemos nela, primeiramente, que nas guildas devem reinar sentimentos fraternais generais;
seguem depois as regras relativas à jurisdição própria nas guildas, em caso de rinha entre dois irmãos
das
guildas ou entre um irmão e um estranho, e por último, enumeram-se os deveres dos irmãos
Se a casa de um irmão se incendeia, se perde sua barca, se sofre durante uma peregrinação,
todos os demais irmãos devem ir em sua ajuda. Se o irmão se adoece de gravidade dois irmãos
devem permanecer junto a seu leito até que passe o perigo; se morre, os irmãos devem enterrá-lo -um
dever de não pouca importância naqueles tempos de epidemias frequentes- e acompanhá-lo até
a igreja e a sepultura.
Depois da morte de um irmão, se era necessário, deviam cuidar-se de seus filhos; muito com
freqüência, a viúva se convertia em irmã da guilda.
Os dois importantes rasgos acima citados se encontram em todas as irmandades, qualquer que
fosse a finalidade para a qual foram fundadas. Em todos os casos, os membros precisamente se
tratavam assim e se chamavam mutuamente irmão e irmã. Nas guildas, todos eram iguais. As guildas
tinham em comum alguma propriedade (gado, ,terra, edifícios, igrejas ou “poupanças comunais”).
Todos os

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irmãos juravam esquecer todos os conflitos tribais anteriores por vingança de sangue e, sem
impor-se entre si o dever incumplible de não xingar nunca, chegavam a um acordo para que a rinha
não passasse a ser inimizade familiar com todas as conseqüências da vingança tribal, e para que, na
solução da rinha, os irmãos não se dirigissem a nenhum outro tribunal fora do tribunal da guilda dos
mesmos irmãos.
No caso de que um irmão fora arrastado a uma rinha com uma pessoa alheia à guilda, os
irmãos estavam obrigados a apoiá-lo a qualquer preço; e se fosse ele acusado, justa ou injustamente,
de inferir a ofensa, os irmãos deviam oferecer-lhe apoio e tratar de levar o assunto a uma solução
pacífica. Sempre que a violência exercida por um irmão não fora secreta -neste último caso estaria
fora da lei- a irmandade saía em seu defesa. Se os parentes do homem ofendido quisessem vingar-se
imediatamente do ofensor com uma agressão, a irmandade o proveria de cavalo para a fugida,
ou de um bote, ou de um par de remos, de uma faca e um aço para produzir fogo; se permanecia na
cidade, acompanhava-o por todas partes uma guarda de doze irmãos; e durante este tempo a
irmandade tratava por todos os meios de arrumar a reconciliação (composition). Quando o assunto
chegava aos tribunais os irmãos se apresentavam ao tribunal para confirmar, sob juramento, a
veracidade das declarações do acusado;
se o tribunal o achava culpado, não lhe deixavam cair na ruína completa, ou ser reduzido à
escravatura devido à impossibilidade de pagar a indenização monetária reclamada: todos
participavam no pagamento dela, exatamente o mesmo que o fazia na antigüidade todo o clã.
Só no caso de que o irmão defraudasse a confiança de seus irmãos de guilda, ou até de
outras pessoas, era expulsado da irmandade com o nome de “inservible” (tha scal têm maeles af
brödrescap met nidings nafn).
A guilda era, de tal modo, prolongamento do “clã” anterior.
Tales eram as idéias dominantes destas irmandades que gradualmente se estenderam a toda a
vida medieval. Em realidade, conhecemos guildas surgidas entre pessoas de todas as profissões
possíveis: guildas de escravos, guildas de cidadãos livres e guildas mistas, compostas de escravos e
cidadãos livres; guildas organizadas com fins especiais: a caça, øpesca-a ou determinada expedição
comercial
e que se dissolviam quando se tinha conseguido o fim proposto, e guildas que existiram
durante séculos em determinados ofícios ou ramos de comércio E à medida que a vida desenvolvia
uma variedade de fins cada vez maior, crescia, em proporção, a variedade das guildas.
Devido a isto não só os comerciantes, artesãos, caçadores e camponeses se uniam em
guildas, senão que encontramos guildas de sacerdotes, pintores, maestros de escolas primárias e
universidades; guildas para a representação cênica de “A Paixão do Senhor”, para a construção de
igrejas, para o desenvolvimento dos “mistérios” de determinada escola de arte ou ofício; guildas para
distrações especiais, até guildas de mendigos, verdugos e prostitutas, e todas estas guildas estavam
organizadas segundo o mesmo duplo princípio de jurisdição própria e de apoio mútuo. Quanto a
Rússia, possuímos depoimentos positivos que indicam que o fato mesmo da formação de Rússia foi
tanto obra dos artieli de pescadores, caçadores e industriais como do resultado do surto das comunas
aldeanas. Até nos dias presentes, Rússia está coberta por artieli.
Vê-se já pelas observações precedentes cuán errônea era a opinião dos primeiros pesquisadores
das guildas quando consideravam como essência desta instituição a festividade anual que era
organizada comummente pelos irmãos Em realidade, o convite comum tinha lugar o mesmo dia, ou o
dia seguinte, depois de realizada a eleição dos chefes, a deliberação das modificações necessárias nos
regulamentos e, muito com freqüência, o juízo das rinhas surgidas entre irmãos; por último
neste dia, as vezes, renovava-se o juramento de fidelidade à guilda.
O convite comum, como o antigo banquete da assembléia comunal da tribo -mahl ou mahlum-
ou a aba dos buriatos, ou a festa paróquias e o banquete ao finalizar a recolha, serviam simplesmente
para
consolidar a irmandade.
Simbolizava os tempos em que tudo era do domínio comum do clã. Nesse dia, pelo menos,
tudo pertencia a todos; sentavam-se todos a uma mesma mesa. Até num período
consideravelmente mais avançado, os habitantes dos asilos de uma das guildas de Londres
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esse dia, sentavam-se a uma mesa comum junto com os ricos alderpnen.
Quanto à diferença que alguns pesquisadores trataram de estabelecer entre as velhas -guildas
de paz” sajonas (frith guild) e os telefonemas guildas “sociais” ou “religiosas”, com respeito a isto
pode dizer-se que todas eram guildas de paz no sentido já dito e todas elas eram religiosas no sentido
em que a comuna aldeana ou a cidade posta sob a proteção de um santo especial são sociais e
religiosas. Se a
instituição da guilda teve tão vasta difusão em Ásia, Africa e Europa, se sobreviveu
um milênio, surgindo novamente cada vez que condições similares a chamavam à vida,
explica-se porque a guilda representava algo consideravelmente maior do que uma simples associação
para a comida conjunta, ou para coincidir à igreja em determinado dia, ou para efetuar o enterro por
conta comum. Respondia a uma necessidade profundamente arraigada na natureza humana; reunia em
si todos aqueles atributos de que posteriormente se apropriou o Estado por meio de sua burocracias
seu polícia, e ainda bem mais.
A guilda era uma associação para o apoio mútuo “de fato e de conselho”,
em todas as circunstâncias e em todas as contingências da vida; e era uma organização para o
afiançamento da justiça, diferenciando-se do governo, no entanto, em que em lugar do elemento
formal, que era o rasgo essencial característico da intromissão do Estado. Até quando o irmão da
guildas aparecia ante o tribunal da mesma, era julgado por pessoas que lhe conheciam bem, estavam
a seu lado no trabalho conjunto, tinham-se sentado com ele mais de uma vez no convite comum, e
juntos cumpriam toda classe de deveres fraternais; respondia ante homens que eram seus iguais e seus
irmãos verdadeiros, e não ante teóricos da lei ou defensores de certos interesses alheios.
É evidente que uma instituição tal como a guilda, bem dotada para a satisfação da necessidade
de união, sem privar por isso ao indivíduo de sua independência e iniciativa, deveu estender-
se, crescer e fortalecer-se. A dificuldade residia somente em achar uma forma que permitisse às
federações de guildas unir-se entre si, sem entrar em conflito com as federações de comunas
aldeanas, e unisse umas e outras num tudo harmonioso. E quando se achou a forma
conveniente -na cidade livre- e uma série de circunstâncias favoráveis deu às cidades a possibilidade
de declarar e afirmar sua independência, realizaram-na com tal unidade de pensamento que teria de
provocar admiração ainda em nosso século dos transportes ferroviários, as comunicações telegráficas
e a tipografia.
Centenas de Cartas com as que as cidades afirmaram sua união chegaram até nós; e em todas
estas Cartas aparecem as mesmas idéias dominantes, apesar da infinita diversidade de detalhes
que dependiam da maior ou menor plenitude de liberdade. Por todos os lados a cidade se
organizava como uma federação dupla, de pequenas comunas aldeanas e de guildas.
“Todos os pertencentes à amizade da cidade -como diz, por exemplo, a Carta lembrada em
1188 aos cidadãos da cidade de Ar , por Felipe, conde de Flandes- prometeram e confirmado, sob
juramento, que se ajudarão mutuamente como irmãos em tudo o útil e honesto; que se o um ofende ao
outro, de palavra ou de fato, o ofendido não se vingará por si mesmo nem o farão seus chegados...
apresentará uma queixa e o ofensor pagará a devida indenização pela ofensa, de acordo com a
resolução ditada por doze juízes eleitos que atuarão em qualidade de árbitras. E se o ofensor ou o
ofendido, depois da terceira advertência, não se submete à resolução dos árbitros, será excluído da
amizade como homem depravado e perjuro.
“Todo membro da comuna será fiel a seus conjurados, e lhes prestará ajuda e conselho
de acordo com o que dite a justiça” -assim dizem as Cartas de Amiens e Abbeville-. “Todos se
ajudarão mutuamente, cada um segundo suas forças, nos limites da comuna, e não permitirão que
um tome algo a outro comunero, ou que obrigue a outro a pagar qualquer classe de
contribuição”, lemos nas cartas de Soissons, Compiégne, Senlis, e de muitas outras cidades do
mesmo tempo. “A comuna -escreveu o defensor do antigo ordem, Guilbert de Nogent- é um
juramento de ajuda mútua (mutui adjutori conjuratio)”... “Uma palavra nova e detestável. Graças a
ela, os servos (capite sensi) liberam-se de toda servidão; graças a ela, liberam-se do pagamento das
contribuições
que geralmente pagavam os servos”.

90
Esta mesma onda liberadora rodou nos séculos décimo, décimo primeiro e décimo segundo por
toda
Europa, arrollando tanto as cidades ricas como as mais pobres. E se podemos dizer que,
falando em general, primeiro se liberaram as cidades italianas (muitas ainda no século décimo
primeiro e
algumas também no século décimo), no entanto não podemos deixar de assinalar o centro
miúdo, um pequeno burgo de um ponto qualquer de Europa central se punha à cabeça do movimento
de sua região, e as grandes cidades tomavam sua Carta como modelo.
Assim, por exemplo, a Carta da pequena cidade de Lorris foi aceitada por cidades do sudeste
de França e a Carta de Beaumont serviu de modelo a mais de quinhentas cidades e vilas de Bélgica
e França. As cidades enviavam continuamente deputados especiais à cidade vizinha, para obter
cópia de sua Carta, e sobre essa base elaboravam sua própria constituição. No entanto, as
cidades não se conformavam com a simples transcrição das Cartas: compunham suas cartas em
conformidade com as concessões que conseguiam arrancar a seus senhores feudais;
resultando, como observou um historiador, que as cartas das comunas medievais se distinguem
pela mesma diversidade que a arquitetura gótica de suas igrejas e catedrais.
A mesma idéia dominante em todas, já que a catedral da cidade representava simbolicamente
a
união das paróquias ou das comunas pequenas e das guildas na cidade livre, e em cada
catedral tinha uma infinita riqueza de variedade nos detalhes de seu ornamento.
O ponto mais essencial para as cidades que se liberavam era sua jurisdição própria, que
implicava também a administração própria. Mas a cidade não era simplesmente uma parte “autônoma”
do Estado -tais palavras ambíguas não tinham sido inventadas-, constituía um Estado por si
mesmo. Tinha direito a declarar a guerra e negociar a paz, o direito de estabelecer
alianças com seus vizinhos e de federar-se com eles. Era soberana em seus próprios assuntos
e não se inmiscuía nos alheios.
O poder político supremo da cidade se encontrava, na maioria dos casos, integralmente em
mãos da assembléia popular (forum) democrática, como sucedia, por exemplo, em Pskof, onde a
viéche enviava e recebia os embaixadores, concluía tratados, convidava e expulsava aos knyaziá, ou
prescindia por completo deles durante décadas inteiras. 0 bem, o alto poder político era transferido a
mãos de algumas famílias notáveis, comerciantes ou até de nobres; ou era usurpado por eles, como
sucedia em centenas de cidades de Itália e Europa central. Mas os princípios fundamentais
continuavam sendo os mesmos: a cidade era um Estado e, o que é quiçá ainda mais notável, se o
poder da cidade tinha sido usurpado, ou se tinham apropriado paulatinamente dele a
aristocracia comercial ou até a nobreza, a vida interior da cidade e o caráter democrático de
suas relações cotidianas sofriam por isso pouca mingua: dependia pouco do que se pode chamar
forma política do Estado.
O segredo desta contradição aparente reside em que a cidade medieval não era um Estado
centralizado. Durante os primeiros séculos de sua existência, a cidade mal se podia chamar Estado,
quanto se referia a sua organização interna, já que a idade média, em general, era alheia a nossa
centralização moderna das funções, como também a nossa centralização das províncias e distritos em
mãos de um governo central. Cada grupo tinha, então, sua parte de soberania.
Comummente a cidade estava dividida em quatro bairros, ou em cinco, seis ou sete kontsi
(setores) que irradiavam de um centro onde estava situada a catedral e com freqüência a
fortaleza (krieml). E cada bairro ou koniets em general representava um determinado gênero de
comércio ou
profissão que predominavam nele, apesar de que naqueles tempos em cada bairro ou
koniets podiam viver pessoas que ocupavam diferentes posições sociais e que se entregavam a
diversas ocupações: a nobreza, os comerciantes, os artesãos e ainda os semisiervos.
Cada koniets ou setor, no entanto, constituía uma unidade inteiramente independente.
Em Veneza, cada ilha constituía uma comuna política independente, que tinha sua organização
própria de ofícios e comércios, seu comércio de sal e pão, sua administração e sua própria assembléia

91
popular ou forum. Por isto, a eleição por toda Veneza de um ou outro dux, isto é, o chefe
militar e governador supremo, não alterava a independência interior de cada uma destas comunas
individuais.
Em Colônia, os habitantes se dividiam em Geburschaften e Heimschaften (viciniae), isto é
, guildas vicinais cuja formação data do período dos francos, e cada uma destas guildas tinha
em juiz (Burgrichter) e os doze júris eleitos correntes (Schóffen), -sua Vogt (espécie de chefe
policial) e seu greve ou chefe da milícia da guilda.
A história do Londres antigo, antes da conquista normanda do século XII, diz Green, é a
história de alguns pequenos grupos, dispersos numa superfície rodeada pelos muros da cidade, e onde
cada grupo se desenvolvia por si só, com suas instituições, guildas, tribunais, igrejas, etc.; só pouco a
pouco estes grupos se uniram numa confederação municipal. E quando conferimos os anais das
cidades
russas, de Novgorod e de Pskof, que se distinguem tanto os uns como os outros pela
abundância de detalhes puramente locais, nos inteiramos de que também os kontsi, a sua vez,
consistiam em ruas (ulitsy) independentes, cada uma das quais, apesar de que estava habitada
preferencialmente por trabalhadores de um ofício determinado, contava, no entanto , entre seus
habitantes também comerciantes e agricultores, e constituía uma comuna separada. A ulitsa assumia a
responsabilidade
comuna¡ por todos seus membros, em caso de delito.
Possuía tribunal e administração próprios na pessoa dos magistrados da rua (ulitchánske
stárosty) tinha selo próprio (o símbolo do poder estatal) e em caso de necessidade, reunia-se sua
viéche (assembléia) da rua. Tinha, por último, sua própria milícia, os sacerdotes que ela elegia, e tinha
sua vida coletiva própria e suas empresas coletivas. De tal modo, a cidade medieval era uma
federação dupla: de todos os chefes de família reunidos em pequenas confederações territoriais -rua,
paróquia, koniets- e de indivíduos unidos por um juramento comum em guildas , de acordo com
suas profissões. A primeira federação era fruto do crescimento subsequente, provocado pelas novas
condições.
Em isto residia toda a essência da organização das cidades medievais livres, às que deve
Europa o desenvolvimento esplendoroso tomado por sua civilização.
O objeto principal da cidade medieval era assegurar a liberdade, a administração própria e a
paz; e a base principal da vida da cidade, como veremos em seguida, ao falar das guildas artesãos, era
o trabalho. Mas a “produção- não absorvia todo o atendimento do economista medieval. Com seu
espírito prático compreendia que era necessário garantir o “consumo” para que a produção fora
possível; e por isto o prover a “a necessidade comum de alimento e habitação para pobres e ricos-
(gemeine notdurft und gemach armer und richer), era o princípio fundamental de toda cidade. Estava
terminantemente proibido comprar produtos alimentícios e outros artigos de primeira necessidade
(carvão, lenha, etc.) antes de ser entregados ao mercado, ou comprá-los em condições
especialmente favoráveis -não acessíveis a outros- numa palavra, o preempcio, a especulação.
Tudo devia ir primeiramente ao mercado, e ali ser oferecido para que todos pudessem
comprar até que o som do sino anunciasse a clausura do mercado.
Só então podia o comerciante varejista comprar os produtos restantes: mas ainda neste caso,
seu benefício devia ser “um benefício honesto”. Ademais, se um padeiro, depois da clausura do
mercado, comprava grão por atacado, então qualquer cidadão tinha direito a exigir determinada
quantidade deste grão (arredor de meio quarter) ao preço por maior se fazia tal demanda antes da
conclusão
definitiva da operação; mas, do mesmo modo, qualquer padeiro podia fazer a demanda se um
cidadão comprava centeio para a revenda. Para moer o grão bastava com levá-lo ao moinho da cidade,
onde era moido por turno, a um preço determinado; podia-se cozer o pão no four banal, isto é, o
forno comunal.
Numa palavra, se a cidade sofria necessidade, sofriam-na então mais ou menos todos; mas,
aparte de tais desgraças, enquanto existiram as cidades Ubres, dentro de seus muros ninguém podia
morrer de fome. como sucede demasiado com freqüência em nossa época. Ademais, todas estas

92
regras datam já do período mais avançado da vida das cidades pois ao princípio de sua vida as
cidades livres
geralmente compravam por si mesmas todos os produtos alimentícios para o consumo dos
cidadãos. Os documentos publicados recentemente por Charles Gross contêm dados plenamente
precisos sobre este ponto, e confirmam sua conclusão de que os ônus de produtos alimentícios
chegadas à cidade “eram compradas por servidores públicos civis especiais, em nome da cidade, e
depois distribuídas entre os comerciantes burgueses, e a ninguém se permitia comprar mercadoria
descarregada no porto a não ser que as autoridades municipais tivessem recusado comprá-la. Tal era
-agrega Gross- segundo parece, a prática generalizada em Inglaterra, Irlanda, Gales e
Escócia. Até no século XVI vemos que em Londres se efetuava a compra comum de grão
-para comodidade e benefício em todos os aspectos, da cidade e do Palácio de Londres e de
todos os cidadãos e habitantes dela em tudo o que de nós depende”, como escrevia o prefeito em
l565
. Em Veneza, todo o comércio de grãos, como se sabe bem agora, achava-se em mãos
da cidade, e dos “bairros”, ao receber o grão do escritório que administrava a importação,
deviam distribuir pelas casas de todos os cidadãos do bairro a quantidade que corresponda a cada
um. Em França, a cidade de Amiens comprava sal e a distribuía entre todos os cidadãos ao
preço de compra; e ainda na época presente encontramos em muitas cidades francesas as aches que
antes eram o depósito municipal para o armazenamento do grão e do sal. Em Rússia, era isto um feito
corrente em Novgorod e Pskof.
Necessário isto é que toda esta questão das compras comunais para consumo dos cidadãos e
dos meios com que eram realizadas não recebeu ainda a devida atendimento de parte dos
historiadores; mas aqui e lá se encontram fatos muito instrutivos que arrojam nova luz sobre ela.
Assim, entre os documentos de Gross existe um regulamento da cidade de Kilkenny, que data do ano
1367, e por este documento nos inteiramos de que modo se estabeleciam os preços das mercadorias
“Os comerciantes e os marinhos -diz Gross- deviam mostrar, sob juramento, o preço de
compra de sua mercadoria e os gastos originados pelo transporte. Então o prefeito da cidade e duas
pessoas honestas fixavam o preço (named the price) a que devia vender-se a mercadoria. “ A mesma
regra se observava em Thurso para as mercadorias que chegavam “por mar e por terra”. Este método
“de fixar preço” harmoniza tão justamente com o conceito que sobre o comércio predominava na
Idade Média que deve ter sido corrente. O que uma terceira pessoa fixasse o preço era costume
muito antigo; e para todo gênero de intercâmbio dentro da cidade indubitavelmente se
recorria muito com freqüência à determinação do preço, não pelo vendedor ou o comprador,
senão por uma terceira pessoa -uma pessoa “honesta”-.
Mas este ordem de coisas nos remonta a um período ainda mais antigo da história do
comércio, precisamente ao período em que todo o comércio de produtos importantes era efetuado
pela cidade inteira, e os compradores eram só comisionistas apoderados da cidade para as vendas da
mercadoria que ela exportava. Assim o regulamento de Waterford, publicado também por Gross, diz
que “todas as mercadorias, de qualquer gênero que fossem... deviam ser compradas pelo prefeito (o
chefe da cidade) e os ujieres (balives), designados compradores comunais (para a cidade) para o caso,
e deviam ser distribuídas entre todos os cidadãos livres da cidade (exceptuando somente as
mercadorias próprias dos cidadãos e habitantes livres”).
Este estatuto mal se pode interpretar de outro modo que não seja admitindo que todo o
comércio exterior da cidade era efetuado por seus agentes apoderados. Ademais, temos o depoimento
direto de que precisamente assim estava estabelecido em Novgorod e Pskof.
O soberano senhor Novgorod e o soberano senhor Pskof enviavam eles mesmos suas
caravanas de comerciantes aos países longínquos.
Sabemos também que em quase todas as cidades medievais de Europa central e
ocidental, cada guilda de artesãos habitualmente comprava em comum todas as matérias
primas para seus irmãos e vendia os produtos de seu trabalho por meio de seus delegados; e mal
é admissível que o comércio exterior não se realizasse seguindo este ordem, tanto mais quanto
que, como bem sabem os historiadores, até o século XIII todos os compradores de uma
determinada cidade no estrangeiro não só se consideravam responsáveis, como corporação, das
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dívidas contraídas por qualquer deles, senão que também a cidade inteira era responsável das dívidas
contraídas por cada um de seus cidadãos comerciantes.
Somente nos séculos XII e XIII as cidades do Rhin concertaron pactos especiais que anulavam
esta caução solidária. E por último, temos o notável documento de Ipswich, publicado por Gross, no
qual vemos que a guilda comercial desta cidade se compunha de todos aqueles que se contavam entre
os homens livres da cidade e expressavam conformidade em pagar sua quota (sua “hanse”) à guildas,
e toda a comuna julgava em comum qual era o melhor modo de apoiar à guilda comercial e daí
privilégios devia dar-lhe.
A guilda comercial (the Merchant guild) de Ipswich resultava de tal modo mais bem uma
corporação de apoderados da cidade do que uma guilda comum privada.
Numa palavra. quanto mais conhecemos a cidade medieval, tanto mais nos convencemos de
do que não era uma simples organização política para a proteção de certas liberdades políticas.
Constituía uma tentativa -em maior escala do que se tinha feito na comuna aldeana- de união estreita
com fins de ajuda e apoio mútuos, para o consumo e a produção e para a vida social em general, sem
impor aos homens, por isso os grilos do Estado, senão, pelo contrário, deixando plena liberdade à
manifestação do gênio criador de cada grupo individual de homens no campo das artes, dos ofícios,
da ciência, do comércio e da organização política.
Até onde teve sucesso esta tentativa o veremos, melhor do que nada, examinando no capítulo
seguinte a organização do trabalho na cidade medieval e as relações das cidades com a população
camponesa que as rodeava.

CAPITULO VI: A AJUDA MÚTUA NA CIDADE MEDIEVAL

As cidades medievais não estavam organizadas segundo um plano traçado de antemão por
vontade de algum legislador estranho à população Cada uma destas cidades era fruto do crescimento
natural, no sentido pleno da palavra- era o resultado, em constante variação da luta entre diferentes
forças, que se ajustavam mutuamente uma e outra vez, de conformidade com a força viva de cada
uma
delas, e também segundo as alternativas da luta e segundo o apoio que achavam no meio que
as circundava. Devido a isto, não se acharão duas cidades cuja organização interna e
cujos destinos históricos fossem idênticos; e cada uma delas, -tomada em particular-, muda
sua fisionomia de século em século. Sem embargo, se jogamos uma olhada ampla sobre todas as
cidades de Europa, as diferenças locais e nacionais desaparecem e nos surpreendemos pela
similitude. assombrosa que existe entre todas elas, apesar de que cada uma de elas se desenvolveu
por si mesma, independentemente das outras, e em condições diferentes. Qualquer pequena cidade
do Norte de Escócia, povoada por trabalhadores e pescadores pobres, ou as ricas cidades de Flandes,
com seu comércio mundial, com seu luxo, amor aos prazeres e com sua vida animada; uma cidade
italiana enriquecida por suas relações com Oriente e que elaborou dentro de seus muros um gosto
artístico refinado e uma civilização refinada, e, por último, uma cidade pobre, da região
pantanosolacustre de Rússia, dedicada principalmente à agricultura pareceria que pouco têm de
comum entre si. E, no entanto, as linhas dominantes de sua organização e o espírito de que estão
impregnadas assombram por sua semelhança familiar.
Por todos os lados achamos as mesmas federações de pequenas comunas ou paróquias ou
guildas; os mesmos “suburbanos” ao redor da “cidade” mãe; a mesma assembléia popular; os mesmos
signos exteriores de independência; o selo, o estandarte,, etc. O protetor (defensor) da cidade sob
94
diferentes denominações, e diferentes roupagens, representa a uma mesma autoridade defendendo os
mesmos interesses; o abastecimento de víveres, o trabalho, o comércio, estão organizados nas
mesmas linhas gerais; os conflitos interiores e exteriores nascem dos mesmos motivos; mais ainda, as
mesmas consignas despregadas durante estes conflitos e até as fórmulas utilizadas nos anais da cidade,
ordens, documentos, são as mesmas; e os monumentos arquitetônicos, já sejam de estilo gótico,
romano ou bizantino, expressam as mesmas aspirações e os mesmos ideais; estavam concebidos para
expressar o mesmo pensamento e se construíam do mesmo modo. Muitas disimilitudes são
simplesmente o resultado das diferenças de idade de duas cidades, e essas disimilitudes entre cidades
da mesma região, por exemplo, Pskof e Novgorod, Florença e Roma, que tinham um caráter real,
repetem-se em diferentes partes de Europa A unidade da idéia dominante e as razões idênticas do
nascimento aplanam as diferenças aparecidas como resultado do clima, da posição geográfica, da
riqueza, da linguagem e da religião. Tenho aqui por que
podemos falar da cidade medieval em general, como de uma fase plenamente definida da
civilização; e apesar de que são de desejar em grau superlativo as investigações que assinalem as
particularidades locais. e individuais das cidades, podemos, não obstante, assinalar.
os rasgos. principais do desenvolvimento que eram comuns a todas elas.
Não cabe dúvida alguma de que a proteção que habitual e universalmente se lembrava ao
mercado, já desde as primeiras épocas bárbaras, desempenhou um papel importante, apesar de
não ser exclusivo, na obra da libertação das cidades medievais. Os bárbaros do período antigo não
conheciam o comércio dentro de, seus comunas aldeanas; comerciavam somente com os estrangeiros
em certos lugares determinados e certos dias fixados de antemão. E para que o estrangeiro, pudesse
apresentar-se no lugar de escambo, sem risco de ser morto em qualquer alterado sustentado por dois
clãs, por causa de uma vingança de sangue, o mercado se punha sempre sob a proteção especial de
todos os clãs. Também era inviolável, como o lugar de veneração religiosa sob cuja sombra se
organizava geralmente.
Entre os kabilas, o mercado até agora é anaya, o mesmo que o caminho pelo qual as mulheres
arcam o água dos poços; não era possível aparecer armado no mercado nem no caminho, nem sequer
durante as guerras intertribales. Na época medieval, o mercado gozava pelo comum exatamente da
mesma proteção. A vingança tribal nunca devia prosseguir-se até a vaga onde se reunia o povo com
propósitos de comerciar, e, do mesmo modo, em determinado rádio ao redor desta vaga; e se na
abigarrada multidão de vendedores e compradores se produzia alguma rinha, era mister submetê-la ao
exame daqueles sob cuja proteção se encontrava o mercado; isto é, ao tribunal da comuna, ou ao juiz
do bispado, do senhor feudal ou do rei. O estrangeiro que se apresentasse com fins comerciais era
hóspede, e até usava este homem; no mercado era inviolável.
Até o barão feudal, que sem escrúpulos despojava aos comerciantes no caminho real, tratava
com respeito ao Weichbild, o sinal da assembléia popular, isto é, a pértiga que se elevava na praça
do mercado, em cujo topo se achavam as armas reais! ou uma luva de cavaleiro, ou a imagem
do santo local, ou simplesmente a cruz, segundo estivesse o mercado sob a proteção do rei, da
assembléia popular, viéche, ou da igreja local.
É fácil compreender de que modo o poder judicial próprio da cidade, pôde originar-se no
poder judicial especial do mercado, quando este poder foi cedido, de bom grau ou não, à cidade
mesma. É compreensível, também, que tal origem das liberdades urbanas, cujas impressões se
podem seguir em muitos casos, imprimiu teu seio inevitavelmente. a seu desenvolvimento
ulterior. Deu o predomínio à parte comercial da comuna. Os burgueses que possuíam naqueles tempos
uma casa na cidade e que eram copropietários das terras dela, muito com freqüência organizavam
então uma guilda comercial, a qual tinha em suas mãos também o comércio da cidade, e apesar de
que ao princípio cada cidadão, pobre ou rico, podia ingressar na guilda comercial, e até o comércio
mesmo era efetuado em interesse de toda a cidade, por meio de seus apoderados, não
obstante a guilda comercial paulatinamente se convertia num gênero de corporação privilegiada.
Enche de zelo não admitiu em suas filas à população advenediza, que cedo começou a afluir às
cidades
livres e todas as vantagens derivadas do comércio as conservavam em benefício de umas
poucas “famílias” (lhes familles, os staroyíby, velhos habitantes) que eram cidadãos quando a
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cidade proclamou sua independência.
De tal modo, evidentemente, ameaçava o perigo do surgimento de uma oligarquia comercial.
Mas, já
no século X, e ainda mais, nos séculos XI e XII, os ofícios principais também se organizavam
em guildas, que na maioria dos casos podiam limitar as tendências oligárquicas dos comerciantes.
A guilda de artesãos daqueles tempos, geralmente vendia por si mesma os produtos que seus
membros elaboravam, e compravam em comum as matérias primas para eles, e deste modo seus
membros eram, ao mesmo tempo, tanto comerciantes corno artesãos. Devido a isto
o predomínio atingido pelas velhas guildas de artesãos desde o princípio mesmo da vida livre
das cidades deu ao trabalho de artesão aquela elevada posição que ocupou posteriormente na cidade.
Em realidade, na cidade medieval, o trabalho do artesão não era signo de posição social inferior, pelo
contrário, não só conservava impressões do profundo respeito com que se lhe tratava antes, na
comuna aldeana, senão que o rápido desenvolvimento da habilidade artística na produção de todos
os ofícios: da joalheria, do tecido, da cantería, da arquitetura etcétera, fazia que todos os que
estavam no poder nas repúblicas livres daquela época, tratassem com profundo respeito pessoal ao
artesão-artista.
Em general, o trabalho manual se considerava em: os “mistérios” (artiéti, guildas) medieval é
como um dever piedoso para os conciudadanos, corno uma função (Amt) social, tão honorável corno
qualquer outra. A idéia de “justiça” com respeito à comuna e de “verdade com respeito ao produtos e
ao consumidor, que nos pareceria tão estranha em nossa época, então impregnava todo o processo de
produção e escambo. O trabalho do curtidor, calderero, sapateiro, devia ser “justo”,
Concienzudo escreviam então. A madeira, o couro ou os fios utilizados pelos artesãos, deviam
ser “honestos”; o pão devia ser amassado “a consciência , etcétera. Transportado esta linguagem a
nossa vida moderna, aparecerá artificioso e afetado; mas então era completamente natural e estava
desprovido de toda afectação, pois que o artesão medieval não produzia para um comprador que não
conhecia, não arrojava suas mercadorias num mercado desconhecido; antes que nada producía para su
propia guilda, que al principio vendía ella misma, en sucámara de tejedores, de cerrajeros, etcétera, la
mercancíaelaborada por los hermanos de la guilda; para una hermandad de hombres en la quetodos se
conocían, en la que todos conocían la técnicadel oficio y, al estabais el precio al producto, cada uno
podía apreciar la habilidadpuesta en la producción de un objeto determinado y eltrabajo empleado en
él. Además, no era un, productor aislado que ofrecía a la comuna la
mercancía pala la compra, la ofrecía la guilda; lacomuna misma, a su vez, ofrecía a la
hermandad de las comunas confederadas aquellasmercancías que eran exportadas por ella y por
cuyacalidad respondía ante ellas.
Con tal organización para cada oficio, era cuestión de amor propio no ofrecer mercancíade
calidad inferior; os defeitos técnicos da mercadoria ou adulterações afetavam a toda a comuna, pois,
segundo as palavras de uma ordem, “destroem a confiança pública” De tal modo a produção era um
dever social e estava posta sob o controle de toda as amitas -de toda a irmandade-; devido ao qual, o
trabalho manual, enquanto existiram as cidades livres, não podia descer à posição inferior à qual, com
freqüência, chega agora.
A diferença entre o maestro e o aprendiz, ou entre o maestro e o. meio oficial (compayne,
Geselle) existiu já desde a época mesma do estabelecimento das cidades medievais livres; mas ao
princípio esta diferença era só diferença de idade e de grau de habilidade, e não de autoridade e
riqueza.
Depois de ter estado sete anos como aprendiz e de ter demonstrado conhecimento e
capacidade num
determinado ofício, por meio de uma obra feita especialmente, o aprendiz se convertia, em
maestro a sua vez. E somente bastante mais tarde , em e! século XVI, quando a autoridade real já
tinha destruído a organização da cidade e dos artesãos, podia-se chegar a maestro simplesmente por
herança ou em virtude da riqueza. Mas esta já era a época da decadência geral da indústria e da arte
da Idade Média.
No primeiro período, floreciente, das cidades medievais, não tinha nelas muito lugar para o
trabalho alugado e para os alquiladores individuais. O trabalho dos tecelões, armeros, ferreiros,
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padeiros, etcétera, efectuábase para a guilda e a cidade; e quando nos ofícios da construção se
alugavam artesãos estranhos, estes trabalhavam como corporação temporária (como se observa
também na época presente nos artiéli russos) cujo trabalho se pagava a todo o artiél, em bloco. O
trabalho
para um padrão individual começou a estender-se mais tarde ; mas também nestas
circunstâncias se pagava ao trabalhador melhor do que se paga agora, ainda em Inglaterra, e
consideravelmente
melhor do que se pagava comummente em toda Europa na primeira metade do século XIX.
Thorold Rogers fez conhecer este fato em grau suficiente aos leitores ingleses; mas é mister
dizer o mesmo da Europa continental, como o demonstram as investigações de Falke e Schónberg, e
também muitas indicações ocasionais.
Ainda no século XV, o pedreiro, carpinteiro ou ferreiro, recebia em Amiens um salário diário a
razão de quatro sols, que correspondiam a 48 libras de pão ou a uma oitava parte de um boi
pequeno (bouverd). Em Sajonia, o salário de um Geselle (meio oficial) no ofício da construção era
tal que, expressando-nos com as palavras de Falke, o obreiro podia comprar com seu salário de seis
dias três ovelhas e um par de botas. As oferendas dos obreiros (Geselle) nos diferentes templos são
também depoimentos de seu relativo bem-estar, sem falar já das oferendas suntuosas de algumas
guildas de artesãos e de seus gastos para as festividades e suas procissões pomposas. Realmente,
quanto mais estudamos as cidades medievais, tanto mais nos convencemos do que nunca o trabalho
foi tão bem pago e gozou de respeito geral como na época em do que a vida das cidades livres se
achava em seu ponto máximo de desenvolvimento. Mais ainda. Não só, muitas aspirações de nossos
radicais modernos tinham sido realizadas já na Idade média, senão que até muito do que agora se
considera utópico se aceitava então como algo completamente natural. Se burlam de nós quando
dizemos que o trabalho deve ser agradável, mas, segundo as palavras da ordem da Idade Média de
Kuttenberg, “cada um deve achar prazer em seu trabalho e ninguém deve, passando o tempo em
holganza (mit nichts thun), apropriar-se do que foi produzido com a aplicação e o trabalho alheio, pois
as leis devem ser um escudo para a defesa da aplicação e do trabalho”.
E entre todas as palestras modernas sobre a jornada de oito horas de trabalho, não seria
inoportuno recordar a ordem de Fernando I, relativa às minas imperiais de carvão; segundo esta
ordem se estabelece a jornada de trabalho do mineiro em oito horas “como se fez desde antigo” (wie
vor Alters herkommen), e que estava completamente proibido trabalhar depois do meio dia do sábado
. Uma jornada de trabalho mais longa era muito rara, diz Janssen, enquanto se davam com bastante
freqüência as mais curtas. Segundo as palavras de Rogers, em Inglaterra, no século XV, os
trabalhadores trabalhavam somente quarenta e oito “horas por semana”. O semiferiado do sábado,
que consideramos uma conquista moderna, em realidade era uma antiga instituição medieval; era esse
o dia balnear de uma parte considerável dos membros da comuna, e as quintas-feiras, depois do meio
dia, era-o para todos os meios oficiais (Geselle). E a pesar de que naquela época não existiam ainda
os refeitórios escolares -provavelmente porque não enviavam famintos os meninos à escola-
se tinha estabelecido, em diversas cidades, o distribuir dinheiro aos meninos para o banho, se
este gasto constituía um ônus para seus pais.
Quanto aos congressos de trabalhadores, eram um fenômeno corrente na Idade Média. Em
algumas partes de Alemanha, os artesãos de um mesmo ofício, mas que pertenciam a diferentes
comunas, geralmente se reuniam para determinar o prazo da aprendizagem, o salário, a condição da
viagem por seu país, que se considerava então obrigatório para todo trabalhador que tinha terminado
sua aprendizagem, etcétera. No ano 1572, as cidades que pertenciam à une hanseática formalmente
reconheciam aos artesãos o direito de reunir-se periodicamente em assembléia e adotar qualquer
gênero de resoluções, sempre que estas últimas não se opusessem às ordens das cidades, que
determinavam a qualidade das mercadorias. É sabido que tais congressos de trabalhadores
em parte internacionais (como a mesma Hansa), eram convocados pelos padeiros, fundadores,
curtidores, ferreiros, espaderos, toneleros.
A organização das guildas requeria, naturalmente, uma supervisão cuidadosa delas sobre
os artesãos, e para este fim se designavam júris especiais. É notável, no entanto, o fato de que
enquanto as cidades levavam uma vida livre, não se ouviam queixas sobre supervisão; enquanto
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quando o Estado interveio e confiscou a propriedade das guildas e violou sua independência em
benefício de sua própria burocracia, as queixas se fizeram simplesmente inumeráveis. Por outra
parte, o enorme progresso no campo de todas as artes, atingido sob o sistema da guilda medieval, é a
melhor demonstração de do que este sistema não era um obstáculo para o desenvolvimento da
iniciativa pessoal.
O fato é que a guilda medieval, como a paróquia medieval, a ulitsa ou o koniets, não era uma
Corporação de cidadãos postos baixo em controle dos servidores públicos do Estado; era uma
confederação de todos os homens unidos para uma determinada produção, e em sua composição
entravam compradores jurados de matérias primas, vendedores de mercadorias manufaturadas e
mestres artesãos, meio oficiais, compaynes e aprendizes.
Para a organização interna de uma determinada produção, a assembléia de todas estas pessoas
era soberana, enquanto não afetasse às outras guildas, em cujo caso o assunto se submetia à
consideração da guilda das guildas, isto é , da cidade. Aparte das funções recém indicadas, a guilda
representava ainda algo mais. Tinha sua jurisdição própria, isto é, o direito próprio de justiça em seus
assuntos, e sua própria força armada; tinha suas assembléias gerais ou viéche, próprias tradições de
luta, glória e independência, e suas relações próprias com as outras guildas do mesmo ofício ou
ocupação de outras cidades.
Numa palavra, levava uma vida orgânica plena, que provia de que abraçava num conjunto a
vida toda desta união Quando a cidade era convocada às urnas, a guilda marchava como uma
companhia separada (Schaar), equipada com as armas que lhe pertenciam (e numa época mais
avançada, com seus canhões próprios, enfeitados amorosamente pela guilda), sob o comando dos
chefes eleitos por ela mesma. Numa palavra, a guilda era a mesma unidade independente, era a
federação, como o era a república de Uri, ou Genebra, cinquenta anos atrás, na confederação suíça.
Por esta razão, comparar as guildas com os sindicatos modernos ou as uniões profissionais,
despojados de todos os atributos da soberania do Estado e reduzidos ao cumprimento de dois ou três
funções secundárias, é tão irrazonable corno comparar Florença e Bruxas com qualquer comuna
aldeana francesa que arrasta uma vida desgraçada, sob a opressão do prefecto e do código
napoleônico, ou com uma cidade russa administrada segundo as ordens municipais de Catalina II. A
aldehuela francesa e a cidade russa têm também seu prefeito eleito, como o tinham Florença e Bruxas,
e a cidade russa até tinha as corporações de alfândegas; mas a diferença entre eles é toda a
diferença que existe entre Florença, por uma parte, e qualquer aldehuela de Fontenayles
Oises, em França, ou Tsarevokokshaisk, por outra; ou bem, entre o dux veneziano e o prefeito
de aldeia moderno, que se inclina ante o escribiente do senhor subprefecto.
As guildas da Idade Média estavam em condição de sustentar sua independência, e quando
mais tarde especialmente no século XIV, devido a várias razões que indicaremos em seguida, a
antiga vida da cidade começou a sofrer profundas mudanças, então os ofícios mais jovens
demonstraram ser o bastante fortes para conquistar-se, a sua vez, a parte que lhes correspondia na
direção dos assuntos da cidade As massas organizadas em guildas “menores” se rebelaram para
arrancar o poder
de mãos da oligarquia crescente, e na maioria dos casos obtiveram sucesso, e então abriram
uma nova era de florecimento das cidades livres. Verdade é que, em algumas cidades, a rebelião das
guildas menores foi afogada em sangue, e então se decapitou sem piedade aos trabalhadores, como
sucedeu no ano 1306 m Paris e em 1374 em Colônia. Nesses casos, as liberdades urbanas, depois de
tais
derrotas, encaminharam-se para a decadência, e a cidade caiu sob o jugo do poder central. Mas
na maioria das cidades existiam forças vitais suficientes como para sair da luta renovadas e com
energias novas. Um novo período de renovação juvenil foi então sua recompensa.
Se infundiu às cidades uma onda de vida nova, que achou também sua expressão em
magníficos monumentos arquitetônicos novos e num- novo período de prosperidade, no progresso
repentino da técnica e dos inventos, e no novo movimento intelectual que conduziu cedo à época do
Renascimento e da Reforma A vida da cidade medieval era uma série completa de lutas que tinham
que livrar os burgueses para obter a liberdade e conservá-la.

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Verdade é que durante esta dura luta se desenvolveu a raça dos cidadãos forte e tenaz; verdade
é que esta luta criou o amor e a adoração pela cidade natal e que os grandes fatos realizados pelas
comunas, medievais estavam inspirados precisamente por este amor. Mas os sacrifícios que tiveram
que fazer as comunas nas lutas pela liberdade eram, no entanto, muito duros, e a luta sustentada pelas
comunas introduziu fontes profundas de disensiones em sua vida interior mesma. Muito poucas
cidades conseguiram, graças ao concurso de circunstâncias favoráveis, atingir a liberdade
imediatamente, e na maioria dos casos a perderam com a mesma facilidade.
A enorme maioria das cidades teve de lutar durante cinquenta e cem anos, e a vezes mais,
para atingir o primeiro reconhecimento de seus direitos a uma vida livre, e outro século mais antes de
do que conseguissem afirmar sua liberdade sobre uma base sólida; as Cartas do século XII foram
somente os primeiros passos para a liberdade. Em realidade, a cidade medieval era um oásis
fortificado num país afundado na submissão feudal, e teve que afirmar com a força das armas seu
direito à vida.
Devido às razões expostas brevemente no capítulo que precede, toda comuna aldeana caiu
gradualmente sob o jugo de algum senhor laico ou clérigo. A casa de tal senhor pouco a pouco se
transformou em castelo, e seus irmãos de armas se converteram então na pior classe de vagabundos
mercenários, sempre dispostos a despojar aos camponeses. A mais da barchina, isto é, dos três dias
semanais que os camponeses deviam trabalhar para o senhor, imponíanles agora iodo gênero de
contribuições por tudo: pelo direito de semear e colher pelo direito de estar triste ou de alegrar-se,
pelo direito de viver, casar-se e morrer. Mas o pior de tudo era do que constantemente os despojavam
os homens armados do que pertenciam às mesnadas dos terratenientes feudais vizinhos, quem
olhavam aos camponeses como se fossem familiares. do senhor, e por isso, se estourava entre seus
senhores uma guerra tribal por vingança de sangue, exerciam sua vingança sobre seus
camponeses, seus gados e seus semeados. Ademais, todos os prados, todos os campos, todos os rios e
caminhos, tudo ao redor da cidade e todo homem assentado sobre a terra estavam sob a autoridade
de algum senhor feudal.
O ódio dos burgueses contra os terratenientes feudais achou uma expressão muito precisa em
algumas Cartas que obrigaram a assinar a seus ex-senhores. Enrique V, por exemplo, deveu assinar,
na Carta lembrada à cidade de Speier , no ano 1111, que livrava aos burgueses de “a lei horrível e
indigna da posse de manomuerta, pela qual a cidade foi levada à miséria mais profunda (von dem
Scheusslichen
und nichtswurdigen Gesetze, welches gemein Budel genannt wird. Kallsen, T. I. 397 .).
Na coutume, isto é, ordem da cidade de Bayona existem tais linhas: “O povo é anterior ao
senhor. O. povo, que ultrapassa por seu número às outras classes, desejando a paz, criou aos senhores
para frear e reprimir aos poderosos”, etc. (Giry, Etablissements de Rouen , T. I., 117, citado por
Luchairel pág. 24). Uma carta submetida à assinatura do rei Roberto não é menos característica.
Obrigaram-lhe a dizer nela:
“Não roubarei bois nem outros animais. Não me apoderarei dos comerciantes nem lhes tirarei
seu dinheiro, nem lhes imporei resgate. Desde a Anunciación até o dia de Todos os Santos, não me
apoderarei, nos prados, de cavalos, éguas nem potros. Não incendiarei os moinhos e não
roubarei a farinha... Não prestarei proteção aos ladrões , etc. (Pfister publicou este documento,
reproduzido também por Luchaire).
A Carta “outorgada” pelo bispo de Besangon, Hugues, à cidade que se tinha rebelado contra
ele, na qual deveu enumerar todas as calamidades causadas por seus direitos à posse feudal, não é
menos característica. Se poderiam citar muitos outros exemplos. Conservar a liberdade entre a
arbitrariedade dos barões feudais que as rodeavam tivesse sido impossível, e por isto as cidades livres
se viram obrigadas a iniciar uma guerra fora de seus muros.
Os burgueses começaram a enviar seus homens para levantar às aldeias contra os
terratenientes e dirigir a insurreição; aceitaram às aldeias na organizaci6n de suas corporações; e por
último iniciaram a guerra direta contra a nobreza. Em Itália, onde a terra estava densamente povoada
de castelos feudais, a guerra assumiu proporções heróicas e era livrada por ambas partes com
extrema dureza. Florença teve que sustentar, durante setenta e sete anos inteiros guerras sangrentas
para liberar seu contado (isto é, sua província) dos nobres, mas, quando a luta se terminou
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vitoriosamente (no ano 1181), teve que começar de novo. A nobreza reuniu suas forças e formou suas
próprias unes em contraposição às unes das cidades, e recebeu o apoio crescente já seja de parte do
imperador ou do papa, e prolongou a guerra ainda cento mais trinta anos.
O mesmo sucedeu na região de Roma, em Lombardía na região de Génova, por toda Itália.
Prodígios de valor, audácia e tenacidade foram real içados pelos burgueses durante estas
guerras. Mas o arco e as segures de guerra dos artesãos das cidades não sempre se impuseram a o!
cavaleiros vestidos de armaduras e muitos castelos resistiram o assédio com sucesso, apesar das
engenhosas máquinas agressivas e a tenacidade dos burgueses que o sitiavam.
Algumas cidades, como por exemplo Florença, Bologna e muitas outras em França,
Alemanha e Boêmia, conseguiram liberar às aldeias que as rodeavam, e a recompensa de seus
esforços foi uma notável prosperidade e tranqüilidade. Mas ainda nestas cidades, e mais ainda nas
cidades menos poderosas ou menos empreendedoras, os comerciantes e os artesãos, esgotados pela
guerra e compreendendo falsamente seus próprios interesses, concertaron a paz com o barões,
vendendo-lhes, por assim dizê-lo, os camponeses.
Obrigaram ao barão a prestar juramento de lealdade à cidade; seu castelo foi destruído até os
alicerces e ele deu sua conformidade para construir uma casa e viver na cidade onde se converteu
então em conciudadano (combourgeois, concittadino), mas em mudança, conservou a maioria de
seus direitos sobre os camponeses, quem de tal modo receberam só um alívio parcial do ônus servil
que pesava sobre eles.
Os burgueses não compreenderam que lhes era mister dar iguais direitos de cidadania ao
camponês, em quem tinham que confiar em matéria de abastecimento de produtos alimentícios para
a cidade; e devido a esta incompreensão entre a cidade e a aldeia se abriu entre eles, desde então, um
profundo abismo. Em algumas ocasiões, os camponeses somente mudaram de senhores, já que a
cidade comprava os direitos ao barão e os vendia em parte a seus próprios cidadãos. A servidão se
manteve de tal modo, e só consideravelmente mais tarde , ao final do século XIII, revolução dos
ofícios
menores lhe pôs fim; mas, tendo destruído a servidão pessoal, esta revolução, ao mesmo
tempo, tirava não poucas vezes ao camponês suas terras. Mal é necessário agregar que as cidades
sentiram cedo em carne própria as conseqüências fatais de tal política miope: a aldeia se converteu
em inimiga da cidade.
A guerra contra os castelos teve ainda uma conseqüência perniciosa mais: arrojou às cidades
a guerras prolongadas, o que permitiu que se formasse entre os historiadores a teoria que
esteve em voga até tempos recentes, e segundo a qual as cidades perderam sua liberdade devido à
inveja recíproca e à luta entre si. Sustentavam esta teoria especialmente os historiadores imperialistas,
mas foi sacudida fortemente pelas recentes investigações. É indubitável que em Itália as cidades
lutaram entre si com animosidad obstinada; mas em nenhuma parte, fora de Itália, as guerras
urbanas, especialmente no período antigo, tiveram suas causas especiais. Foram (como o
demonstraram já Sismondi e Ferrari) o prolongamento da luta contra os castelos, o prolongamento
inevitável da luta do princípio do município livre e federativo na contramão do feudalismo, do
imperialismo e do papado; isto é , na contramão dos apoiantes da servidão, apoiados uns pelo
imperador germano e outros pelo papa. Muitas cidades que se tinham liberado só em parte do poder
do bispo, do senhor feudal ou do imperador, foram arrastadas pela força à luta contra as cidades livres,
pelos nobres, o imperador e a
Igreja, cuja política tendia a não permitir que as cidades se unissem, e a armá-las uma contra
a outra. Estas condições especiais (que parcialmente se tinham refletido também sobre Alemanha)
explicam por que as cidades italianas, das quais algumas procuraram o apoio do imperador para lutar
contra o papa, outras o da Igreja para lutar contra o imperador, Cedo se dividiram em dois campos,
gibelinos
e güelfos, e por que a mesma divisão apareceu também dentro de cada cidade.
O enorme progresso econômico atingido pela maioria das cidades italianas justamente na
época em que estas guerras estavam em seu apogeu, e a ligeireza com que se concertaban as alianças
entre as cidades, dão uma idéia ainda mais fiel da luta das cidades e socava mais ainda a teoria acima
citada.
100
E nos anos 1130-1150 começaram a formar-se poderosas alianças ou unes de cidades; e
decorridos alguns anos, quando Federico Barbarroja atacou a Itália, e, apoiado pela nobreza e
algumas cidades retardadas marchou contra Milão, o entusiasmo do povo se acordou com força em
muitas cidades, sob a influência dos predicadores populares. Cremona, Piacenza, Brescia, Tortona e
outras se lançaram ao resgate; os estandartes das guildas de Verona, Pádua, Vicenzia e Trevisso,
llameaban juntos no
acampamento das cidades contra os estandartes do imperador e da nobreza.
O ano seguinte se formou a aliança lombarda, e sessenta anos depois vemos já que esta une se
fortificou com as alianças de muitas outras cidades, e constituiu uma organização durável que
guardava a metade de seus fundos de guerra em Génova e a metade em Veneza. Em Toscana,
Florença encabeçava outra une poderosa, a de Toscana, à que pertenciam Lucea, Bologna, Pistoia e
outras cidades, e a qual desempenhou um papel importante na derrota da nobreza de Itália central.
Unes mais reduzidas eram, naquela mesma época, o fenômeno mais corrente. De tal modo, é
indubitável que apesar de que existia rivalidade entre as cidades, e não era difícil semear a discórdia
entre elas, esta rivalidade não impedia às cidades unir-se para a defesa comum de sua liberdade.
Somente mais tarde, quando cada uma das cidades se converteu num pequeno Estado, começaram
entre elas guerras, como sucede sempre que os Estados começam a lutar entre si pelo predomínio ou
pelas colônias.
Unes semelhantes se formaram, com o mesmo fim, em Alemanha. Quando, sob os herdeiros
de Conrado, o país se converteu num campo de intermináveis guerras de vingança entre os barões,
as cidades de Westfalia formaram uma une contra os cavaleiros, e um dos pontos do pacto era a
obrigação de não dar nunca empréstimo de dinheiro ao cavaleiro que continuasse ocultando
mercadorias roubadas. Nos tempos em que “os cavaleiros e a nobreza viviam da rapiña e matavam a
quem queriam”, como diz a queixa de Worms (Wormser Zorn), as cidades do Rhin (Mainz, Colônia,
Speier, Strassbourg e Basel) tomaram a iniciativa de formar uma une para perseguir aos saqueadores
e manter a paz; cedo contou com sessenta cidades que tinham ingressado na aliança. Mais tarde, øune-
a das cidades de Suabia, divididas em três círculos de paz- (Augsburg, Constanza e Ulm) perseguia
o mesmo objeto.
E apesar de que estas alianças foram rompidas se prolongaram o tempo suficiente como para
demonstrar que enquanto os pretendidos pacificadores -os reis, imperadores e a Igreja- fomentavam a
discórdia, e eles mesmos eram impotentes contra os rapaces cavaleiros, o impulso para o
estabelecimento da paz e a união proviu das cidades As cidades -e não os imperadores- foram os
verdadeiros criadores da união nacional.
Alianças similares, melhor dito, federações, com fins semelhantes, organizaram-se também
entre as aldeias, e agora que Luchaire chamou o atendimento sobre este fenômeno é de esperar que
cedo conheceremos mais detalhes destas federações Sabemos que as aldeias se uniram em pequenas
unes no distrito (contado) de Florença; também nos distritos submetidos a Novgorod e Pskof. Quanto
a França, existe o depoimento positivo da federação de dezessete aldeias camponesas que existiu no
Laonnais durante quase cem anos (até o ano 1256) e que lutaram obstinadamente por sua
independência. Ademais, nas vizinhanças da cidade de Laon existiam três repúblicas camponesas que
tinham tortas juradas, segundo o modelo da Carta de Laon e Soissons, e como suas terras lindaban,
apoiavam-se mutuamente em suas guerras de libertação. Em general, Luchaire opina que muitas de
tais uniões se formaram em França nos séculos XII e XIII, mas na maioria dos casos se perderam as
notícias documentários sobre elas.
Naturalmente, não estando protegidas por muros, como as cidades, as uniões aldeanas foram
facilmente destruídas pelos reis e barões, mas sob algumas condições favoráveis, quando
acharam apoio nas uniões das cidades, ou proteção em suas montanhas, semelhantes
repúblicas camponesas se fizeram independentes, como ocorreu na Confederação Suíça.
Quanto às uniões concertadas pelas cidades com fins especiais, eram um fenômeno muito
corrente. As relações estabelecidas no período de libertação, quando as cidades se copiavam
mutuamente as cartas, não se interromperam posteriormente. As vezes quando os seabini de qualquer
cidade alemã deviam pronunciar uma sentença, num caso para eles novo e complexo, e declaravam
que não podiam
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achar a resolução (dês Urtheiles nieht weise zu sejam), enviavam delegados a outra cidade
com o fim de procurar uma solução oportuna.
O mesmo sucedia também em França. Sabemos também que Forli e Ravenna naturalizavam
reciprocamente a seus cidadãos e lhes davam plenos direitos em ambas cidades. Submeter uma
disputa surgida entre duas cidades, ou dentro da cidade, à resolução de outra comuna, à que incitavam
a atuar em qualidade de árbitra, estava também no espírito da época. Quanto aos pactos comerciais
entre as cidades eram coisa muito corrente. As uniões para a regulação da produção e a determinação
do volume dos toneles utilizados no comércio de vinhos, as “uniões dos arenqueros”, etc., foram
precursores da grande federação comercial da Hansa flamenca, e mais tarde, da grande Hansa
germânica do Norte, na qual ingressaram a soberana Novgorod e algumas cidades polacas. A história
destas duas vastas uniões é interessante em grau sumo, e instrutiva, mas se requereriam muitas
páginas para relatar sua vida complexa e multiforme. Observarei, somente, que graças às Uniões da
Idade Média fizeram mais pelo desenvolvimento das relações internacionais, da navegação marítima e
das descobertas marítimas que todos os Estados dos primeiros dezessete séculos de nossa era.
Resumindo o dito, une-las e as uniões entre pequenas unidades territoriais, o mesmo que entre
os homens que se uniam com fins comuns em seus guildas correspondentes, e também as federações
entre as cidades e grupos de cidades, constituiu a essência mesma da vida e do pensamento de todo
este período.
Os primeiros cinco séculos do segundo milênio de nossa era (até o XVI) podem ser
considerados, de tal modo, uma colossal tentativa de assegurar a ajuda mútua e o apoio mútuo
em grande escala, sobre os princípios da união e da colaboração, levados através de todas as
manifestações da vida humana e em todos os graus possíveis. Esta tentativa foi coroada pelo sucesso
em grau considerável. Uniu aos homens, antes divididos, assegurou-lhes uma liberdade considerável,
decuplicó suas forças. Naquela época em que multidão de toda classe de influências criavam nos
homens a tendência a isolar-se dos outros em sua célula, e existia tal abundância de causas de
discórdia, é consolador ver e observar que as cidades disseminadas por toda Europa tivessem tanto
em comum e que com tal presteza se unissem para a perseguição de tão numerosos objetivos
comuns. Verdade é que, ao final de contas, não resistiram ante, inimigos poderosos. Praticavam
amplamente os princípios de ajuda mútua, mas, no entanto, separando-se dos camponeses lavradores,
aplicaram estes princípios à vida de uma maneira que não foi suficientemente ampla, e privadas do
apoio dos camponeses as cidades não puderam resistir a violência dos reinos e impérios nascentes.
Mas não pereceram devido à inimizade recíproca, e seus erros não foram a conseqüência do
desenvolvimento insuficiente do espírito federativo entre eles.
A nova direção tomada pela vida humana na cidade da Idade Média teve enormes
conseqüências no desenvolvimento de toda a civilização. A começos do século XI, as cidades de
Europa constituíam somente pequenos grupos de miseráveis choças, que se refugiavam ao redor de
igrejas baixas e deformes, cujos construtores mal se sabiam traçar um arco. Os ofícios, que se
reduziam principalmente à tejeduría e à forja, achavam-se em estado embrionário; a ciência
encontrava refúgio só em alguns mosteiros. Mas trezentos cinquenta anos mais tarde o aspecto
mesmo de Europa mudou por completo.
A terra estava já semeada de ricas cidades, e estas cidades hallábanse rodeadas por muros
dilatados e espesos que se achavam enfeitados por torres e portas ostentosas a cada uma de, as quais
constituía uma obra de arte. Catedrais concebidas em estilo grandioso e cobertas por numerosos
ornamentos decorativos, elevavam às nuvens seus altos campanários, e em sua arquitetura se
manifestava tal
audácia de imaginação e tal pureza de forma, que em vão nos esforçamos em atingir na
época presente. Os ofícios e as artes se elevaram a tal perfeição que ainda, agora mal
podemos dizer que as superamos em muito, se não colocamos a velocidade da fabricação
acima do talento inventiva do trabalhador e da terminação de seu trabalho. As naves das
cidades livres sulcavam em todas direções o mar Mediterrâneo norte e sul; um esforço mais e
cruzariam o oceano. Em vastas extensões, o bem-estar ocupou o lugar da miséria anterior;
desenvolveu-se e se estendeu a educação.
Junto com isto se elaborou o método científico de investigação -positivo e natural em lugar
102
da escolástica anterior- e foram estabelecidas as bases da mecânica e das ciências físicas. Mais
ainda: estavam preparados todos aqueles inventos mecânicos de que tanto se orgulha o século XIX.
Tales foram as mudanças mágicas que se tinham produzido em Europa em menos de quatrocentos
anos. E as perdas sofridas por Europa quando caíram suas cidades livres podem ser plenamente
apreciadas se se compara o século dezessete com o quatorze ou até com o treze. No século dezoito
desapareceu o bem-estar que distinguia a Escócia, Alemanha, as planícies de Itália. Os caminhos
decaíram,
as cidades se despoblaron, o trabalho livre se converteu em escravatura, as artes se
murcharam, e até o comércio decaiu. .
Se depois das cidades medievais não tivesse ficado monumento escrito algum, pelos quais se
pudesse julgar o esplendor de sua vida, se tivessem ficado depois delas somente os monumentos de
sua arte arquitetônica, que achamos dispersos por toda Europa, de Escócia a Itália, e de Gerona em
Espanha, até Breslau, no território eslavo, ainda então poderíamos dizer
que a época das cidades independentes foi a do máximo florecimento do intelecto humano
durante todos os séculos do cristianismo, até o fim do século XVIII.
Olhando, por exemplo, o quadro medieval que representa Nuremberg, com suas dezenas de
torres e elevados campanários que levavam em se cada uma o selo da arte criador livre, mal podemos
imaginar que só trezentos anos antes Nuremberg era unicamente um montão de choças miseráveis.
O mesmo com respeito a todas as cidades livres da Idade Média, sem exceção. E nosso
assombro aumenta à medida que observamos em detalhe a arquitetura e os ornatos de cada uma das
inumeráveis igrejas, campanários, portas das cidades e casas consistoriales, disseminados por toda
Europa, começando por Inglaterra, Holanda, Bélgica, França e Itália, e chegando, no Leste, até
Boêmia e até as cidades da Galitzia polaca, agora mortas. Não somente Itália -mãe da arte-, senão
toda Europa, estava repleta de semelhantes monumentos. É extraordinariamente significativo,
ademais, o fato de que de todas as artes, a arquitetura arte social por excelência
atingisse nesta época o mais elevado desenvolvimento. E realmente, tal desenvolvimento da
arquitetura foi possível só como resultado da sociabilidade altamente desenvolvida na vida de então.
arquitetura medieval atingiu tal grandeza não só porque era o desenvolvimento natural
de um ofício artístico, como insistiu sobre isto justamente Ruskin; não somente porque cada
edifício e cada ornato arquitetônico foram concebidos por homens que conheciam pela experiência de
suas próprias mãos quais efeitos artísticos podem produzir a pedra, o ferro, o bronze ou simplesmente
as vigas e o cimento misturado com calhaus; não só porque cada monumento era o resultado da
experiência coletiva reunida, acumulada em cada arte ou ofício, a arquitetura medieval era grande
porque era a expressão de uma grande idéia.
Como a arte grega, surgiu da concepção da fraternidade e unidade alentadas pela cidade.
Possuía uma audácia que pôde ser conseguida só graças à luta atrevida das cidades contra seus
opressores e vencedores; respirava energia porque toda a vida da cidade estava impregnada de
energia. A catedral ou a casa consistorial da cidade encarnava, simbolizava, o organismo no qual cada
pedreiro e picapedrero eram construtores.
O edifício medieval nunca constituía o desígnio de um indivíduo, para cuja realização
trabalham milhares de escravos desempenhando um trabalho determinado por uma idéia alheia: toda
a cidade tomava parte em sua construção. O alto campanário era parte de um grande edifício; no que
palpitava a vida da cidade não estava colocado sobre uma plataforma que não a faz como a torre Eiffel
de Paris; não era uma construção falsa, de pedra: erigida com objeto de ocultar a fealdad do armação
de ferro que lhe servia de base, como foi feito recentemente no Towér Bridge, Londres. Como a
Acrópolis de Atenas, a catedral da cidade medieval tinha por objeto glorificar as grandezas da cidade
vitoriosa;
encarnava e espiritualizaba a união dos ofícios, era a expressão do sentimento de cada
cidadão, que se orgulhava de sua cidade, já que era sua própria criação. Não raramente ocorria
também que a cidade, tendo realizado com sucesso a segunda: resolução dos ofícios menores,
começava a construir uma nova catedral com objeto de expressar a união nova, mais profunda e
ampla, que tinha aparecido em sua vida.

103
As catedrais e casas consistoriales da Idade Média têm um rasgo assombroso mais. Os recursos
efetivos com que as cidades começaram suas grandes construções costumavam secar na maioria dos
casos, desproporcionadamente reduzidos. A catedral de Colônia, por exemplo, foi iniciada com um
desembolso anual de 500 marcos ao todo; uma doação de 100 marcos se inscreveu como dádiva
importante.
Até quando a obra se aproximava a seu fim, o gasto anual mal avançava a 5.000 marcos, e
nunca ultrapassou os 14.000. A catedral de Basilea foi construída com os mesmos insignificantes
meios. Mas cada corporação ofrendaba para seu monumento comum tua parte de pedra de trabalho e
de gênio decorativo. Cada guilda expressava nesse momento suas opiniões políticas, referindo, na
pedra ou o bronze, a história da cidade, glorificando os princípios de liberdade, igualdade e
fraternidade;
engrandecendo aos aliados da cidade e condenando ao fogo eterno a seus inimigos. E cada
guilda expressava seu amor ao monumento comum ornándolo ricamente com janelas e vitrales,
pinturas,
“com portas de igreja dignas de ser as portas do céu” -segundo a expressão de Miguel Angel-
ou com ornatos de pedra em todos os menoresrincões da construção.
As pequenas cidades, e até as menores paróquias, rivalizavam neste gênero de trabalhos com
as grandes cidades, e as catedrais de Lyon ou de Saint Ouen mal cedem à catedral de Reims, à Casa
Consistorial de Bremen ou ao campanário do Conselho Popular de Breslau.
“Nenhuma obra deve ser começada pela comuna se não foi concebida em consonânciacom o
grande coração do a comuna, formada pelos corações de todos seus cidadãos, unidos numa só
vontade comum” -tais eram as palavras do Conselho da Cidade, em Florença-; e este espírito se
manifesta em todas as obras comunais que estão destinadas à utilidade pública, como por, exemplo,
nos canais, as sacadas, os plantíos de vinhedos e frutíferos arredor de Florença, ou nos canais de
irrigação que atravessavam as planícies de Lombardía, no porto e no aqueduto de Génova, e, em
soma, em todas as construções comunais que se empreendiam em quase todas as cidades Todas as
artes tinham o mesmo sucesso nas cidades medievais, e nossas aquisições atuais neste campo, na
maioria dos casos não. são nada mais que o prolongamento do que tinha crescido então.
O bem-estar das cidades flamencas se fundava na fabricação dos finos tecidos de lã., Florença,
a começos do século XIV até a epidemia da “morte negra”, fabricava de 70.000 a 100 000 peças de
lã, que se avaliavam em 1.200.000 florines de ouro. O cincelado de metais preciosos, a arte da.
fundição, øforja-a artística do ferro, foram criação das guildas medievais (mistérios), que atingiram
em seus respectivos domínios tudo quanto se podia conseguir mediante o trabalho manual, sem,
recorrer à ajuda de um motor mecânico poderoso; por meio do entrave ou manual e a inventiva, pois,
servindo-se das palavras de Whewell, “recebemos o pergaminho e o papel, a tipografia e a gravura, o
vidro aperfeiçoado e o aço, a pólvora, o relógio, o telescópio, a bússola marítima, o calendário
reformado, o sistema decimal, o álgebra, a trigonometria, a química, o contraponto (descoberta que
equivale a uma nova criação da música): herdamos tudo isto daquela época que tão
despreciativamente chamamos “período de estancamento””.
Verdade é que, como observou Whewell, nenhum, destas descobertas introduziu um princípio
novo; mas a ciência medieval atingiu algo mais do que a descoberta real de novos princípios.
Preparou à descoberta de todos aqueles novos princípios que conhecemos atualmente no
domínio das ciências mecânicas: ensinou ao pesquisador a observar os fatos e extrair conclusões.
Então se criou
a ciência indutiva, e apesar de que não tinha captado ainda plenamente o sentido e a força da
indução, jogou as bases tanto da mecânica como da física. Francis Bacon, Galileo e Copérnico, foram
descendentes diretos de Roger Bacon e Miguel Scott, como a máquina de vapor foi o produto direto
das investigações sobre a pressão atmosférica- realizadas nas universidades italianas e da educação
matemática e técnica que distinguia a Nurember.
Mas, é necessário, em verdade, estender-se e demonstrar o progresso das ciências e das artes
nas cidades da Idade Média? Não basta mencionar simplesmente as catedrais, no campo das
artes, e a língua italiana e o poema de Dante, no domínio do pensamento, para dar em seguida a
medida do que criou a cidade medieval durante os quatro séculos de sua existência?
104
Não cabe dúvida alguma de que as cidades medievais prestaram um serviço imenso à
civilização
européia. Impediram que Europa caísse nos estados teocráticos e despóticos que se criaram na
antigüidade em Ásia; diéronle variedade de manifestações viventes, segurança em si mesma, força
de iniciativa e aquela enorme energia intelectual e moral que possui agora e que é a melhor garantia
de do que a civilização européia poderá recusar toda nova invasão de Oriente.
Mas, por que estes centros de civilização que trataram de achar respostas às exigências da
natureza humana e que se distinguiram por tal plenitude de vida não puderam prolongar sua
existência?
Por que no século XVI foram atacadas de debilidade senil e por que, depois de ter recusado
tantas invasões exteriores e de ter sabido extrair uma nova energia ainda de suas discórdias
interiores, estas cidades, ao final de contas, caíram vítimas dos ataques exteriores e das disensiones
intestinas?
Diferentes causas provocaram esta queda, algumas das quais tiveram sua raiz no passado
longínquo, enquanto as outras foram o resultado de erros cometidos pelas cidades mesmas. O impulso
neste sentido foi dado primeiramente pelas três invasões de Europa: a mogol a Rússia no século XIII,
a turca à península balcânica e aos eslavos do Leste, no século XV, e a invasão dos mouros a Espanha
e Sul de França desde o século IX até o XII. Deter estás invasões foi muito difícil; e se conseguiu
arrojar aos mogoles, turcos e mouros, que se tinham afirmado em diferentes lugares de Europa,
somente quando em Espanha e França, Áustria e Polônia, em Ucrânia e em Rússia, os pequenos e
débeis knyaziá, condes, príncipes, etc., submetidos pelos mais fortes deles, começaram a formar,
estados capazes de mover exércitos numerosos contra os conquistadores orientais.
De tal modo, a fins do século XV, em Europa, começou a surgir uma série de pequenos
estados, formados segundo o modelo romano antigo. Em cada país e em cada domínio, qualquer dos
senhores feudais que fora mais astuto do que os outros, mais inclinado à cobiça e, com freqüência,
menos escrupuloso do que seu vizinho, conseguia adquirir em propriedade pessoal
patrimônios
mais ricos, com maior quantidade de camponeses, e também reunir em tomo a si maior
quantidade de cavaleiros e mesnaderos e acumular mais dinheiro em suas arcas. Um barão, rei ou
knyaz, geralmente escolhia como residência não uma cidade administrativa com o conselho popular,
senão um grupo de aldeias, de posição geográfica vantajosa, que não se tinham familiarizado ainda
com a vida livre da cidade; Paris, Madri, Moscou, que sei, converteram em centros de grandes
Estados, achavam-se justamente em tais condições; e com ajuda do trabalho servil se criou aqui a
cidade real fortificada, à qual atría, mediante uma distribuição generosa de aldeias “para alimentar-
se”, aos colegas de façanhas e também aos comerciantes, que gozavam da proteção que ele oferecia
ao comércio.
Assim se citaram, enquanto se achavam ainda em condição embrionária, os futuros estados,
que começaram gradualmente a absorver a outros centros iguais. Os jurisconsultos, educados
no estudo do direito romano, afluían de bom grau a tais cidades; uma raça de homens, tenaz e
ambiciosa, surgida de entre os burgueses e que odiava por igual a altivez dos feudais Asa
manifestação do que chamavam iniqüidade dos camponeses. Já as formas mesmas da comuna aldeana,
desconhecidas em seus códigos, os mesmos princípios do federalismo, eram-lhes odiosos, como
herança dos bárbaros. Seu ideal era o cesarismo, apoiado pela ficção do consenso popular e
-especialmente- pela força das armas; e trabalhavam zelosamente para aqueles em quem
confiavam para a realização deste ideal.
A Igreja cristã, que antes se tinha rebelado contra o direito romano e que agora se tinha
convertido em sua aliada, trabalhava no mesmo sentido. Já que a tentativa de formar um império
teocrático em Europa, sob a supremacia do Papa, não foi coroada pelo sucesso, os bispos mais
inteligentes e ambiciosos começaram a oferecer então apoio aos que consideravam capazes de
reconstituir o poder dos reis de Israel e o dos imperadores de Constantinopla. A Igreja investía aos
governantes

105
que surgiam com sua santidade; coroava-os como representantes de Deus sobre a terra, punha
a seu serviço a erudição e o talento estadista de seus servidores; trazia-lhes suas bênçãos e, suas
maldições, suas riquezas e a simpatia que ela conservava entre os pobres.
Os camponeses, aos quais as cidades não puderam ou não quiseram liberar, vendo aos
burgueses impotentes para pôr fim às guerras intermináveis entre os cavaleiros -pelas quais os
camponeses tiveram de pagar tão caro- depositaram então suas esperanças no rei, o imperador, o
grande knyaz; e ajudando-lhes a destruir o poder dos senhores feudais, ao mesmo tempo lhes
ajudaram a estabelecer o Estado Centralizado. Por último, as guerras que tiveram que sustentar
durante dois séculos contra os mogoles e os turcos, e a guerra santa contra os mouros em Espanha, e
do mesmo modo também aquelas guerras terríveis que cedo começaram dentro de cada povo entre os
centros crescentes de soberania: Ile de France e Borgogne, Escócia e Inglaterra, Inglaterra e França,
Lituânia e Polônia, Moscou e Tver, etc., conduziram finalmente, ao mesmo. Surgiram estados
poderosos e as cidades tiveram que entablar luta não só com as federações, debilmente unidas entre si,
dos barões feudais ou knyaziá, senão com centrosfuertemente organizados que tinham a sua
disposição exércitos inteiros de servos.
O pior de tudo era, no entanto, que os centros crescentes da monarquia acharam apoio nas
disensiones que surgiam dentro das cidades mesmas. Uma grande idéia, sem dúvida, constituía a base
da cidade medieval, mas foi compreendida com insuficiente amplitude. A ajuda e o apoio mútuo não
podem ser limitados pelas fronteiras de uma associação pequena; devem estender-se a tudo o
circundante, caso contrário , o circundante absorve à associação; e neste respecto, o cidadão medieval,
desde o princípio mesmo, cometeu um erro enorme. Em lugar de considerar aos camponeses e
artesãos que se reuniam sob a proteção de seus muros, como colaboradores que podiam contribuir sua
parte na obra de criação da cidade -o que fizeram em realidade- “as famílias” dos velhos burgueses
se apressaram a separar-se netamente dos novos imigrantes.
AOS primeiros, isto é, aos fundadores da cidade, se lhes deixava todos os benefícios do
comércio comunal dela, e o usufruto de suas terras, e aos segundos não se lhes deixava mais, que o
direito de manifestar livremente a habilidade de suas mãos. A cidade, de tal modo, dividiu-se em
“burgueses”. ou “comuneros” e em “residentes” ou “habitantes”.
O comércio, que tinha antes caráter comunal, converteu-se agora em privilégio das famílias de
os. comerciantes e artesãos: da guilda mercantil e de algumas guildas dos chamados “velhos ofícios”;
e o passo seguinte: a transição ao comércio pessoal ou aos privilégios das companhias capitalistas
opressoras -dos trusts- se fez inevitável.
A mesma divisão surgiu também entre a cidade, no sentido próprio da palavra, e as aldeias que
a rodeavam. As comunas medievais trataram, pois, de liberar aos camponeses; mas, suas guerras
contra os feudais, pouco a pouco , converteram-se, como se disse antes, mais bem em guerras por
liberar a cidade mesma do poder, dos feudais que por liberar aos camponeses Então as cidades
deixaram aos feudais seus direitos sobre os camponeses, com a condição de que não causariam mais
dano à cidade e se fizeram “conciudadanos”. Mas a nobreza “adotada” pela cidade introduziu suas
velhas guerras familiares, nos limites dela. Não se conformava com a idéia de que os nobres deviam
submeter-se ao tribunal de simples artesãos e comerciantes, e continuou livrando nas ruas das cidades
suas velhas guerras tribais por vingança de sangue. Em cada cidade existiam suas Colonnas e
Orsinis, suas
Montescos e Capuletos, suas Overtolzes e Wises.
Extraindo maiores rendas das posses que conseguiram conservar, os senhores feudais se
rodearam de numerosos clientes e introduziram hábitos e costumes feudais na vida da cidade mesma.
Quando nas cidades começou a surgir o descontentamento entre as classes artesanas contra as velhas
guildas e famílias, os feudais começaram a oferecer a ambas partes suas espadas e seus numerosos
servidores para resolver, por meio da guerra, os conflitos que surgiam, em lugar de dar ao
descontentamento uma saída pacífica valendo-se dos meios que até então tinha achado sempre, sem
recorrer às armas.
O erro maior e mais fatal cometido pela maioria das cidades foi também o basear suas riquezas
no comércio e a indústria, junto com um trato depreciativo para a agricultura. De tal modo, repetiram
o erro cometido já uma vez pelas cidades da antiga Grécia e devido ao qual caíram nos mesmos
106
crimes. Mas o distanciamento entre as cidades e a terra as arrastou, necessariamente, a uma política
hostil
para. as classes agrícolas, que se fez especialmente visível em Inglaterra. durante Eduardo III,
em França durante as jacqueries (as grandes rebeliões camponesas), em Boêmia nas guerras hussitas,
e em Alemanha durante a guerra dos camponeses do século XVI.
Por outra parte, a política comercial arrastou também às autoridades populares urbanas
a empresas longínquas, e desenvolveu a paixão’ por enriquecer-se com as colônias. Surgiram
as colônias fundadas pelas repúblicas italianas, em, o sudeste, em Ásia Menor e a orlas do mar
Negro; pelos alemães no Leste, em terras eslavas, e pelos eslavos, isto é, por Novgorod
e Pskof, no longínquo noroeste.
Então foi necessário manter exércitos de mercenários para as guerras coloniais, e depois esses
mercenários foram utilizados também para oprimir aos mesmos burgueses. Graças a isto, cidades
inteiras começaram a concertar empréstitos em tais proporções que cedo tiveram uma influência
profundamente desmoralizadora sobre os cidadãos; as cidades se converteram em tributarias e não
raramente em instrumentos obedientes em mãos de alguns de seus capitalistas. Assumir o poder foi
coisa muito vantajosa, e as disensiones internas se desenvolveram em maiores proporções em cada
eleição, durante as quais a política colonial desempenhava um papel importante em interesse de
umas poucas famílias. A divisão entre ricos e pobres, entre os homens “melhores” e “piores”,
estendeu-se mais e mais, e no século XVI o poder real achou em cada cidade aliados e colaboradores
dispostos, as vezes entre “as famílias” que lutavam pelo poder, e muito com freqüência também entre
os pobres, a quem prometiam apaziguar aos ricos.
No entanto, existia ainda uma razão da decadência das instituições comunais, que era mais
profunda do que as restantes. A história das cidades medievais constitui um dos exemplos mais
assombrosos da poderosa influência das idéias e dos princípios ,fundamentais reconhecidos pelos
homens, sobre o destino da humanidade. Do mesmo modo nos ensina também que ante uma mudança
radical nas idéias dominantes da sociedade, produzem-se resultados completamente novos que
encaminham a vida numa nova direção. A fé em suas forças e no federalismo, o reconhecimento da
liberdade e da administração própria a cada grupo separado e em general, a estrutura do corpo
político do simples ao complexo, tais foram os pensamentos dominantes do século XI.,
Mas desde aquela época, as concepções sofreram uma mudança completa., Os eruditos
jurisconsultos (legistas) que tinham estudado, direito romano e os prelados da Igreja estreitamente
unidos desde a época de Inocencio III, conseguiram paralisar a idéia a antiga idéia grega da liberdade
e da federação que predominava na época da libertação das cidades e existia primeiramente na
fundação destas repúblicas.
Durante dois ou três séculos, os jurisconsultos e o clero começaram a ensinar, desde o púlpito,
desde a cátedra universitária e nos tribunais, que a salvação dos homens se encontra num estado
fortemente centralizado, submetido ao poder semidivino de um ou de uns poucos; que um homem
pode e deve ser o salvador da sociedade, e em nome da salvação pública pode realizar qualquer ato de
violência:
queimar aos homens nas fogueiras, matá-los com morte lenta no meio de torturas
indescritíveis, sumir províncias inteiras na miséria mais abyecta. E não escatimaron o dar lições
visuais em grande escala, e com uma crueldade inacreditável se davam estas lições onde queira que
pudesse chegar a espada do rei ou a fogueira da Igreja Devido a estas lições e aos exemplos
correspondentes, constantemente
repetidos e inculcados pela força na consciência pública sob o signo da fé, do poder e do que
considerava ciência, a mente mesma dos homens começou a adquirir uma nova forma. Os cidadãos
começaram a encontrar que nenhum poder pode ser desmedido, nenhum assassinato lento demasiado
cruel quando se trata da “segurança pública”. E nesta nova direção das mentes, e nesta nova fé na
força de um governante único, o antigo princípio federal perdeu sua força, e junto com ele morreu
também o gênio criador das massas. A idéia romana venceu, e em tais circunstâncias os estados
militares centralizados acharam nas cidades uma presa fácil.
A Florença do século XV constitui o modelo típico de semelhante mudança. Anteriormente, a
revolução popular costumava ser o começo de um progresso novo e maior. Mas então, quando o
107
povo, reduzido ao desespero rebelou-se, já não possuía o espírito construtivo v criador, e o movimento
popular não produziu idéia nova alguma. Em lugar dos anteriores quatrocentos representantes ante o
conselho popular, introduziram-se nela cem. Mas esta revolução nos números não conduziu a nada
O descontentamento popular crescia, e seguiu uma série de novas revoltas. Então se procurou
a salvação no “tirano”, que recorreu ao massacre dos rebeldes, mas a desintegração do
organismo comunal prosseguiu. E quando, depois de uma nova revolta, o povo florentino
solicitou conselho a seu favorito, Jerónimo Savonarola, o monge respondeu: “Oh, povo meu, tu sabes
que não posso intervir nos assuntos do estado... Purifica tua alma, e se em tal disposição de mente
reformas a cidade, então tu, povo de Florença, deves começar a reforma de toda Itália”. Queimaram-
se as
máscaras que se punham durante os passeios em carnaval e os livros tentadores; promulgou-se
uma lei de ajuda aos pobres e outra dirigida contra os usureros, mas a democracia de Florença ficou
onde estava. O antigo espírito criador tinha desaparecido. Devido à excessiva confiança no governo,
os florentinos cessaram de confiar em si mesmos; e demonstraram ser impotentes para renovar sua
vida. O estado não teve mais do que avançar e destruir suas últimas liberdades. E assim o fez.
E no entanto, a corrente de ajuda e apoio mútuo não se apagou nas massas, e continuou
fluindo ainda depois desta derrota das cidades livres. Cedo surgiu de novo, com força poderosa, em
resposta ao chamado comunista dos primeiros propagandistas da reforma e seguiu vivendo ainda
depois de que as massas, que falam sofrido de novo o fracasso em sua tentativa de construir uma
nova vida,
inspirada por uma religião reformada, caíram sob o poder da monarquia. Flui hoje ainda e
procura os caminhos para uma nova expressão que não será já o estado, nem a cidade medieval, nem a
comuna aldeana dos bárbaros, nem a organização tribal dos selvagens, senão que, procedendo de
todas estas formas, será mais perfeita do que elas, por sua profundidade e pela amplitude de seus
princípios humanos.

CAPITULO VII: A AJUDA MÚTUA NA SOCIEDADE MODERNA

A inclinação dos homens à ajuda mútua tem uma origem tão remota e está tão profundamente
entrelazada com todo o desenvolvimento passado da humanidade, que os homens a conservaram até a
época presente, apesar de todas as vicisitudes da história. Esta inclinação se desenvolveu,
principalmente, nos períodos de paz e bem-estar; mas ainda que as maiores calamidades açoitavam
aos homens, quando países inteiros eram devastados pelas guerras, e populações inteiras morriam de
miséria, ou gemiam sob o jugo do poder que os oprimia, a mesma inclinação, a mesma necessidade
continuou existindo nas aldeias e entre as classes mais pobres da população das cidades.
Apesar de tudo, fortificou-as, e, ao final de contas, atuou ainda sobre a minoria dirigente,
belicosa e destrutiva que tratava a esta necessidade como se fosse uma tolice sentimental.
E cada vez que a humanidade tinha que elaborar uma hueva organização social, adaptada a
uma nova
fase de seu desenvolvimento, o gênio criador do homem sempre extraía a inspiração e os
elementos para um novo progresso no caminho do progresso, da mesma inclinação, eternamente viva,
à ajuda mútua.
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Todas as novas doutrinas morais e as novas religiões provem da mesma fonte. De maneira que
o progresso moral do gênero humano, se o consideramos desde um ponto de vista amplo, constitui
uma extensão gradual dos princípios da ajuda mútua, desde o clã primitivo, à nação e à união de
povos, isto é, às agrupações de tribos v homens, mais e mais ampla, até que por último estes
princípios abarquem a toda a humanidade sem distinções de crenças, línguas e raças. Atravessando o
período do regime tribal e o período seguinte da comuna aldeana, os europeus, como vimos,
elaboraram na Idade Média uma nova forma de organização que tinha uma grande vantagem.
Deixava uma ampla margem à iniciativa pessoal e, ao mesmo tempo, respondia em grau considerável
à necessidade de apoio mútuo do homem. Nas cidades medievais, foi chamada à vida a federação
das comunas aldeanas, coberta por uma rede de guildas e irmandades, v com ajuda desta nova
forma de dupla união se atingiram resultados imensos no bem-estar comum, na indústria, na arte. a
ciência e o comércio. Consideramos estes resultados com bastante detalhe nos dois capítulos
precedentes, e tratamos de explicar por que, ao final, do século XV as repúblicas medievais, rodeadas
pelos feudos hostis, incapazes de liberar aos camponeses do jugo servil e gradualmente corrompidas
pelas idéias do cesarismo romano, inevitavelmente deviam ser presa dos estados guerreiros que
nasciam e tinham sido criados para oferecer resistência às invasões dos mogoles, turcos e árabes.
No entanto, antes que se submeter, nos trezentos anos seguintes, ao poder do estado que o
absorvia tudo, as massas populares fizeram uma tentativa grandiosa de reconstruir a sociedade,
conservando a base anterior da ajuda e o apoio mútuos.
Agora é já bem sabido que o grande movimento dos hussitas e da reforma não foi, de nenhum
modo, só uma revolta na contramão dos abusos da Igreja católica. Este movimento expôs também seu
ideal construtivo, e esse ideal era a vida nas comunas fraternais livres. Os escritos e discursos dos
predicadores do período primitivo da reforma, que tinham achado o maior eco no povo estavam
impregnados das idéias de uma irmandade econômica e social dos homens. São conhecidos os “doze
pontos” dos camponeses alemães, expostos por eles em sua guerra contra os terratenientes e duques,
e os artigos de fé, parecidos a eles, difundidos entre os camponeses e artesãos alemães e suíços, que
exigiam não só o estabelecimento do direito de cada um a interpretar a Bíblia segundo sua própria
razão, senão que incluíam também a exigência da devolução das terras comunais às comunas aldeanas
e a supressão da prestação feudal, e nestas exigências se aludia sempre à fé cristã “verdadeira”, isto é à
fé na fraternidade humana.
Ao mesmo tempo, dezenas de milhares de homens ingressaram em Moravia nas irmandades
comunistas, sacrificando em benefício das irmandades todos seus bens e criando numerosas
e florecientes populações, fundadas nos princípios do comunismo. Somente os massacres em
massa, durante as quais pereceram dezenas de milhares de pessoas, puderam deter este movimento
popular que se estendia amplamente e somente com ajudas da espada do fogo e da roda, os estados
jovens se asseguraram a primeira e decisiva, vitória sobre as massas populares.
Durante os três séculos seguintes, os Estados que se formaram em toda Europa destruíam
sistematicamente as instituições nas que achava expressão a tendência dos homens ao apoio
mútuo. As comunas aldeanas foram privadas do direito de suas assembléias comunais, da jurisdição
própria e da administração independente, as terras que lhes pertenciam foram submetidas ao controle
dos servidores públicos do estado e entregadas a graça dos caprichos e da venalidad. As cidades
foram
desposeídas de sua soberania, e as fontes mesmas de sua vida interior, a véche (a assembléia,
o tribunal eleito, a administração eleita e a soberana da paróquia e das guildas, tudo isto foi destruído.
Os servidores públicos do estado, tornaram em suas mãos todos os elos do que antes constituía um
tudo orgânico.
Devido a esta política fatal e às guerras engendradas por ela, países inteiros, antes povoados e
ricos, foram assolados. Cidades ricas populosas se transformaram em aldehuelas insignificantes; até
os caminhos que uniam às cidadesentre si se fizeram intransitables.
A indústria, a arte, a ilustração, decaíram. A educação política, a ciência e o direito foram
submetidos à idéia da centralização estatal.
Nas universidades, e desde as cátedras eclesiásticas se começou a ensinar que as instituições
em que os homens acostumavam a encarnar até então sua necessidade de ajuda mútua não podem
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ser toleradas num estado devidamente organizado; que só o estado e a igreja podem constituir os laços
de união entre seus súbditos; que o federalismo e o “particularismo” isto é, o cuidado dos interesses
locais de uma região ou de uma cidade eram inimigos do progresso. O estado é o único
impulsor apropriado de todo desenvolvimento ulterior.
Ao final do século XVIII., os reis do continente europeu, o Parlamento, em Inglaterra, e até a
convenção revolucionária em França, ainda que se achavam em guerra, entre si, coincidiam, na
afirmação de que dentro do Estado não devia ter nenhuma classe de uniões separadas entre os
cidadãos, aparte das estabelecidas por, o estado e submetidas a ele; que para os trabalhadores que se
atreviam a ingressar a uma “coligação”, isto é, em uniões para a defesa de seus direitos, o único
castigo conveniente era o trabalho forçado e a morte. “Não toleraremos um estado no estado”.
Unicamente o estado e a Igreja do, estado deviam ocupar-se dos interesses gerais dos súbditos,
os mesmos súbditos deviam ser grupos de homens pouco vinculados entre si, não unidos por
classe alguma de laços especiais e obrigados a recorrer ao estado cada vez que tinham uma
necessidade comum. Até a metade do século XIX esta teoria. e sua prática correspondente dominavam
em, Europa.
Até as sociedades comerciais e industriais eram olhadas com desconfiança por todos os
estados. Quanto aos trabalhadores, recordamos ainda que suas uniões eram consideradas ilegais até
em Inglaterra.
O mesmo ponto de vista sosteníase não faz bem mais de vinte arianos, ao final do século
XIX, em todo o continente, inclusive em França; apesar das revoluções que viveu, os mesmos
revolucionários
eram tão ferozes apoiantes do estado como os servidores públicos do rei e do imperador.
Todo o sistema de nossa educação estatal, até a época presente, ainda em Inglaterra, era tal
que uma parte importante da sociedade considerava como uma medida revolucionária que o povo
recebesse os direitos de que gozavam todos -livres e servos- na Idade Média, quinhentos anos Antes,
na assembléia aldeana, em sua guilda, em sua paróquia e na cidade.
A absorção pelo estado de todas as funções sociais, fatalmente favoreceu o desenvolvimento
do individualismo estreito, desenfreado. À medida que os deveres do cidadão para o estado se
multiplicavam, os cidadãos evidentemente se liberavam dos deveres para os outros. Na guilda -na
Idade Média todos pertenciam a alguma guilda ou confraria-, duas “irmãos” deviam cuidar por turno
ao irmão enfermo; agora basta com dar ao colega de trabalho a do hospital, para pobres, mais
próximo. Na sociedade “bárbara” presenciar uma briga entre duas pessoas por questões
pessoais e não se preocupar de que não tivesse conseqüências fatais significaria atrair sobre si a
acusação de homicídio, mas, de acordo com as teorias mais recentes do estado que tudo o. vigia, o
que presencia uma briga não tem necessidade de intervir, pois para isso está a polícia.
Quando entre os selvagens -por exemplo entre os hotentotes-, se considerá-la inconveniente
pôr-se a comer sem ter feito a gritos três vezes um convite Ao que desejasse unir-se ao banquete,
entre nós o cidadão respeitável se limita a pagar um imposto para os pobres, deixando aos famintos
arrumar-se como possam. O resultado obtido foi que por todos os lados -na vida, a lei, a ciência, a
religião-
triunfa agora a afirmação de que cada um pode e deve tentar-se sua própria felicidade, sem
prestar atendimento alguma às necessidades alheias.
Isto se transformou na religião de nossos tempos, e os homens que duvidam dela são
considerados utopistas perigosos. A ciência proclama em alta voz que a luta de cada um contra todos
constitui o princípio dominante da natureza em general, e das sociedades humanas em particular.
Justamente a esta guerra a biologia atual atribui o desenvolvimento progressivo do mundo animal. A
história julga do mesmo modo; e os economistas, em sua ignorância ingênua, consideram que o
sucesso da indústria e da mecânica contemporânea são os resultados “assombrosos” da influência do
mesmo princípio.
A religião mesma da Igreja é a religião do individualismo, ligeiramente suavizada pelas
relações mais ou menos caritativas para o próximo, com preferência os domingos. Os homens
“práticos” e os teóricos, homens de ciência e predicadores religiosos, legistas e políticos, estão todos

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de acordo em que o individualismo, isto é, a afirmação da própria personalidade em suas
manifestações grosseiras,
naturalmente, podem ser suavizadas com a beneficência, e que esse individualismo é a única
base segura para a manutenção da sociedade e seu progresso ulterior.
Pareceria, por isto, algo desesperado procurar instituições de ajuda mútua na sociedade
moderna, e em general as manifestações práticas deste princípio. Que podia restar delas? E ademais,
quanto começamos a examinar como vivem milhões de seres humanos e estudamos suas relações
cotidianas, assombra-nos, antes de mais nada, o papel enorme que desempenham na vida humana,
ainda na época atual, os princípios de ajuda e apoio mútuo. Apesar de que faz já trezentos ou
quatrocentos anos que, tanto na teoria, como na vida mesma se produz uma destruição das instituições
e dos hábitos de ajuda mútua, no entanto , centenas de milhões de homens continuam vivendo com
ajuda destas instituições e hábitos; e religiosamente as apóiam ali onde puderam ser conservadas e
tratam de reconstruí-las
onde foram destruídas. Cada um de nós, em nossas relações mútuas, passamos minutos nos
que nos indignamos contra o credo estreitamente individualista, de moda em nossos dias; no entanto
os atos em cuja realização os homens são guiados por sua inclinação à ajuda mútua constituem uma
parte tão enorme de nossa vida cotidiana que, se fora possível pôr-lhes termo repentinamente, se
interromperia de imediato todo o progresso moral ulterior da humanidade.
A sociedade humana, sem a ajuda mútua, não poderia ser mantida além da vida de uma
geração.
Os fatos de tal gênero, aos que não se presta atendimento, que são muito numerosos e que
descrevem a vida das sociedades, têm um sentido de primeiro ordem para a vida e a elevação
ulterior da humanidade.
Também os examinaremos agora, começando pelas instituições existentes de apoio mútuo e
passando depois aos atos de ajuda mútua que têm origem nas simpatias pessoais ou sociais. Jogando
uma mirada ampla à constituição contemporânea da sociedade européia nos assombra, em primeiro
lugar, o fato de que, apesar de todos os esforços para terminar com a comuna aldeana, está forma de
união dos homens continua existindo em grandes proporções, como se verá a seguir, e que no
presente se fazem tentativas já seja para reconstituí-la numa ou outra forma, já seja para achar algo em
sua substituição. As teorias correntes dos economistas burgueses e de alguns socialistas afirmam que
a comuna morreu na Europa ocidental de morte natural, já que se encontrou que a posse comunal
da terra era incompatível com as exigências contemporâneas do cultivo da terra. Mas a verdade
é que em nenhuma parte desapareceu a comuna aldeana por própria vontade, ao invés , em todas
partes as classes dirigentes precisaram vários séculos de medidas estatais persistentes para desarraigar
a comuna e confiscar as terras comunais.
Um exemplo de tais medidas e dos métodos para pô-la em prática nos o deu recentemente o
governo zarista no zelo do ministro Stolypin.
Em França, a destruição da independência das comunas aldeanas e o despojo das terras
que lhes pertenciam começou já no século XVI. Ademais, só no século seguinte, quando a
massa camponesa foi reduzida à completa escravatura e à miséria pelas requisiciones e as guerras tão
brilhantemente descritas por todos os historiadores, o despojo das terras comunais pôde realizar-se
impunemente e então atingiu proporções escandalosas “Cada um lhes tomava quanto podia...
dividiam-nas... para despojar às comunas, serviam-se de dívidas simuladas”. Assim sei expressava o
edital promulgado por Luis XIV, no ano 1667.
E como era de esperar, o estado não achou outro meio de curar estes males que uma maior
submissão das comunas a sua autoridade e um despojo maior, esta vez feito pelo Estado mesmo. Em
realidade dois anos depois todos os rendimentos monetários das comunas foram confiscados pelo rei.
Quanto à usurpação das terras comunais, estendeu-se mais e mais, e no século seguinte a nobreza e o
clero eram já donos de enormes extensões de terra: Segundo algumas apreciações, possuíam a
metade da superfície apta para o cultivo, e a maioria dessas terras permanecia inculta. Mas os
camponeses ainda conservavam suas instituições comunais e até o ano 1787 a assembléia
comunal camponesa, composta por todos os chefes de família, reunia-se, geralmente à sombra de
um campanário ou de uma árvore, para distribuir as porções de terra ou partir os campos que ficavam
111
em sua posse, para fixar os impostos e eleger a administração comunal, exatamente o mesmo que o
mir russo hoje. Isto foi demonstrado agora plenamente por Babeau.
O governo francês encontrou, no entanto, que as assembléias populares comunais eram
“demasiado ruidosas”, isto é, demasiado desobedientes, e em- o ano 1787 foram substituídas por
conselhos electivos, compostos por um prefeito e de três ou seis síndicos que eram eleitos entre os
camponeses mais acomodados. Dois anos mais tarde, a Assembléia Constituinte “revolucionária”, que
neste sentido concordava plenamente com a velha organização, ratificou (o 14 de dezembro de 1789)
a lei citada, e a burguesia aldeana se dedicou agora, a sua vez, ao despojo das terras
camponesas, que se prolongou durante todo o período revolucionário. O 16 de agosto do ano 1792, a
Assembléia Legislativa, sob a pressão das insurreições camponesas e do ânimo alterado do povo de
Paris, depois de ter este ocupado o palácio real, decidiu devolver às comunas as terras que lhes
tinham
tirado; mas, ao mesmo tempo, dispôs que destas terras as de laboreo fossem distribuídas
somente entre os “cidadãos”, isto é, entre os camponeses mais acomodados. Esta medida,
naturalmente, provocou novas insurreições, e foi derrogada ao ano seguinte quando, depois da
expulsão dos girondinos da Convenção os jacobinos dispuseram, o 11 de junho de 1793, que todas as
terras
comunais tiradas aos camponeses pelos terratenientes e outros, a partir do ano 1669, fossem
devolvidas às comunas que podiam - se o decidia uma maioria de dois terços de votos- repartir as
terras comunais, mas, em tal caso, em partes iguais entre todos os habitantes, tanto ricos como
pobres, tanto “ativos” como “inativos”.
No entanto, as leis sobre a repartição das terras comunais eram contrárias de tal modo às
concepções dos camponeses, que estes últimos não as cumpriam, e em todas partes onde os
camponeses voltavam a possuir, ainda que não fora mais do que uma parte das terras, comunais que
lhes tinham usurpado, possuíam-nas em comum, deixando-as sem dividir. Mas cedo sobreviram os
longos anos de guerras e a reação, e as terras comunais foram claramente confiscadas pelo estado (no
ano 1794) para assegurar os empréstimos estatais; uma parte foi destinada à venda, e ao final de
contas, usurpada; depois foram devolvidas as terras novamente às comunas, e outra vez confiscadas
(no ano 1813), e recentemente no ano 1816, os restos destas terras, constituídos por arredor de
6.000.000 de deciatinas da terra menos produtiva, foram devolvidas às comunas aldeanas.
Tudo, regime novo via nas terras comunais uma fonte acessível para recompensar a seus
apoiantes, e três leis (a primeira em 1837, e a última sob Napoleão III) foram promulgadas com o fim
de incitar às comunas aldeanas a realizar a repartição das terras comunais.
Mas também não este foi, ainda, o fim das penúrias comunais. Teve que derrogar três vezes
estas leis, devido à resistência que encontraram nas aldeias, mas cada vez, o governo conseguiu
usurpar um pouco de as posses comunais; assim Napoleão III, com o pretexto de proteger, com um
método aperfeiçoado, a agricultura, entregou grandes posses comunais a alguns de seus favoritos.
Tenho aqui a série de violências com que os adoradores do centralismo lutavam contra a
comuna. E a isto chamam os economistas “morte natural da agricultura comunal, em virtude das leis
econômicas”
Quanto à administração própria das comunas aldeanas, que podia ficar dela depois de tantos
golpes? O governo considerava ao prefeito e aos síndicos Como servidores públicos gratuitos, que
cumpriam
determinadas funções da máquina estatal. Ainda agora, sob a terceira república, a aldeia está
privada de toda independência, e dentro da comuna não pode ser realizado o mais mínimo ato sem a
intervenção e aprovação de quase todo o complexo mecanismo estatal, incluindo os prefectos e os
ministros. Resulta difícil crê-lo, e no entanto tal é a realidade. Se, por exemplo, um camponês tem
intenção de pagar com um depósito em dinheiro sua parte de trabalho na reparação de um caminho
comunal (em lugar de pôr ele mesmo a quantidade necessária de pedregullo ), não menos de doze
servidores públicos do Estado, de diferentes castas, devem dar sua conformidade e para isso se
precisam 52 documentos, que devem trocar os servidores públicos, antes de que se permita ao
camponês fazer seu pagamento em dinheiro ao conselho comunal. O mesmo se uma tormenta arroja
uma árvore no caminho; e todo o resto tem igual caráter.
112
O que ocorreu em França sucedeu em toda Europa ocidental e central. Ainda os anos
principais do colossal saque das terras comunais coincidem em todas partes. Em Inglaterra, a única
diferença reside em que o pillaje se efetuou por meio de atos isolados e não por meio de uma lei
geral, numa palavra, produziu-se com menor precipitação que em França mas, no entanto, com maior
solidez. A usurpação das terras comunais pelos terratenientes (landlords) começou no século XV,
depois da sofocación da insurreição camponesa no ano 1380, como se desprende da História de
Rossus e do estatuto de Enrique VII, nos quais se fala destas usurpações sob o título de
“Abominações e datarias que prejudicam ao bem público”.
Mais tarde, sob Enrique VIII, iniciou-se, como é sabido, uma investigação especial (Great
Inquest), cujo objeto era fazer cessar a usurpação das terras comunais: mas esta investigação terminou
com a ratificação das dilapidaciones, nas proporções em que já se tinham levado a cabo.
A dilapidación das terras comunais se prolongou e se continuou expulsando aos camponeses
das terras. Mas somente desde mediados do século XVIII, em Inglaterra como por todos os
lados em os, outros países, instituiu-se uma política sistemática, tendo em vista destruir a posse
comunal; de maneira que não é mister assombrar-se de que a posse comunal tenha desaparecido,
senão de que tenha podido conservar-se até em Inglaterra e “predominar ainda na recordação dos
avôs de nossa
geração”. O verdadeiro objeto das atas de cercamiento (Enclosure Acts), como foi
demonstrado por Seebohm, era a eliminação da posse, comunal’ e foi eliminada tão por completo
quando o Parlamento promulgou, entre 1760 e 1844, quase 4.000 atas de cercamiento , que dela
ficam agora só débeis impressões.
Os lores se apoderaram das terras das comunas aldeanas e cada caso de despojo foi ratificado
pelo Parlamento. Em Alemanha, Áustria e Bélgica, a comuna aldeana foi destruída pelo estado de
modo
exatamente igual. Foram raros os casos em que os comuneros mesmos dividissem entre si as
terras comunais, apesar de que em todas partes o estado obrigava a tal repartição ou, simplesmente,
favorecia o despojo de suas terras por particulares, O último golpe à posse comunal no norte de
Europa foi mirado também em meados do século XVIII. Em Áustria, o governo teve que pôr em
ação a força bruta, no ano 1768, para obrigar às comunas a realizar a divisão das terras, e dois anos
depois se designou, para este objeto, uma comissão especial. Em Prusia, Federico II, em várias de
suas ordens (em 1752, 1763, 1765 e 1769) recomendou às Câmaras judiciais (Justizcollegien) efetuar
a divisão por meio da violência. Num distrito de Polônia, Silesia, com o mesmo objeto, foi
publicada, em 1771, uma resolução especial.
O mesmo sucedeu também em Bélgica, mas, como as comunas demonstraram desobediência,
então, no ano 1847, foi emitida uma lei que dava ao governo o direito de comprar os prados
comunais e vendê-los em parcelas e realizar uma venda obrigatória das terras comunais se tivesse
compradores.
Para abreviar, o que se diz a respeito da morte natural das comunas aldeanas, em virtude das
leis econômicas, constitui uma brincadeira tão pesada como se falássemos da morte natural dos
soldados caídos no campo de batalha. O lado positivo da questão é este: as comunas aldeanas viveram
mais de mil anos, e nos casos em que os camponeses não foram arruinados pelas guerras e as
requisiciones,
gradualmente melhoraram os métodos de cultivo; mas, como o valor da terra aumentava
devido ao crescimento da indústria, e a nobreza, sob a organização estatal, atingiu uma autoridade
como nunca teve no sistema feudal, apoderou-se da melhor parte das terras comunais e aplicou todos
seus esforços em destruir as instituições comunais.
No entanto, as instituições da comuna aldeana respondem tão bem às necessidades e
concepções dos que cultivam a terra, que apesar de tudo, Europa até na época presente está ainda
coberta de sobrevivências vivas das comunas aldeanas, e na vida aldeana abundam ainda hoje hábitos
e costumes cujo origem se remonta ao período comunal. Em Inglaterra mesma, apesar de todas as
medidas
,draconianas adotadas para destruir o velho ordem de coisas, existiu até princípios do século
XIX. Gomme, um dos poucos sábios ingleses que chamou o atendimento sobre esta matéria, assinala
113
em sua obra que em Escócia se conservaram muitas impressões da posse comunal das terras, e a
“runrigtenancy”; isto é, a posse pelos granjeiros de parcelas em muitos campos (direitos do
comunero traspassados ao granjeiro), manteve-se em Forfarshire até o ano 1813; e em algumas
aldeias de Invernes, até o ano 1801, era costume arar a terra para toda a comuna, sem traçar
limites, distribuindo-a depois do labor. Em Kilmoriel a participação e repartição dos campos esteve
em pleno vigor “até os últimos vinte e cinco anos”, dizia Gomme, e a Comissão Crofter do ano
oitenta achou que este costume se conservava ainda em algumas ilhas”. Em Irlanda, este mesmo
sistema predominou até a época da fome terrível do ano 1848.
Quanto a Inglaterra as obras de Marshall, que passaram inadvertidas enquanto Nasse e Mine
não
chamaram o atendimento sobre elas, não deixam a menor dúvida de do que o sistema da
comuna aldeana gozava de ampla difusão em quase todas as regiões de Inglaterra, ainda nos
começos do século XIX.
No ano 1870, sir Henry Maine foi “surpreendido extraordinariamente pela quantidade de
casos de títulos de propriedade anormais, os que de modo necessário supõem uma existência
primitiva da posse coletiva e do cultivo conjunto da terra”, e estes casos chamaram seu atendimento
depois de um estudo comparativamente breve. E como a posse comunal se conservou em Inglaterra
até uma época tão recente, é indubitável que nas aldeias inglesas se tivesse podido achar grande
número de hábitos
e costumes de ajuda mútua, com só que os escritores ingleses tivessem prestado maior
atendimento à vida aldeana real.
Por último, tais rastos foram assinalados, não faz muito, num artigo do Journal of the
Statistical Society, vol. IX, junho 1897, e num excelente artigo da nova edição, décimo primeira, da
Enciclopédia Britânica. Por este artigo nos inteiramos de que, valendo-se do “cercamiento” dos
campos comunais e dehesas, os supostos donos e os herdeiros dos direitos feudais tiraram às comunas
1.016.700 deciatinas desde o ano 1709 até 1797, com preferência campos cultiváveis; 484.490
deciatinas desde 1801 até 1842, e 228.910 deciatinas desde 1845 até 1869; ademais, 37.040 deciatinas
de bosques; ao todo 1.767.140 deciatinas, isto é, mais da oitava parte de toda a superfície de
Inglaterra, incluído Gales (13.789.000 deciatinas), foi tirada ao povo.
E apesar disto, a posse comunal da terra se conservou até agora em alguns lugares de
Inglaterra e Escócia, como o demonstrou no ano 1907 o doutor Gilbert Slater em sua obra detalhada
The English Peasantry and the Enclosure of Common Fields, onde estão os planos de algumas de
ditas comunas -que recordam plenamente os planos do livro de P. P. Semionof- e se descreve sua vida
assim: sistema de três ou quatro amelgas, e os comuneros decidem todos os anos na assembléia
com que semear a terra em barbecho e se conservam as “faixas” o mesmo que na comuna
russa. O autor do artigo da Enciclopédia Britânica considera que até agora ficam sob posse comunal,
em Inglaterra, de 500.000 a 700.000 deciatinas de campos, e principalmente dehesas.
Na parte continental de Europa, numerosas instituições comunais, que conservaram até agora
sua força vital, encontram-se em França, Suíça, Alemanha. Itália, Países Escandinavos e em
Espanha, sem falar de toda a Europa ocidental eslava. Aqui a vida aldeana, até gora, está impregnada
de hábitos e costumes comunais, e a literatura européia quase anualmente se enriquece com trabalhos
sérios consagrados a esta matéria, e o que tem relação com ela. Por isto, na eleição dos exemplos
tenho que me limitar a alguns, os mais típicos.
Suíça nos oferece um destes exemplos. Existem ali como repúblicas: Uri, Schwytz, Appenzell,
Glarus e Unterwalden, que possuem uma parte importante de suas terras sem dividir e são
administradas todas pela assembléia popular de toda a república (cantón), mas, em todas as outras
repúblicas, as comunas aldeanas também gozam de ampla autonomia e vastas partes do território
federal permanecem até agora em posse comunal. Dois terços de todos os prados alpinos e dois
terços de todos os bosques de Suíça e um número importante de campos, hortos, vinhedos, turberas,
canteiras, até agora seguem sendo de propriedade comunal. No cantón de Vaud, onde todos os chefes
de família têm direito a participar com voto consultivo nas deliberações dos assuntos comunais, o
espírito comunal se manifesta com vivacidade especial nos conselhos eleitos por eles. Ao final do
inverno, em algumas aldeias, toda a juventude masculina se encaminha ao bosque por alguns
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dias, para cortar árvores e lançá-los pelas brincos abruptas das montanhas (em forma
semelhante ao deslizamento em trenó desde as montanhas); a madeira para construção e a lenha se
reparte entre todos os chefes de família ou se vende em seu benefício.
Estas excursões são verdadeiras festas do trabalho viril. Sobre as orlas do lago de Genebra
uma parte do trabalho necessário para conservar em ordem as sacadas dos vinhedos ainda
agora se realiza em comum; e em primavera, quando o termômetro ameaça descer a baixo zero antes
da saída do sol e quando a geada poderia danar os sarmientos, o sereno noturno desperta a
todos os chefes de famílias, os quais acendem fogueiras de palha e esterco e preservam de tal modo
às videiras da geada, envolvendo-as em nuvens de fumaça.
No Tessino, os bosques são de domínio comunal; realiza-se a devasta com muita regularidade,
por seções, e os cidadãos de cada comuna recebem, por família, sua porção de rendimento. Depois,
quase em todos os cantones as comunas aldeanas possuem as chamadas Bürgernútzen, isto é, mantêm
em comum uma determinada quantidade de vacas para prover de banha a todas as famílias; ou bem
cuidam em comum os campos ou vinhedos, cujos produtos se repartem entre os comuneros, ou
bem, por último, arrendam sua terra, em cujo caso o rendimento se destina ao benefício de
toda a comuna.
Em general, pode tomar-se como regra que ali onde as comunas retiveram uma esfera de
direitos o suficientemente ampla como para ser partes vivas do organismo nacional, e onde não foram
reduzidas à miséria completa, os comuneros não deixam de cuidar suas terras com atendimento.
Devido a isto, as propriedades comunais de Suíça apresentam um contraste assombroso, em
comparação com a situação lamentável das terras “comunais” de Inglaterra. Os bosques comunais do
cantón de Vaud e de Valais se conservam em excelente ordem, segundo as regras da moderna
silvicultura. Em outros lugares, “as pequenas faixas” dos campos comunais, que mudam de donos
sob o sistema de repartições, estão muito bem abonados, já que não há escassez de gado nem de
prados. Os elevados prados alpinos, em general conservam-se bem, e os caminhos das aldeias são
excelentes. E quando
admiramos o chalé suíço, isto é, a choupana, os caminhos montañeses, o ganhado camponês,
as sacadas dos vinhedos e as casas de escola em Suiça devemos recordar que a madeira para a
construção do chalé, em sua maior parte, prove dos bosques comunais, e os caminhos e as
casas escolares são resultado do trabalho comunal. Naturalmente, em Suiça, como em todas partes, a
comuna perdeu muitos de seus direitos e funções, e a “corporação”, composta por um pequeno
número de velhas famílias, ocupou o lugar da comuna aldeana anterior, à que pertenciam todos. Mas
o que se conservou, manteve, segundo a opinião de pesquisadores sérios, sua plena vitalidade. Mal é
necessário dizer que nas aldeias suíças se conservam, até agora, muitos hábitos e costumes de ajuda
mútua.
As veladas para descascarar nozes, que se realizam por turno em cada lar; as reuniões ao
entardecer para costurar o enxoval em casa da donzela que vai casar; os convites à “ajuda” quando se
constroem casas e para a recolha da colheita, e do mesmo modo para todos os trabalhos possíveis que
pudessem ser necessários a cada um dos comuneros; o costume de trocar os meninos de um cantón a
outro com o fim de ensinar-lhes dois idiomas diferentes, francês e alemão, etc., tudo isto é um
fenômeno
completamente corrente.
É curioso observar que também diferentes necessidades modernas se satisfazem deste mesmo
modo. Assim, por exemplo, em Glarus, a maioria dos prados alpinos foram vendidos em época de
calamidades, mas as comunas continuam ainda comprando campos planos, e assim, depois que as
parcelas recompradas permaneceram em poder de diferentes comuneros durante dez, vinte ou trinta
anos, voltam ao corpo das terras comunais, que se distribuem segundo as necessidades de todos os
membros. Existem também grandes quantidades de pequenas uniões que se dedicam à
produção de artigos alimentícios necessários - pão, queijo, vinho- por meio do trabalho comum,
apesar
de que esta produção não atingiu grandes proporções; e finalmente, gozam de grande difusão
em Suiça as cooperativas rurais.

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As associações de dez a trinta camponeses que compram e semeiam em comum prados e
campos constituem um fenômeno corrente; e as associações para a venda de leite e queijo estão
organizadas em todo o país. Em soma, Suíça foi o berço desta forma de cooperação.
Ademais, ali se apresenta um amplo campo para o estudo de toda classe de sociedades
pequenas e grandes, fundadas para a satisfação de todas as possíveis necessidades modernas. Assim,
por exemplo, quase em todas as aldeias de algumas partes de Suiça se pode achar toda uma
série de sociedades: de proteção contra incêndios, de abastecimento do água, de passeios
em botes, de conservação dos berços do lago, etc.; ademais, todo o país está semeado de
sociedades de arqueiros, atiradores, topógrafos, exploradores e de outras sociedades semelhantes,
nascidas dos perigos que significa o militarismo moderno e o imperialismo.
No entanto, Suíça não é, de nenhum modo, uma exceção em Europa, já que instituições e
hábitos semelhantes se podem observar nas aldeias de França, França, Itália, Alemanha, Dinamarca,
etcétera. Assim, nas páginas precedentes falamos do que fizeram os governantes de França com o fim
de destruir a comuna aldeana e usurpar-lhe suas terras, mas, apesar de todos os esforços do governo,
uma décima parte de todo o território apto para o cultivo, isto é, ao redor de 13.500.000
acres que compreendem a metade dos prados naturais e quase a quinta parte dos bosques do
país continuam sob posse comunal.
Estes bosques provêem aos comuneros de combustível e a madeira de construção, na maioria
dos casos, é cortada por meio do trabalho comunal, com toda a regularidade desejável; o gado dos
comuneros pasta livremente nas dehesas comunais, e o remanente dos campos comunais se divide e
reparte em alguns lugares. de França -como nas Ardenas- de modo corrente.
Estas fontes suplementares que ajudam aos camponeses mais pobres a sobrellevar os
anos de más colheitas sem vender as parcelas pequenas de terra de seu pertence e sem
enredar-se em dívidas impagables, sem dúvida têm importância tanto para os trabalhadores agrícolas
como para quase 3.000.000 de modestos camponeses-proprietários. Até é duvidoso que a pequena
propriedade camponesa pudesse conservar-se sem ajuda destas fontes suplementares. Mas a
importância ética da propriedade comunal, por pequenas que fossem suas proporções, ultrapassa em
muito a sua importância econômica. Ajuda à conservação na vida aldeana, de um núcleo de hábitos
e
costumes de ajuda mútua que indubitavelmente atua como contrapeso do individualismo
estreito e da cobiça, que tão facilmente se desenvolve entre os pequenos proprietários da terra, e
facilita o desenvolvimiento das formas modernas de cooperação e sociabilidade.
A ajuda mútua, em todas as circunstâncias da vida aldeana, entra na rotina habitual da aldeia.
Por todas partes encontramos, sob nomes diferentes, o “charroi”, isto é, ajuda livre prestada pelos
vizinhos para levantar a colheita, para a recolha de uva, para a construção de uma casa, etcétera; por
todas partes encontramos as mesmas reuniões vespertinas que em Suíça. Em todas partes os
comuneros se associam para efetuar todos os trabalhos possíveis que eles por si sós não poderiam
realizar. Quase todos os que escreveram sobre a vida aldeana francesa mencionaram este costume.
Mas quiçá o melhor de tudo seria citar aqui alguns fragmentos de cartas que recebi de um amigo, ao
que roguei comunicar-me suas observações sobre esta matéria.
Estas informações se devem a um homem de idade, que foi durante muito tempo prefeito de
seu comuna natal no Sul de França (no departamento de Ariége); os fatos que comunicou lhe eram
conhecidos graças a uma observação pessoal de muitos anos e têm a vantagem de que
provem de uma localidade e não estão tomados por partes, de observações feitas em lugares
afastados entre si. Alguns deles podem parecer baladíes, mas em general, pintam o mundillo inteiro
da vida aldeana.
“Em algumas comunas, próximas às nossas -escreve meu amigo- se mantém em pleno
vigor o velho costume de l’emprount.
Quando na granja se precisam muitas mãos para o cumprimento rápido de certo trabalho -
recolher papas ou ceifar um prado- se convoca aos jovens da vizinhança; reúnense moços e moças e
realizam o trabalho animada e gratuitamente, e pela tarde, depois de um jantar alegre, os jovens
organizam bailes.

116
“Nas mesmas aldeias, quando uma moça vai casar, as vizinhas da aldehuela se reúnem em sua
casa para costurar seu enxoval. Em algumas aldeias as mulheres, ainda agora, enfiam com bastante
zelo. Quando lhe chega a época a determinada família de devanar o fio, realiza-se este trabalho
numa tarde, com a ajuda dos vizinhos convidados. Em muitas comunas de Ariége , e em outros
lugares do Sudoeste de França, o desgranamiento do milho também se efetua com a ajuda de todos
os vizinhos. Se lhes agasaja com castanhas e vinho, e os jovens dançam depois de findo o trabalho. O
mesmo costume se pratica ao elaborar-se o azeite de nozes e ao recolher o cânhamo. Na comuna L.,
o mesmo costume se observa quando se transporta o trigo. Estes dias de trabalho pesado se
convertem em festas, já que o dono considera uma honra agasajar aos voluntários com uma boa
comida. Não se fixa pagamento algum: todos se ajudam mutuamente.
“Na comuna C., a superfície das dehesas comunais se aumenta cada ano, de maneira que
atualmente quase toda a terra da comuna passou a ser de uso comum. Os pastores são eleitos pelos
donos do gado, incluindo também as mulheres. Os touros são comunais.
“Na comuna M., os pequenos rebanhos de 40 a 50 cabeças que pertencem aos comuneros,
reúnem-se num e depois se dividem em atires ou quatro rebanhos antes de enviá-los aos prados da
montanha. Cada dono permanece durante uma semana junto ao rebanho, em qualidade de pastor
“Na aldeia C., alguns chefes de família compraram em comum uma trilladora, todas as
famílias, em omum, provêem os homens que são necessários, quinze ou vinte, para atender a
máquina. Outras três trilladoras compradas pelos chefes de família da mesma aldeia são oferecidas
em aluguel por eles, mas o trabalho neste caso é realizado por ajudantes forasteiros, convidados do
modo habitual.
“Em nossa comuna R., era necessário levantar um muro ao redor do cemitério. A metade da
soma requerida para a compra da cal e para o pagamento dos obreiros hábeis foi dada por ele
conselho do distrito, e a outra metade foi reunida por assinatura. Quanto ao trabalho de fornecer areia
e água, misturar a argamassa e ajudar aos pedreiros, tudo foi realizado por voluntários (o mesmo que
sei faz na djemâa kabileña).
Os caminhos da aldeia são limpados também por meio do trabalho voluntário dos comuneros.
Outras comunas construíram de tal modo suas fontes. A imprensa para extrair o suco da uva e outras
pequenas instalações com freqüência são de propriedade comunal.”
Dois habitantes da mesma localidade, interrogados por meu amigo, agregaram o seguinte:
“Em Ou., faz alguns anos não existia moinho. A comuna construiu um moinho impondo uma
contribuição aos comuneros. Quanto ao molinero, para evitar que incorresse em qualquer classe de
enganos e de parcialidade, decidiu-se pagar-lhe dois francos por consumidor e que o trigo fora moido
grátis. “Em Saint G., muito poucos camponeses se asseguram contra incêndio. Quando se produz
um incêndio -como sucedeu recentemente- todos entregam algo à família danificada: uma
caldeira, um lençol, uma cadeira, etc., e de tal modo o modesto lar é reconstituído. Todos os vizinhos
ajudam ao prejudicado pelo incêndio a reconstruir sua casa, e a família, enquanto, aloja-se
gratuitamente em casa dos vizinhos.”
Semelhantes hábitos de ajuda mútua, e se poderiam citar um sinnúmero, indubitavelmente nos
explicam por que os camponeses franceses se associam com tal facilidade para o uso por turno do
arado e seus yuntas de cavalos, ou bem da imprensa de uva ou da trilladora, quando os últimos
pertencem a uma verdadeira pessoa da aldeia, e de igual modo também para a realização em comum
de todo gênero de trabalhos de aldeia A conservação dos canais de rego, o desmonte dos bosques, a
desecación de pântanos, a plantação de árvores, etc., desde tempo inmemorial, eram
realizados pelo município. O mesmo continua fazendo-se agora. Assim, por exemplo, muito
recentemente na Bome,
no departamento de Lozére, as colinas áridas e bravías foram convertidas em ricos hortos
mediante o trabalho comum. “A gente levava a terra sobre seus ombros; construíram sacadas e as
semearam de castanhos e durazneros; desenharam hortos e trouxeram. o água, por meio de um
canal, desde dois ou três milhas de distância”. Agora, segundo parece, construiu-se ali um novo
aqueduto de onze milhas de longitude.
O mesmo espírito comunal explica o notável sucesso obtido nos últimos tempos pelos
sindicatos
117
agrícolas; isto é, as associações de camponeses e granjeiros. No ano 1884, autorizaram-se, em
França, as associações compostas por mais de 19 pessoas, e mal é necessário agregar que quando se
decidiu fazer esta “experiência perigosa” -como se disse na Câmara dos Deputados- os servidores
públicos tomaram todas aquelas “precauções” possíveis que só a burocracia pode inventar.
Mas, apesar de tudo, França se enche de associações agrícolas (sindicatos). Ao princípio se
formavam somente para a compra de adubo e sementes, já que as adulterações nestes dois
ramos e as misturas de toda classe de desperdícios atingiram proporções inverosímeis. Mas
gradualmente estenderam sua atividade em diversas direções; inclusive à venda de produtos agrícolas
e à melhora constante das parcelas de terras.
No sul de França os estragos produzidos pela filoxera originaram a formação de grande
número de associações entre os proprietários de vinhedos.
Dez, vinte, as vezes trinta desses proprietários organizavam um sindicato, compravam
uma máquina a vapor para bombear água e faziam os preparativos necessários para inundar
seus vinhedos por turno. Constantemente se formam novas associações para a defesa contra as
inundações, para o rego, para a conservação dos canais de rego já existentes, etc. E não constitui
obstáculo algum o desejo unânime de todos os camponeses da vizinhança em questão que a lei exige.
Em outros lugares encontramos as fruitiéres ou associações de queseros ou leiteiros, e alguns deles
repartem o queijo e a banha em partes iguais, independentemente do rendimento de leite de cada
vaca.
Em Ariége existe uma associação de oito comunas diferentes para o cultivo conjunto de suas
terras, que se uniram numa; no mesmo departamento, comunas em 172 sindicatos
organizaram a ajuda médica gratuita; em conexão com os sindicatos surgem também sociedades de
consumidores, etcétera. “Uma verdadeira revolução se realiza em nossas aldeias -diz Alfred
Baudrillart- por meio destas associações que adquirem em cada região de França seu caráter
próprio”.
Quase Tomismo pode dizer-se também de Alemanha. Em todas partes onde os camponeses
puderam deter o despojo de suas terras comunais, conservam-nas em propriedade comunal, a que
predomina amplamente em W ürttemberg, Baden, Hohenzollern, e na província de Hessen , em
Starkenberg. Os bosques comunais, em general, conservam-se em estado excelente, e em milhares
de comunas tanto a madeira de construção como a lenha se reparte anualmente entre todos os
habitantes; até o antigo costume denominada Lesholztag goza ainda agora de ampla difusão: ao
tañido do sino do campanário da aldeia, todos os habitantes se dirigem ao bosque para trazer cada um
quanta lenha possa. Em Westfalia existem comunas nas quais se cultiva toda a terra como se fosse
uma propriedade comum, segundo as exigências da agronomia moderna. Quanto aos velhos hábitos e
costumes comunais, acham-se até agora em vigor na maior parte de Alemanha.
Os convites à “ajuda”, verdadeiras festas do trabalho, são um fenômeno arteramente corrente
em Westfalia, Hessen e Nassau. Nas regiões em que abundam madeiras de construção, para a
construção de uma casa nova, toma-se habitualmente do bosque comunal e todos os vizinhos ajudam
na edificação. Até nos arrabaldes da grande cidade de Francfort, entre os hortelões, em casa de
doença de algum deles, existe o costume de ir os domingos a cultivar
o horto do camarada enfermos.
Em Alemanha, o mesmo que em França, quando os governantes do povo derrogaram as leis
dirigidas contra as associações de camponeses -o que foi feito em 1884-1888- este gênero de uniões
começou a desenvolver-se com rapidez assombrosa, apesar de toda classe de obstáculos oferecidos
pela nova lei, que estava longe de favorecê-las. O fato é que -diz Buchenberger- devido a estas
uniões, em milhares de comunas aldeanas, nas que antes nada sabiam de adubos químicos nem de
alimentação
racional do gado, agora tanto o um como a outra se aplicam em proporções sem precedentes”
(t. II, pág. 507). Com ajuda destas uniões se compra todo gênero de instrumentos e de máquinas
agrícolas que economizam trabalho, e de modo parecido se introduzem diferentes métodos para o
melhoramento da qualidade dos produtos Formam-se também uniões para a venda dos produtos
agrícolas e para a melhora constante das parcelas de terra.

118
Desde o ponto de vista da economia social, todos estes esforços dos camponeses naturalmente
não têm grande importância. Não podem aliviar de modo substancial -e menos ainda durável- a
miséria a do que estão condenadas as classes agrícolas de toda Europa. Mas desde o ponto de vista
moral, que é o que nos ocupa neste momento, sua importância é enorme. Demonstra que, ainda sob o
sistema do
individualismo desenfreado que domina agora, as massas agrícolas conservam piedosamente a
ajuda mútua herdada por eles; e quanto os Estados debilitam as leis férreas mediante as quais
destruíram todos os laços existentes entre os homens para tê-los melhor em suas mãos, estes laços se
retomam imediatamente, apesar das inumeráveis dificuldades políticas, econômicas e sociais; e se
reconstituem
nas formas que melhor respondem às exigências modernas da produção.
E assinalam também as direções em que é mister procurar o máximo progresso, e as formas
em que tendem a fundir-se.
Facilmente poderia aumentar-se a quantidade de exemplos, tomando-os de Itália, Espanha e,
especialmente, Dinamarca, e poderiam assinalar-se alguns rasgos muito interessantes, próprios
de cada um destes países. Seria mister, também, mencionar a população eslava de Áustria e
da península balcânica, na que ainda existe a “família composta” e o “lar indiviso” e grande
número de instituições de apoio mútuo.
Mas me apresso a passar a Rússia, onde a mesma tendência ao apoio mútuo assume algumas
formas novas e inesperadas. Ademais, examinando a comuna aldeana em Rússia, temos a vantagem
de possuir uma enorme quantidade de material, empreendido por alguns ziemstva (concejos
camponeses) e que compreendia uma população de quase 20.000.000 de camponeses de diferentes
partes de Rússia.
Da enorme quantidade de dados reunidos pelos censos russos se podem extrair dois
importantes conclusões. Na Rússia Média, onde uma terceira parte da população camponesa, se não
mais, foi arrastada à ruína completa (pelos impostos gravosos, os nadiely muito pequenos, de terra
má, o elevado arrendo e a arrecadação muito severa de’ impostos depois de perdas completas de
colheitas) fez-se evidente, durante os primeiros vinte e cinco anos da emancipação dos camponeses da
servidão, a tendência decidida a estabelecer a propriedade, pessoal da terra dentro das comunas
aldeanas. Muitos camponeses empobrecidos, “sem cavalos”, abandonaram seus nadiely, e suas terras
com freqüência passavam a ser propriedade dos camponeses mais ricos, os quais, dedicados ao
comércio,
possuíam fontes suplementares de rendimentos; ou bem os nadiely caíram em mãos de
comerciantes
estranhos que compravam terras, principalmente com objeto de arrendá-las depois aos
mesmos camponeses a preços desproporcionadamente elevados. Deve-se observar também que,
devido a uma omissão na Lei de Emancipação de 1861, ofrecíase uma grande possibilidade de
açambarcar as terras dos camponeses a preço muito baixo e os servidores públicos do Estado, a sua
vez, utilizavam sua influência poderosa em favor da propriedade privada e se comportavam em
forma negativa para a propriedade comunal.
No entanto, desde o ano 1880 começou também uma forte oposição em Rússia Medeia contra
a propriedade pessoal, e os camponeses que ocupavam uma posição intermédia entre os ricos e os
pobres fizeram esforços enérgicos para manter as comunas. Quanto às férteis estepes do sul, que são
as partes da Rússia européia atualmente mais povoadas e ricas, foram principalmente colonizadas
durante o século XIX, sob o sistema da propriedade pessoal ou a usurpação reconhecida nesta forma
pelo estado. Mas desde que na Rússia do sul foram introduzidos, com ajuda da máquina,
métodos melhorados de agricultura, os camponeses proprietários de alguns lugares começaram, por
si mesmos, a passar da propriedade pessoal à comunal, de maneira que agora neste celeiro de Rússia
se pode achar, segundo parece, uma quantidade bastante importante de comunas aldeanas, criadas
livremente e de origem muito recente.
A Crimea e a parte do continente situada ao norte dela (a província de Tauride), das quais
temos dados detalhados, podem servir melhor do que nada para ilustrar este movimento. Depois de
sua anexação a Rússia, no ano 1783, esta localidade começou a ser colonizada por emigrantes
119
da grande Rússia, a pequena Rússia e a Rússia branca -por cosacos, homens livres e servos
fugitivos- que afluían isoladamente ou em pequenos grupos de todos os rincões de Rússia. Ao
princípio se dedicaram à pecuária e mais tarde, quando começaram a arar a terra, cada um arava
quanto podia. Mas, quando devido ao aflujo de colonos que se prolongava, e à introdução dos arados
aperfeiçoados,
aumentou a demanda de terra, surgiram entre os colonos disputas exasperadas. As disputas se
prolongaram anos inteiros até que estes homens, não unidos antes por nenhum vínculo mútuo,
chegaram gradualmente ao pensamento de que era necessário pôr fim às discórdias introduzindo a
propriedade comunal da terra.
Então começaram a concertar acordos segundo os quais a terra que falam possuído até então
pessoalmente passava a ser de propriedade comunal; e imediatamente depois começaram a dividir e
a repartir esta terra, segundo os costumes estabelecidos nas comunas aldeanas. Este movimento foi
adquirindo, gradualmente, vastas proporções, e num território relativamente pequeno, as estatísticas
de Tauride acharam 161 aldeias nas que a posse comunal tinha sido introduzida pelos mesmos
camponeses proprietários, em substituição da propriedade privada, principalmente durante os
anos 1855-1885.
De tal modo, os colonos elaboraram livremente os tipos mais variados de comuna aldeana. O
que, adiciona ainda um especial interesse a este passo da posse pessoal da terra à comunas que se
realizou não só entre os grandes russos, acostumados à vida comunal, senão também entre os
pequenos russos, que fazia muito que sob o domínio polaco tinham esquecido a comuna, e também
entre os gregos e búlgaros e até entre os alemães, quem já fazia tempo tinham conseguido elaborar, em
seus florecientes colônias semiindustriales, no Volga, um tipo especial de comuna aldeana. Os tártaros
muçulmanos da província de Tauride, evidentemente, continuaram possuindo a terra segundo o
direito comum muçulmano, que permitia só uma limitada posse pessoal da terra mas, ainda entre eles,
em alguns contados casos implantaram a comuna aldeana européia.
Quanto às outras nacionalidades que povoam a província de Tauride, a posse privada foi
suprimida em seis aldeias estonas, duas gregas, duas búlgaras, uma checa e uma alemã. A volta à
posse comunal da terra é característico das férteis estepes do sul. Mas, exemplos isolados da mesma
volta se podem encontrar também na pequena Rússia. Assim, em algumas aldeias da província de
Chernigof
, os camponeses eram antes proprietários privados da terra; tinham documentos legais
individuais de suas parcelas, e dispunham livremente da terra, dando-a em arrendo ou dividindo-a.
Mas em 1850 se iniciou entre eles um movimento em favor da posse comunal, e serviu de
argumento principal o aumento do número de famílias empobrecidas.
Inicióse tal movimento numa aldeia, e depois lhe seguiram outras, e o último caso citado por
V. V. remontava-se ao ano 1882. Naturalmente, originaram-se choques entre os camponeses pobres
que exigiam o passo à posse comunal e os ricos, que ordinariamente preferem a propriedade privada, e
as vezes a luta se prolongava anos inteiros. Em algumas localidades, a resolução unânime de toda a
comuna, exigida pela lei para o passo à nova forma de posse da terra, não pôde ser atingida, e a aldeia
se dividiu então em duas partes: uma continuava com a posse privada da terra e a outra passava à
comunal; as vezes, fundiam-se, mais tarde , numa comuna, e as vezes ficavam assim, cada qual com
sua forma de posse da terra.
Quanto a Rússia central, em muitas aldeias cuja população se inclinava à posse privada
surgiu, desde o ano 1880, um movimento de massas em favor do restabelecimento da comuna
aldeana. Até os camponeses proprietários, que tinham vivido durante anos sob o sistema de posse
pessoal da terra, voltavam ao ordem comunal. Assim, por exemplo, existe uma quantidade importante
de ex-servos que receberam só uma quarta parte de ninguém¡, mas Ubres de redenção e com títulos
de propriedade privada. No ano 1890, inicióse entre eles um movimento (nas províncias de Kursk,
Riazan, Tanibof e outras) cuja finalidade era estabelecer em comum suas parcelas, sobre a base da
posse comunal.
Exatamente o mesmo “os agricultores livres” (vólnye klebopáshtsy) que foram emancipados
da servidão pela lei de 1803 e que compraram suas nadiely cada família por separado quase todos
passaram agora ao sistema comunal, livremente introduzido por eles.
120
Todos estes movimentos se remontam a uma época muito recente, e neles participam também
os camponeses de outras nacionalidades, além da russa Assim, por exemplo, os búlgaros do
distrito de Tiraspol, que possuíram a terra durante sessenta anos sob regime de propriedade privada,
introduziram a posse comunal nos anos 1876-1882.
Os, menonitas alemães do distrito de Berdiansk lutaram, no ano 1890 . pela introdução da
posse comunal, e os pequenos camponeses-proprietários (Kleinwirthschafiliche), entre os bautistas
alemães, fizeram propaganda em suas aldeias para a adoção da mesma medida. Para concluir citarei
um exemplo mais: na província de Samara, o governo russo organizou, a modo de ensaio, no ano
1840, 103 aldeias sob o regime da posse privada da terra. Cada chefe de família recebeu um excelente
nadiel, de 40 deciatinas.
No ano 1890, em 72 aldeias destas 103 os camponeses expressaram seu desejo de passar
à posse comunal. Tomo todos estes fatos do excelente trabalho de V. V., quem, a sua vez,
limitou-se a classificar os que as estatísticas territoriais assinalaram durante os censos por lar acima
citados.
Tal movimento em favor da posse comunal vai rotundamente na contramão das teorias
econômicas modernas, segundo as quais o cultivo intensivo da terra é incompatível com a
comuna aldeana. Mas de estás teorias se pode dizer somente que nunca passaram pelo depois da
experiência prática: pertencem inteiramente ao domínio das teorias abstratas. Os fatos mesmos que
temos ante nossos olhos demonstram, pelo contrário, que em todas partes onde os camponeses russos,
graças ao
concurso de circunstâncias favoráveis, foram menos presa da miséria, e em todas partes onde
acharam entre seus vizinhos homens experimentados e que tinham iniciativa a comuna aldeana
contribuíam a introdução de diferentes aperfeiçoamentos no domínio da agricultura e, em general,
de, a vida camponesa.
Aqui, como em todas partes, a ajuda mútua conduz ao progresso mais rapidamente e melhor
do que
a guerra de cada um contra todos, como pode ver-se pelos fatos seguintes. Vimos já (apêndice
XVI) que os camponeses ingleses de nosso tempo, ali onde a comuna se conservou intacta,
converteram o campo em barbecho, em campos de leguminosas e tuberosas. O mesmo começa a
fazer-se também em Rússia.
Sob Nicolás 1, muitos servidores públicos do Estado e terratenientes obrigavam aos
camponeses
a introduzir o cultivo comunal nas pequenas parcelas que pertenciam à aldeia, com o fim de
encher os depósitos comunais de grão. Tais cultivos, que no espírito dos camponeses vão unidos às
piores recordações da servidão, foram abandonados imediatamente depois da queda do regime servil;
mas agora os camponeses começam, em algumas partes, a estabelecê-los por iniciativa própria. Num
distrito (Ostrogozh, da província de Kursk) foi suficiente o espírito de empresa de uma
pessoa para introduzir tais cultivos nas quatro quintas partes das aldeias do distrito.
O mesmo se observa também em algumas outras localidades. Em. o dia fixado, os comuneros
se reúnem para o trabalho: os ricos com arados ou carroças, e os mais pobres contribuem ao trabalho
comum só suas próprias mãos, e não se faz tentativa alguma de calcular quanto trabalha cada um.
Depois, o arrecadado pelo cultivo comunal é destinado a empréstimo para os comuneros mais pobres
-a maioria das vezes sem devolução-, ou bem se utiliza para manter aos órfãos e viúvas, ou para
consertar a igreja da aldeia ou a escola, ou, por último, para o pagamento de qualquer dívida
da comuna.
Como deve esperar-se de homens que vivem sob o sistema da comuna aldeana, todos os
trabalhos que entram, por assim dizê-lo, na rotina da vida aldeana (a reparação de caminhos e pontes,
a construção de diques e caminhos de fajina, a desecación de pântanos, os canais de rego e poços,
ødevasta-a de bosques, a plantação de árvores, etc.), são realizados pelas comunas inteiras;
exatamente o mesmo que a terra, muito com freqüência, arrenda-se em comum, e os prados são
ceifados por todo o mir, e ao trabalho vão os anciãos e os jovens, os homens e as mulheres, como o
descreveu magnificamente L.N. Tolstoy. Tal gênero de trabalho é coisa de todos os dias em todas
partes de Rússia; mas a comuna aldeana não elude de modo algum as melhoras da agricultura
121
moderna, quando pode fazer os gastos correspondentes e quando o conhecimento, que fala sido até
então privilégio dos ricos, penetra, por fim, na choça da aldeia.
Indicamos já que os arados aperfeiçoados se estendem rapidamente no sul de Rússia e está
provado que em muitos casos precisamente as comunas aldeanas, cooperaram nesta difusão. Sucedia
também, quando o arado era comprado pela comuna, que, depois de prová-lo na parcela da terra
comunal, os camponeses indicavam as mudanças necessárias àqueles a quem tinham comprado o.
arado; ou bem, eles mesmos prestavam ajuda para organizar a produção artesana de atados baratos.
No distrito de Moscou, onde a compra de arados pelos camponeses se estendeu rapidamente,
o impulso foi dado por aquelas comunas que arrendavam a terra em comum e foi feito isto com o fim
especial de melhorar seus cultivos.
No nordeste de Rússia, na província de Viatka, pequenas associações de camponeses que
viajavam com seus aventadoras (fabricadas pelos artesãos de um dos distritos em que abundava o
ferro) estenderam o uso destas máquinas entre eles, e ainda nas províncias vizinhas. A ampla difusão
das trilladoras nas províncias. de Samara, Sartof e Jerson, é o resultado da atividade das associações
de camponeses, que podem chegar a comprar até uma máquina cara, enquanto o camponês
isolado não está em condições de fazê-lo.
E enquanto em quase todos os, tratados econômicos dize-se que a comuna aldeana está
condenada a desaparecer quanto o sistema de três amelgas seja substituído pelo cultivo rotativo,
vemos que em Rússia muitas comunas aldeanas tomaram a iniciativa da introdução justamente deste
sistema de cultivo rotativo, o mesmo que fizeram em Inglaterra. Mas antes de passar a ele, os
camponeses habitualmente reservam, uma parte dos campos comunais para efetuar ensaios de semeia
artificial
de pastos, e as sementes são compradas pelo mir .
Se o ensaio tem sucesso, os camponeses não se sentem engravidados em fazer uma nova
repartição dos campos para passar à economia de quatro, cinco e ainda seis amelgas.
Este sistema se pratica agora em centenas de aldeias da província de Moscou, Tver,
Smolensk, Viatka e Pskof. E ali onde o possível separar certa quantidade de terra para este fim, as
comunas reservam parcelas para o cultivo de plantíos de frutíferos.
Ademais, as comunas empreendem, com bastante freqüência, melhoras constantes, como a
drenagem e o rego. Assim, por exemplo, em três distritos da província de Moscou, de caráter
industrial marcado, durante uma década (1880- 1890), executaram-se trabalhos de drenagem em
grande escala
em 180 a 200 aldeias diferentes, e os comuneros mesmos trabalharam com o bico. No outro
extremo de Rússia, nas estepes áridas do distrito de Novouzen, foram erigidos pela comuna mais de
1.000 diques pára estanques e fossos, e foram escavados algumas centenas de poços profundos. Ao
mesmo tempo, numa rica colônia alemã do sudeste de Rússia, os comuneros -homens e mulheres-
trabalharam cinco semanas consecutivas na ereção de um dique de três verstas de longo destinado ao
rego. Pois, como poderiam lutar contra o clima seco homens isolados? E a onde poderiam chegar com
o esforço pessoal, naquela época em que o sul de Rússia sofria pela multiplicação de marmotas
, e todos os agricultores, ricos e pobres. comuneros e individualistas tiveram de aplicar o
trabalho de suas próprias mãos para conjurar essa calamidade? A polícia, em tais circunstâncias, não
serve de ajuda, e o único meio é a associação.
Como é sabido, sob o reinado de Nicolás II, o ministro Stolypin fez uma tentativa em grande
escala para destruir a posse comunal da terra e transportar os camponeses a parcelas de
granjas separadas. Muitos esforços e muito dinheiro do estado se gastou em isto, com sucesso
em algumas províncias, segundo parece, especialmente em Ucrânia.
Mas a guerra e a revolução que seguiu sacudiram tão profundamente toda a vida da aldeia que
no momento presente é impossível dar resposta que tenha certa precisão sobre, os resultados desta
campanha do estado contra a comuna.
Depois de ter falado tanto da ajuda e do apoio mútuos praticados pelos agricultores dos países
“civilizados”, vejo que poderia ainda encher-se um tomo bastante volumoso de exemplos tomados da
vida das centenas de milhões de homens que vivem mais ou me nos baixo a autoridade ou a proteção
de estados mais ou menos civilizados, mas que, no entanto , estão ainda fora da civilização moderna e
122
das idéias modernas. Poderia descrever, por exemplo, a vida interior da aldeia turca, com sua rede de
assombrosos hábitos e costumes ajuda mútua.
Conferindo meus cadernos de anotações com respeito à ajuda camponesa do Cáucaso, acho
fatos muito comovedores de apoio mútuo. Os mesmos hábitos acho em minhas notas sobre a djemáa
árabe, a purra afeg, sobre as aldeias de Persia, Índia e Java, sobre a família indivisa dos chineses,
sobre os seminómadas do Ásia Central e os nômades do longínquo Norte. Conferindo as notas,
tomadas em parte a esmo, da riquísima literatura sobre Africa, encontro que estão cheias dos mesmos
fatos; aqui também se convoca à “ajuda” para recolher a colheita; as casas também se
constroem com ajuda de todos os habitantes da aldeia. as vezes para consertar o estrago ocasionado
pelas incursões de bandidos “civilizados”; em alguns casos, povos inteiros se prestam ajuda na
desgraça ou bem
protegem aos viajantes, etcétera.
Quando recorro a trabalhos como o compêndio do direito comum africano fato por Pós,
começo a compreender por que, apesar de toda a tirania, de todas as opressões, dos despojos e das
incursões, apesar das guerras internacionais, dos reis antropófagos, dos feiticeiros charlatões e dos
sacerdotes apesar dos caçadores de escravos, etc., a população destes países não se dispersou pelos
bosques; por que conservou um determinado grau de civilização; começo a compreender por que
estes “selvagens” seguiram sendo, no entanto, homens, e não desceram ao nível de famílias errantes,
como os orangotangos que se estão extinguindo.
O caso é que os caçadores de escravos, europeus e americanos, os saqueadores dos depósitos
de marfim, o reis belicosos, os “heróis” matabeles e malgaches desaparecem deixando depois de si
só impressões marcadas com sangue e fogo; mas o núcleo de instituições, hábitos e costumes de
ajuda mútua criadas primeiro pela tribo e depois pela comuna aldeana permanece e mantém aos
homens unidos em sociedades, abertas ao progresso da civilização e prestas a aceitá-la quando
chegue o dia em que, em lugar de balas e aguardiente, comecem a receber de nós a verdadeira
civilização.
O mesmo se pode dizer também de nosso mundo civilizado. As calamidades naturais e as
provocadas pelo homem passam.
Populações inteiras são periodicamente reduzidas à miséria e à fome; as mesmas tendências
vitais são despiadadamente achatadas em milhões de homens reduzidos ao pauperismo das cidades; o
pensamento e os sentimentos de milhões de seres humanos estão emponzoñados por doutrinas
urdidas em interesse de uns poucos. Indubitavelmente, todos estes fenômenos constituem parte de
nossa existência. Mas o núcleo de instituições, hábitos e costumes de ajuda mútua continua existindo
em milhões de homens; esse núcleo os une, e os homens preferem aferrarse a esses hábitos, crenças
e tradições suas antes que aceitar a doutrina de uma guerra de cada um contra todos, oferecida em
nome de uma pretendida ciência, mas que em realidade nada tem de comum com a ciência.

CAPITULO VIII: A AJUDA MÚTUA NA SOCIEDADE MODERNA


(Continuação)

Observando a vida cotidiana da população rural de Europa tenho visto que, apesar de todos os
esforços dos estados modernos para destruir a -comuna- aldeana, a vida dos camponeses está cheia dê
123
hábitos e costumes de ajuda mútua e apoio mútuo; encontramos que se conservaram até: agora restos
da posse comunal da terra que estão amplamente difundidos e têm ainda importância;
e que mal foram suprimidos, em época recente, os obstáculos legais que engravidavam o
ressurgimento das associações e uniões rurais; em todas partes surgiu rapidamente entre os
camponeses uma rede inteira de associações livres com todos os fins possíveis; e este
movimento juvenil evidência indubitavelmente a tendência a restabelecer um gênero
determinado de união, semelhante à que existia na comuna aldeana anterior.
Tales foram as conclusões a que chegamos no capítulo precedente; e por isso nos ocuparemos
agora de examinar as instituições de apoio mútuo que se formam na época presente entre a população
industrial.
Durante os três últimos séculos, as condições para a elaboração de ditas associações foram tão
desfavoráveis nas cidades como nas aldeias Sabido é que, praticamente, quando as cidades medievais
foram submetidas, no século XVI, ao domínio dos estados militares que nasciam então, todas as
instituições que associavam aos artesãos, os maestros e os mercadores em guildas e em comunas
cidadãs foram aniquiladas pela violência.
A autonomia e a jurisdição própria, tanto nas guildas como na cidade, foram destruídas; o
juramento de fidelidade entre irmãos das guildas começou a ser considerado como uma manifestação
de traição para o estado; os bens das guildas foram confiscados do mesmo modo que as terras das
comunas aldeanas; a organização interior e técnica de cada ramo do trabalho caiu em mãos do
estado.
As leis, fazendo-se gradualmente mais e mais severas, tratavam de impedir de todos modos
que os artesãos se associassem de qualquer maneira que fosse. Durante algum tempo se
permitiu, por exemplo, a existência das guildas comerciais, sob condição de que outorgariam
subsídios generosos aos reis; tolerou-se também a existência de algumas guildas de artesãos às que
utilizava o estado como órgãos de administração. Algumas das guildas do último gênero ainda
arrastam sua
existência inútil. Mas o que antes era uma força vital da existência e da indústria medievais,
faz vai muito que desapareceu sob o peso abrumador do estado centralizado.
Em Grã-Bretanha, que pode ser tomada como o melhor exemplo da política industrial dos
estados modernos, vemos que já no século XV o Parlamento iniciou a obra de destruição das guildas;
mas as medidas decisivas contra elas foram tomadas só no século seguinte, Enrique VIII não só
destruiu a organização das guildas, senão que no momento oportuno confiscou seus bens “com maior
desconsideração -disse Toulmin Smith- do que a demonstrada na confiscação dos bens dos
mosteiros” Eduardo VI terminou sua obra. E já na segunda metade do século XVI achamos que o
Parlamento se ocupou de resolver todas as divergências entre os artesãos e os comerciantes que antes
eram resolvidas em cada cidade por separado.
O Parlamento e o rei não só se apropriaram do direito de legislação em todas as disputas
semelhantes, senão que tendo em conta os interesses da coroa, unidos à exportação ao estrangeiro, em
seguida começaram a determinar o número necessário, segundo sua opinião, de aprendizes para cada
ofício, e a regularizar do modo mais detalhado a técnica mesma de cada produção: o peso do
material, o número de fios por polegada de tela, etc. Se deve dizer, no entanto, que estas tentativas
não foram coroadas pelo sucesso, já que as discussões e dificuldades técnicas de todo gênero, que
durante uma série de séculos foram resolvidas pelo acordo entre as guildas estreitamente dependentes
uma de outra e entre as cidades que ingressavam na união, estão completamente fora do alcance dos
servidores públicos do estado.
A intromissão constante dos servidores públicos não permitia aos ofícios viver e desenvolver-
se, e levou à maioria deles a uma decadência completa; e por isso, os economistas, já no século
XVIII, rebelando-se contra a regulação da produção pelo estado, expressaram um descontentamento
plenamente justificado e estendido então. A destruição feita pela revolução francesa deste
gênero de intromissão da burocracia na indústria foi saudada corno um ato de libertação; e cedo
outros países seguiram o exemplo de França.
O estado não pôde, também não, alabar-se de ter obtido melhor sucesso na determinação do
salário. Nas cidades medievais, quando no século XV começou a marcar-se cada vez mais
124
agudamente a distinção entre os maestros e seus meio oficiais ou jornaleiros, os meio oficiais
opuseram suas uniões (Geseilverbande), que as vezes tinham caráter internacional, contra as uniões de
maestros e comerciantes.
Agora, o estado se encarregou de resolver suas discussões, e segundo o estatuto de Isabel, de
1
ano 1563, conferiu-se aos juízes de paz a obrigação de estabelecer a proporção do salário, de
maneira que assegurasse uma existência “decorosa” aos jornaleiros e aprendizes. Os juízes de paz, no
entanto, resultaram completamente impotentes na obra de conciliar os interesses opostos de amoos e
obreiros, e de nenhum modo puderam obrigar aos maestros a submeter-se à resolução judicial. lei
sobre
o salário, de tal modo, converteu-se gradualmente em letra morta, e foi derrogada ao final do
século XVIII.
Mas, ao mesmo tempo que o estado se viu obrigado a renunciar ao dever de estabelecer o
salário,
continuou, no entanto, proibindo severamente todo gênero de acordo entre os jornaleiros e os
maestros, concertados com o fim de aumentar os salários ou de mantê-los num determinado nível.
Durante todo o século XVIII, o estado emitiu leis dirigidas contra as uniões obreiras, e no ano 1799,
finalmente, proibiu todo gênero de acordo dos obreiros, sob ameaça dos castigos mais severos. Em
soma o Parlamento britânico só seguiu, neste caso o exemplo da Convenção revolucionária francesa,
que ditou em 1793 uma lei draconiana contra as coligações obreiras; os acordos entre um
determinado número de cidadãos eram considerados por esta assembléia revolucionária como um
atentado contra a soberania do estado, do que se supunha que protegia em igual medida a todos seus
súbditos.
De tal modo foi terminada a obra da destruição das uniões medievais. Agora, tanto na cidade
como na aldeia, o estado reinava sobre os grupos, debilmente unidos entre si, de pessoas isoladas, e
estava disposto a prevenir com as medidas mais severas, todas suas tentativas de restabelecer
qualquer união especial. Tales foram as condições em que teve que se abrir passo a tendência à ajuda
mútua
no século XIX. É compreensível, no entanto, que todas estas medidas não tivessem força como
para destruir essa tendência perdurável. Em decorrência do século XVIII. as uniões obreiras se
reconstituíam constantemente.
Não puderam deter seu nascimento e desenvolvimento nem sequer as cruéis perseguições que
começaram em virtude das leis de 1797 e 1799. Os obreiros aproveitavam cada advertência da lei e
da vigilância estabelecida, a cada demora de parte dos maestros obrigados a informar da constituição
das uniões, para unir-se entre si.
Sob a aparência de sociedades amistosas (friendly societies), de clubs de entierros, ou de
irmandades secretas, as uniões se estenderam por todas partes: na indústria têxtil, entre os
trabalhadores das cuchillerías de Sheffield, entre os mineiros: e se formaram também
poderosas organizações federais para apoiar às uniões locais durante as greves e perseguições. Uma
série de agitações obreiras se produziram a princípios do século XIX, especialmente depois da
conclusão da paz de 1815, de maneira que finalmente teve que derrogar as leis de 1797 e 1799.
A derrogação da lei contra as coligações (Combinations Laws), em 1825, deu um novo
impulso ao movimento. Em todos os ramos de produção se organizaram imediatamente uniões e
federações nacionais e quando Robert Owen começou a organização de sua “Grande União
Consolidada Nacional” das uniões profissionais, em alguns meses atingiu a reunir até meio milhão
de membros.
Verdade é que este período de liberdade relativo durou pouco. As perseguições começaram de
novo
em 1830, e no intervalo entre 1832 e 1844 seguiram condenações judiciais ferozes contra as
organizações obreiras, com desterro a trabalhos forçados a Austrália. A “Grande União
Nacional” de Owen foi dissolvida, e este teve de renunciar a seu ensaio de União
Internacional, isto é, à Internacional. Por todo o país, tanto as empresas particulares como igualmente
o estado em seus ateliês, começaram a obrigar a seus obreiros a romper todos os laços com as
125
uniões e a assinar um “document”, isto é, uma renúncia redigida neste sentido. Os unionistas foram
perseguidos em massa e detentos sob a ação da lei “Sobre os amoos e seus servidores”, em virtude da
qual era suficiente a simples declaração do patrono da fábrica sobre a suposta má conduta de seus
obreiros para prendê-los em massa e julgá-los As greves foram sufocadas do modo mais despótico, e
condenações assombrosas por sua severidade foram pronunciadas pela simples
declaração de greve, ou pela participação em qualidade de delegado dos grevistas, sem falar
já das sofocaciones, por via militar, dos mais mínimas desordens durante as greves, ou dos juízos
seguidos pelas frequentes manifestações de violências de diferentes gêneros por parte dos obreiros.
A prática da ajuda mútua, sob tais circunstâncias, estava bem longe de ser coisa fácil. E, no entanto,
apesar de todos os obstáculos, de cujas proporções nossa geração nem sequer tem a devida idéia, já.
desde o ano 1841 começou o renascimento das uniões obreiras, e a obra da associação dos obreiros se
prolongou incansavelmente desde então até o presente; até que, por fim, depois de uma longa luta
que durava já mais de cem anos, foi conquistado o direito de pertencer às uniões No ano 1900 quase
uma quarta parte de todos os trabalhadores que tinham ocupação fixa, isto é, ao redor de 1.500.000
homens, pertenciam às uniões obreiras (trace unions), e agora seu número quase se triplicou.
Quanto aos outros estados europeus, é suficiente dizer que até épocas muito recentes todo
gênero de uniões era perseguido como conjuración; em França, a formação das uniões (sindicatos)
com mais de 19 membros só foi permitida pela lei em 1884.
Mas apesar disto, as uniões obreiras existem por todos os lados, conquanto com freqüência têm
de tomar a forma de sociedades secretas; ao mesmo tempo, a difusão e a força das organizações, em
especial dos “cavaleiros do trabalho” nos Estados Unidos e das uniões obreiras de Bélgica,
manifestou-se claramente nas greves do 90 . No entanto, é necessário recordar que o fato mesmo de
pertencer a uma união obreira, aparte das perseguições possíveis, exige do obreiro sacrifícios bastante
importantes em dinheiro, tempo e trabalho não pagamento, ou implica risco constante de perder o
trabalho pelo mero fato de pertencer à união obreira. Ademais, o unionista tem que recordar
continuamente a possibilidade de greve, e a greve quando se esgotou o limitado crédito que dá o
padeiro e o prestamista, a entrega do fundo de greve não atinge para alimentar à família traz
consigo a fome dos meninos.
Para os homens que vivem em estreito contato com os obreiros, uma greve prolongada
constitui um dos espetáculos que mais oprimem o coração; por isto, facilmente pode imaginar-se que
significa, ainda agora, nas partes não muito ricas da Europa continental. Continuamente, ainda na
época presente, a greve termina com a ruína completa e a emigração forçada de quase toda a
população da localidade e o fuzilamento dos grevistas pela menor causa, e até sem causa alguma,
ainda agora constitui o fenômeno mais corrente na maioria dos estados europeus.
E no entanto, cada ano, em Europa e América, produzem-se milhares de greves e demissões
em massa, e as assim chamadas greves, “por solidariedade, provocadas pelo desejo dos trabalhadores
de apoiar aos colegas despedidos do trabalho ou bem para defender os direitos de suas uniões, são as
que se destacam por sua essencial duração e severidade.
E enquanto a parte reaccionária da imprensa costuma estar sempre inclinada a declarar as
greves como uma “intimidação”, os homens que vivem entre grevistas falam com admiração da ajuda
do apoiou mútuo praticado entre eles.
Provavelmente, muitos ouviram falar do trabalho colossal realizado pelos trabalhadores
Voluntários para organizar a ajuda e a distribuição de comida durante a grande greve dos obreiros dos
docks de Londres no 80, ou dos mineiros que tendo estado eles mesmos sem trabalho durante
semanas inteiras, em quanto voltaram ao trabalho de novo começaram imediatamente a pagar quatro
chelines por semana ao fundo de greve; ou da viúva do mineiro que durante os distúrbios obreiros de
Yorkshire , em 1894, contribuiu todas as poupanças de sua difunto esposo ao fundo de greve; de
como durante a greve os vizinhos se repartiam sempre entre si o último bocado de pão; dos mineiros
de Redstoc, que possuíam vastos hortos e convidaram a 400 camaradas de Bristol a levar-se
gratuitamente couves, batatas, etc. Todos os correspondentes dos diários, durante a grande greve dos
mineiros de Yorkshire, em 1894 conheciam um cúmulo de fatos semelhantes, apesar de que bem
longe estavam todos eles de atrever-se a escrever sobre semelhantes “bagatelas” inconvenientes nas
páginas de seus respeitáveis diários.
126
A união dos obreiros profissionais não constitui, no entanto, a única forma em que se
encaminha a necessidade do obreiro de ajuda mútua.
Além das uniões obreiras existem as associações políticas, cuja ação, segundo consideram
muitos obreiros, conduz melhor ao bem-estar público do que as uniões profissionais, que agora se
limitam, em sua maior parte, a seus sós estreitos fins. Naturalmente, não é possível considerar o
simples fato de pertencer a uma corporação política como uma manifestação da tendência à ajuda
mútua. A política, como é sabido, constitui precisamente o campo onde os homens egoístas entram nas
mais
complicadas combinações com os homens inspirados por tendências sociais. Mas tudo político
experimentado sabe que os grandes movimentos políticos, todos, surgiram tendo justamente objetivos
amplos e, com freqüência, longínquos, e os mais poderosos destes movimentos foram aqueles que
provocaram o entusiasmo mais desinteressado.
Todos os grandes movimentos históricos tinham este caráter, e o socialismo brinda a nossa
geração um exemplo deste gênero de movimentos “É obra de agitadores colados” tal é o estribilho
corrente daqueles que nada sabem destes movimentos. Mas, em realidade -falando só dos fatos que
conheço pessoalmente- se durante os últimos trinta e cinco anos tivesse levado um diário e anotado
nele todos os exemplos por mim conhecidos de abnegação e sacrifício com que tropecei no
movimento social, a palavra “heroísmo” não abandonaria os lábios dos leitores desse diário. Mas os
homens de que
teria que falar nele estavam longe de ser heróis; eram gente medíocre, inspirada somente por
uma grande idéia.
Tudo diário socialista -e em Europa somente existem muitas centenas- representa a mesma
história de longos anos de sacrifício, sem a mais mínima esperança de venda a material alguma, e
na imensa maioria dos casos, quase sem a satisfação da ambição pessoal, se é que esta existe. Vi como
famílias que viviam sem saber se teriam um bocado de pão ao dia seguinte -boicotado o esposo em
todas partes, em sua pequena cidade, por sua participação num diário, e a esposa mantendo à família
com seu trabalho de agulha- prolongavam semelhante situação meses e anos, até que, por, último, a
família, esgotada, retirava-se, sem uma palavra de reproche, dizendo aos novos colegas:
“Continuai, nós já não temos forças para resistir”. Vi homens que morriam de tisis e que o sabiam, e,
no entanto,
corriam sob a garoa gelada e a neve para organizar comícios, e eles mesmos falavam nos
comícios até poucas semanas antes de sua morte, e por último, ao ir ao hospital, diziam-nos:
“Bueno, amigos, minha canção terminou: os médicos decidiram que me ficam só poucas semanas de
vida. Dizei aos camaradas que me farão feliz se algum vem visitar-me”. Conheço fatos que seriam
considerados “uma
idealização” de parte minha se os referisse a meus leitores, e até os nomes mesmos destes
homens mal são conhecidos além do círculo estreito de seus amigos, e serão cedo esquecidos quando
estes também deixem de existir.
Em soma, não sê que admirar mais: se a ilimitada abnegação destes poucos ou a soma total
das pequenas manifestações de abnegação das massas comovidas pelo movimento. A venda de cada
dezena de números de um diário obreiro, cada comício, cada centena de votos ganhados em favor
dos socialistas nas eleições, são o resultado de uma massa tal de energia e de sacrifícios de que os
que estão fora do movimento não têm sequer a menor idéia. E bem como fazem os socialistas, fazia no
passado todo partido popular e progressista, político e religioso.
Todo o progresso realizado por nós no passado é o resultado do trabalho de uns homens de
uma abnegação semelhante.
Com freqüência se apresenta, especialmente em Grã-Bretanha, à cooperação como um
“individualismo por ações”, e é indubitável que em seu aspecto presente pode contribuir
facilmente a desenvolver o egoísmo cooperativista, não somente, com respeito à sociedade geral,
senão
entre os mesmos cooperadores. No entanto, é sabido de maneira verdadeira que ao princípio
tinha este movimento um caráter profundo de ajuda mútua. Ainda na época presente, os mais ardentes
apoiantes de dito movimento estão firmemente convencidos de do que a cooperação conduzirá à
127
humanidade a uma forma harmoniosa superior, de relações econômicas; e depois de ter estado em
algumas localidades do norte de Inglaterra, onde a cooperação se acha muito desenvolvida, é
impossível não chegar à conclusão de que um número importante dos participantes deste
movimento sustentam justamente tal opinião. A maioria deles perderia todo interesse no movimento
cooperativo se perdesse a fé mencionada. É necessário dizer também que nos últimos anos começaram
a evidenciarse, entre os cooperadores, ideais mais amplos de bem-estar público e de solidariedade
entre os produtores. Impossível é negar também a inclinação manifestada neles, que tende a melhorar
as relações entre os proprietários das cooperativas produtoras e seus obreiros.
A importância do cooperativismo em Inglaterra, Holanda e Dinamarca é bem conhecido, e em
Alemanha, especialmente em o, Rhin, as sociedades cooperativas, na época presente, são já uma
força poderosa da vida industrial, Mas quiçá Rússia constitua o melhor campo para o estudo do
cooperativismo em sua infinita variedade de formas. Em Rússia, a cooperativa, isto é, o artiel,
cresceu de maneira natural;
foi uma herança da Idade Média, e enquanto a sociedade cooperativa constituída oficialmente
teria tido que lutar contra um cúmulo de dificuldades legais e contra a suspicácia da burocracia, a
forma de cooperativa não oficial -o artiel- constitui a essência mesma da vida camponesa russa. Toda
a história da “criação de Rússia” e da organização de Sibéria se apresenta em realidade corno a
história dos
artiéli de caçadores e de industriais, imediatamente depois dos quais se estenderam as
comunas aldeanas.
Agora achamos o artiél por todas partes: em cada grupo de camponeses que de uma mesma
aldeia vai ganhar-se a vida à fábrica, em todos os ofícios da construção entre os pescadores e
caçadores, entre os presos que vão em viagem a Sibéria e os fugitivos de Sibéria, entre os moços de
corda dos transportes ferroviários, entre os membros dos artiéli da bolsa, dos obreiros da alfândega,
em muitas das indústrias artesãos (que dão trabalho a sete milhões de homens), etcétera. Numa
palavra, de acima a abaixo em todo mundo trabalhador, achamos artiéli: permanentes e temporários,
para a produção e para o consumo, e em todas as formas possíveis. Até a época presente as seções das
pesquerías, nos rios que afluyen ao mar Caspio, são arrendadas por artiéli colossais; o rio Ural
pertence a todo o Exército de cosacos do Ural, que divide e reparte suas seções de pesquerías -quiçá
as mais ricas do mundo- entre as aldeias cosacas, sem intromissão alguma por parte das autoridades.
No Ural, o Volga e em todos os lagos do norte de Rússia, øpesca-a é realizada pelos artiéli (veja-se o
apêndice XIX).
Junto com estas organizações permanentes existe também uma multidão inumerável de artiéli
temporárias, constituídos com todos os fins possíveis. Quando de dez a vinte camponeses de uma
localidade se dirigem a uma cidade grande a ganhar-se a vida; seja em qualidade de tecelões
carpinteiros, pedreiros, navegantes, etc., sempre constituem um artiél, alugam um alojamento
comum e tomam uma cozinheira (muito com freqüência a esposa de um deles se ocupa da cozinha),
elijen a um stárosta, comem em comum e cada um paga ao artiél o alojamento e a comida. A partida
de presos em viagem a Sibéria faz sempre do mesmo modo, e o stárosta eleito por eles é o
intermediário, reconhecido oficialmente, entre os presos e o chefe militar do comboio que acompanha
à partida. Nos presídios os presos têm a mesma organização.
Os moços de corda dos transportes ferroviários, os mandaderos da bolsa, os membros dos
artiéli da alfândega, e os mandaderos da cidade unidos por canção solidária, gozam de tal reputação
que os comerciantes confiam a um membro do artiél dos mandaderos qualquer soma de dinheiro. Na
construção se formam artiéli que contam, as vezes dezenas de membros, as vezes também uns
poucos, e os grandes contratistas da construção de casas e transportes ferroviários preferem sempre
tratar com o artiél antes que com os obreiros contratados separadamente.
As tentativas feitas pelo Ministro da Guerra, em 1890, para negociar diretamente com os
artiéli de produtores, formados para produções especiais entre artesãos, e encarregar-lhes sapatos e
todo gênero de artigos de cobre e ferro para os uniformes dos soldados a julgar pelos relatórios,
deram resultados inteiramente satisfatórios; e a entrega de uma fábrica fiscal (Votkinsk) em arrendo
aos artiéli de obreiros viose coroada, um tempo, por um sucesso positivo. De tal modo, podemos ver
em Rússia como as antigas instituições medievais, que tinham evitado a intromissão do estado (em
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suas manifestações não oficiais) sobreviveram íntegras até a época presente, e tomaram as formas
mais diferentes, de acordo, com as exigências da indústria e o comércio modernos. Quanto à
península
balcânica, no império turco e o Cáucaso, as velhas guildas se conservaram ali com plena força.
Os esnafy servios conservaram plenamente o caráter medieval: em sua constituição entram tanto os
mestres tomo os jornaleiros; regulam a indústria e são os órgãos de apoio mútuo, tanto no campo do
trabalho como num caso de doença, enquanto os amkari georgianos do Cáucaso, e em especial em
Tiflis, não só cumprem os deveres das uniões profissionais, senão que exercem uma influência
importante sobre a vida da cidade.
Relacionado com a cooperação, deveria, quiçá, mencionar a existência em Inglaterra das
sociedades
amistosas de apoio mútuo (friendly societies), as uniões dos “chistosos” (oddfellows), os clubs
das aldeias das cidades para pagar a assistência médica, os clubs para entierros ou para a aquisição de
roupas, os pequenos clubs organizados com freqüência entre as moças das fábricas, que abonam
alguns peniques semanais e depois sorteiam entre si a soma de uma libra, que lhes dá a possibilidade
de realizar alguma compra mais ou menos importante, e muitas outras sociedades de gênero
semelhante. Toda a vida do povoo trabalhador de Inglaterra está impregnada de tais instituições Em
todas estas sociedades e clubs se pode observar não pouca reserva de alegre sociabilidade e
camaradagem, apesar de que se leva cuidadosamente o “crédito” e o “débito” de cada membro. Mas
aparte destas instituições existem tantas uniões baseadas na disposição a sacrificar, se necessário fora,
o tempo, a saúde e a vida, que podemos extrair dê sua atividade exemplos das melhores formas
de apoio mútuo.
Em primeiro lugar é mister citar aqui a sociedade de salvamento marítimo em Inglaterra e
instituições semelhantes no resto de Europa, A sociedade inglesa tem mais de 300 botes de
salvamento ao largo as orlas de Inglaterra, e teria mais duas vezes se não fora pela pobreza
dos pescadores, quem não sempre podem comprar por mesmos os caros botes de salvamento
A tripulação destes botes se compõe sempre de voluntários, cuja disposição a sacrificar a vida
para salvar a homens que lhes. são completamente desconhecidos é submetida todos os anos a uma
prova dura, cada inverno, e em realidade alguns dos mais valentes perecem nas águas. E se perguntais
a estes homens que foi o que os incitou a arriscar a vida, as vezes em condições tais
que, segundo parecia, não tinha possibilidade alguma de sucesso vos contestarão
provavelmente com um relato, do gênero do seguinte, que eu, escutei na costa meridional. Uma
furiosa tormenta, de neve soprava sobre o canal da Mancha; rugia sobre as planas orlas arenosas
onde
se achava uma pequena aldehuela, e o mar arrojou sobre as areias próximas a ela, uma
embarcação de um só mastro, carregada de laranjas Em águas tão pouco profundas só se mantém o
bote salvavidas de fundo chato, de tipo simplificado, e sair com ele de tal tormenta significava, ir a
um verdadeiro desastre, e no entanto, os homens se decidiram e foram. Horas inteiras lutaram contra a
tormenta de neve; duas vezes o bote se volcou. Um dos remeros se afogou, e os restantes foram
arrojados à praia.
À manhã seguinte, acharam, a um dos últimos -um guarda aduaneiro inteligente- seriamente
ferido e médio sorvete na neve. Eu lhe perguntei como tinham decidido a fazer aquela tentativa
desesperada. “Eu mesmo não o sei -respondeu-. Ali, no mar, a gente perecia; toda a aldeia estava na
orla, e diziam todos que se fazer à mar tivesse sido uma loucura e que
nunca venceríamos a rompiente. Víamos que tinha no barco cinco ou seis homens que se
aferraban ao mastro e faziam sinais desesperados. Todos sentíamos que era necessário empreender
algo, mas, que podíamos fazer?
Passou uma hora, outra, e permanecíamos ainda na praia, tínhamos todos e1 alma oprimida.
Depois, de repente, pareceu-nos ouvir que através dos aullidos da tempestade nos chegavam seus
lamentos... Tinha um menino com eles. Não pudemos resistir mais a tensão: todos juntos dissemos: ¡É
necessário sair! As mulheres diziam o mesmo; tivessem-nos considerado covardes se nos tivéssemos
ficado, apesar de que elas mesmas nos chamavam loucos o dia seguinte, por nossa tentativa. Como

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um só homem, arrojamo-nos ao bote salvavidas partimos. O bote volcou, mas conseguimos voltar a
endereçá-lo.
O pior de tudo foi quando o azarado N. afogou-se, aferrado a uma corda do bote, e nada
pudemos fazer por salvá-lo. Depois nos açoitou uma onda enorme, o bote voou de novo e nos
arrojou a todos à praia. Os homens do navio náufrago foram salvados por um bote de Dungenes, e
nosso bote foi recolhido muitas milhas ao oeste. A mim me acharam à manhã
seguinte sobre a neve.”
O mesmo sentimento movia também aos mineiros do vale de Ronda quando salvaram a seus
camaradas de um poço da mina que tinha sofrido uma inundação. Tiveram que atravessar uma capa
de carvão de 96 pés de espessura para chegar até os colegas enterrados vivos.
Mas quando só lhes faltava perfurar ao todo nove pés, surpreendeu-os o gás grisú. Os lustres se
extinguiram e os mineiros tiveram de retirar-se. Trabalhar em tais condições significava correr o
risco de ser voado em qualquer momento e, finalmente, perecer todos. Mas se ouviam ainda os
golpes dos enterrados; estes homens estavam vivos e clamavam ajuda, e alguns mineiros
voluntariamente se propuseram salvar a seus camaradas, arriscando suas vidas. Quando desceram ao
poço, as mulheres os acompanhavam com lágrimas silenciosas, mas nenhuma pronunciou uma palavra
para detê-los.
Tal é a essência da psicologia humana. Enquanto os homens não se têm embriagado com a luta
até a loucura, não “podem ouvir” pedidos de ajuda sem responder-lhes. Ao princípio se fala de certo
heroísmo pessoal, e depois de do herói sentem todos que devem seguir seu exemplo. Os Artifícios da
mente não podem opor-se ao sentimento de ajuda mútua, pois este sentimento foi educado durante
muitos milhares de anos pela vida social humana e por centenas de milhares de anos de vida
prehumana nas sociedades animais.
No entanto, quiçá todos perguntarão: Mas, “como é que puderam afogar-se recentemente os
homens no Serpentine, o lago que se acha no meio do Hyde Park, em presença de uma multidão de
espectadores e ninguém se arrojou em sua ajuda?” 0 bem; “como pôde ser deixado sem ajuda o
menino que caiu ao água no Regent’s Park, também em presença de uma multidão numerosa de
público dominguero, e só foi salvado graças à presença de ânimo de uma menina jovenzinha, criada
de uma casa vizinha, que azuzó ao cachorro Terranova de um buzo?
A resposta a estas perguntas é simples. O homem constitui uma mistura não só de instintos
herdados, senão também de educação. Entre os mineiros e marinhos, graças a suas ocupações
comuns e ao contato cotidiano entrei se, cria-se um sentimento de reciprocidade, e os perigos que os
rodeiam educam neles a coragem e o talento audaz. Nas cidades, pelo contrário a ausência de
nteresses comuns educa a indiferença; e a coragem e o talento, que raramente acham aplicação,
desaparecem ou tomam outra direção.
Ademais, a tradição das façanhas heróicas nos poços das minas e no mar vive nas aldehuelas
dos mineiros e dos pescadores, rodeada de uma auréola poética. Mas, que tradição pode existir na
abigarrada multidão de Londres? Toda tradição, que é neles patrimônio comum, teve de ser criada
pela literatura ou a palavra; mas mal se existe na grande cidade uma literatura equivalente às leis
das aldeias.
O clero, em seus sermões, tanto se empenha em demonstrar o pecaminoso da natureza
humana e a origem sobrehumano de tudo o bom no homem, que, na maioria dos casos, passa em
silêncio aqueles fatos que não se podem exibir em qualidade de exemplo de uma graça divina
enviada do céu. Quanto aos escritores “laicos”, seu atendimento se dirige principalmente a um
aspecto do heroísmo, a saber, o heroísmo do pescador quase sem prestar-lhe atendimento
alguma. O poeta e o pintor costumam ser impressionados pela beleza do coração humano, é verdade,
mas só em raras ocasiões conhecem a vida das classes mais pobres; e se podem ainda cantar ou
representar, num ambiente convencional, ao herói romano ou militar, demonstram ser incapazes
quando tratam de representar ao herói que atua nesse modesto ambiente da vida popular que lhes é
estranho. Não é de assombrar, por isto, se a maioria de tais tentativas se destacam invariavelmente
pela ampulosidad e a retórica.
A quantidade inumerável de sociedades, clubs e associações de distração, de trabalhos
científicos e investigações, e com diferentes fins educacionais, etc., que se constituíram e se
130
estenderam nos últimos tempos, é tal que se precisariam muitos volumes para seu simples inventário.
Todos eles constituem a manifestação da mesma força, inteiramente ativa que incita aos homens à
associação e ao apoio mútuo. Algumas destas sociedades, como as associações das crianças jovens de
aves
de diferentes espécies, que se reúnem no outono, perseguem um objetivo único, o goze da
vida em comum. Quase todas as aldeias de Inglaterra Suíça, Alemanha, etc., têm suas sociedades de
jogo
de cricket, football, tennis, bolos ou clubs de pombas, musicais e de canto.
Existem depois grandes sociedades nacionais que se destacam pelo número especial de seus
membros, como, por exemplo, as sociedades de ciclistas que nos últimos tempos se
desenvolveram em proporções inusitadas. Apesar de que os membros destas associações
não têm nada em comum, exceto seu gosto de andar em velocípedo, conseguiram formar
entre eles um gênero de francmasonería com fins de ajuda mútua, especialmente nos lugares
apartados, livres ainda do aflujo de velocípedos.
Os membros consideram ao clube de ciclistas associados de qualquer aldehuela, até certo
ponto, como se fosse sua própria casa, e no acampamento de ciclistas, que se reúne todos os anos em
Inglaterra, com freqüência se entablan sólidas relações amistosas. Os Kegelbruder, isto é, as
sociedades de bolos , de Alemanha, constituem a mesma associação; exatamente o mesmo as
sociedades gimnásticas (que contam até 300.000 membros em Alemanha), as irmandades não
oficializadas de remeros dos rios franceses, os clubs de iates, etc. Semelhantes associações,
naturalmente, não mudam a estrutura econômica da sociedade mas especialmente nas cidades
pequenas ajudam a nivelar as diferenças sociais, e já que elas tendem a unir-se em grandes
federações nacionais e internacionais, já por isto contribuem ao desenvolvimiento das relações
amistosas pessoais entre toda classe de homens disseminados nas diferentes partes do balão.
Os clubs alpinos, a união para a proteção da caça (Jagdpschutzverlein) de Alemanha que tem
mais de 100.000 membros -caçadores, guardabosques e zoólogos profissionais, e simples amantes da
natureza- e, do mesmo modo, a Sociedade Ornitológica Internacional, cujos membros são zoólogos,
criadouros de aves e simples camponeses de Alemanha, têm o mesmo caráter.
Conseguiram, no curso de uns poucos anos, não só realizar uma enorme obra de utilidade
pública que está ao alcance unicamente das sociedades importantes (o traçado de cartas geográficas, a
construção de refúgios e abertura de caminhos nas montanhas o estudo dos animais, dos insetos
nocivos, da migração de aves, etc.), senão que criaram também novos laços entre os homens.
Dois alpinistas de diferentes nacionalidades que se encontram, numa choupana de refúgio, construída
pelo clube na cume das montanhas do Cáucaso, ou bem o professor e o camponês ornitólogo, que
viveram sob um mesmo teto, não têm de sentir-se já dois homens completamente estranhos.
E a “Sociedade do Tio Toby”, de New Castle, que persuadiu a mais de 300.000 meninos e
meninas que não destruam os ninhos de pássaros e a ser bons com todos os animais, é indubitável
que fez bastante mais em pró do desenvolvimento dos sentimentos humanos e do gosto ao estudo das
ciências naturais do que o conjunto de predicadores de todo gênero e do que a maioria de nossas
escolas.
Nem sequer em nosso breve ensaio podemos passar em silêncio os milhares de sociedades
científicas, literárias, artísticas e educativas.
Naturalmente, necessário isto é que, até a época presente, as corporações científicas, que se
encontram sob o controle do estado e que com freqüência recebem dele subsídios, geralmente se
converteram num círculo muito estreito, já que os homens. de carreira com freqüência consideram às
sociedades científicas como meios para ingressar nas filas de sábios pagos pelo estado, enquanto,
indubitavelmente, a dificuldade de ser membro de algumas sociedades privilegiadas só
conduz a suscitar invejas mesquinhas.
Mas, com tudo, é indubitável que devastes sociedades nivelam até certo ponto as diferenças de
classes criadas pelo nascimento ou por pertencer a tal ou qual capa, a tal ou qual partido político ou
crença. Nas pequenas cidades apartadas, as sociedades científicas, geográficas, musicais,
etc., especialmente aquelas que incitam à atividade de um círculo de aficionados mais ou
menos amplos, convertem-se em pequenos centros e num gênero de elo que une à pequena cidade
131
com um mundo vasto, e também no lugar em que se encontram num pé de igualdade homens que
ocupam as posições mais diferentes na vida social. Para apreciar a importância de tais centros é
necessário conhecê-los, por exemplo, em Sibéria.
Por último, uma das manifestações mais importantes do mesmo espírito o constituem as
inumeráveis sociedades que têm por fim a difusão da educação, e que só agora começam a destruir o
monopólio da igreja e do estado neste ramo da vida, importante em grau sumo. Pode ousar dizer-se
que, dentro de um tempo extremamente breve, estas sociedades adquirirão uma importância
dominante no
campo da educação popular. Devemos já à “Associação Froebel” o sistema de jardins
infantis, e a uma série inteira de sociedades oficializadas e não oficializadas devemos o nível
elevado que atingiu a educação feminina em Rússia. Quanto às diferentes sociedades pedagógicas de
Alemanha, como é sabido, corresponde-lhes uma enorme parte de influência na elaboração dos
métodos modernos de ensino nas escolas populares. Tais associações são também o melhor sustento
dos maestros.
¡Cuán infeliz se sentiria sem sua ajuda o maestro de aldeia, abrumado pelo peso de um
trabalho mau retribuído!.
Todas estas associações, sociedades, irmandades, uniões, institutos etcétera, que se
podem contar por dezenas de milhares em Europa somente, e cada uma das quais representa
uma massa enorme de trabalho voluntário, desinteressado, não pago ou retribuído muito pobremente
não são todas elas manifestações, em formas infinitamente variadas, daquela necessidade eternamente
viva na humanidade, de ajuda e apoio mútuos?
Durante quase três séculos se impediu que o homem se tendesse mutuamente as mãos, nem
ainda com fins literários, artísticos e educativos. As sociedades podiam formar-se somente com o
conhecimento e sob a proteção do estado ou da Igreja ou deviam existir em qualidade de sociedades
secretas semelhantes às francmasonas; mas agora que esta oposição do estado foi, quebrantada,
surgem por todas partes, abarcando os ramos mais diferentes da atividade humana. Começam a
adquirir um caráter internacional, e indubitavelmente contribuem -em grau tal que ainda não
apreciamos
plenamente- à quebração das barreiras internacionais erigidas pelos estados. Apesar da inveja,
apesar do ódio, provocados pelos fantasmas de um passado em descomposição a consciência da
solidariedade internacional cresce, tanto entre os homens avançados como entre as massas obreiras,
desde que elas se conquistaram o direito às relações internacionais; e não há dúvida alguma de que
este espírito de solidariedade crescente exerceu já certa influência ao conjurar uma guerra entre
estados europeus nos últimos trinta anos.
E depois dessa cruel lição recebida por Europa, e em parte por América, na última guerra de
cinco anos, não há dúvida alguma que a voz do são juízo, pondo freio à exploração de uns povos por
outros, fará impossível por muito tempo outra guerra emelhante.
Por último, é mister mencionar aqui também as sociedades de beneficência que, a sua vez,
constituem todo um mundo original, já que não há a menor dúvida de do que movem à imensa
maioria dos membros destas sociedades os mesmos sentimentos de ajuda mútua que
são inerentes a toda a humanidade.
Por desgraça, nossos maestros religiosos preferem atribuir origem sobrenatural a tais
sentimentos. Muitos deles tratam de afirmar que o homem não pode inspirar-se conscientemente nas
idéias de ajuda mútua, enquanto não esteja alumiado pelas doutrinas daquela religião especial da qual
são os representantes, e junto com San Agustín, a maioria deles não reconhecem a existência desses
sentimentos nos “selvagens pagões”.
Ademais, enquanto o cristianismo primitivo, como todas as outras religiões nascentes, era um
chamado a um sentimento de ajuda mútua e de solidariedade, amplamente humano, que lhe é
próprio, como vimos, de todas as instituições de ajuda e apoio mútuo que existiam antes, ou se
tinham desenvolvido fora dela. Em lugar da ajuda mútua que tudo selvagem considerava como o
cumprimento de um dever para seus congéneres, a Igreja cristã começou a pregar a caridade, que
constituía, segundo sua doutrina, uma virtude inspirada pelo céu, uma virtude que por obra de
tal interpretação atribui um determinando gênero de superioridade àquele que dá sobre o que recebe,
132
em lugar de reconhecer a igualdade comum ao gênero humano, em virtude da qual a ajuda mútua é
um dever. Com estas limitações, e sem intenção alguma de ofender àqueles que se consideram entre
os eleitos, enquanto cumprem uma exigência de simples humanitarismo, nós podemos considerar,
naturalmente, ao enorme número de sociedades disseminadas por todas partes como uma
manifestação daquela inclinação à ajuda mútua.
Todos estes fatos demonstram que a busca irrazonada da satisfação de interesses pessoais,
com esquecimento completo das necessidades dos outros homens, de nenhum modo constitui o rasgo
principal, característico, da vida moderna. Junto a estas correntes egoístas, que orgulhosamente
exigem que se lhes reconheça importância dominante nos negócios humanos, observamos a luta
porfiada que sustenta a população rural e obreira com o fim de reintroducir as firmes instituições
de ajuda e apoio mútuos. Não só isso: descobrimos em todas as classes da sociedade um
movimento amplamente estendido que tende a estabelecer instituições infinitamente variadas, mais
ou menos firmes, com o mesmo fim. Mas, quando da vida pública passamos à vida privada do homem
moderno, descobrimos ainda outro amplo mundo de ajuda e apoios mútuos, a cujo lado passam a
maioria dos sociólogos sem observá-lo, provavelmente porque está limitado ao círculo estreito da
família e da amizade pessoal.
Sob o sistema moderno de vida social, todos os laços de união entre os habitantes de uma
mesma rua ou “vizinhança” desapareceram. Nos bairros ricos das grandes cidades, os homens vivem
juntos sem saber sequer quem é seu vizinho. Mas nas ruas e becos densamente povoados dessas
mesmas cidades, todos se conhecem bem e se encontram em contínuo contato. Naturalmente, nos
becos
o mesmo que em todas partes, as pequenas rencillas são inevitáveis, mas se desenvolvem
também relações segundo as inclinações pessoais, e dentro destas relações se pratica a ajuda mútua em
tais proporções que as classes mais ricas não têm idéia. Se, por exemplo, detemo-nos a olhar aos
meninos de um bairro pobre, que jogam na plazuela, na rua, ou no velho cemitério (em Londres se vê
isto com freqüência) observaremos em seguida que entre estes meninos existe uma estreita união,
apesar das brigas que se produzem, e esta união preserva aos meninos de numerosas desgraças de
todo gênero.
Basta que algum garoto se incline curiosamente sobre o orifício aberto de um sumidero para
que seu colega de jogo lhe grite:
“¡Sal daí, que nesse buraco está a febre!” “¡Não trepes por esta parede; se cais do outro lado o
trem te destroçará!” “¡Não te acerques à vala!” “¡Não vírgulas destas bagas: é veneno, te morrerás!”
Tales são as primeiras lições que o garoto recebe quando se une com seus colegas de, rua.
¡Quantos meninos a quem servem de lugar de jogo, as ruas das proximidades das moradias
modelo para obreiros” recentemente construídas, ou as ribeiras e pontes dos canais, pereceriam sob as
rodas das carroças ou no água turva da corrente se entre eles não existisse este gênero de ajuda
mútua! Se apesar de todo algum menininho cai num fosso sem parapeito, ou uma menina escorrega e
cai no canal, a horda de rua arma tal berreiro que toda a comunidade torre a ajudá-los. De tudo isto
falo por experiência pessoal.
Vem depois a união das mães: “Não pode você imaginar-se -me escreve uma doutora inglesa
que vivia num bairro pobre de Londres, e à qual roguei que me comunicasse suas impressionasse, não
pode você imaginar-se quanto se ajudam entre si. Se uma mulher não preparou, ou não pode preparar,
o necessário para o menino que espera -¡e cuán com freqüência sucede isto!-
todas as vizinhas trazem algo para o recém nascido. Ao mesmo tempo, uma das vizinhas se faz
cargo em seguida do cuidado dos meninos, e outra do lar, enquanto a parturienta permanece em cama
. É este um fenômeno corrente que mencionam todos os que tiveram, que viver entre os pobres
de Inglaterra, e em general entre a população pobre de uma cidade. As mães se apóiam mutuamente
fazendo milhares de pequenos serviços e cuidam dos meninos alheios. É. mister que a dama
pertencente às classes ricas tenha uma verdadeira disciplina -para melhor ou para pior, que o julgue
ela mesma- para passar pela rua ao lado de meninos que tiritan de frio e estão famintos, sem
notárionotárioo.
Mas as mães das classes pobres não possuem tal disciplina. Não podem suportar o quadro de
um garoto faminto: devem alimentá-lo; e assim o fazem. Quando os meninos que vão à escola pedem
133
pão, raramente, ou mais bem nunca, recebem uma negativa” -me escreve outra amiga, que trabalhou
durante alguns anos em White-Chapel, em relação com um clube obreiro. Mas melhor será
transcrever alguns fragmentos de sua carta:
“É regra geral entre os obreiros cuidar a um vizinho ou uma vizinha enfermos, sem procurar
nenhuma classe de retribuição. Do mesmo modo, quando uma mulher que tem meninos
pequenos se vai ao trabalho, sempre se os cuida uma das vizinhas.
“Se os obreiros não se ajudassem mutuamente, não poderia n viver em absoluto. Conheço
famílias obreiras que se ajudam constantemente entre si, com dinheiro, alimento, combustível,
vigilância dos meninos, em caso de doença e em casos de morte.
“Entre os pobres, o “meu”,e o “teu” se distingue bastante menos do que entre os ricos.
Botines, vestidos, chapéus, etc. -numa palavra, o que se precisa num momento dado-, prestam-
se constantemente entre si, e do mesmo modo todo gênero de efeitos do lar.
“Durante o inverno passado (1894), os membros do United Radical Clube reuniram em seu
meio uma pequena soma de dinheiro e começaram depois de Natal a fornecer gratuitamente
sopa e pão aos meninos que coincidiam à escola Gradualmente, o número de meninos que
alimentavam atingiu até 1.800. As doações chegavam de fora, mas todo o trabalho recaía sobre os
ombros dos membros do clube.
Alguns deles -aqueles que então estavam sem trabalho- vinham às quatro da manhã para lavar
e limpar legumes: cinco mulheres vinham às nove ou dez da manhã (depois de ter terminado o
trabalho de seu lar) a vigiar o cocimiento da comida, e ficavam até as seis ou sete da tarde para lavar
a louça.
Durante a hora do almoço, entre as doze e doze e meia, vinham de 20 a 30 obreiros a ajudar a
repartir a sopa; para o qual tinham de roubar tempo a sua própria comida. Tal trabalho se prolongou
dois meses, e sempre foi feito completamente grátis.
Minha amiga cita também diferentes casos particulares, dos quais menciono os mais típicos:
“A menina Anita W. foi entregada, em pensão, por sua mãe a uma anciã da rua Wilmot.
Quando morreu a mãe de Anita, a anciã, que vivia ela mesma na maior indigencia, criou à menina
apesar de que ninguém lhe pagava um centavo. Quando morreu também a anciã, a menina, que tinha
então cinco anos ficou, durante a doença de sua mãe adotiva, sem cuidado algum, e ia em trapalhões;
mas lhe ofereceu asilo então a esposa de um sapateiro, que tinha já seis varões. Mais tarde, quando o
sapateiro caiu enfermo, todos eles tiveram que sofrer fome.”
“Faz uns dias, M., mãe de seis meninos, atendia à vizinha Mg. durante sua doença, e levou a
sua casa ao menino maior... Mas, são necessários a você estes fatos? Constituem o fenômeno mais
corrente... Conheça à senhora D. (em direção tal) que tem uma máquina de costurar. Continuamente
costura para os outros, não aceitando retribuição alguma pelo trabalhoapesar de que deve cuidar a
cinco meninos e ao esposo..., etc. “
Para tudo aquele que tem sequer uma pequeñísima idéia da vida das classes obreiras, resulta
evidente que se em seu meio não se praticasse em grandes proporções a ajuda mútua, não poderiam,
de modo algum, vencer as dificuldades de que está cheia sua vida. Somente graças à combinação de
felizes circunstâncias a família obreira pode passar a vida sem atravessar por momentos duros como
os que foram descritos pelo tecelão de fitas Josept Guttridge em sua autobiografia. E se não todos os
obreiros caem, em tais circunstâncias, até os últimos graus de miséria, se o devem precisamente à
ajuda mútua praticada entre eles. Uma velha nodriza que vivia na pobreza mais extrema ajudou a
Guttridge no instante mesmo em do que sua família se avecinaba a um desenlace fatal: conseguiu-
lhes a crédito pão, carvão e outros artigos de primeira necessidade. Em outros casos era outro o que
ajudava, ou bem os vizinhos se uniam para arrebatar à família das garras da miséria.
Mas, se os pobres não fossem em ajuda dos pobres, ¡em que proporções enormes aumentaria
o número daqueles que chegam à miséria horrível já irreparável!
Samuel Plimsoll, conhecido em Inglaterra por sua campanha na contramão o seguro das
naves
podres e inúteis que eram enviadas ao mar com a esperança de que se afundassem para cobrar
a prima de seguro, depois de ter vivido algum tempo entre pobres gastando somente sete chelines
seis peniques (três rublos cinquenta copecas) por semana vióse obrigado a reconhecer que os bons
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sentimentos para os pobres que tinha quando começou este gênero de vida “se mudaram em
sentimentos de sincero respeito e admiração, quando viu até onde as relações entre os pobres estão
imbuidas de ajuda e apoio mútuos, e quando conheceu os meios simples com que se prestam este
gênero de apoio.
Depois de muitos anos de experiência chegou à conclusão de que conquanto se pensa, resulta
que semelhantes homens constituem a imensa maioria das classes obreiras”. Quanto à criação de
órfãos
praticada até pelas famílias mais pobres dos vizinhos é um fenômeno tão amplamente
difundido que se pode considerar regra geral; assim, depois da explosão de gases das minas de
Warren Vale e Lund Hill, revelóse que “quase um terço dos mineiros mortos, segundo as investigações
da comissão,- mantinha, aparte de suas esposas e filhos, também a outros parentes pobres”.
“Pensastes -
agrega a isto Plimsoll- que significa este fato? Não duvido de que semelhante fenômeno não é
raro entre os ricos ou até entre pessoas pudientes. Mas, pensai bem na diferença.” E, realmente, vale a
pena pensar que significa, para o obreiro que ganha 16 chelines (menos de oito rublos) por semana e
que alimenta com estes módicos recursos à esposa e as vezes cinco ou seis filhos, gastar um chelín em
ajudar à viúva de um camarada ou sacrificar meio chelín para o enterro de um tão pobre como ele
mesmo. Mas semelhantes sacrifícios são um fenômeno corrente entre os obreiros de qualquer
país, ainda em ocasiões consideravelmente mais de ordem comum do que a morte, e ajudar
por meio do trabalho é a coisa mais natural em sua vida.
A mesma prática de ajuda e apoio mútuos se observa, naturalmente, também entre as classes
mais ricas, com a mesma sedimentación em capas que assinala Plimsoll. Naturalmente, quando se
pensa na crueldade que os empregadores mais ricos mostram para os obreiros, sente-se um inclinado a
tratar a natureza humana com suma desconfiança. Muitos provavelmente recordam ainda a indignação
provocada em Inglaterra pelos donos das minas durante a grande greve de Yorkshire , em
1894, quando começaram a processar aos velhos mineiros por recolher carvão num poço
abandonado. E ainda deixando de lado os períodos agudos de luta e de guerra civil quando, por
exemplo dezenas de milhares de obreiros prisioneiros foram fuzilados depois da queda de laComuna
de Paris, quem pode ler sem estremecer-se as revelações das comissões reais sobre a situação dos
obreiros em 1840 em Inglaterra, ou as palavras de Lorde Shaftesbury sobre -o horrível esbanjo de
vida humana nas fábricas onde trabalham meninos toma-, dois dos hospícios, se não simplesmente
comprados em toda Inglaterra para vendê-los depois, às fábricas”.
Quem pode ler tudo isto sem surpreender-se pela bajeza de que é capaz o homem em seu afã
de lucro? Mas necessário isto é que seria errôneo atribuir tal gênero de fenômeno exclusivamente à
criminalidade da natureza humana. Talvez até uma época recente os homens de ciência, e até uma
parte importante do clero não difundiam doutrinas que inculcavam desconfiança e desprezo, e
quase ódio às classes mais pobres?
Talvez os homens de ciência não diziam que desde que a servidão ficou abolida só podem
caber na pobreza os homens viciosos? ¡e daí poucos representantes da Igreja se achou que se
atrevessem a vituperar estes infanticidios, enquanto a maioria do clero ensinava
que os sofrimentos dos pobres e até a escravatura dos negros eram cumprimento
da vontade da Providência Divina!
Talvez o cisma (non conformism) mesmo em Inglaterra não era em essência um protesto
popular
contra o cruel trato que a igreja do estado dava aos pobres Com tais guias espirituais não é de
estranhar que os sentimentos das classes pudientes, como observou M. Plimsoll, deviam não tanto
embotarse quanto tomar tintura de classe. Os ricos raramente se rebaixam até os pobres, de quem
estão separados pelo mesmo modo de vida e de quem ignoram por completo o lado melhor de sua
existência cotidiana.
Mas também os ricos, deixando de lado por uma parte a mesquinharia e os gastos
irrazonables por outro, no círculo da família e dos amigos se observa a mesma prática de ajuda e
apoio mútuos que entre os pobres. Ihering e Dargun tinham plena razão ao dizer que se se fizesse um
resumo estatístico do dinheiro que passa de mão em mãos em forma de empréstimo amistoso e de
135
ajuda, a soma geral resultaria colossal, ainda em comparação com as transações do comércio mundial.
E se se agrega a isto -e necessário é agregá-lo- os gastos de hospitalidade os pequenos serviços
mútuos prestados entre si, a ajuda para arrumar assuntos alheios, presente e beneficência,
indubitavelmente nos assombraremos da importância que devastes gastos têm na economia nacional.
Ainda no mundo dirigido pelo egoísmo comercial existe uma frase corrente: “Esta assinatura
nos tratou duramente”, e está frase demonstra que até no ambiente comercial existem relações
amistosas, opostas às duras, isto é às relações baseadas exclusivamente na lei. Todo comerciante,
naturalmente, sabe quantas assinaturas se salvam por ano da ruína obrigado ao apoio amistoso
prestado por outras assinaturas.
Quanto à beneficência e à massa de trabalhos de utilidade pública realizados voluntariamente,
tanto pelos representantes da classe acomodada como das obreiras e, em especial, pelos
representantes das diferentes profissões, todos sabem que papel desempenham estas duas categorias
de benevolência na vida moderna. Se o caráter verdadeiro desta benevolência com freqüência
costuma ser jogada a perder pela tendência a adquirir fama, poder político ou distinção social, apesar
de tudo é indubitável que na maioria dos casos o impulso prove do mesmo sentimento de ajuda
mútua. Muito com freqüência, os homens, adquirindo riquezas, não acham nelas as satisfações que
esperavam. Outros começam a sentir que apesar de quanto difundiram os economistas de que a
riqueza é a recompensa de suas capacidades, sua recompensa é demasiado grande. A consciência da
solidariedade
humana se acorda neles; apesar de que a vida social está constituída como para sufocar este
sentimento com milhares de métodos astutos, apesar de tudo, com freqüência se sobrepõe, e
então os homens do tipo acima indicado tratam de achar uma saída para esta necessidade
alojada na profundidade do coração humano, entregando sua fortuna ou suas forças a algo que
segundo sua opinião contribuirá ao desenvolvimento do bem-estar geral.
Dito mais brevemente, nem as forças abrumadoras do estado centralizado, nem as doutrinas de
mútuo ódio e de luta cruel que provem, ordenadas com os atributos da ciência, dos filósofos e
sociólogos
obsequiosos, puderam desarraigar os sentimentos de solidariedade humana, de reciprocidade,
profundamente enraizados na consciência E o coração humanos, já que este sentimento foi
criado por todo nosso desenvolvimento precedente. Aquilo que foi resultado da evolução
começando desde suas mais primitivos estádios, não pode ser destruído por uma das fases
transitórias dessa mesma evolução. E a necessidade de ajuda e apoio mútuos que se ocultou quiçá no
círculo estreito da família, entre os vizinhos das ruas e callejuelas pobres, na aldeia ou nas uniões
secretas
de obreiros, renasce de novo, até em nossa sociedade moderna e proclama seu direito, o
direito de ser, como sempre o foi, o principal impulsor no caminho do progresso máximo. Tales são
as conclusões às quais chegamos inevitavelmente depois de um exame cuidadoso de cada grupo de
fatos enumerados brevemente nos dois últimos capítulos.

136
CONCLUSÃO

Se tomamos agora o que nos ensina o exame da sociedade moderna em relação com os fatos
que assinalam a importância da ajuda mútua no desenvolvimento gradual do mundo animal e da
humanidade, podemos extrair de nossas investigações as seguintes conclusões:
No mundo animal nos persuadimos de que a enorme maioria das espécies
vivem em sociedades e que encontram na sociabilidade a melhor arma para a luta pela
existência, entendendo, naturalmente, este termo no amplo sentido darwiniano, não como uma luta
pelos meios diretos de existência, senão como luta contra todas as condições naturais, desfavoráveis
para a espécie. As espécies animais nas que a luta entre os indivíduos foi levada aos limites
mais restringidos, e nas que a prática da ajuda mútua atingiu o máximo desenvolvimento,
invariavelmente são as espécies mais numerosas, as mais florecientes e mais aptas para o máximo
progresso. A proteção mútua, conseguida em tais casos e devido a isto a possibilidade de
atingir
a velhice e acumular experiência, o alto desenvolvimento intelectual e o máximo crescimento
dos hábitos sociais, asseguram a conservação da espécie e também sua difusão sobre uma
superfície mais ampla, e a máxima evolução progressiva. Pelo contrário, as espécies
insaciáveis, na enorme maioria dos casos, estão condenadas à degeneração.
Passando depois ao homem, vimo-lo vivendo em clãs e tribos, já na aurora da Idade
Paleolítica; vimos também uma série de instituições e costumes sociais formadas dentro do clã já no
grau mais baixo de desenvolvimento dos selvagens. E achamos que os mais antigos hábitos e
costumes tribais deram à humanidade, em embrião, todas aquelas instituições que mais tarde atuaram
como os
elementos impulsores mais importantes do máximo progresso.
Do regime tribal dos selvagens nasceu a comuna aldeana dos “bárbaros”, e um novo círculo
ainda mais amplo de hábitos, costumes e instituições sociais, uma parte dos quais subsistiram até
nossa época, desenvolveu-se à sombra da posse comum de uma terra dada e sob a proteção da
jurisdição da assembléia comunal aldeana em federações de aldeias pertencentes, ou que se
supunham pertencer a uma tribo e que se defendiam dos inimigos com as forças comuns. Quando as
novas necessidades incitaram aos homens a dar um novo passo em seu desenvolvimento, formaram o
direito popular das cidades livres, que constituíam uma dupla rede: de unidades territoriais (comunas
aldeanas) e de guildas surgidas das ocupações comuns numa arte ou ofício dado, ou para a proteção e
o apoio mútuos.
Já consideramos em dois capítulos, o quinto e o sexto, cuán enormes foram os sucessos do
saber, da arte e da educação em general nas cidades medievais que tinham direitos populares.
Finalmente, nos dois últimos capítulos se reuniram fatos que assinalam como a formação dos
estados segundo o modelo da Roma imperial destruiu violentamente todas as instituições medievais de
apoio mútuo e criou uma nova forma de associação, submetendo toda a vida da população à
autoridade do estado. Mas o estado, apoiado em agregados pouco vinculados entre si de indivíduos e
assumindo a
tarefa de ser único princípio de união, não respondeu a seu objetivo.
A tendência dos homens ao apoio mútuo e sua necessidade de união direta para ele,
novamente se manifestaram numa infinita diversidade de todas as sociedades possíveis que também
tendem agora a abraçar todas as manifestações de vida, a dominar tudo o necessário para a
existência humana e para consertar os gastos condicionados pela vida: criar um corpo vivente, em
lugar do mecanismo morto, submetido à vontade dos servidores públicos.
Provavelmente se nos observará que a, ajuda mútua, apesar de constituir uma das grandes
forças ativas da evolução, isto é, do desenvolvimento progressivo da humanidade, é só uma
das diferentes formas das relações dos homens entre si; junto com esta corrente, por poderosa que
fora, existe e sempre existiu, outra corrente a de auto-afirmação do indivíduo, não só em seus
137
esforços por atingir a superioridade pessoal ou de casta na relação econômica, política e espiritual,
senão
também numa atividade que é mais importante apesar de ser menos potável; romper os laços
que sempre tendem à cristalização e petrificación, que impõem sobre o indivíduo o clã, a comuna
aldeana, a cidade ou o estado. Em outras palavras, na sociedade humana, a autoafirmación da
personalidade também constitui um elemento de progresso.
É evidente que nenhum esquema do desenvolvimento da humanidade pode pretender ser
completo se não se considera estas duas correntes dominantes. Mas o caso é que a autoafirmación da
personalidade ou grupos de personalidades sua luta pela superioridade e os conflitos e a luta que se
derivam dela foram, já em épocas inmemoriales, analisados, descritos e glorificados. Em realidade,
até a época atual só esta corrente gozou do atendimento dos poetas épicos, cronistas, historiadores e
sociólogos. A história, como foi escrita até agora, é quase integralmente a descrição dos métodos e
meios com cuja
ajuda a teocracia, o poder militar, a monarquia política e mais tarde as classes pudientes
estabeleceram e conservaram seu governo. A. luta entre estas forças constitui, em realidade, a
essência da história
Podemos considerar, por isto, que a importância da personalidade e da força individual na
história da humanidade é inteiramente conhecida, apesar de que neste domínio ficou não pouco que
fazer no sentido recentemente indicado.
Ao mesmo tempo, outra força ativa -a ajuda mútua- foi relegada até agora ao esquecimento
completo; os escritores da geração atual e das passadas, simplesmente a negaram ou se burlaram dela.
Darwin, faz já meio século , assinalou brevemente a importância da ajuda mútua para a conservação e
o desenvolvimento progressivo dos animais. Mas, quem tratou esse pensamento desde então?
Singelamente se empenharam em esquecê-la. Devido a isto, foi necessário, antes que nada,
estabelecer o papel enorme que desempenha a ajuda mútua tanto no desenvolvimento do mundo
animal como das sociedades humanas. Só depois que esta importância seja plenamente reconhecida
será possível comparar a influência de uma e outra força: a social e a individual.
Evidentemente, é impossível efetuar, com um método mais ou menos estatístico, sequer uma
apreciação grosseira de sua importância relativa.
Qualquer guerra, como todos sabemos, pode produzir, já seja diretamente ou bem por suas
conseqüências, mais danos do que benefícios, pode produzir centenas de anos de ação, livres de
obstáculos, do princípio de ajuda mútua. Mas quando vemos que no mundo animal o
desenvolvimento progressivo e a ajuda mútua vão da mão, e a guerra interna no seio de uma espécie,
pelo contrário, vai acompanhada “pelo desenvolvimento progressivo”, isto é, a decadência da
espécie; quando observamos que para o homem até o sucesso na luta e a guerra é proporcional ao
desenvolvimento da ajuda mútua em cada uma das duas partes em luta, sejam estas nações, cidades,
tribos ou somente partidos, e que no processo de desenvolvimento da guerra mesma (quanto pode
cooperar neste sentido) submete-se aos objetivos finais do progresso da ajuda mútua dentro da nação,
cidade ou tribo, por todas estas observações já temos uma idéia da influência predominante da ajuda
mútua como fator de progresso.
Mas vemos também que a prática da ajuda mútua e seu desenvolvimento subsequente criaram
condições mesmas da vida social, sem as quais o homem nunca tivesse podido desenvolver seus
ofícios e artes, sua ciência, sua inteligência, seu espírito criador; e vemos que os períodos em que os
hábitos e costumes que têm por objeto a ajuda mútua atingiram seu elevado desenvolvimento, sempre
foram períodos do maior progresso no campo das artes, a indústria e a ciência.
Realmente, o estudo da vida interior das cidades da antiga Grécia, e depois das cidades
medievais, revela o fato de que precisamente a combinação da ajuda mútua, como se praticava dentro
da guilda, da comuna ou o clã grego -com a ampla iniciativa permitida ao indivíduo e ao grupo em
virtude do princípio federativo-, precisamente esta combinação, dizíamos, deu à humanidade os dois
grandes períodos de sua história: o período das cidades da antiga Grécia e o período das cidades da
Idade Média; enquanto a destruição das instituições e costumes de ajuda mútua, realizadas durante os
períodos estatais da história que seguiram, corresponde em ambos casos às épocas de rápida
decadência.
138
Provavelmente se nos replicará, no entanto, fazendo menção do súbito progresso industrial que
se realizou no século XIX e que normalmente se atribui ao triunfo do individualismo e da
concorrência. Não obstante este progresso, fora de toda dúvida, tem uma origem incomparavelmente
mais profundo. Depois que foram feitos as grandes descobertas do século XV, em especial o da
pressão atmosférica, apoiada por uma série completa de outros no campo da física -e estas
descobertas foram feitas nas cidades medievais- depois destas descobertas, a invenção da máquina a
vapor, e toda a revolução industrial provocada pela aplicação da nova força, o vapor, foi uma
conseqüência necessária.
Se as cidades medievais tivessem subsistido até o desenvolvimento das descobertas começadas
por elas, isto é, até a aplicação prática do novo motor, então as conseqüências morais, sociais, da
revolução provocada pela aplicação do vapor poderiam tomar, e provavelmente tivessem tomado,
outro caráter; mas a mesma revolução no campo da técnica da produção e da ciência também tivesse
sido inevitável. Somente tivesse encontrado menos obstáculos. Fica sem resposta o interrogante: Não
foi talvez retardada a aparição da máquina de vapor e também a revolução que lhe seguiu depois no
campo das artes, pela decadência geral dos ofícios que seguiu à destruição das cidades livres e que se
notou
especialmente na primeira metade do século XVIII?
Considerando a rapidez assombrosa do progresso industrial no período que se estende desde o
século XII até o século XV, no tecido, no trabalho de metais, na arquitetura, na navegação, e
reflexionando sobre as descobertas científicas aos quais conduziu este progresso industrial a fins do
século XIX, temos direito a formular-nos esta pergunta:
Não se atrasou a humanidade na utilização de todas estas conquistas científicas quando
começou em Europa a decadência geral no campo das artes e da indústria, depois da queda da
civilização medieval?
Naturalmente, o desaparecimento dos artistas artesãos, como os que produziram Florença,
Nüremberg e muitas outras cidades, a decadência das grandes cidades e a interrupção das relações
entre elas não podiam favorecer a revolução industrial. Realmente sabemos, por exemplo, que James
Watt, o inventor da máquina a vapor moderna, empregou ao redor de doze anos de sua vida para
fazer seu invento praticamente utilizável, já que não pôde achar, no século XVIII aqueles ajudantes
que tivesse achado facilmente na Florença, Nüremberg ou Bruxas da Idade Média; isto é, artesãos
capacitados para realizar seu invento no metal e dar-lhe a terminação e finura artística que são
necessárias para a máquina de vapor que trabalha com exatidão.
De tal modo, atribuir o progresso industrial do século XV à guerra de todos contra um
significa julgar como aquele que sem saber as verdadeiras causas da chuva a atribui à oferenda feita
pelo homem ao ídolo de argila Para o progresso industrial, o mesmo que para qualquer outra
conquista no campo da natureza, a ajuda mútua e as relações estreitas sem dúvida foram sempre mais
vantajosas do que a luta mútua. No entanto, a grande importância do princípio de ajuda mútua
aparece principalmente no campo da ética, ou estudo da moral. Que a ajuda mútua é a base de todas
nossas concepções éticas, é coisa bastante evidente.
Mas quaisquer que sejam as opiniões que sustentássemos com respeito à origem primitiva do
sentimento ou instinto de ajuda mútua -seja que o atribuamos a causas biológicas ou bem
sobrenaturais- devemos reconhecer que se pode já observar sua existência nos graus inferiores
do mundo animal. Desde estes graus elementares podemos seguir seu desenvolvimento ininterrupto e
gradual através de todas as classes do mundo animal e, não obstante, a quantidade importante de
influências que se lhe opuseram, através de todos os graus da evolução humana até a época presente.
Ainda as novas religiões que nascem de tempo em tempo -sempre em épocas em que o princípio de
ajuda mútua tinha decaído nos estados teocráticos e despóticos de Oriente, ou sob a queda do império
Romano-, ainda as novas religiões nunca foram mais do que a afirmação desse mesmo princípio.
Acharam seus primeiros continuadores nas capas humildes, inferiores, oprimidas da sociedade, onde o
princípio da ajuda mútua era a base necessária da vida cotidiana; e as novas formas de união que
foram introduzidas nas antigas comunas budistas E cristãs, nas comunas dos irmãos moravos,
etc., adquiriram o caráter de volta às melhores formas de ajuda mútua que de praticavam no

139
primitivo período tribal. No entanto, cada vez que se para uma tentativa para voltar a este venerado
princípio antigo, sua idéia fundamental se estendia.
Desde o clã se prolongou à tribo, da federação de tribos abarcou a nação, e, por último - pelo
menos no ideal - toda a humanidade. Ao mesmo tempo, tomava gradualmente um caráter mais
elevado. No cristianismo primitivo, nas obras de alguns predicadores muçulmanos, nos primitivos
movimentos do período da Reforma e, em especial, nos movimentos éticos e filosóficos do século
XVIII e de nossa época se elimina mais e mais a idéia de vingança ou da “retribuição merecida”:
“bem por bem e mau por mau”. A elevada concepção: - Não se vingar das ofensas - e o princípio: “Dá
ao próximo sem contar, dá mais do que pensas receber”.
Estes princípios se proclamam como verdadeiros princípios de moral, como princípios que
ocupam mais elevado lugar do que a simples “equivalência”, a imparcialidade, a fria justiça, como
princípios que conduzem mais rapidamente melhor à felicidade. Incitam ao homem, por isto a tomar
por guia, em seus atos, não só o amor, que sempre tem caráter pessoal ou, no melhor dos casos,
caráter tribal, senão a concepção de sua unidade com tudo ser humano, portanto , de uma igualdade
de direito geral e, ademais, em suas relações para os outros, a entregar aos homens, sem calcular a
atividade de sua razão e de seu sentimento e achar em isto sua felicidade superior.
Na prática da ajuda mútua, cujas impressões podemos seguir até os mais antigos rudimentos da
evolução, achamos, de tal modo, a origem positiva e indubitável de nossas concepções morais,
éticas, e podemos afirmar que o principal papel na evolução ética da humanidade foi desempenhado
pela ajuda mútua e não pela luta mútua. Na ampla difusão dos princípios de ajuda mútua, ainda na
época presente, vemos também a melhor garantia de uma evolução ainda mais elevada do
gênero humano.

Traduzido e não revizado.


Jan/2006

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