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Variações sobre a
*
TÉCNICA DE GRAVADOR
no registro da
INFORM AÇÃO VIVA
ISBN 85-7182-019-8
fiWíiiiih'
Verdadeiramente indispensável a pesquisa
dores e a responsáveis por levantamento de
dados através de entrevistas, este trabalho de
Maria Isaura Pereira de Queiroz — anterior
mente publicado na Coleção Textos do CE-
RU, Centro de Estudos Rurais e Urbanos,
com a colaboração do Departamento de
Ciências Sociais da FFLCH da Universida
de de São Paulo — vem à luz em nova con
figuração, revista, atendendo a necessidades
acadêmicas e profissionais.
Objetivo, rico de informações e considera
ções sobre o registro da informação viva, este
livro é um seguro guia de trabalho: a partir
de uma substanciosa introdução à natureza
e história do relato oral, em que discute sua
revalorização como transmissão de conheci
mentos e histórias de vida, também nas pes
quisas brasileiras, a autora desenvolve refle
xões metodológicas e tecnológicas; analisa e
compara a pesquisa individual e a de equi
pe; apresenta um paradigma de projeto de
pesquisa, suas técnicas e sistematização do
seu referencial; discorre sobre a técnica de
gravador, com suas vantagens e cuidados a
observar, e sobre a transcrição de entrevis
tas; fala sobre a análise de documentos em
ciências sociais; e faz uma síntese e avalia
ção final da conclusão de uma pesquisa.
Na parte final, reproduz um projeto especí
fico de pesquisa (“ São Paulo, 1920-1937: de
poimentos de trabalhadores de baixos recur
sos” ) realizada por uma equipe do CERU
em 1981/82 e apresenta três importantes es
tudos sobre histórias de vida: de Roger Bas-
tide, de Renato Jardim Moreira, e da pró
pria autora.
Trata-se, pois, repetindo o que afirmamos
no início desta nota, de trabalho verdadei
ramente indispensável a quantos estejam, di
reta ou indiretamente, envolvidos em pesqui
sas. E é, por igual, trabalho que põe em re
levo a importância e o elevado nível dos es
tudos e realizações desenvolvidos nesse cam
po no CERU por Maria Isaura Pereira de
Queiroz, socióloga e pesquisadora cujo re
nome há muito ultrapassou nossas frontei
ras.
BIBLIOTECA BÁSICA DE CIÊNCIAS SOCIAIS
Direção:
GABRIEL COHN
(da Universidade de São Paulo)
TAMÁS SZMRECSÁNYI
(da Universidade Estadual de Campinas)
DE GRAVADOR NO REGISTRO DA
T. A. QUEIROZ, EDITOR
São Paulo
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
ISBN 85-7182-019-8
CDD-300.72081
91-1496 -001.55
1991
Impresso no Brasil
Para
Antonia,
Dirce,
Maria Lucia,
Viviane,
que compuseram a equipe da pesquisa
“ S. Paulo, 1920-1937: depoimentos de
trabalhadores de baixos recursos” ,
representando todos os estudantes que
comigo fizeram pesquisas em meus 30 anos
de magistério, e com os quais aprendi o
significado do trabalho em equipe.
São Paulo, outubro, 1982
A pesquisa de que resultou este trabalho foi efetuada com financiamento
da Ford Foundation. Sua primeira versão foi publicada como volume n? 4 da
Coleção Textos, editada pelo Centro de Estudos Rurais e Urbanos — CERU
com a colaboração do Departamento de Ciências Sociais, FFLCH-USP.
Sumário
Anexos
1. Projeto de pesquisa: “ S. Paulo, 1920-1937: depoimentos de
trabalhadores de baixos recursos” .................................................... 133
2. Introdução a dois estudos sobre a técnica das histórias de vida
(Roger Bastide)..................................................................................... 150
3. Histórias de vida e depoimentos pessoais (Maria Isaura Pereira
de Queiroz)............................................................................................ 154
4. A história de vida na pesquisa sociológica
(Renato Jardim M oreira).................................................................... 167
Introdução - Relatos orais:
do “indizível” ao “dizível”
1
para registrar o que ainda não se cristalizara em documentação escri
ta, o não-conservado, o que desaparecería se não fosse anotado; ser
via, pois, para captar o não-explícito, quem sabe mesmo o indizível.1
O grande desenvolvimento das técnicas estatísticas, em fins dos
anos 40, relegou em seguida para a penumbra relatos orais e histórias
de vida, que pareciam demasiadamente ligadas às influências da psi
que individual. A técnica de amostragem com a aplicação de questio
nário surgia agora como a maneira mais adequada de se obterem da
dos inquestionavelmente objetivos.
Pouco a pouco se percebeu, no entanto, que valores e emoções
permaneciam escondidos nos próprios dados estatísticos, já que as de
finições das finalidades da pesquisa e a formulação das perguntas es
tavam profundamente ligadas à maneira de pensar e de sentir do pes
quisador, o qual transpunha assim, para os dados, de maneira perigo
sa, porque invisível, sua própria percepção e seus preconceitos. Os nú
meros perdiam sua auréola de pura objetividade, patenteando-se do
tados de vieses anteriores ao momento da coleta, escondidos na for
mulação do problema e do questionário; ocultos, pareciam inexisten
tes... Porém influenciavam o levantamento, desviando-o muitas vezes
do rumo que devia seguir.
O desenvolvimento tecnológico, colocando à disposição do cien
tista social novos meios de captar o real, como o gravador, reavivou
novamente o relato oral; as fitas pareciam agora o meio milagroso de
conservar na narração uma vivacidade de que o simples registro no pa
pel as despojava, uma vez que a voz do entrevistado, suas entonações,
suas pausas, seu vai-e-vem no que contava constituíam outros tantos
dados preciosos para estudo. Sem dúvida Oscar Lewis foi um pioneiro
neste sentido; muito embora se considere hoje discutível a maneira pe
la qual agiu, ao colher as várias histórias de vida de membros da famí
lia Sanchez, mostrou como utilizar um novo meio de registro, reco
lheu precioso repositório de dados, criou documentos cuja exploração
é ainda possível, apesar das dúvidas levantadas.2 Como que se redes-
cobriu nesse momento o relato oral e se aquilatou de maneira positiva
sua grande importância.
2
quecimento ou uma primeira mutilação ocorre então, com a passagem
daquilo que está obscuro para uma primeira nitidez — a nitidez da pa
lavra — rótulo classifícatório colocado sobre uma ação ou uma emoção.
A transmissão tanto diz respeito ao passado mais longínguo, que
pode mesmo ser mitológico, quanto ao passado muito recente, à expe
riência do dia-a-dia. Ela se refere ao legado dos antepassados e tam
bém à comunicação da ocorrência próxima no tempo; tanto veicula
noções adquiridas diretamente pelo narrador, que pode inclusive ser
o agente daquilo que está relatando, quanto transmite noções adquiri
das por outros meios que não a experiência direta, e também antigas
tradições do grupo ou da coletividade.
O relato oral, está, pois, na base da obtenção de toda sorte de in
formações e antecede outras técnicas de obtenção e conservação do sa
ber; a palavra parece ter sido, senão a primeira, pelo menos uma das
mais antigas técnicas utilizadas para tal. Desenho e escrita a sucede
ram. Quando o “ homem das cavernas” deixou, nas paredes destas,
figuras que se supõe formarem um sentido, estava transmitindo um
conhecimento que possuía e que talvez já tivesse recebido um nome,
estando já designado pela palavra.3 O fruto de suas experiências e des
cobertas ficava assim concretizado e passava aos demais, inclusive aos
pósteros. Mais tarde a escrita, quando inventada, não foi mais que uma
nova cristalização do relato oral.
Desde que o processo de transmissão do saber se instala, implica
imediatamente a existência de um narrador e de um ouvinte ou de um
público. Ao se operar a passagem do oral para um signo que o “ solidi
fica” , seja ele desenho ou escrita, instala-se novo intermediário entre
narrador e público. O intermediário pode ser também um indivíduo
que funcione como transmissor dos conhecimentos que ouviu de ou
trem. Da mesma forma que desenho e palavra escrita constituem uma
reinterpretação do relato oral, também o indivíduo intermediário, por
mais fiel que seja, acrescenta sua própria interpretação àquilo que está
narrando.
O gravador parece à primeira vista um instrumento técnico pró
prio para anular ou, pelo menos, diminuir o possível desvio trazido
pela intermediação do pesquisador. Logo se viu, no entanto, que o po
der da máquina não era absoluto e nem mesmo tão grande quanto se
havia suposto, uma vez que a utilização dos dados nas pesquisas exi
gia, em seguida, a transcrição escrita. Uma parte do registro se perdia
na passagem do oral para o texto, e este ficava igualado a qualquer
outro documento. A vantagem era conservar com maior precisão a lin
guagem do narrador, suas pausas (que podiam ser simbolicamente trans
formadas em sinais convencionais), a ordem que dava às idéias. O do
cumento resultante era sem dúvida mais rico do que aquele registrado
pela mão do pesquisador, mas apesar de tudo havia um empobreci
3
mento quando comparado com a fita gravada, e de novo o pesquisa
dor se tornava um intermediário que podia deturpar de alguma forma
o que fora registrado.
A fita, porém, não é passível de ser guardada indefinidamente.
Se repetidas vezes empregada por um mesmo ou por sucessivos pes
quisadores que quiserem evitar a transcrição escrita, logo se deteriora;
obter dela cópias em quantidade leva a despesas apreciáveis, embora
concorra para conservá-la. Toda fita, mesmo quando utilizada com par
cimônia, ainda assim é frágil, exige cuidados especiais para maior du
rabilidade e armazenagem bastante cara. A única forma de se conser
var o relato por longo tempo está ainda em sua transcrição. Volta-se
ao que se acreditara evitar com o gravador, isto é, à intermediação es
crita entre o narrador e o público para a utilização do relato, e às pos
síveis deturpações dela decorrentes.
Tal constatação contribui para desfazer nova ilusão: a de que se
deveria conservar a narrativa o mais próximo possível de seu registro,
evitando a intervenção do pesquisador e a ocorrência de cortes que pre
judicariam o conhecimento integral do dado recolhido. Tropeça-se aqui
com algo que parece obstáculo intransponível: a nítida distinção entre
narrador e pesquisador, que é fundamental. O pesquisador é guiado
por seu próprio interesse ao procurar um narrador, pois pretende co
nhecer mais de perto, ou então esclarecer, algo que o preocupa; o nar
rador, por sua vez, quer transmitir sua experiência, que considera dig
na de ser conservada e, ao fazê-lo, segue o pendor de sua própria valo
rização, independentemente de qualquer desejo de auxiliar o pesquisa
dor. Procurará por todos os meios relatar, com detalhes e da forma
que lhe parecer mais satisfatória, os fatos que respondem aos seus pró
prios intentos, e tudo isto pode convir ou não ao pesquisador, o qual
tentará então trazer o narrador ao “ bom caminho” , isto é, ao assunto
que estuda.
Mais tarde, ao utilizar o relato, o pesquisador o fará de acordo
com suas preocupações e não com as intenções do narrador; isto é, as
intenções do narrador serão forçosamente sacrificadas. Assim, o pro
pósito deste último fica sempre em segundo plano, desde o início da
coleta de dados. Em primeiro lugar, porque nunca coincide inteiramente
com os propósitos do pesquisador; foram os desejos deste que deslan-
charam o relato, sendo então predominantes sobre o intento do narra
dor. Em segundo lugar, porque o pesquisador utilizará em seu traba
lho as partes do relato que sirvam aos objetivos fixados, destacando
os tópicos que considerará úteis e desprezando os demais.
Noutras palavras, desde o início da coleta do material, quem co
manda toda a atividade é o pesquisador, pois foi devido a seus interes
ses específicos que se determinou a obtenção do relato. Durante a en
trevista, portanto, por mais que se procure deixar o narrador como
4
senhor do que está expressando, o pesquisador terá sempre uma posi
ção dominante. Que este mais tarde recorte o material segundo suas
finalidades, a fim de aproveitá-lo da maneira que melhor convenha a
estas, não estará senão seguindo a mesma linha de dominação tomada
desde o início e agora reafirmada de maneira mais clara.
Na verdade, a narrativa oral, uma vez transcrita, se transforma
num documento semelhante a qualquer outro texto escrito, diante do
qual se encontra um estudioso e que, ao ser fabricado, não seguiu for-
çosamente as injunções do pesquisador; de fato, o cientista social in
terroga uma enorme série de escritos, contemporâneos ou não, que cons
tituem a fonte de dados em que apóia seu trabalho. Recortes de jornal
relativos à atualidade, documentos históricos de variado tipo e de di
versas épocas, correspondência hodierna ou passada, os mais diversos
registros, — sem esquecer as estatísticas estabelecidas pelos governan
tes ou por instituições específicas, — foram redigidos com intenções
que nada tinham a ver com a pesquisa que decidiu fazer; e não é por
esta razão que devam ser afastados como menos úteis. Pelo contrário,
constituem hoje, como constituíram no passado, a base mais sólida so
bre a qual se erguerá o edifício da investigação. É sobre ela que se rea
lizará o procedimento primordial de toda pesquisa — a análise. E aná
lise, em seu sentido essencial, significa decompor um texto, fragmentá-lo
em seus elementos fundamentais, isto é, separar claramente os diver
sos componentes, recortá-los, a fim de utilizar somente o que é com
patível com a síntese que se busca. Assim, diante destas considerações,
o escrúpulo em relação aos recortes das histórias orais e à sua utiliza
ção parcial se afigura nitidamente como um falso problema.
5
bém captadas oralmente; porém, dada a sua especificidade, pode igual
mente encontrar um símile em documentação escrita. Trata-se de tipos
de documento próximos uns dos outros, mas que é necessário distin-
güir, pois cada qual tem sua peculiaridade de coleta e de finalidade.
Assemelham-se às histórias de vida as entrevistas, os depoimentos pes
soais, as autobiografias, as biografias; fornecem todas elas material
para a pesquisa sociológica, porém diferem em sua definição e carac
terísticas.
A forma mais antiga e mais difundida de coleta de dados orais,
nas ciências sociais, é a entrevista; considerada muitas vezes como sua
técnica por excelência, tem sido ao contrário encarada como desvir-
tuadora dos relatos. Nunca chegou, porém, a ser totalmente posta de
lado, o que demonstra sua importância. A entrevista supõe uma con
versação continuada entre informante e pesquisador; o tema ou o acon
tecimento sobre que versa foi escolhido por este último por convir ao
seu trabalho. O pesquisador dirige, pois, a entrevista; esta pode seguir
um roteiro, previamente estabelecido, ou operar aparentemente sem
roteiro, porém, na verdade, se desenrolando conforme uma sistemati-
zação de assuntos que o pesquisador como que decorou. A captação
dos dados decorre de sua maior ou menor habilidade em orientar o
informante para discorrer sobre o tema; é este que conhece o aconteci
mento, suas circunstâncias, as condições atuais ou históricas, ou por
tê-lo vivido ou por deter a respeito informações preciosas. Elas ora for
necem dados originais, ora complementam dados já obtidos de outras
fontes. Na verdade, a entrevista está presente em todas as formas de
coleta dos relatos orais, pois estes implicam sempre um colóquio entre
pesquisador e narrador.
A história de vida, por sua vez, se define como o relato de um
narrador sobre sua existência através do tempo, tentando reconstituir
os acontecimentos que vivenciou e transmitir a experiência que ad
quiriu. Narrativa linear e individual dos acontecimentos que ele con
sidera significativos, através dela se delineiam as relações com os mem
bros de seu grupo, de sua profissão, de sua camada social, de sua
sociedade global, que cabe ao pesquisador desvendar. Desta forma,
o interesse deste último está em captar algo que ultrapassa o caráter
individual do que é transmitido e que se insere nas coletividades a
que o narrador pertence. Porém, o relato em si mesmo contém o que
o informante houve por bem oferecer, para dar idéia do qtte foi sua
vida e do que ele mesmo é. Avanços e recuos marcam as histórias
de vida e o bom pesquisador não interfere para restabelecer cronolo
gias, pois sabe que também estas variações no tempo podem consti
tuir indícios de algo que permitirá a formulação de inferências; na
coleta de histórias de vida, a interferência do pesquisador seria prefe
rencialmente mínima.
6
Outro aspecto fundamental da história de vida é ser ela uma téc
nica cuja aplicação demanda longo tempo; não é com uma ou duas
entrevistas que se esgota o que um informante pode contar de si mes
mo, tanto mais que a duração delas é limitada devido ao cansaço. Além
de exigir muitos encontros com o narrador, também se deve contar
quanto tempo levam os relatos para serem transcritos. Finalmente, uma
das dificuldades consiste em pôr um ponto final nas entrevistas, pois
o narrador em geral afirma que tem sempre novos detajhes a acrescen
tar: não quer perder seu papel de personagem...
Toda história de vida encerra um conjunto de depoimentos. O ter
mo foi muito cedo definido juridicamente, significando interrogações
com a finalidade de “ estabelecer a verdade dos fatos” . Perde, porém,
esta conotação nas ciências sociais, para significar o relato de algo que
o informante efetivamente presenciou, experimentou, ou de alguma for
ma conheceu, podendo assim certificar. O crédito a respeito do que
é narrado será testado, não pela credibilidade do narrador, mas sim
pelo cotejo de seu relato com dados oriundos de outras variadas fon
tes, que mostrará sua convergência ou não. Desta forma, nas ciências
sociais, o depoimento perde seu sentido de “ estabelecimento da verda
de” para manifestar somente o que o informante presenciou e conheceu.
A diferença entre história de vida e depoimento está na forma es
pecífica de agir do pesquisador ao utilizar cada uma destas técnicas,
durante o diálogo com o informante. Ao colher um depoimento, o co
lóquio é dirigido diretamente pelo pesquisador; pode fazê-lo com maior
ou menor sutileza, mas na verdade tem nas mãos o fio da meada e con
duz a entrevista. Da “ vida” de seu informante só lhe interessam os
acontecimentos que venham inserir-se diretamente no trabalho, e a es
colha é unicamente efetuada por este critério. Se o narrador se afasta
em digressões, o pesquisador as corta para trazê-lo de novo ao seu as
sunto. Conhecendo o problema, busca obter do narrador o essencial,
fugindo do que lhe parece supérfluo e desnecessário. E é muito mais
fácil a colocação do ponto final neste caso, assim que o pesquisador
considere ter obtido o que deseja. A obediência do narrador é patente,
o pesquisador tem as rédeas nas mãos. A entrevista pode se esgotar
num só encontro; os depoimentos podem ser muito curtos, residindo
aqui uma de suas grandes diferenças com relação às histórias de vida.
Voltando novamente às histórias de vida, embora o pesquisador
sub-repticiamente dirija o colóquio, quem decide o que vai relatar é
o narrador, diante do qual o pesquisador deve se conservar tanto quanto
possível silencioso. Não que permaneça ausente do colóquio, porém
suas interferências devem ser reduzidas, pois o importante é que se
jam captadas as experiências do entrevistado. Este é quem determi
na o que é relevante ou não narrar, ele é que detém o fio condutor.
Nada do que relata pode ser considerado supérfluo, pois tudo se en
7
cadeia para compor e explicar sua existência. Pode ser difícil fazê-lo
concluir, pois há sempre mais e mais acontecimentos, mais e mais de
talhes, mais e mais reflexões que a memória vai resgatando.
Vê-se, portanto, que estabelecer diferenças entre histórias de vida
e depoimentos pessoais não constitui exagero de pesquisador demasia
damente escrupuloso. A escolha de uma ou outra técnica não pressu
põe apenas diferenças na maneira de aplicá-las, mas inclusive, e sobre
tudo, diferença nas preocupações do pesquisador com relação aos da
dos que pretende obter. Noutras palavras, as diferenças recaem sobre
o tipo de pesquisa que se quer realizar, pesquisa esta que, na sua espe
cificidade, deverá requerer a aplicação da história de vida, ou a coleta
por meio de depoimentos.
Dois exemplos podem esclarecer estas divergências. Quando se bus
cou conhecer como se desenrolava a existência cotidiana de indivíduos
de baixa renda, na cidade de São Paulo, durante as décadas de 20 e
30, a técnica escolhida foi a das histórias de indivíduos que tivessem
sido adolescentes ou jovens naquele período; e, como se tratava de his
tórias de vida, não foram elas limitadas no tempo, mas, nas idas e vin
das do narrador, chegaram sempre até os dias de hoje. No entanto,
justamente porque se tratava de velhos, às vezes mesmo anciãos de mui
ta idade, a atenção deles naturalmente se voltou para infância e moci
dade, trazendo ao pesquisador aquilo que estava buscando.4 No en
tanto, ao se estudar o carnaval na cidade de São Paulo, tal como se
realizara em variadas épocas até 30/40, através de entrevistas com ve
lhos foliões, a técnica escolhida foi a dos depoimentos. Tratava-se de
conhecer não a sequência da vida dos mesmos, porém as formas que
havia tomado o folguedo no decorrer do tempo; para tanto, urgia co
nhecer também o que havia sido contado por pais e avós, além de sa
ber como todos se divertiam durante as folias de Momo. Um aspecto
era mesmo essencial: quais os grupos e coletividades participantes, a
que camadas sociais pertenciam, quem eram os líderes na organização
da festa. Não era possível deixar a iniciativa do diálogo aos informan
tes; cabia ao pesquisador orientá-lo de modo a colher a maior quanti
dade possível de material.5 O pesquisador guiava, pois, a narrativa do
informante. Como se verifica, na história de vida o colóquio é condu
zido pelo narrador, que detém a condução do relato, enquanto nos de*-
poimentos é o pesquisador que abertamente o dirige.
Embora na história de vida o pesquisador se abstenha de intervir
e a maneira de se realizar caiba ao narrador, na verdade o pesquisador
foi quem escolheu o tema da pesquisa, formulou as questões que dese
ja esclarecer, propôs os problemas. O comando é dele, muito embora
procure não intervir durante a narração; não impõe, portanto, os te
mas ao informante, que os abordará ou não, a seu talante. No caso
da pesquisa para esclarecer o cotidiano paulistano de pessoas de baixa
8
renda entre 1920 e 1937, uma das questões que o pesquisador tinha em
mente era saber como os informantes haviam vivenciado ocorrências
como as revoluções de 1924, 1930, 1932. Todavia, se o informante na
da dizia a respeito, também nada perguntava o pesquisador, não ten
tando “ avivar a memória” de seu interlocutor. Ao contrário, a “ falha
da memória” , encontrada em vários casos, podia ser reveladora da for
ma de participação desta parcela de população em tais acontecimen
tos. Verificar também se a “ falha” ocorria mais nos relatos femini
nos, e muito menos nos masculinos, igualmente era algo que não po
dia ser desprezado.
Além de distinguir histórias de vida e depoimentos pessoais, é pre
ciso ainda destacar a diferença com autobiografias e biografias. Nar
rar sua própria existência consiste numa autobiografia, e toda história
de vida poderia, a rigor, ser enquadrada nesta categoria tomada em
sentido lato. Mas no sentido restrito a autobiografia existe sem nenhum
pesquisador, é essa sua forma específica. É o narrador que, sozinho,
manipula os meios de registro, quer seja a escrita, quer o gravador.
Foi ele também que, por motivos estritamente pessoais, se dispôs a nar
rar sua existência, fixar suas recordações; deu-lhes o encaminhamento
que melhor lhe pareceu e, se utilizou o gravador, não raro ele mesmo
efetua em seguida a transcrição, ou pelo menos a corrige. Na autobio
grafia não existe, ou se reduz ao mínimo, a intermediação de um pes
quisador; o narrador se dirige diretamente ao público, e a única inter
mediação está no registro escrito, quer se destine ou não o texto à pu
blicação.
A biografia, por sua vez, é a história de um indivíduo redigida
por outro; existe aqui a dupla intermediação que a aproxima da histó
ria de vida, consubstanciada na presença do pesquisador e no relato
escrito que sucede às entrevistas. O objetivo do pesquisador é desven
dar a vida particular daquele que está entrevistando ou cujos depoi
mentos está estudando; mesmo que neste estudo atinja a sociedade em
que vive o biografado, o intuito é, através dela, explicar os comporta
mentos e as fases da existência individual. A finalidade é sempre um
personagem, isto é, uma pessoa encarada em suas ações e em suas qua
lidades, naquilo que faz e diz através do tempo, em variadas situações
e circunstâncias. Busca-se conhecê-lo através da sucessão de suas con
dutas e segundo dois princípios fundamentais, que orientam tanto as
entrevistas quanto o relato posterior: o personagem sempre se revela
em seus comportamentos que compõem um todo integrado, de tal ma
neira que este todo não poderia ser dividido sem se encontrar imedia
tamente destruído; o personagem é um indivíduo especial e particular,
diferente de todos os outros, dos quais se destaca.
Uma vez que estas são as características de um personagem, a fi
nalidade de um biógrafo, ao escrever-lhe a história, é oposta à de um
9
pesquisador ao utilizar a técnica de histórias de vida. O primeiro fará
.ressaltar em seu trabalho os aspectos marcantes e inconfundíveis do
indivíduo cuja existência decidiu revelar ao público. O segundo busca,
com as histórias de vida, atingir a coletividade de que seu informante
faz parte e o encara, pois, como mero representante da mesma através
do qual se revelam os traços desta. Mesmo que o cientista social regis
tre somente uma história de vida, seu objetivo é captar o grupo, a so
ciedade de que ela é parte; busca encontrar a coletividade a partir do
indivíduo. O biógrafo, mesmo que retrate a sociedade de que seu per
sonagem participa, o faz com o intuito de compreender melhor a exis
tência do biografado.
Uma segunda diferença, agora na maneira de serem utilizadas bio
grafias e histórias de vida, se depreende aqui também. Justamente por
que se trata de um indivíduo considerado em sua integralidade, a bio
grafia não pode ser decomposta em elementos ou utilizada em frag
mentos, sob pena de se perder completamente o sentido do que se pro
curava: o desenvolvimento da personalidade, isto é, do “ eu” único e
permanente que, embora evoluindo através do tempo, mantém certa
linha constante que o distingue dos demais. É este o caso da biografia,
mas também da utilização da história de vida pela psicologia, mesmo
quando trata das relações entre um indivíduo e sua sociedade; por is
so, quando apenas parte dela é utilizada, pode induzir a graves falhas
na análise e na compreensão do que se quer estudar.
Esta exigência não tem razão de ser quando se trata de um estudo
sociológico ou antropológico. Neste caso, o aproveitamento da bio
grafia ou da autobiografia se faz no sentido de buscar como estão ali
operantes as relações do indivíduo com seu grupo, com sua sociedade.
Não se trata de considerá-lo isoladamente, nem de compreendê-lo em
sua unicidade; o que se quer é captar, através de seus comportamen
tos, o que se passa no interior das coletividades de que participa. O
indivíduo não é mais o “ único” ; ele agora é uma pessoa indetermina
da, que nem mesmo é necessário nomear, é somente unidade dentro
da coletividade. Todavia, em seu anonimato, contém o indivíduo,num
microcosmo, as configurações que sua coletividade abarca, ao orde
nar, umas em relação às outras, as unidades de que se compõe o gru
po. O recorte do material não somente se torna viável, agora, como
até mesmo imperioso, pois são facetas do mesmo que serão analisadas. ’
Embora colhidas com finalidades muito diferentes, autobiogra
fias e biografias são perfeitamente utilizáveis pelos cientistas sociais co
mo material de análise. Ambas, principalmente se bem feitas, podem
constituir excelentes repositórios de dados que, no entanto, devem ser
verificados e completados por informações de outras fontes. Pode-se
dizer que autobiografias e biografias, desse ponto de vista, estão em
convergência com histórias de vida e depoimentos pessoais para o es
10
clarecimento de um dado ou de um momento histórico; porém, não
se confundem com estes. Também devem ser manuseadas com muito
cuidado; justamente por se tratar da análise de uma personalidade, não
raro encarecerão o que é peculiar ao indivíduo estudado. Ora, o que
o sociólogo trabalha vai na direção do que é coletivo, isto é, do que
é geral, não se detendo nos particularismos. Sua direção é oposta à dos
biógrafos e dos psicólogos.
11
nece base empírica suficiente para se levantar inferências; deve, por
tanto, ser sempre completada por material coletado de outra maneira.
De fato, estes autores trabalharam com grande cópia de documentos
escritos, como, por exemplo, a correspondência entre os imigrantes e
seus parentes que haviam permanecido na Polônia.6
A constatação destes dois cientistas sociais, proveniente da expe
riência que realizaram, chama a atenção para um aspecto que foi em
seguida retomado por muitos outros pesquisadores: o da necessidade
de uma complementação proveniente de outras fontes. Sua justifica
tiva era a de que nunca se poderiam obter grandes quantidades de
histórias de vida indispensáveis para dar embasamento empírico sa
tisfatório e amplo que permitisse chegar a conclusões. Na verdade,
todo registro de uma história de vida, mesmo quando hoje é feita
por intermédio do gravador, desliga-a do contexto em que se deu a
entrevista; e esta falha é mais grave se a entrevista teve lugar fora
do sítio em que o informante habita ou trabalha. De fato, nem a es
crita do pesquisador nem o gravador registram o local onde se passa
o colóquio, ou o local onde o informante habita, amputando o mate
rial de uma preciosa messe que pode encerrar detalhes primordiais.
A falha é muito mais importante na coleta de histórias de vida do
que nos depoimentos orais; a focalização destes sobre determinado
ponto, sua concentração sobre um dado preciso, excluem a utilização
de elementos circundantes, que, pelo contrário, seriam esclarecedores
no caso de histórias de vida, como comprovantes, ou como demons
tradores de contradições.
Na verdade, é específico das ciências sociais necessitar sempre o
pesquisador de dados colhidos de fontes as mais variadas, quando quer
abarcar de forma ampla a realidade que estuda. A unanimidade a esse
respeito tem sido constante.7 Mesmo aqüeles que se manifestaram de
modo muito entusiástico a respeito das histórias de vida reconheceram
que a utilização somente delas resultava em trabalhos limitados. A
maior dificuldade estava em que a coleta de uma história de vida é de
duração longa; as entrevistas não podem ultrapassar certo lapso de tem
po porque são cansativas, devendo ser empregadas com intervalos. Para
os idosos, a quantidade de colóquios deve ser grande quando se reve
lam bons informantes, a fim de se coletar o maior número possível de
informes. Este alongamento no tempo é acrescido por uma transcri
ção (que consome horas e horas, sendo trabalhosa e aborrecida), as
sim como por uma análise forçosamente demorada. Desta forma, é mui
to difícil conseguir muitas histórias de vida que forneçam base empíri
ca suficientemente larga para se chegar a algum grau de certeza, a não
ser por meio de uma pesquisa que demore vários anos. O meio de fugir
a este obstáculo estava em juntar à técnica em pauta uma coleta de
dados utilizando outros procedimentos.
12
Mesmo a utilização de depoimentos orais, cuja obtenção é mais
breve, aponta para dificuldades inerentes à própria natureza do infor
me. Nunca é demais lembrar o belo trabalho de Germaine Tillion so
bre os campos de concentração nazistas em que esteve detida durante
a 2? Grande Guerra, e que teve como uma das fontes de dados, além
da vivência da autora, uma larga coleta de depoimentos orais.8 Seu in
tuito era desvendar o destino dado a prisioneiras que periodicamente
eram retiradas do campo. Verificou que os depoimentos e sua própria
recordação do que fora vivenciado se orientavam em direções diferen
tes e não raro contraditórias. Resultavam do fato de que, individual
mente, os informantes haviam captado somente uma parcela da reali
dade de Ravensbrück, e a narrativa de cada acontecimento era diver
sa, conforme cada indivíduo se encontrasse numa ou noutra situação,
ou de acordo com a sensibilidade e a experiência passada de cada um.
Verificou assim a autora a impossibilidade de basear sua análise, que
desejava sociológica, simplesmente nos relatos de seus companheiros
e em sua experiência pessoal; organizou então uma coleta de dados mui
to mais ampla, a fim de que da complementação e do cotejo entre eles
se reformulasse uma imagem do campo de concentração cuja confia
bilidade fosse muito maior do que a que resultava dos depoimentos.
Há que observar, no entanto, que a necessidade de se acrescentar
outras fontes às histórias de vida não invalida a possibilidade de utili
zação de uma única dentre elas, para o conhecimento de problemas
de uma coletividade. É certo que toda pesquisa sociológica, quer utili
ze técnicas como a história de vida, quer outras técnicas diversas (in
clusive e principalmente as quantitativas), ganha novas dimensões,
maior profundidade, maior envergadura, desde que acompanhada e
complementada por outras maneiras de coleta. Porém, uma única his
tória de vida, desacompanhada de captações complementares de ma
terial, desde que convenientemente analisada, pode ser da maior im
portância para a definição de problemas de uma coletividade, princi
palmente se o pesquisador não conhece bem esta coletividade; caso já
possua uma visão da mesma e dados em quantidade apreciável, serve
ela para um refinamento das observações e das inferências, assim co
mo para um controle. Certamente, uma só história de vida não esgota
rá todos os aspectos e nem todas as interpretações dos fenômenos que
se pretende esclarecer; mas sempre levanta relevante série de questões
sobre as quais não se havia cogitado ainda, ou fornece novas perspec
tivas a respeito do que já se conhecia. Histórias de vida de indivíduos
de camadas sociais diversas a respeito de um mesmo momento ou acon
tecimento são, por exemplo, preciosas como fontes de dados e controle.
O levantamento da história de vida tem sido ora remetido para
o início da pesquisa, a fim de se formularem questões pertinentes cuja
investigação seria efetuada por meio de emprego de outras técnicas;
13
ora é empregado como elemento de controle para certos resultados
obtidos através de outros procedimentos. Num e noutro caso, chega-
se por meio dela aos valores inerentes aos sistemas sociais em que
vivem os informantes, que dados como os estatísticos certamente não
fornecem. No entanto, uma vez captada e analisada uma história de
vida, apresenta ela informações cuja amplitude pode ser em seguida
pesquisada por meio de amostragem estatística e utilização de ques
tionários.
A diversidade de modos de emprego das histórias de vida e dos
depoimentos orais mostram a riqueza dos dados que captam; e a este
respeito, atualmente, mais ou menos todos os cientistas sociais são con
cordes. Não se nega mais, também, que mesmo uma única história de
vida possa ser objeto de um estudo sociológico aprofundado e frutífe
ro. Todo fenômeno social é total, dizia Marcei Mauss na década de
20; o indivíduo é também fenômeno social; aspectos importantes de
sua sociedade e do seu grupo, comportamentos e técnicas, valores e
ideologias podem ser apanhados através de sua história.
Na verdade, tudo quanto recolhe o cientista social se compõe de
histórias, ou de parte de histórias de indivíduos, ou pode nelas ser trans
formado. No entanto, encontrar histórias de vida a partir de material
colhido em pesquisa não pode ser confundido com a técnica emprega
da para registrar a realidade, isto é, com modos de agir peculiares à
coleta de material. De quase todos os documentos podem ser extraídas
histórias de vida; mas isto não quer dizer que o cientista social esteja
a todo momento utilizando a técnica das histórias de vida.
Técnica é procedimento ou conjunto de procedimentos de modos
de fazer bem definidos e transmissíveis, destinados a alcançar determi
nados objetivos; como todo procedimento, é ação específica, sistemá
tica e consciente, obedecendo a determinadas normas e visando deter
minado fim; é conservada e repetida se sua eficiência for comprovada
pelos resultados obtidos. Toda técnica é mecanismo de captação do
real em sociologia, e não pode ser confundida com o material reunido,
isto é, com os dados. A captação de dados nas ciências sociais pode
servir para a construção de biografias; porém, não é esse o trabalho
do pesquisador. A atividade que este desenvolve no tempo e no espaço
se destina a resolver questões propostas por relações existentes no inte
rior de coletividades. Para ele, o levantamento de dados é o primeiro
momento de um processo que se desenrola com várias fases, isto é, de
modificações em seqüência, escalonando-se a partir do projeto de tra
balho, passando pela coleta do material, pela sua análise, até chegar
ao relatório final ou à publicação do livro. A coleta do material atra
vés de histórias de vida limita-se a um momento específico da pesquisa
e não perdura pela totalidade da realização desta, nem é representati
va da totalidade da mesma.
14
O material levantado é, por sua vez, um conjunto de informações
reunidas de acordo com um ponto de vista e um sistema — conjunto
empírico que deve, em seguida, ser trabalhado por outros procedimentos
como a descrição, a análise, o levantamento de inferências, a compreen
são, a explicação, os quais se sucedem como fases diferentes e incon
fundíveis. O material, uma vez recolhido, permanece igual a si mesmo
no tempo e no espaço desde que conservado com o devido cuidado;
ao correr dos anos encerrará sempre as mesmas informações, servindo
para outras pesquisas que levarão a confirmações ou a novos conheci
mentos e comprovações. Fruto de procedimentos do pesquisador, não
pode ser confundido com as técnicas utilizadas para a coleta, e nem
com qualquer momento da pesquisa. A técnica, como se vê, nada mais
é que a ferramenta destinada a desencavar o dado.
A história de vida, como qualquer outro procedimento emprega
do na coleta de dados, é, pois, um instrumento, não é nem coleta, nem
produto final da pesquisa; ela recolhe um material bruto que necessita
ser analisado. Porém, uma vez registrado, o material bruto permanece
inerte e imutável através do tempo, tendo as mesmas características de
persistência e identidade que possui qualquer outro documento e, co
mo estes, durando através das idades desde que convenientemente ar
mazenado.
O início da utilização das histórias de vida como técnica de coleta
em regiões diferentes mostrou convergências interessantes. Nos Esta
dos Unidos, o desaparecimento de tribos indígenas levou ao emprego
de variadas formas de história oral, a fim de se conservar pelo menos
a lembrança de sua organização e costumes. Na Europa, e principal
mente na França, a transformação do estilo de vida dos camponeses
a partir de fins do século XIX fomentou também a coleta de relatos
orais, de depoimentos pessoais, de histórias de vida, visando registrar
as maneiras de agir e de pensar existentes numa organização social que
se apagava. A quase inexistência de documentos escritos, assim como
de outras formas de conservação de informações, determinou o desen
volvimento de técnicas que permitissem o armazenamento de dados do
passado e também de costumes que, ainda existentes, iam pouco a pouco
caindo em desuso.
Em muitas regiões da França, por exemplo, viveram os campone
ses, até a década de 20, em estruturas sócio-econômicas e culturais que
persistiam havia longo tempo. Continuavam muito importantes os lia-
mes do parentesco, as alianças matrimoniais tradicionais; valorizava-
se a experiência dos mais velhos, sempre respeitados; na infra-estrutu
ra material do cotidiano inexistiam água corrente, luz elétrica, estra
das asfaltadas; e apesar da leitura e da escrita se terem difundido des
de a segunda metade do século XIX, a transmissão de conhecimentos
por via oral e pela experiência direta continuava de grande relevância,
15
sob a orientação dos mais velhos que detinham o saber prático refe
rente às atividades agrícolas e aos ofícios.
A reformulação da infra-estrutura material e a expansão dos meios
de comunicação determinaram a utilização crescente da escrita como
veículo de registro e transmissão de conhecimentos; os livros foram
substituindo cada vez mais os ensinamentos dos velhos. A transmissão
oral perdeu paulatinamente importância; com ela decaiu a influência
dos idosos, cujos conhecimentos não eram mais tão adequados ao no
vo contexto sócio-econômico que emanava das grandes aglomerações
urbanas. Na antiga sociedade camponesa, continuidade e preservação
haviam constituído valores muito importantes para a orientação dos
comportamentos; na sociedade que agora despontava, a atenção de
adultos e jovens focalizava modificações e transformações como atri
butos fundamentais de uma vida que se queria moderna.
O desaparecimento de sistemas e valores que acompanhavam a es
trutura de uma sociedade “ tradicional” , a anulação da própria lem
brança deles, parecia iminente. Os anciãos seriam as últimas testemu
nhas ainda existentes de um estilo de vida que se desfazia, e esta cons
tatação levou cientistas sociais franceses a se interessarem pela história
oral em todas as suas formas. Da década de 50 em diante, foram elas
complementadas por filmes, por audiovisuais, por vídeo-cassetes. Tra
tava-se de resguardar falas, opiniões, aspecto físico, gestos dos idosos,
além dos discursos, pois também constituíam algo do passado. A or
ganização de arquivos e museus foi muitas vezes paralela à utilização
destas técnicas, que armazenavam documentos sobre os antigos mo
dos de vida.
No entanto, para as ciências sociais, o importante não é armaze
nar documentação nem reconstituir antigas sociedades ou épocas, mas
atingir um problema de estrutura social por meio de mecânicas especí
ficas de coleta de dados. Thomas e Znaniecki, dos primeiros a utilizar
histórias de vida, pretendiam esclarecer questões ligadas à integração
de imigrantes europeus e de outras proveniências que a partir de mea
dos do século XIX passaram a chegar em grande quantidade aos Esta
dos Unidos; procuravam, por meio da história oral, conhecer as mu
danças ocasionadas na sociedade de chegada e nas próprias sociedades
de origem decorrentes da partida dos que emigravam. Tratava-se de
um problema contemporâneo e não mais de uma tentantiva de recupe
ração do passado.
Mais tarde, também Oscar Lewis se preocupou em conhecer as re
lações familiares de indivíduos de baixa renda no México, sobre os
quais ou escasseavam ou inexistiaiii dados. O simples arquivamento
do material, nestes casos, passa a constituir um derivado interessante,
porém o objetivo principal é outro. Para esclarecer a questão escolhi
da pelo pesquisador não é necessário recorrer a pessoas idosas; tor
16
na-se primordial destacar informantes cujos relatos cubram o campo
investigado. Em se tratando de Oscar Lewis, foi imprescindível entre
vistar também jovens, para se perceber, no interior da família, como
se estabeleciam as relações entre diversas faixas de idade. Conhecer o
relacionamento no interior da constelação familiar tornava-se possível
através das narrativas de pais, de filhos, de parentes que com eles con
vivessem.
Todavia, enquanto Thomas e Znaniecki utilizaram os relatos orais
como documentos iguais a quaisquer outros, Oscar Lewis ficou de tal
modo fascinado pela riqueza das histórias de vida que julgou não ne
cessitar o sociólogo de análises e inferências; bastava que tomasse co
nhecimento do material empírico em seu estado “ natural’’. Não de
senvolveu, pois, um estudo, mas quis levar de maneira direta aos inte
ressados o conhecimento de seus dados, realizando tão-somente a trans
crição das fitas gravadas; efetuou, isso sim, uma limpeza e ordenação
dos relatos para compreensão mais fácil e amena por parte do leitor.
E quase transformou seu material em literatura...
O respeito à integridade das histórias de vida não foi somente pra
ticado por Oscar Lewis; vários pesquisadores também hesitaram em
aproveitar partes do material colhido, como se o desvirtuassem se não
o conservassem em sua inteireza; apresentaram portanto a história ou
as histórias colhidas, tanto quanto possível, em sua totalidade. Não
se davam conta de que relato escrito ou fita gravada constituem regis
tro semelhante a qualquer outro dos habitualmente analisados. Se não
se furtavam a utilizar, destacadamente umas das outras, as respostas
a um questionário, não havia razão para não recortarem, das histórias
de vida, as passagens que diziam diretamente respeito ao que estavam
estudando. Tal utilização não implicava mutilações do material; rela
to escrito ou fita gravada, permaneciam intactos para serem emprega
dos por outros pesquisadores. Desde que a história de vida ou os rela
tos orais não tinham sido colhidos meramente para serem arquivados,
urgia analisar os dados neles encontrados, escolhendo-os na massa bruta
do material coletado. A massa bruta completa ficaria arquivada, à dis
posição de outros cientistas para novas pesquisas, em absoluto não se
perdería. Utilizada como instrumento de coleta de dados em ciências
sociais, a história de vida deve forçosamente ser analisada e, portanto,
fragmentada.
17
mais cedo os pesquisadores à utilização desta técnica.10 Seu eclipse du
rante tanto tempo deveu-se à espécie de encantamento pelas técnicas
estatísticas de amostragem com o emprego de questionários. Aos olhos
dos cientistas sociais, as histórias de vida e, de um modo geral, o rela
to oral se apresentavam “ cheios de subjetividade’’, tanto do narrador
quanto do pesquisador, constituindo assim instrumento que não raro
levaria a desvios de observação e a interpretações errôneas.
A revalorização da história oral ocorrida recentemente na Europa
despertou o interesse dos cientistas nacionais. Primeiramente foi a his
tória oral que ressurgiu, suscitando iniciativas traduzidas na fundação
do museus da Imagem e do Som e também de grandes arquivos que
armazenassem entrevistas com personalidades políticas famosas. Nes
tes repositórios se encerra a “ memória” de algo que se perderia com
o desaparecimento de pessoas mais velhas, num país em que sempre
se deplorou a falta de documentação para estudo.11
Além disso, o ritmo extraordinariamente rápido de mudanças na
sociedade brasileira devia forçosamente contribuir para a difusão da
técnica. Quando se dá conta, por exemplo, de que em 1950 o meio
rural era habitado por 70% da população e de que em 1980, num
período de 30 anos, as proporções se inverteram inteiramente, os ha
bitantes do meio urbano passando então a 70%, compreende-se que
a conservação do que “ foi” adquira importância aos olhos dos estu
diosos. Recolher a maior quantidade possível de testemunhos sobre
formas de vida para as quais não existam senão parcos registros; sa
ber como agiam os “ silenciosos” , aqueles que pouco aparecem na
documentação escrita, isto é, as camadas de baixa renda; saber como
encaram sua existência diante das modificações velozes em curso, cons
tituiu uma larga abertura para a utilização de relatos orais e de histó
rias de vida.
Porém, desse ponto de vista não se trata senão de armazenar a
memória. A verdadeira utilização das histórias de vida como técnica
específica de pesquisa não fez seu reaparecimento nem na sociologia
nem na antropologia neste país, e sim na psicologia social. A finalida
de foi o esclarecimento de problemas da memória enquanto atributo
humano estreitamente dependente da vida social e por esta alimenta
d a.12 O trabalho pioneiro se desenvolveu em São Paulo, cidade cujo
crescimento acelerado e transformações radicais constituem grandes
provocações para se inquirir o que sucede com os processos de conser
vação das lembranças. Somente em seguida a esta primeira aplicação
da técnica, foi ela estendida a investigações sobre aspectos propriamente
sociais para os quais não se possuía farta documentação, fosse em ca
madas sociais inferiores, fosse em determinados grupos étnicos, fosse
em certas categorias profissionais,13 tanto no meio urbano quanto no
meio rural.
18
Nestes casos, é agora a sociologia que está em jogo. Os mecanis
mos da memória, sua ligação com a base biológica e com o contexto
sócio-econômico em que se dão as experiências individuais, não cons
tituem para ela questões fundamentais. A organização de arquivos, a
constituição de acervos de documentação, o armazenamento de dados,
também por si sós não se colocam diretamente como metas a serem
alcançadas. O que se busca é o esclarecimento de relações coletivas en
tre indivíduos num grupo, numa camada social, num contexto profis
sional, noutras épocas e também agora.
Nenhuma sociedade é um todo monolítico; em seu interior coe
xistem grupos e camadas sociais de diversos tipos, divisões por sexo
e idade, coletividades variadas. Histórias de vida de indivíduos com
posições diferentes dentro de um grupo, quer sejam membros da mes
ma família (como já colhera Oscar Lewis), quer se trate de homens e
mulheres, quer diga respeito ao contraste entre os mais velhos e os mais
jovens, servem para dirimir dúvidas e aprofundar conhecimentos. E
estas investigações transbordam das camadas inferiores para todas as
demais, uma vez que em todas elas se colocam os mesmos problemas
de descobrir relações ignoradas.
No meio rural, por exemplo, as mudanças extremamente rápidas
ocorridas no estado de São Paulo atingem indivíduos de todas as ca
madas sociais; no entanto, as pesquisas, utilizem ou não histórias de
vida, têm-se voltado quase que somente para as camadas inferiores.
Não se atenta para o fato que ainda há poucos anos havia também,
habitando em suas propriedades, grandes e médios proprietários, e des-
conhece-se como vivenciaram a transformação que se operou em suas
existências com sua implantação nas cidades.14 Além deles, toda uma
gama de indivíduos citadinos está ligada aos habitantes do meio rural,
não por auferirem diretamente do solo seu sustento, porém por servi
rem aos moradores urbanos: funcionários públicos (professores primá
rios, tabeliães, delegados etc.), gente do setor terciário (pequenos e mé
dios comerciantes, pequenos industriais, artesãos etc.). Como vivem
eles as reviravoltas havidas com o êxodo dos campos e com as mudan
ças de relações de trabalho ali acontecidas? O esvaziamento do meio
rural tem determinado também o esvaziamento das cidades dele de
pendentes — aspecto do problema que permanece ignorado e pratica
mente não estudado.
Constituem as histórias de vida, nestes casos, excelentes técnicas
para se efetuar um primeiro levantamento de questões, pois ainda fal
tam dados a respeito destas; revelam o cotidiano, o tipo de relaciona
mento entre os indivíduos, as opiniões e valores e através dos dados
assim obtidos é possível construir um primeiro diagnóstico dos proces
sos em curso. Alcança-se então uma visão do que ocorre, cuja exten
são seria a seguir, numa outra pesquisa, investigada por meio de téc
19
nicas estatísticas de amostragem, por exemplo. Vive-se hoje um mo
mento privilegiado para se captar, por meio de história oral, e mais
particularmente por intermédio de histórias de vida ou de depoimen
tos pessoais, a maneira pela qual diferentes camadas sociais, diferen
tes grupos, homens e mulheres, várias faixas de idade estão experimen
tando as mudanças que ocorrem, segundo que valores as estão enca
rando, quais as normas que aceitam para seus comportamentos e quais
as que rejeitam.
Uma técnica qualitativa como a das histórias de vida pode coexis
tir tranqüilamente com técnicas quantitativas como a da amostragem,
desde que cada uma delas seja aplicada a um momento específico da
pesquisa. A técnica de história de vida é, em geral, muito útil para um
primeiro levantamento de questões e de problemas, ao se notar a ine
xistência de conhecimentos a respeito. Também é da maior utilidade
como meio de verificação e de controle do que já foi colhido por ou
tros meios. A técnica quantitativa, seja a da amostragem ou outra, serve
principalmente para se conhecer a intensidade de um fenômeno, o quan
to se espraia por um grupo ou camada, como atinge grupos e camadas
diferentes. Os dois conjuntos de técnicas não são opostos ou mutua
mente exclusivos; são procedimentos a serem empregados em determi
nados tipos de pesquisa ou em determinados momentos da mesma.15
Não tem sentido, nas ciências sociais, tomar-se partido por este ou aque
le procedimento, tanto mais que a obtenção de dados de fontes varia
das, que enriquecem uma pesquisa, determina a necessidade de se uti
lizarem técnicas também variadas. A querela é vã; o importante é sa
ber escolher a técnica adequada ao tipo de problema, à especificidade
do dado e ao momento preciso da investigação.
20
cobriríam aquilo que existe de mais íntimo e de mais inconfundível em
alguém.
Se o indivíduo obedecesse a determinações exclusivamente suas e
inconfundíveis, então realmente as histórias de vida seriam impróprias
para uma análise sociológica.16 No entanto, o que existe de individual
e único numa pessoa é excedido, em todos os seus aspectos, por uma
infinidade de influências que nela se cruzam e às quais não pode por
nenhum meio escapar, de ações que sobre ela se exercem e que lhe são
inteiramente exteriores. Tudo isto constitui o meio em que vive e pelo
qual é moldada; finalmente, sua personalidade, aparentemente tão pe
culiar, é o resultado da interação entre suas especificidades, todo o seu
ambiente, todas as coletividades em que se insere. Não é novidade al
guma afirmar que o indivíduo cresce num meio sócio-cultural e está
fundamente marcado por ele. Sua história de vida se encontra, pois,
a cavaleiro de duas perspectivas: a do indivíduo com sua herança bio
lógica e suas peculiaridades, e a de sua sociedade com sua organização
e seus valores específicos. A história de vida, em resumo, se encontra
a cavaleiro de duas disciplinas, a psicologia e a sociologia.
A história de vida é, portanto, técnica que capta o que sucede na
encruzilhada da vida individual com o social. Conforme seja a pesqui
sa desenvolvida por um sociólogo ou por um psicólogo, assim a orien
tação da coleta de dados levará uma ou outra acentuação. No primei
ro caso, serão procuradas no informante as marcas de seu grupo étni
co, de sua camada social, de sua sociedade global — vários níveis que
apresentam estruturas, hierarquias, valores ora harmoniosos, ora em
desacordo, o que tudo se reflete no seu interior. No segundo caso, são
buscadas as particularidades que singularizam o indivíduo, delineia-se
o caminho seguido na formação de sua personalidade através do ema
ranhado das relações variadas tecidas pela sua coletividade, e é o pro
duto final, considerado como único, que se quer compreender e explicar.
Sociólogo e psicólogo poderão, ambos, utilizar uma história de
vida que tenha sido colhida por um deles; o material é válido para am
bos os estudiosos, justamente por se encontrar no cruzamento das duas
disciplinas a que se votaram. Diante do material colhido pelo psicólo
go, o sociólogo naturalmente se queixará de falhas; e vice-versa. Mas
as lamentações não invalidam a utilização do material pelos dois. No
entanto, embora muitos cientistas sociais tenham alertado para as li
mitações da técnica em sociologia, considerando até que seu emprego
deveria ser evitado, na verdade ela foi-se apresentando como cada vez
mais relevante para esta ciência, justamente em função da área cada
vez maior que a sociologia foi abarcando no correr do tempo.
No século atual a sociologia, apoderando-se também da psique co
mo seu campo de estudos, estendeu seu âmbito até os sonhos, durante
muito tempo considerados algo exclusivamente pessoal; encarou-os
21
como representações simbólicas do relacionamento do indivíduo com
seus semelhantes e com sua sociedade. Englobou em seguida em seus
estudos o inconsciente, vendo-o como o repositório das agressões e das
opressões do meio social, e portanto material revelador para a análise
de controles e coerções. Finalmente, foi-se orientando também para
a subjetividade, isto é, para a faixa interior que parecia mais próxima
do biológico porque carregada de afetividade, implicando por isso mes
mo um caráter marcadamente individual. Com efeito,“ subjetivo” sig
nificou primeiramente aquilo que pertence a um indivíduo e somente
àquele, distinguindo-o dos demais; negava-se, assim, que a forma to
mada por suas manifestações pudesse ser igualada pela dos demais. Nes
ta caracterização se consubstanciaria a oposição entre subjetivo e ob
jetivo; este último encerrava características válidas para todos os indi
víduos porque exterior a eles, enquanto o primeiro permanecería en
cerrado no íntimo do indivíduo, formado pelas qualidades que lhe se
riam exclusivamente peculiares. No julgamento subjetivo de um indi
víduo estariam as marcas de suas impressões, de seus gostos, seus há
bitos, seus desejos e aspirações única e fundamentalmente seus, incon
fundíveis com os dos demais.
Apesar de todas estas definições, no entanto, a sociologia atual
mente se orientou também para o subjetivismo, considerando que ele
não decorre exclusivamente de bases biológicas e psicológicas, porém
que se desenvolve numa coletividade, sendo portanto revelador desta.
O subjetivismo deixa assim de ser, para esta disciplina, a marca indi
vidual intraduzível e inexplicável, cujo vislumbre de alguma interpre
tação só poderia ser captado através da biologia e da psicologia; a
sociologia tambérmtem sua palavra a dizer a respeito desses proble
mas, que podem ser objeto de seu estudo. Tanto mais que as mani
festações do subjetivismo respondem sempre a algo que é exterior aos
indivíduos.
Necessidades físicas, inclinações, paixões, prazer e dor significam
reações da parte do indivíduo a algo que captou a partir do exterior,
e que só adquirem significado através da mediação do exterior; con
forme sua sensibilidade, serão mais ou menos intensas, desencadearão
ou não ações de variado tipo. Uma vez existindo a mediação exterior
(e a palavra é uma delas, provavelmente a mais importante) para que
se expresse o puramente individual este fica já comprometido com o
exterior, sempre mergulhado numa atmosfera plenamente coletiva. Mes
mo que se trate de sensações térmicas, respiratórias, circulatórias, isto
é, do conjunto de sensações internas de que trata a cenestesia, — sen
sações que parecem independer até da intermediação dos sentidos pa
ra serem percebidas, — ainda assim sua apreensão pelo indivíduo for-
çosamente passa pela conscientização (ou pelo menos pela tentativa de
conscientização) através da palavra; o que significa através de um ins
22
trumento forjado pela realidade social. Não escapa, portanto, de se
tornar em parte, também, objeto de estudo sociológico.
Assim, ainda quando o subjetivo seja entendido como as sensa
ções inefáveis provenientes dos órgãos internos, da circulação, da nu
trição celular etc., constituindo um estado psíquico proveniente da ação
interna deles e resultando em confusas impressões internas, e desde que
se admita que estas sensações podem chegar ao estado de percepção,
neste momento sua formulação se opera por meio de manifestações
que deixam de ser puramente subjetivas; pois as sensações confusas
provenientes de todas as partes do corpo estão sendo constantemente
transmitidas aos sentidos e, ao se transformarem em percepções, so
frem as imposições do contexto circundante e perdem seu caráter de
exclusiva subjetividade. Pela formulação que então adquirem, entram
para o domínio dos fatos passíveis de serem analisados pela sociologia.
Nesta maneira de se compreender o subjetivismo, permanece ele
como puramente individual, e mesmo como essencialmente individual,
enquanto não é apanhado nas malhas da percepção: sua base seriam
as funções vegetativas que dariam lugar a sensações vagas e difusas
de bem-estar ou de mal-estar, cuja influência se faria sentir fora dos
órgãos dos sentidos, porém que constituiríam uma das causas dos so
nhos, por exemplo; mas causa exclusivamente física, o sonho tendo
também um conteúdo que se liga estreitamente ao contexto sócio-
cultural do indivíduo. Em tal perspectiva, o conteúdo do sonho pode
ser abarcado pelo estudo sociológico; quanto ao aspecto cenestésico,
somente quando, como já se disse, de sensação passasse a percepção.
Ainda que o subjetivo seja entendido como as sensações intradu-
zíveis, é próprio do indivíduo tentar compreendê-las primeiramente,
e transmitir aos outros o que compreendeu; porém, ao fazê-lo forço-
samente utiliza os mecanismos que tem à sua disposição e que lhe fo
ram dados pela família, pelo grupo, pela sociedade. A história de vida
pode tentar desvendar o ponto em que características destas coletivi
dades se juntam às sensações cenestésicas, buscando a interação entre
ambas, e esclarecendo quais os instrumentos sociais utilizados para a
tradução.
A esta maneira mais antiga de compreender o subjetivismo veio
juntar-se outra mais recente, baseada na teoria de Jung, dos arquéti
pos enraizados na própria natureza do ser humano; isto é, existiríam
representações simbólicas comuns a todos os indivíduos através dos tem
pos, sejam quais forem as raças e os momentos. A semelhança das es
truturas mentais seria fundamental, e dela emanariam representações
similares banhadas sempre numa dominante de tonalidade afetiva. As
sim, modelos de ação e de comportamento se encontrariam em povos
muito diversos, muito afastados no tempo e no espaço, que não te-
riam desenvolvido nem contatos nem influências recíprocas.
23
Este conjunto comporia o “ inconsciente coletivo” e constituiría
o fundamento do subjetivismo individual na medida em que estaria uni
do ao conjunto que, no plano biológico, foi chamado de “ instinto” .
Nesta maneira de ver, a concepção de subjetivismo se inverte, já que
ele não tem mais por base o que seria essencialmente individual, mas
repousaria em materiais coletivos inconscientes; herdados juntamente
com as estruturas mentais, representariam o aspecto psíquico destas.
Todo o psiquismo seria, então, menos individual do que coletivo, pois
estaria sempre sob a influência das representações e imagens arcaicas
reunidas no inconsciente coletivo.
Se aceita esta segunda concepção do subjetivismo, com mais ra
zão então recai ele no campo de estudos da antropologia e da sociolo
gia. O conhecimento dos arquétipos, figuras dinâmicas com estrutura
relativamente geral, estaria presente no inconsciente de qualquer indi
víduo; uma análise que desvendasse estas configurações invariantes,
veladas pelos significados simbólicos acumulados através dos tempos,
constituiría um objetivo daquelas duas disciplinas. As vias de acesso
para descerrar os véus que ocultariam as imagens arcaicas seriam va
riadas: análise dos sistemas mágicos, religiosos, filosóficos, interpre
tação dos sonhos individuais etc. As histórias de vida aparecem então
como instrumentos de grande utilidade para atingir, sob a ganga dos
modelos de pensamento e de ação mais recentes, adquiridos no conta
to com a realidade sócio-cultural cotidiana, as estruturas mentais mais
antigas.
Adote-se uma ou outra maneira de compreender o subjetivismo,
cabe sempre submetê-lo à perspectiva sócio-antropológica a fim de apro
fundar sua compreensão. Não foram muitos, porém, os estudiosos des
tas disciplinas que se abalaram à exploração ampla destas profundezas
dos seres humanos e das sociedades. Sem dúvida há necessidade de um
refinamento dos instrumentos de trabalho para poder ser levada a efeito
com suficiente êxito. Mas, pergunta-se: é possível refinar mecanismos
sem ao mesmo tempo exercitá-los?
As histórias de vida poderíam constituir ferramenta valiosa para
a intensificação de tais estudos, uma vez que se colocam justamente
no ponto de intersecção das relações entre o que é exterior ao indiví
duo e o que ele traz em seu íntimo. Tais observações reforçam as afir
mações de que há nesta técnica uma riqueza potencial ainda não utili
zada pelas ciências sociais, e de que seu refinamento enquanto mecâni
ca de pesquisa, para ser alcançado, necessita de uma utilização prática
devidamente acompanhada de uma reflexão metodológica cada vez mais
aprofundada.
24
NOTAS E REFERÊNCIAS
25
go, V. da Rocha-Lima e L. Hipólito, O método das histórias de vida na América
Latina. Cadernos CERU, n? 19, lí série, S. Paulo (1984).
12. E. Bosi, Memória e sociedade: lembranças de velhos. T.A. Queiroz, São Paulo (1979).
13. Um bom exemplo são as pesquisas em curso de Zeila de Brito F. Demartini: Velhos
mestres de novas escolas: professores primários rurais na 15 República (São Paulo).
CERU, mimeo., São Paulo (1985).
14. Um exemplo nunca é demais. Em pequeno survey, efetuado no município de Torri-
nha (São Paulo), na década de 60, pelo CERU, verificou-se que recentemente a grande
maioria de fazendeiros, sitiantes, agricultores, passou a habitar na cidade; conta
vam que trabalhar era “como ir ao escritório” : saíam de manhã para a propriedade
e regressavam à tarde. Esperava-se efetuar em seguida uma série de histórias de vida
com produtores de variado nível econômico, tanto que tivessem mudado de habitat
quanto não o tivessem feito, para verificar o que experimentavam de material e con
creto, e também psicológica e valorativamente, com a mudança. Porém os “aza
res” da época em que se vivia então impossibilitaram o prosseguimento da pesquisa.
15. As pesquisas utilizando técnicas quantitativas preconizam a realização de um pré-
levantamento, ou pesquisa-piloto, para se tomar conhecimento dos problemas exis
tentes efetivamente: histórias de vida são sempre repositórios destes problemas,
podendo-se para tal consultar previamente as já existentes com o mesmo intuito da
pesquisa-piloto.
16. Veja-se a respeito o artigo de R. Jardim Moreira citado na nota n? 9 e reproduzido
nos Anexos deste volume.
26
/ - Reflexão metodológica - reflexão
tecnológica: convergências e contrastes
27
dos como sinônimos? Caso contrário, onde se encontram as suas di
vergências?
Técnica é procedimento, é maneira de agir para se obter um resul
tado, mas maneira de agir particular, seguida para executar algo; seu
sentido é material e prático. Não é reflexão, a qual significa meditar
sobre o caminho seguido a fim de penetrar mais profundamente neste
ou naquele ponto, numa consideração atenta que permita chegar ao
significado dos procedimentos e operações, e até mesmo aos seus prin
cípios de base. A técnica, enquanto atividade, pode resultar tanto da
existência de um conhecimento prévio, que pressupõe portanto refle
xão, quanto simplesmente de um exercício prático, isto é, de uma ex
periência puramente empírica: não foi sem razão que se deu a denomi
nação de “ ensaio e erro” à forma mais singela de se adquirir uma téc
nica eficaz...
Tecnologia, por sua vez, poderia ser definida como a teoria de uma
técnica, ou de um conjunto de técnicas; noutras palavras, seria o con
junto sistematizado de conhecimentos práticos sobre a realização de
uma técnica ou de uma reunião de técnicas. Enquanto o conceito de
“ técnica” parece bastante afastado do conceito de “ metodologia” , o
de “ tecnologia” se aproximaria deste e poderia talvez ser com ele con
fundido; é o que se necessita verificar com clareza, ressaltando as dife
renciações. Pois cumpre explicitar se se trata de dois conceitos real
mente diversos, e não de sinônimos, de dois conceitos cuja possível con
vergência estaria no fato de ambos lidarem com os procedimentos em
que estão engajados os cientistas, quando realizam seu trabalho.
A tecnologia reflete sobre os procedimentos enquanto tais, em con
junto ou separadamente, e nas suas várias fases: antes da execução da
pesquisa, a fim de verificar quais as técnicas mais adequadas às diver
sas tarefas a serem realizadas; durante a realização das tarefas, para
melhorar o desempenho e a eficiência delas; finalmente, quando tudo
termina, efetuando um balanço do que foi executado, para registrar
as modificações havidas, para alcançar maior eficiência nos meios em
pregados. Existe aqui também uma meditação sobre o caminho segui
do, — para utilizar as mesmas expressões acima, na referência à meto
dologia, — porém que não ultrapassa o nível dos próprios instrumen
tos manuseados, numa ligação estreita com o arsenal prático que foi
posto em funcionamento durante o trabalho, e procurando verificar
somente suas implicações e conseqüências.
Há, pois, algo na tecnologia que a aproxima da metodologia. Esta,
por sua vez, reflete sobre procedimentos e comportamentos do cientista
e do técnico, tanto quando utiliza seus instrumentos como em todos os
passos que vai desenvolvendo ao trabalhar, e também sobre suas moti
vações em relação à aquisição de conhecimentos, motivações subjacen
tes às atividades e aos diferentes meios de agir de que lança mão. Ad
28
quirem então grande importância, por exemplo, todas as indagações
a respeito da proposição inicial do problema ou dos problemas; quais
as suas ligações com as maneiras de ver mais gerais do pesquisador que
o formulou; quais as relações de tudo isto com as técnicas escolhidas,
e até onde vai a própria influência destas na referida formulação do
problema; quais as limitações do pesquisador, do problema, das técni
cas, quais as interligações entre tudo isto. Tais raciocínios vão acom
panhando o desenrolar do trabalho; isto é, durante este percurso esta
rão em questão o desempenho dos instrumentos, a fisionomia dos da
dos, a maneira pela qual estão sendo captados os dados, mas também,
e sobretudo, a atitude, o comportamento, o modo de pensar do pes
quisador ou do cientista. E o remate final do trabalho é a inquirição
do âmbito das conclusões a que se chegou, diante do problema da ade
quação e eficiência das técnicas empregadas, diante dos comportamen
tos desenvolvidos.
Assim definidas, metodologia e tecnologia se inter-relacionam cer
tamente, porém a segunda mantém uma posição de subordinação em
relação à primeira, que é mais ampla; noutras palavras, a tecnologia
seria uma parte da metodologia, mas as finalidades desta são mais vas
tas, mais complexas, mais profundas. Empregando os conceitos da ló
gica formal, o termo “ tecnologia” estaria compreendido no termo mais
extenso “ metodologia” , este constituindo o gênero, de que o outro se
ria uma das espécies. Pode-se questionar somente problemas referen
tes à tecnologia, quando se efetua uma pesquisa, e então o questiona
mento não transborda desse nível. Porém, quando se refletir sobre a
metodologia empregada estarão em foco, além destes problemas, as
posições do cientista e do pesquisador diante do objeto estudado. Os
dois termos não podem, pois, ser utilizados como sinônimos.
Estas colocações são necessárias para se compreender qual o ca
minho percorrido pela equipe que efetuou o trabalho “ S. Paulo,
1920-1937: depoimentos de trabalhadores de baixos recursos” . O em
prego da técnica de gravador se difundiu entre os pesquisadores das
ciências sociais, sem uma reflexão mais profunda sobre sua utilização,
tanto do ponto de vista da própria técnica quanto do ponto de vista
do pesquisador e, finalmente, do ponto de vista do informante. Desde
o início desta pesquisa ficou patente a necessidade de voltar a atenção
para o que estava sendo realizado, questionando os passos dados e bus
cando visualizar suas conseqüências num plano superior ao do simples
manuseio das técnicas.
Procurou-se, pois, efetuar um esforço de conscientização para des
vendar os pressupostos e as conseqüências da utilização da técnica de
gravador em seus diferentes passos; e também para perceber quais as
prenoções das pesquisadoras, por um lado, e, por outro, quais os pon
tos das diversas teorias sociológicas em que se estaria tocando, e co
29
mo o que se estava inquirindo concordava ou contradizia tais pontos.
Teria sido interessante uma discussão desse tipo também com os infor
mantes, que elucidasse suas motivações e suas maneiras de ver a pes
quisa a que se estavam submetendo, e como encaravam suas relações
com as pesquisadoras. No entanto, a idade deles e seu nível de instru
ção não permitia esta troca de reflexões; só era possível deduzir, a par
tir de suas atitudes e de suas respostas, como encaravam tudo quando
se passava, que conseqüências tanto a aplicação da técnica quanto a
execução de todo o trabalho poderíam ter em suas vidas.
O resultado de todas estas reflexões é trazido aqui. Seu ponto cen
tral foi a técnica de gravador com todas as suas implicações e resulta
dos. Porém, a partir da utilização da técnica, estendeu-se para as rela
ções entre pesquisadoras e informantes; para a conformidade ou a opo
sição entre trabalho individual e trabalho de equipe; para as maneiras
de se tratar o material colhido, até chegar à conclusão do trabalho,
e todas as implicações e conseqüências que foi possível levantar. A ação
das pesquisadoras esteve, portanto, constantemente na mira, e estas
cogitações se inserem certamente no contexto da tecnologia, com in
cursões freqüentes, porém limitadas, ao domínio mais amplo da meto
dologia.
O trabalho em foco foi efetuado em equipe; houve uma divisão
interna do mesmo, cabendo parte às pesquisadoras e parte à coorde
nadora; a equipe era, pois, internamente hierarquizada, com base na
dose de experiência muito maior da coordenadora tanto em conheci
mentos sociológicos quanto de pesquisa, e na menor soma de conheci
mentos das pesquisadoras. Coube às pesquisadoras todo o manuseio
do instrumental de trabalho, isto é, da técnica de gravador, da coleta
de material, da passagem deste para a escrita, de sua análise, da com
posição de uma síntese que respondesse às questões colocadas no pro
jeto inicial e que permitisse sua divulgação para- um público que fosse
o mais amplo possível. As pesquisadoras tiveram, assim, a seu cargo
toda a realização efetiva da pesquisa. A coordenadora, por sua vez,
orientou todo o questionamento teórico e metodológico que seguiu pas
so a passo a pesquisa, transportando em seguida para um relato escri
to o resultado das discussões, das descobertas que iam sendo realiza
das no campo da técnica e da metodologia; aprofundando e ligando
entre si os variados problemas que surgiam; buscando conectá-los,
quando possível, com o arsenal teórico da sociologia, a partir de seus
próprios conhecimentos e experiências; buscando, num relato final,
mostrar quais as implicações de tudo quanto foi feito.
Embora interligadas, as duas ordens de reflexão tiveram um tra
tamento em separado, resultando delas dois volumes. O ideal seria que
um só volume reunisse os dois aspectos que foi assumindo a pesquisa,
— o aspecto empírico, o aspecto metodológico. No entanto, verifi
30
cou-se que a própria leitura ficaria árida e enfadonha, constantemente
entrecortados os depoimentos dos entrevistados pelas observações re
sultantes da análise crítica do “ fazer” . Por outro lado, enquanto os
depoimentos constituíam um conjunto que poderia interessar um pú
blico muito mais largo do que simplesmente o acadêmico, pois desper
taria talvez a atenção de todos os indivíduos medianamente cultos que
se interessam pela história da cidade e de seus habitantes, a parte tec
nológica e de metodologia seria apenas do interesse de pesquisadores
e cientistas das ciências do homem, sendo apelativa, assim, somente
para uma pequena parte do público.
Desta forma, as contingências de publicação impuseram a divisão
do material em dois livros diversos. Aquele que reúne os dados obti
dos na pesquisa destina-se a um público amplo; todos os indivíduos,
qualquer que seja a sua profissão, atraídos pela “ memória” da cida
de, além dos estudiosos de sua história e do seu povo, terão acesso a
um volume cujo conteúdo é composto pelos depoimentos. O volume
com o resultado das discussões tecnológicas e metodológicas será útil
a pesquisadores e cientistas sociais que estejam lidando com documen
tação oral; mas será de utilidade também para qualquer um que esteja
trabalhando em pesquisas de ciências humanas, pois muitas das refle
xões inspiradas no manuseio da técnica de gravador ultrapassam a es
ta, e se aplicam também a outras técnicas, assim como às diversas fa
ses de qualquer pesquisa.
31
pesquisadores a respeito de tudo quanto se executa. Mas sem o homem,
seus objetivos conscientes ou velados, suas hesitações e suas dúvidas,
suas soluções, onde estariam as pesquisas e as técnicas?
32
II - Pesquisa individual pesquisa de equipe:
irmãs inimigas ou íntimas colaboradoras?
33
o trabalho de equipe, que exigiría uma verdadeira violência de sua parte
para adaptar-se ao mesmo; e por outro lado, o trabalho de equipe se
ria incongruente com toda a sociedade capitalista, requisitando cuida
dos e habilidades diplomáticas para poder ser realizado. Haveria, as
sim, uma dupla inadequação dele às condições específicas do país. Pa
recería então que a conformação da equipe a aparentaria ao que Tõn-
nies definiu como “ comunidade” , incompatível e oposta à sociedade
complexa que é a do país.
Na realidade, uma noção muito clara de comunidade, em sua de
finição afetiva, perpassa o conceito de equipe, e o opõe ao conceito
de trabalho individual, este implicitamente qualificado de personalis
ta, muito certamente, até mesmo francamente egoísta, e chegando a
tocar as raias do egocêntrico. Desta forma, somente em condições muito
especiais a pesquisa de equipe conseguiría firmar-se e levar o trabalho
avante, na sociedade ocidental em geral e especificamente no Brasil.
Estas maneiras de ver contêm então a noção de que trabalho de equipe
e trabalho individual seriam mutuamente excludentes em ciências so
ciais; ou se escolhe uma via ou outra, a associação entre ambas pare
cendo impossível. Também aparece como preferencial para os brasi
leiros a pesquisa individual, dadas suas próprias características psico
lógicas, a que se somam as características psicossociais da sociedade
capitalista ocidental, de que fazem parte.
34
ela é uma unidade tal que todos os aspectos possíveis estão interliga
dos, o que a “ individualiza” , isto é, a torna concretamente distinta
de outras unidades semelhantes; é então totalidade.
Que se entende por pesquisa de equipe? A expressão significa lite
ralmente “ conjunto de indivíduos executando juntos as mesmas tare
fas ou o mesmo trabalho” , quer na labutação, quer no jogo. Trata-se,
portanto, de uma labutação ou jogo que pode ser dividido em sua exe
cução e, o que é mais, que deve ser dividido em sua execução para po
der ser realizado. Deste ponto de vista, sua oposição a trabalho indivi
dual não poderia ser mais clara. Outras noções estão também presen
tes naquele enunciado, que é necessário examinar.
Além de uma noção de coletividade (conjunto de indivíduos), a
expressão encerra também uma noção de igualdade entre eles, uma vez
que se desincumbem juntos das mesmas tarefas; não se trataria de uma
divisão do trabalho no sentido orgânico, e sim de uma repartição de
tarefas semelhantes. Como se trata de realizar algo coletivamente, há
também uma noção de organização, de um arranjo tal que permite al
cançar a finalidade proposta. A organização implica portanto a exis
tência de uma estrutura, informal quando não existem normas preci
sas estabelecidas para se alcançar a finalidade proposta; formal quan
do existem as normas. E a um e outro caso de estrutura acompanha
também uma forma específica de liderança, paralela e da mesma natu
reza: liderança informal na primeira alternativa, quando um dos com
ponentes do grupo tende a ser ouvido e seguido espontaneamente; li
derança formal quando o líder, apoiado na estrutura vigente, tem ex
plicitamente autoridade para ser o ordenador, o condutor, o anima
dor do trabalho todo, podendo executar ou não as tarefas juntamente
com os demais.
Talvez estivesse no próprio sentido profundo das duas expressões,
trabalho individual e trabalho de equipe, a razão de terem sido encara
das como contraditórias e mutuamente excludentes. Pois, se numa equi
pe todos realizam tarefas semelhantes ou idênticas, e se o trabalho in
dividual se caracteriza pela sua qualidade de “ único” , não podendo
portanto ser confundido com um outro e não possuindo semelhantes,
então se trataria realmente de duas formas inconfundíveis e irredutí
veis. Dentro destes limites é que foram entendidos os trabalhos univer
sitários de tese, cuja característica principal reside em sua originalida
de, isto é, em sua singularidade; vale dizer, no fato de serem únicos.
Um trabalho único entre outros trabalhos, original, que é tam
bém um trabalho cujo autor se conhece, que é portanto um trabalho
assinado, são essas as características da pesquisa individual. A recusa
do trabalho em equipe se enraizaria também num orgulho da autoria
de algo inconfundível, de algo que ninguém mais executou ou sequer
pensou executar. É aqui que se encontraria provavelmente a raiz do
35
apego ao trabalho individual de pesquisa, como forma preferida a
trabalho de equipe; preferência que leva a opô-lo ao de equipe com
contrários irreconciliáveis.
No entanto, o trato contínuo com as duas formas de trabalho, res
saltando suas convergências, suas implicações mútuas, foi mostrando,
em toda uma vida voltada para as mais diversas pesquisas, o erro qu<
havia em considerá-las antagônicas. A base de ambas as formas está
no fato de qualquer pesquisa ser composta de múltiplas tarefas que,
conforme o caso, ou conforme a escolha previamente efetuada, po
dem ser desempenhadas por um único indivíduo, ou por um grupo deles.
A partir da forma extrema, em que o indivíduo executou tudo sem
o menor auxílio de outrem, compondo o caso da pesquisa puramente
individual, existem várias outras em que o trabalho individual pode
associar-se a diversos tipos de trabalho coletivo, quer sob o comando
de um especialista que formulou todo o projeto, quer sem liderança
e compondo um grupo que age como tal desde o início, isto é, desde
a proposição do problema.
Um dos tipos mais habituais é aquele em que um pesquisador ideou
todo o projeto, do qual executará as partes que considera “ nobres” ,
porque exigem maior soma de conhecimentos e de reflexão, distribuindo
entre os auxiliares tarefas mais mecânicas, e relegando-os, mutatis mu-
tandis, ao papel de operários não especializados de uma fábrica; isto
é, reservando-lhes as tarefas que qualquer um, com um mínimo de trei
namento, pode executar. Neste tipo de pesquisa, as parcelas do traba
lho ficam partilhadas hierarquicamente entre o pesquisador, de um la
do, e, de outro, a mão-de-obra. Tal conjunto também compõe uma
equipe, na qual existe desde o início um líder formal, o pesquisador-
chefe.
No interior deste conjunto, a relação entre pesquisador e mão-de-
obra é de superior para inferior; a mão-de-obra é somente um execu-
tante, sem maiores conhecimentos, nem a respeito das tarefas a serem
realizadas nem quanto à finalidade para a qual as tarefas se encami
nham, nem tampouco com respeito à disciplina ou à ciência na qual
a pesquisa se insere. Note-se novamente uma relação como que de pa
trão para assalariado; e, como em geral esta mão-de-obra é paga, o
vínculo empregatício tom a patente a qualidade do relacionamento. Mas
pode-se levantar a dúvida: tratar-se-á realmente de uma equipe? Se o
termo equipe significa realmente executar algo em conjunto, a aplica
ção do termo é irrecusável.
Não são muito raras equipes de pesquisa deste tipo, compostas
de “ patrões” e de “ trabalhadores braçais” da ciência. Este relaciona
mento nem sempre implica remuneração monetária, que pode ser subs
tituída por um ersatz qualquer. É o caso, por exemplo, de estagiários
ou de estudantes que pensam adquirir assim certo tipo de experiência I
36
huma técnica ou numa fase da pesquisa. A remuneração estaria então
na prática efetuada; ou, na melhor das hipóteses, numa citação de que
fulano trabalhou com o professor sicrano em tal pesquisa, citação que
sempre vai para o seu currículo. Ainda outras vezes, quando se trata
de estudantes de graduação principalmente, a tarefa de que são incum
bidos lhes dará a nota necessária para se aproximarem da obtenção
do diploma.
Em todas essas equipes de pesquisa, o esquema autocrático é de
regra. O pesquisador responsável, que dela em geral teve a iniciativa,
escolhe o tema, formula os problemas, designa as técnicas, constrói
as justificativas. Quando se trata de estudantes ou de estagiários, algu
mas vezes podem eles discutir certos aspectos ou, pelo menos, recebem
explicações mais ou menos detalhadas a respeito do que será efetuado,
das razões das escolhas, das implicações das mesmas, das ligações com
quadros teóricos mais gerais. Obrigados à leitura da bibliografia perti
nente, podem (pelo menos em teoria...) discutir alguns dos pontos que
lhes pareçam duvidosos, podem sugerir pequenas modificações e me
lhorias. Porém, o produto do trabalho não lhes pertence, como não
lhes pertencera a proposta inicial.
Num outro extremo da escala das equipes, existe a pesquisa cole
tivamente proposta e coletivamente levada a termo, em que todos os
passos foram discutidos e tomados em grupo, desde o início do proje
to até a interpretação final. Pode ela ter um coordenador mais experi
mentado, ou nem mesmo isso, e suas diversas fases se originam da li
vre discussão de todos os participantes. Esta última forma de equipe,
que tem sido dada como a ideal, parece mais rara; e isso porque toda
pesquisa requer uma organização e uma disciplina que pressupõem a
existência de um condutor responsável, o qual pode ser formal ou in
formalmente designado.
Poder-se-ia argüir que somente neste caso ideal se teria realmente
um trabalho de equipe, pois somente então todos teriam efetuado as
mesmas tarefas em conjunto; não existindo um chefe designado a par
tir de algo exterior à equipe, a hierarquia interna, que por acaso se es
tabelecesse, decorrería simplesmente da vontade comum, revelando o
que deveria ser específico das equipes., o “ espírito de grupo” . Na ver
dade, em toda discussão que opõe trabalho individual a trabalho em
equipe existe, subjacente, a idéia de que, numa equipe, o indivíduo deixa
o frio isolamento para mergulhar no calor da coesão humana, no rela
cionamento fraterno com seus iguais, o que talvez não fosse mais fru
tífero para seu trabalho, mas seria muito mais satisfatório do ponto
de vista humano. Na língua francesa, a expressão esprit d ’équipe sig
nifica justamente a solidariedade que une os membros de um grupo,
ao efetuarem juntos certas atividades. Considerado específico de gru
pos não muito extensos, o esprit cTéquipe expressaria a adesão íntima
37
dos indivíduos uns aos outros, impelindo-os a agir como se constituís
sem uma só pessoa. Noutras palavras, o esprit d ’équipe seria uma for
ma de consenso social, caracterizada pela conformidade de pensamen
tos, de sentimentos, que se originaria das ações semelhantes e sincro
nizadas dos indivíduos que compõem o grupo. Esta coesão seria indis
pensável para que a equipe funcionasse de maneira eficiente, e daria
ao indivíduo os apoios de que necessita para prosseguir, sem fraque
jar, nos percalços e dificuldades que toda pesquisa encerra. Assim, o
aprofundamento da análise relativa a trabalho de equipe e trabalho in
dividual reforçou a idéia de que a condenação do trabalho individual
estaria presa à valorização da equipe como um conjunto solidário e
harmonioso, dentro do qual os esforços seriam amenizados pelo calor
do companheirismo.
Esta definição de equipe muito se aproxima das antigas concep
ções de “ comunidade” , em sua oposição com “ sociedade” , formula
das por Tõnnies (1944), no dealbar das ciências sociais. A marca dis
tintiva das comunidades seria sua pequena envergadura, permitindo um
contato íntimo entre os participantes, que os levaria a uma integração
profunda, a uma harmonia nas maneiras de ser e de pensar, a uma coe
são do tipo “ um por todos e todos por um ” .
O caráter ilusório dessa concepção de comunidade já tem sido su
ficientemente denunciado, mostrando-se que todo grupo, seja ele pri
mário ou complexo, contém sempre fermentos de discórdia que ora
se avivam, ora entram em latência, uma vez que os grupos são sempre
compostos de elementos díspares, diversamente colocados em relação
uns aos outros. A dissemelhança dos elementos, a variedade de suas
posições no interior do grupo, seriam dois primeiros fatores de oposi
ção; noutras palavras, às variações oriundas das peculiaridades de ca
da indivíduo, se somariam as variações de seus inter-relacionamentos,
decorrentes das variações de suas posições no interior do grupo. A pró
pria existência dos indivíduos, a cada um ligando conjuntos de circuns
tâncias derivadas de suas peculiaridades e experiências, porém destas
também criadores, constitui sempre um fator de oposições, de contra
dições, de conflitos.
Como qualquer outro grupo, a equipe de pesquisa é composta de
indivíduos no sentido específico desta palavra; ela significa literalmen
te o que é indivisível por sua natureza, e definido por caracteres distin
tos mais ou menos permanentes, que permitem sua identificação no
meio de outros indivíduos aparentemente semelhantes; como tal, o in
divíduo é ao mesmo tempo “ unidade” e “ totalidade” , em suas parti
cularidades inconfundíveis. Esta contradição que define o indivíduo,
ele a carrega para o interior do grupo, no qual age sempre de maneira
ambígua, pois é ao mesmo tempo semelhante aos demais, porém com
eles inconfundível. E é esta contradição fundamental que foi esqueci-
38
da, ou foi considerada de menor importância, quando, por exemplo,
Tònnies definiu as comunidades pela sua forte homogeneidade e coe
são internas.
Tais considerações se aplicam também às equipes de pesquisa. Se
ja qual for sua qualidade, quer se trate de uma equipe fortemente hie-
rarquizada, quer se trate de uma equipe tendendo para o igualitaris-
mo, encerram sempre possibilidades de harmonização e de conflito,
que se estabelecem ou se anulam num dinamismo que pode tomar as
mais diversas formas. A equipe jamais pode ser reduzida a cada indi
víduo que a compõe — nem mesmo ao seu líder ou ao seu chefe; mas
também não pode ser considerada dotada de coesão monolítica. Ela
tem uma vida que lhe é própria, uma realidade em constante “ se fa
zer” , que se altera segundo os diversos momentos do trabalho e con
forme os influxos dos indivíduos componentes.
Não é possível, pois, considerar a equipe sem referência aos indi
víduos que a formam; o que equivale a introduzir o conceito de indiví
duo como parte integrante do modo de ser da equipe — indivíduo que
é sempre parte dela, que a influencia, e sobre o qual ela também exerce
influência. O conceito de equipe e o conceito de indivíduo são indisso
lúveis, estão em reciprocidade de perspectivas, contêm inplicações mú
tuas. É através da exploração dos aspectos aparentemente contraditó
rios da associação equipe-indivíduo que se poderá aquilatar as poten
cialidades e as limitações de todo trabalho efetuado em conjunto.
É necessário, então, rever a noção de que a equipe formaria uma
pequena comunidade no sentido que Tònnies deu ao termo, e que a
caracterizaria em função das relações diretas e afetivas que se instalam
entre os membros, fomentando a coesão, criando a harmonia e rom
pendo o isolamento individual. Segundo esta maneira de ver, a reu
nião de pesquisadores numa equipe seria o antídoto contra a heteroge-
neidade e os conflitos decorrentes das estruturas sócio-econômicas, das
localizações geográficas, das preferências e rivalidades psicossociais etc.
e desenvolvería em seu interior uma união profunda.
Porém, ao contrário do que se imagina, a estrutura internamente
hierarquizada de uma equipe pode desenvolver entre os participantes
uma coesão mais vigorosa do que entre os componentes de uma equi
pe de cunho igualitário, mesmo quando se trata de uma equipe inter
namente hierarquizada de maneira rígida entre “ patrão” e “ mão-de-
obra” , que se diria não formar uma “ verdadeira” equipe... Existe, neste
caso, uma clara diferenciação entre “ ego” (a mão-de-obra) e “ alter”
(o chefe). Formada de uma camada subordinada, sobre a qual pesa
o poder dominante do chefe, ela contém o ingrediente até hoje consi
derado o mais importante para o fortalecimento de laços de união en
tre indivíduos: a consciência de que existe o “ outro” como um elemento
potencial ou efetivo de mando e de opressão.
39
De há muito estabeleceu a filosofia que o conhecimento de “ ego”
é inseparável do conhecimento de “ alter” , conceitos fundamentais e
primeiros do pensamento, indissoluvelmente ligados. “ Ego” e “ alter”
não surgem, pois, separados, cada qual com sua existência em si; es
tão sempre unidos, só podendo ser definidos reciprocamente. Esta cons
tatação tem seus prolongamentos em descobertas sociológicas: também
se conhece há tempo em sociologia que toda solidariedade interna de
um grupo se cria ou se reforça quando reconhecida a existência de “ al
ter” ; “ ego” , em sua forma plural de “ nós” , tem sua solidariedade ele
vada ao auge quando outro grupo, “ alter” , ou “ eles” , o ameaça.
As equipes de pesquisa não fogem a estes preceitos. Compostas
de poucos membros, ou muito numerosas; de estrutura hierarquizada,
ou igualitária, — encerram sempre em seu interior ou divisões, ou vir-
tualidades de divisões, que se exprimem sob a forma de “ nós” e “ eles” ,
as quais se solidificam desde que um dos termos sinta a resistência ou
a ameaça do segundo, a que deva fazer face. Ou então desde que o
conjunto todo se veja diante de um “ alter” que lhe seja externo, re
presentando competição ou perigo. Todas as pesquisas de equipe têm,
portanto, em comum o fato de internamente se constituírem de parce
las individualizadas, — os indivíduos, — entre os quais pode se insta
lar ou coesão ou conflito; e também o fato de, voltadas para o exte
rior, se distinguirem do meio circundante e poderem reagir em relação
a ele ou pelo fomento de consenso interno entre os indivíduos e conse-
qüente aumento da diferenciação para com o exterior, ou pela dilui
ção no meio externo e consequente desaparecimento como grupo.
40
nica” (Durkheim, 1893); resulta ela da própria diversidade das tare
fas, e da importância de todas para se alcançar o resultado final, de
modo que a falha de uma prejudicará o produto, e, conseqüentemen-
te, prejudicará também o grupo.
Ora, em toda pesquisa de equipe existem tarefas que ganham em
serem executadas por todos, e ao contrário outras que exigem por as
sim dizer a divisão do trabalho. Divisão do trabalho que pode consti
tuir inclusive base para ampliação de coletas, para alargamento de pon
tos de vista, para aceleração da execução. Em todo trabalho de equipe
é muito freqüente existirem parcelas e fases realizadas em comum, e
parcelas e fases individuais, como se pôde observar, por exemplo, na
pesquisa que deu lugar a todas estas reflexões. A distinção entre umas
e outras fases pode ser efetuada pelo coordenador da pesquisa; porém,
nada impede que decorra de uma discussão bastante acurada em grupo.
Na pesquisa referida, o princípio de base fora o da distinção entre
o trabalho da coordenadora e o trabalho das pesquisadoras; à primei
ra, devido à sua experiência, caberia a organização da pesquisa em ge
ral; às segundas, cuja finalidade específica era a aquisição de experiên
cia, caberia a execução da mesma. Haveria discussões em conjunto,
sempre que necessário, não se estabelecendo nenhuma periodicidade
a priori. No que dizia respeito às pesquisadoras, as tarefas seriam se
melhantes entre si, — isto é, a divisão do trabalho, no interior da equi
pe, se inscreveria praticamente apenas na separação entre organização
e execução.
Reconheceu-se em discussão em grupo que, por sua própria natu
reza, algumas tarefas só poderíam ser executadas individualmente: a)
a coleta do material por meio de entrevista gravada; b) a transcrição
das fitas; c) a consulta bibliográfica em bibliotecas e centros de estu
dos; d) a análise das entrevistas, cada pesquisadora analisando as suas;
e) a composição de relatórios parciais, relativos às tarefas que cada uma
executasse, os quais seriam reunidos depois num todo.
Outros passos da pesquisa, todavia, se impunham como eminen
temente coletivos: a) a discussão do elenco de tarefas e de sua seriação
no tempo; b) a discussão de esquemas para as entrevistas, a fim de que
todas as pesquisadoras soubessem o que perguntar aos informantes,
quando necessário, e colocassem questões semelhantes; c) o estabeleci
mento dos rumos de análise das entrevistas; d) a discussão dos esboços
de relatórios parciais, a fim de obedecerem a padrões semelhantes; e)
a discussão em seminário das leituras efetuadas individualmente, para
se chegar a uma orientação teórica homogênea.
Releva notar que, embora se admitisse a existência de parcelas de
trabalho individuais, também se tomou por princípio de base, desde
o início, que nenhuma tomada de decisão seria possível se não fosse
precedida de discussão por todo o grupo, inclusive a coordenadora.
41
Tais discussões significaram um esforço conjunto de crítica e de reso
luções durante as quais pesquisadoras e coordenadora manifestariam
livremente suas opiniões, sem a observação de nenhuma hierarquia.
Descendo agora a detalhes, havia todo um conjunto de leituras
que devia ser básico e efetuado por todas as pesquisadoras; o restante,
em muito maior quantidade, foi partilhado entre elas, que executariam
esta tarefa individualmente. Assim, cada pesquisadora teve a seu car
go um elenco específico de leituras, de que deu ciência às demais em
seminário. As leituras comuns também foram discutidas em grupo pa
ra chegar-se a uma compreensão uniforme e pára que o mesmo ques
tionamento fosse aplicado ao trabalho em curso.
A organização das tarefas teve, pois, como pontos essenciais, por
um lado a discussão em grupo de todos os passos, de todas as deci
sões, de todos os problemas que fossem surgindo, e por outro lado a
execução de tarefas individuais pelas pesquisadoras, que iam da aqui
sição de conhecimentos bibliográficos à coleta de material, à redação
de relatórios, passando pela análise dos dados. Desta forma,
combinaram-se tarefas coletivas e tarefas individuais e, no tocante a
estas, tarefas semelhantes (como a coleta de material) e tarefas dife
rentes (como a leitura de partes diversas da bibliografia).
Esta organização deu flexibilidade à equipe; não exigia horários
fixos, não ordenava que todas trabalhassem ao mesmo tempo, não es
tipulava datas regulares de encontro entre elas, ou delas com a coorde
nadora. Tudo foi sendo fixado na medida das necessidades. E os pró
prios relatórios parciais se compuseram de partes da responsabilidade
de cada pesquisadora, cada uma assinando individualmente a sua.
Poder-se-ia dizer que este exemplo não é muito concludente no
que diz respeito à divisão do trabalho, pois não houve real especializa
ção das pesquisadoras, de tal modo que cada uma realizasse uma tare
fa individualizada. A especialização seria a característica fundamental
da divisão do trabalho, manifestando-se na execução, por um indiví
duo, de parcela diversa da dos demais. Na pesquisa aqui examinada,
a especialização existirá somente na separação entre coordenação e exe
cução, por um lado, e na atribuição de leituras diferentes às pesquisa
doras, por outro. As demais tarefas, embora não executadas coletiva
mente, eram iguais e intercambiáveis entre si, exigindo atividades idên
ticas, se bem que individualmente executadas.
No entanto, mesmo a pouca divisão existente, representada pelas
tarefas diversas da coordenadora e das pesquisadoras, e também pela
leitura de uma bibliografia diferenciada, permite aquilatar a importância
de uma divisão de tarefas mais pronunciada. Quando todos, no inte
rior da equipe, realizam atividades absolutamente idênticas, a falta ou
erro de um dos membros não acarretará grande distúrbio no trabalho;
uma pequena quantidade do trabalho não será executada, mas a qua-
42
lidade do todo permanece intacta. Porém, quando se opera uma real
divisão do trabalho no interior do grupo, a falha de um prejudica o
resultado do conjunto e é ressentida por todos, sendo nociva ao
produto.
Depreende-se destas observações que a exigência de integração da
equipe e, portanto, da sua coesão interna, torna-se maior no caso de
aumento da divisão do trabalho e de especialização das tarefas, que
poderíam ser definidas pela “ solidariedade orgânica” de que fala Durk-
heim; e a esta solidariedade, demandada pela própria diferenciação in
terna daquilo que se executa, opunha ele a solidariedade mecânica, re
sultante da afetividade que une os indivíduos entre si, proveniente da
semelhança de suas experiências e de suas situações (Durkheim, 1893).
Para a coesão da equipe não seria importante, pois, que todos execu
tassem as mesmas tarefas e tivessem a mesma situação; o importante
seria que todos os componentes da mesma conhecessem a relevância
da tarefa que executavam para a realização do todo, de tal modo que
se sentissem presos uns aos outros pela divisão das próprias atividades
que executam e pela consciência de que também o produto final estava
sob sua responsabilidade.
Os comentários efetuados chamam, portanto, a atenção para o
vulto e o significado do trabalho individual no interior de uma equipe.
Todo trabalho de equipe é uma soma ou uma organização de traba
lhos individuais; as duas formas não são mutuamente exclusivas, co
mo habitualmente se pensa. O trabalho de equipe aparece como prefe
rencial em relação ao individual, não porque seja de outra qualidade,
ou de qualidade superior, e sim porque constitui uma categoria mais
ampla, dentro da qual existe o trabalho individual.
Assim, o trabalho de equipe não é apenas uma forma preferencial
de trabalho científico (o que é amplamente admitido em todas as disci
plinas, porém pouco realizado em ciências sociais); constitui também
a categoria mais ampla das formas de trabalho científico, de que o tra
balho individual constitui uma das espécies. Pois, embora pareça pa
radoxal, não se pode na verdade compreender a existência de um tra
balho científico puramente individual. Este não tem realidade em si.
Todo pesquisador, todo cientista é sempre parcela de um conjunto mui
to mais amplo de especialistas, de todo um grupo engajado nas tarefas
de desenvolver os conhecimentos de sua área. No interior desta vasta
equipe, o trabalho aparentemente individual nada mais é que uma par
cela executada por um pesquisador que ilusoriamente se julga único
e solitário, e que se envaidece de chegar sozinho a resultados que só
ele alcançou...
No entanto, esta ilusão é muito mais encontrada nas ciências so
ciais do que nas ciências da matéria, ou nas ciências da vida; nestas,
o pesquisador tem muito mais consciência de que, sem seus pares,
43
não podería realmente trabalhar, mesmo que aparentemente seja um
pesquisador individual. Quais as razões para a inveterada persistência,
nas ciências sociais, da consideração ilusória do valor do trabalho in
dividual?
Uma explicação, que deveria ser investigada para se aquilatar sua
importância, estaria ligada aos custos de uma pesquisa de equipe, em
relação às pesquisas individuais. Nas ciências sociais, que até há pou
co tempo não foram ciências de laboratório, nem de aparatos mecâni
cos, um pesquisador isolado pode escolher um tema, trabalhá-lo sozi
nho, chegando de maneira mais ou menos rápida ao término de sua
busca; este tipo de pesquisa não exige grandes verbas, nem grandes dis-
pêndios monetários. O mesmo não ocorre quando se trata de pesquisa
de equipe. Quando o especialista em ciências sociais se encontra diante
da urgência de efetuar um trabalho de pesquisa para efeitos de carrei
ra, encontra então no trabalho isolado possibilidades de realizá-lo com
menores ônus (que geralmente pesam sobre seu próprio bolso) e com
maior rapidez. Esta circunstância pode ter auxiliado a transformação
deste tipo de trabalho em norma geral, nas disciplinas citadas.
Em nossas universidades, as ciências sociais, ao contrário das ciên
cias da matéria e das ciências da vida, nunca foram bem aquinhoadas
em verbas para pesquisa; os minguados auxílios recebidos foram sem
pre parcamente suficientes para custear apenas pesquisas de pequena
envergadura, como são às individuais; a obtenção de recursos mais im
portantes sempre exige rempo e esforços que nem sempre é possível
ao especialista despender. E torna-se assim significativo que seja tão
disseminada entre seus pesquisadores a noção da importância primor
dial da pesquisa individual, e mais ainda, a noção de que a pesquisa
individual — e não a pesquisa de equipe — seria plenamente adequada
a seu tipo específico de ciência...
O obstáculo real do custo da pesquisa de equipe não é jamais alvi-
trado, como se os pesquisadores não suspeitassem de sua existência.
Omissão também muito significativa: não existindo esta conscientiza
ção por parte dos cientistas sociais, não exigem maiores verbas, o que
redunda em economia para as universidades e as instituições financia
doras, que não são assim assediadas por pedidos importantes de auxí
lio financeiro, de sua parte. As demais ciências não encontram, então,
a competição dos cientistas sociais no que diz respeito a altos pedidos
de verba.
Esta situação tem como corolário falarem os especialistas das ou
tras ciências e os institutos financiadores, com certo desprezo, da mo
déstia dos pedidos das ciências sociais, da incapacidade de seus pes
quisadores em apresentarem orçamentos válidos de pesquisa... Por ou
tro lado, não sendo habitual a pesquisa de equipe, mais longa e mais
cara, porém também mais ampla e levando a maiores aprofundamen
44
tos dos problemas, esta situação tem como conseqüência uma lentidão
muito maior na obtenção de novos conhecimentos, no desenrolar do
progresso científico.
A admissão de que a pesquisa individual seria uma forma prefe
rencial de trabalho, específica das ciências sociais, constituiría, assim,
uma forma velada e inconsciente de afastar a concorrência destes pes
quisadores no mercado das verbas — destes pesquisadores aos quais
se recusou durante tanto tempo o estatuto de cientistas...
OBRAS CITADAS
45
III — Proposição de um projeto de pesquisa
46
damente construídas são o instrumento fundamental para se circuns
crever, pouco a pouco, o âmbito dos fenômenos inquiridos e a orien
tação das informações.
A análise de um caso concreto pode ser esclarecedor de como se
propõe um projeto; é o que se apresentará a seguir. Um concurso espe
cífico de circunstâncias levou determinado grupo de estudantes a
interessar-se pelo conhecimento de aspectos da realidade paulistana do
passado: 1) haviam elas passado pela experiência de uma pesquisa indi
vidual na disciplina de sociologia, que lhes despertara a atenção para
o contato com a realidade viva; 2) esta lhes pareceu algo de fugitivo,
que seria necessário registrar antes que de todo se dispersasse; 3) viviam
as estudantes também um momento em que a sociedade paulistana co
meçava a amedrontar-se com a destruição maciça de vestígios que reve
lam a fisionomia passada da cidade, e o que teria sido o comportamen
to de seus habitantes; 4) esta preocupação se inscrevia também em al
gumas obras recém-publicadas, que polarizavam a atenção do público:
Memória e sociedade: lembranças de velhos, Ecléa Bosi, 1979; Anato
mia de um bairro: o Bexiga, Hain Gunspun, 1979; Anarquistas, graças
a Deus!, Zélia Gattai, 1980; 5) estas obras mostravam que, entre os vá
rios aspectos a resguardar, destacava-se a massa de expressivas histó
rias de um passado não muito longínquo, que estava se perdendo todos
os dias pela morte daqueles que as viveram, apagando-se os detalhes
de suas condições de vida na cidade; 6) nas próprias famílias das estu
dantes, ou em suas relações de amizade, havia pessoas de idade cujas
recordações pareciam, assim, destinadas ao total desaparecimento.
47
Io nas primeiras décadas deste século. Excetuando-se os operários, pa
ra os quais a documentação é abundante, uma vez que possuíam até
jornais, os demais trabalhadores estavam quase ausentes da documen
tação encontrada. Nos jornais da época, por exemplo, que constituem
excelente fonte de conhecimento sobre a vida da cidade nos primeiros
decênios, registrava-se fartamente a forma de existência das camadas
médias e altas. A imprensa operária, muito utilizada atualmente como
fonte de pesquisa, documentava quase exclusivamente as condições de
vida dos assalariados das indústrias, quase nada registrando sobre aque
les que tinham incertos meios de sobrevivência. Estes compareciam qua
se unicamente nas notícias policiais dos jornais de então... Algum es
clarecimento a respeito era trazido pelas memórias atrás citadas, po
rém pareciam ser os únicos documentos de que se podia lançar mão.
Diante destas circunstâncias, avultava o interesse de uma pesqui
sa que apanhasse em suas malhas os trabalhadores de poucos recursos
da cidade de São Paulo nas primeiras décadas do século; ela viria preen
cher uma falha de documentação, promovendo um conhecimento mais
aprofundado a respeito de faixa da população praticamente ignorada.
Desta forma, antes ainda da formulação do projeto de pesquisa, toda
uma antepesquisa foi efetuada, constituída pela indagação crítica da
documentação existente, para se conhecer o lugar que os resultados
eventuais de uma pesquisa viriam ocupar em seu conjunto.
Como definir a coletividade a ser inquirida? Em primeiro lugar,
havia uma delimitação econômica, representada pela qualificação de
“ trabalhadores de poucos recursos” . Em segundo lugar, não seriam
incluídos os operários; o termo “ operário” significa ligação com uma
fábrica ou usina, à qual o indivíduo está preso por um contrato de tra
balho, que lhe assegura um salário constante. O conjunto a ser entre
vistado seria de trabalhadores assalariados, isto é, definidos por uma
relação patrão-trabalhador, porém que não fosse do tipo existente na
fábrica que emprega uma série de trabalhadores de vários níveis; in
cluía os trabalhadores vivendo de expedientes ou de outros meios de
sobrevivência, grupo cuja amplitude e variedade na época poderíam
talvez ser conhecidos pela pesquisa.
A expressão “ população de baixa renda” , muito utilizada atual
mente pelo I.B.G.E., por exemplo, em seus recenseamentos, não era
satisfatória para designar aqueles trabalhadores. “ Renda” significa ren
dimento periodicamente renovado, que se recebe com segurança, e o
termo não era adequado para nomear os ganhos dos informantes, que
provavelmente tinham falta de segurança para auferir ganhos em seu
dia-a-dia. Segundo o conhecimento prévio das pesquisadoras, os in
formantes pelos quais se interessavam tinham justamente dificuldades
em obter ganhos constantes. Uma das questões seria sobre como asse
gurariam sua sobrevivência.
48
As discussões críticas efetuadas então pela equipe levaram à defi
nição do conceito mais amplo do que “ baixa renda” : “ trabalhadores
de baixos recursos” . Nela se poderia abranger tanto os operários rece
bendo com segurança mensalmente quanto os trabalhadores que viviam
de expedientes; tanto os que nunca haviam sido operários quanto os
que tinham temporariamente se engajado numa fábrica.
Verificado o interesse da pesquisa e definida a coletividade a ser
pesquisada, depois de já ter sido exposto o problema, que era salva
guardar dados a respeito da vida na cidade de São Paulo, necessitava
ainda o projeto de outras delimitações. Sabia-se já que seriam pesqui
sadas as fontes vivas constituídas pela memória de homens e mulheres
de baixos recursos, que ainda pudessem dar um testemunho das condi
ções antigas da cidade, através da memória. O termo “ ainda” ganha
agora nova importância, em seu sentido de “ até agora” , “ até o pre
sente” , porque manifesta a dúvida de que parte dos informantes tal
vez não esteja mais capacitada para relatar sua experiência de vida.
Esta dúvida se relaciona com os limites que as dificuldades de existên
cia impõem à esperança de vida dos trabalhadores de baixos recursos.
Efetuou-se uma sondagem nesta camada e observou-se que difi
cilmente se encontraria alguém que estivesse em estado de prestar seu
depoimento para data anterior a 1920; era esta a data limite para um
recuo no tempo. Não que não houvesse gente mais velha em condições
de lembrar; porém seriam em número muito pequeno, e para não per
der esforços e tempo na busca era conveniente reter aquele limite, para
o qual havia certeza de se encontrar informantes suficientes, que te-
riam mais de 70 anos portanto. Se outros mais velhos fossem encon
trados, seriam naturalmente entrevistados, mas a idade de base seria
aquela.
Para término do período foi escolhido o ano de 1937, depois de
discussão entre as pesquisadoras. Foi neste ano instituído o salário-mí-
nimo, por lei, embora só começasse a funcionar mais tarde; iniciava-
se assim nova fase para os trabalhadores de poucos recursos, nas cida
des brasileiras, que culminou com a decretação das Leis Trabalhistas.
A mera discussão destas leis, concretizando a necessidade de apoio a
ser dado às camadas inferiores urbanas, por intermédio de uma base
salarial obrigatória e de uma legislação específica, constituía a abertu
ra de uma nova fase em suas vidas, com uma transformação de vulto
nas relações entre camadas superiores e inferiores, que podia modifi
car suas concepções e visão do mundo. Urgia conhecer justamente se
estavam conscientes de seu significado, se manifestavam a existência
de diferenças antes destas modificações.
Os limites do período a ser investigado, 1920-1937, partiram, pois,
de constatações empíricas diversas, porém diretamente ligadas às fon
tes vivas que iam ser inquiridas. A idade dos informantes, para o pri
49
meiro limite; a modificação possível advinda com a nova legislação e
até mesmo resultante de sua discussão, para o segundo limite, referiam-
se a circunstâncias específicas da coletividade pesquisada, não sendo
portanto ditados por nenhuma cogitação arbitrária das pesquisadoras.
Estabelecidos estes limites, efetuaram as pesquisadoras algumas
leituras sobre o período em pauta, verificando que se tratava de uma
fase extremamente rica em acontecimentos locais e nacionais; era uma
fase de efervescência política, de renovação cultural e de valores, nu
ma cidade que começava a ser sacudida pelo arranque da urbanização
e da industrialização, e que fisicamente também se modificava.
Com efeito, inicia-se então toda uma transformação do sistema
de habitação, com o aparecimento dos primeiros arranha-céus; com
a extensão de seu antigo centro comercial; com a expansão de sua peri
feria e aumento do número de fábricas. A antiga fisionomia da cidade
ia-se transmudando pouco a pouco para alcançar o aspecto que hoje
apresenta. As antigas camadas sócio-econômicas se alteravam pela in
tegração e pela ascensão sócio-econômica dos imigrantes, que se alça
vam até as camadas superiores, modificando-as e modificando-se. A
antiga política partidária também sofria abalos, expressos nas revolu
ções de 1924, 1930 e 1932, e igualmente pelas campanhas pelo voto se
creto, pela participação feminina nas urnas, pelo reconhecimento da
importância das organizações sindicais. O abalo da crise de 1929-1930
alterou, outrossim, o equilíbrio econômico do estado de São Paulo,
com grandes repercussões em sua capital, encaminhando esta para uma
industrialização cada vez mais importante. Desabrocharam também no
período novas orientações culturais, concretizadas nas grandes refor
mas do ensino público e na Semana de Arte Moderna. A riqueza do
período escolhido, do ponto de vista da variedade de aspectos em mo
dificação, era patente.
A escolha dos limites da pesquisa equivalia a reconhecer que não
era importante somente conhecer as condições de vida dos informan
tes em potencial; era importante conhecê-la num momento em que es
tas condições de vida principiavam a sofrer abalos que as modifica
riam certamente. E a primeira indagação que se formulava era: tive
ram os informantes alguma consciência dos momentos históricos que
estavam vivendo? De que forma se manifestava hoje tal consciência,
através de suas recordações? De que forma os trabalhadores de baixos
recursos haviam captado as noções dos acontecimentos dessa época de
que tiveram experiência?
Uma questão importante a ser resolvida ainda, antes de se dar por
encerrada a proposição do projeto de pesquisa, era decidir da validade
ou não de se apelar para informantes com os quais as pesquisadoras
já mantinham relações de parentesco ou de amizade, uma vez que tais
relações se impregnavam de afetividade. A dúvida consistia em se
50
aquilatar até que ponto a influência de um relacionamento pessoal po
dería desvirtuar a coleta de informações. A escolha de tais informan
tes decorria das facilidades que seu contato oferecia para a realização
da pesquisa, uma vez que se pouparia o tempo gasto em procurar gen
te adequada e em estabelecer com esta gente laços de confiança recí
proca. Tal vantagem era inegável; porém, era possível também que os
parentes nem mesmo fossem informantes satisfatórios, e que as histó
rias que narravam às jovens parecessem a estas interessantes porque
se tratava de pessoas a elas ligadas pela afeição. Na verdade, esta últi
ma incerteza só poderia ser convenientemente resolvida depois de efe
tuada a pesquisa e avaliados os relatos colhidos.
O outro problema diz respeito à famosa questão da objetividade
nas ciências sociais, e à influência talvez perniciosa da subjetividade
dos pesquisadores sobre a coleta efetuada. O termo “ subjetivo” ex
prime o sujeito pensante em sua individualidade, naquilo que lhe é pró
prio e que, compondo uma das matrizes de sua experiência de vida,
forçosamente interfere em suas interpretações, em sua imaginação, em
seus julgamentos; todo o conhecimento que adquire ao longo da exis
tência estaria, assim, fortemente marcado pela contingência e pelo ar
bitrário de suas condições peculiares. Todo conhecimento captado atra
vés da subjetividade, isto é, daquilo que compõe o íntimo de um indi
víduo e a que ele está mais afetivamente ligado, traria a marca do úni
co e do incomunicável. Não poderia ser objeto de ciência, pois esta,
por definição, lida com o que é recorrente e o que é comunicável. O
grande problema para os pesquisadores das ciências sociais consisti
ría, pois, em escapar de tal maneira de adquirir conhecimentos, que
por outro lado faz parte inerente de seu ser; e isso porque ela estava
inevitavelmente viciada pela vivência específica de cada pesquisador.
Por outro lado, cumpria reconhecer também que os dados da realida
de social eram exteriores a todos os indivíduos, sobre eles exercendo
coerção, levando-os à execução de determinados comportamentos. Não
sendo simples produtos do pensamento, os dados da realidade social
pertenceríam ao mundo exterior, da mesma forma que os fenômenos
físicos ou biológicos. A realidade social se apresentava então como al
go supra-individual, amplamente comunicável, uma vez que se impu
nha a todos os indivíduos, e era passível portanto de um conhecimento
direto. Era indispensável que o pesquisador, o cientista social, cons
truísse técnicas que lhe permitissem obter informações objetivas a res
peito do real, excluindo os aspectos que refletissem sua própria expe
riência de vida, afastando portanto as formas de conhecer subjetivas.
Alcançar-se-ia assim a objetivação de comportamentos, de fatos so
ciais, de valores, que se transformariam em “ dados” . Foi esta uma
das primeiras perspectivas definidas em ciências sociais para a análise
da realidade, em que o problema das relações objetividade-subjetivida-
51
de foi resolvido pela tentativa de anulação pura e simples do segundo
termo.
No entanto, na década de 50 deste século, tal solução foi-se apre
sentando cada vez mais como insatisfatória, à medida que progrediam
as pesquisas sobre a realidade empírica e se refletia criticamente sobre
a posição do pesquisador na aquisição de conhecimentos. Também in
fluía na reformulação destes problemas a aceitação cada vez mais con
vencida de que não havia uma divisão insuperável entre espírito, sede
do conhecimento e da razão, e corpo, sede das sensações e da afetivi-
dade, nem a necessidade de se anular corpo e afetividade para se che
gar a um saber autêntico. Não se tratava mais nem de definir como
alcançaria o homem um conhecimento real, através de técnicas que ga
rantissem a não-interferência da afetividade, nem de resguardar a ob
jetividade do real, assim como dos aspectos a serem estudados. A aten
ção se voltava agora para o relacionamento dos fenômenos entre si —
objetividade/subjetividade, pesquisador/objeto da pesquisa, etc.
Reconhecia-se então que uma relação entre dois fenômenos, ou
uma relação entre o sujeito conhecedor e o objeto do conhecimento,
seria subjetiva todas as vezes que não pudesse ser formulada sob a for
ma de algo universal e necessário, isto é, válido para todos os indiví
duos identicamente constituídos quanto à sensibilidade e ao pensamen
to; e admitia-se que sensibilidade e pensamento, formando-se sempre
numa sociedade dada, em certo momento histórico, variariam forço-
samente no tempo e no espaço. O “ universal” e o “ necessário” não
se definiríam mais como absolutos, mas se encontrariam relativizados,
uma vez que se definiríam como tais numa sociedade dada, num certo
momento histórico. A objetividade se expressaria, portanto, no modo
de proceder para com o objeto ou fenômeno historicamente dado, e
não em qualquer qualidade intrínseca dos mesmos, ou numa capaci
dade específica do cientista adquirida por meio de qualquer instrumen
to. Noutras palavras, a objetividade seria encarada então como um pro
cesso a que é submetido um objeto, um fenômeno, uma sucessão de
acontecimentos, quer se desenrolem na realidade exterior aos indiví
duos, quer sejam por estes interiorizados; descrevendo-os, verificando-
os experimentalmente quando possível, reintegrando-os numa nova sín
tese, trazendo-os do particular ao geral, estará o pesquisador operan
do para obter novos conhecimentos, dando um novo sentido ao que
se conhecia até então somente pelo senso comum.
O processo de objetivação poderia ser desencadeado por meio ou
de operações lógicas ou de um instrumental mecânico (caso em que
também estariam sempre implicadas, naturalmente, operações lógicas),
por meio das quais as observações empíricas iriam se afastando pro
gressivamente de uma maneira de ver estreitamente ligada ao pesqui
sador e às suas circunstâncias; em seu refinamento progressivo, iriam
52
também adquirindo maior grau de abstração, tendendo a não se expri
mir mais em termos de tempo e de espaço. A objetivação teria, pois,
vários graus, expressos em vários níveis de abstração. Porém, o coro
lário desta maneira de agir estava em que nunca se alcançaria uma abs
tração pura, todo o conhecimento seria sempre relativo, dependendo
dos recursos operacionais de que os pesquisadores pudessem lançar mão
em sua época, sem esquecer que tais recursos tanto existiríam como
mecanismos de pesquisa, como sob a forma de definições, de concei
tos, de noções. Os limites da objetivação, em cada momento histórico,
estariam, pois, dependentes tanto dos instrumentos de medida que se
possuísse, quanto da precariedade das definições e dos conceitos, num
momento dado, numa sociedade dada, e também da posição admitida
para o pesquisador diante do objeto de pesquisa. Assim recolocadas
as relações entre objetividade e subjetividade, a recusa de informantes
porque ligados direta e afetivamente às pesquisadoras adquiria o as
pecto de um falso problema. Não era de seu relacionamento com as
pesquisadoras que derivaria a validade ou não das informações que vei
culariam; esta seria aquilatada por dois tipos de aferimentos, pelo me
nos: a comparação dos depoimentos uns com os outros, e a compara
ção com os documentos e obras já existentes sobre a vida na cidade
de São Paulo na época. O próprio grau de fantasia que apresentassem,
ou que deixassem de apresentar, se transformaria numa característica
a ser recolhida e analisada, permitindo um conhecimento mais amplo
das pessoas de poucos recursos na cidade de São Paulo, e de suas
recordações.
Cumpria, pois, recolher os depoimentos e agir com eles compara
tivamente, isto é, buscando suas relações de convergência e de diver
gência a respeito da maneira pela qual eram conservadas as lembran
ças. A formulação deste problema trazia subjacente a admissão de que
a camada dos indivíduos de poucos recursos não seria monolítica, e
sim diferenciada, tanto em seus comportamentos passados quanto em
seu modo de recordar. Haveria diferenças, provavelmente, segundo o
sexo, segundo a instrução, segundo a etnia, segundo a nacionalidade.
Na pesquisa proposta, os informantes seriam semelhantes em nível dè
recursos e bastante próximos em idade, estas duas qualidades não cons
tituiríam portanto fatores de diferenciação interna, uma vez que se de
cidira ouvir gente de poucos recursos e de mais de 70 anos; não seriam
fatores de delimitação interna, e sim de delimitação externa da coleti
vidade escolhida, separando-a de conjuntos de outra idade e de outras
condições econômicas.
Ora, em geral as pesquisas efetuadas com as camadas mais bai
xas, urbanas ou rurais, raramente se interessam pelas suas diferencia
ções internas; parecem sempre partir do pressuposto de que estas ca
madas seriam maciças, e que todos os indivíduos teriam os mesmos
53
modos de agir e de pensar. Parecem admitir os pesquisadores que no
interior destas camadas as divergências ficariam superadas e mesmo
anuladas pelo determinante econômico, de tal modo que os comporta
mentos seriam sempre muito semelhantes. Noutras palavras, os “ bai
xos recursos” são tomados implicitamente, na maioria das vezes, co
mo um poderoso fator de homogeneização dos indivíduos, impondo-
lhes valores, caracteres e comportamentos uniformes. Verificar se isto
ocorre realmente, identificar os limites que recortam internamente uma
tal coletividade, eis também um importante problema a ser pesquisado.
Assim sendo, procurar-se-ia verificar, por um lado, se o homem
e a mulher, o nacional e o estrangeiro, o branco e o negro, o analfabe
to e o alfabetizado, diferiríam no anedotário que iriam narrando so
bre seu cotidiano, sobre sua maneira de se relacionar com a família,
sua maneira de ganhar e empregar o dinheiro, sobre a forma pela qual
ocupariam as horas de lazer, etc.; e, por outro lado, ver-se-ia se diferi
ríam também entre si, e como, no modo de recordar e na qualidade
das recordações. Estas diferenciações, reconhecidas em geral como im
portantes, para as camadas superiores, funcionariam realmente na ci
dade de São Paulo, entre 1920 e 1937, entre os trabalhadores de baixos
recursos, e como? E, se não funcionassem, quais outras determinações
existiríam, separando os indivíduos no interior da coletividade esco
lhida? Não se afastava também a idéia de que as próprias delimitações
de nível econômico e de idade, que se acreditava traçarem os limites
de contorno da coletividade analisada, pudessem agir no seu interior,
dividindo subclasses de idade e subcamadas econômicas. Ou então que
outras diferenciações ainda, até agora negligenciadas como de some-
nos importância, surgissem como influentes.
Resolvidas estas primeiras críticas, estava assim delineado o pro
jeto de pesquisa em suas linhas gerais, e definidas as perguntas a serem
colocadas à realidade. Repassando as tarefas até o momento efetua
das, verificou-se que a reflexão crítica estava avultando como o instru
mento mais importante que viera sendo utilizado nesta primeira fase
do trabalho. Tomou-se então por norma que todos os passos da pes
quisa também seriam submetidos à mesma reflexão crítica, a qual se
ria o instrumento lógico fundamental a ser utilizado; empregado des
de o início, estava-se evidenciando como base e motor para tudo quanto
se construía. 1
54
OBRAS CITADAS
Bosi, Ecléa, Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo, T.A. Queiroz, 1979.
Gattai, Zélia, Anarquistas, graças a Deus! Rio de Janeiro, Record, 3? ed., 1980.
Gunspun, Hain, Anatomia de um bairro: o Bexiga. São Paulo, Ibrasa, 1979.
55
IV - Das técnicas
56
vista, o pesquisador rapidamente se dirigia a um local em que pudesse
verter para o papel tudo quanto ouvira. Deste processo resultavam cer
tamente perdas e lacunas, porém ressalvava-se a espontaneidade e o
à-vontade do informante. Uma segunda solução foi a entrevista ser exe
cutada por dois pesquisadores a um tempo; enquanto um deles con
versava com o entrevistado, o outro anotava o que ià sendo narrado.
Com a atenção atraída para o pesquisador que dialogava com ele, o
entrevistado esquecia-se do segundo, o qual com calma podia desem
penhar a sua tarefa. Desta forma, resultavam depoimentos mais fiel
mente registrados e também mais despreocupados e espontâneos.
O aperfeiçoamento dos gravadores e seu barateamento, assim co
mo o barateamento das fitas, trouxe praticamente o abandono do re
gistro escrito imediato. A demonstração da riqueza de detalhes e da
conservação dos dados que permitia foi largamente comprovada na dé
cada de 50, quando Oscar Lewis publicou o livro que o celebrizou, Os
filhos de Sanchez, em que apresentava as histórias de vida dos mem
bros desta família pobre nas malocas da Cidade do México (Lewis,
1970). No entanto, o gravador também é fonte de inibição para deter
minados informantes que, ao contrário, podem aceitar o registro es
crito; este, portanto, não é hoje somente relegado aos “ cadernos de
campo” , porém continua existindo para entrevistas que não seria pos
sível obter de outra forma.
A captação de informações, depoimentos, histórias de vida por
meio do gravador representa, sem dúvida, uma ampliação do poder
de registro dos pesquisadores. Possuir, porém, a fita gravada não cons
titui solução definitiva, nem para a guarda indefinida do material, nem
para a realização de pesquisas. A inibição do informante não fica anu
lada; muitos deles “ temem” o gravador, titubeiam, balbuciam, e não
raro somente a partir de uma segunda tentativa o relato flui com mais
segurança. E neste caso não há possibilidade de distrair a atenção do
entrevistado, por meio de uma dupla de pesquisadores... A máquina
inibidora está sempre ali presente.
Além disso, a fita do gravador é produto perecível, que necessita
ser armazenado em determinadas condições específicas para salvaguar
dar sua durabilidade. É verdade que o papel também é produto perecí
vel; mas suas condições de reprodução e de armazenamento são muito
mais fáceis e menos onerosas do que as da fita gravada, embora ocupe
muito mais espaço do que esta.
Por outro lado, o manuseio do material escrito para utilização de
pesquisa é mais fácil do que o do material gravado que, se submetido
repetidas vezes à escuta, rapidamente se deteriora. Contraditoriamen-
te, a conservação da fita gravada exige que seja pouco ouvida, enquanto
sua utilização como material de pesquisa exige que seja repetidamente
ouvida... Estas circunstâncias impõem a necessidade da passagem da
57
fita gravada à página escrita, tanto como o melhor meio de guardar
por longo tempo o material, quanto em relação às possibilidades de
análise em pesquisa. Por isso, à fase da gravação segue-se sempre a
fase da transcrição.
Apesar destas considerações, a técnica de gravador foi a escolhi
da, como já se disse, para a realização da pesquisa sobre a memória
dos trabalhadores de poucos recursos em São Paulo.
Esta coleta pode seguir três rumos distintos: 1) entrevista rigoro
samente orientada por perguntas do pesquisador, numa utilização do
diálogo, em que falam alternadamente o pesquisador e o informante,
este não tendo liberdade de conduzir a conversa, nem tendo iniciativa
de fala; 2) entrevista com roteiro, ou semi-orientada, em que o pesqui
sador de tempos em tempos efetua uma intervenção para trazer o in
formante aos assuntos que pretende investigar; o informante fala mais
do que o pesquisador, dispõe de certa dose de iniciativa, mas na verda
de quem orienta todo o diálogo é o pesquisador; 3) finalmente, entre
vista realmente livre, em que o pesquisador, depois de um breve diálo
go inicial, limita ao máximo, realmente, suas intervenções, de tal mo
do que a fita registre um verdadeiro monólogo do informante, ou ain
da que a entrevista se aproxime bastante do que seria a fala do indiví
duo consigo mesmo, o solilóquio.
Estas três formas de entrevistas, tendo características diversas,
não são adequadas às mesmas finalidades. O diálogo entre pesquisa
dor e informante tem por objetivo a coleta de informações precisas
sobre determinado problema, por meio de perguntas e respostas efe
tuadas de maneira direta, tanto quanto possível; o pesquisador define
sempre de antemão, em detalhe, o que está procurando, e é ele quem
conduz o jogo, donde sua posição claramente de dominação neste
relacionamento. Da precisão do conhecimento anterior que possui so
bre o que deseja saber, dependem a acuidade e a objetividade das
perguntas. O emprego desta técnica pressupõe, portanto, que exista
já um conhecimento acumulado a respeito daquilo que se pesquisa,
sendo necessário agora determinar com rigor certos aspectos ou cer
tos detalhes. É uma técnica essencialmente informativa a respeito de
dados específicos.
Na entrevista com roteiro, o conhecimento anterior sobre os pro
blemas a serem resolvidos pode ser menor, ou então o pesquisador
deseja ao mesmo tempo ter certo conhecimento de como o informan
te conduz seu discurso. Deixa-lhe por isso certo grau de liberdade,
trazendo-o novamente aos problemas todas as vezes que percebe uma
divagação para rumos totalmente diversos; trata-se, pois, de dosar
as intervenções. Por outro lado, também neste caso o pesquisador
segue um caminho pré-determinado, e suas intervenções são no senti
do de impor este caminho ao informante. Atualmente, este tipo de
58
entrevista tem sido preferido ao diálogo, por se reconhecer a vanta
gem de, ao mesmo tempo, colher os dados desejados com, ao que se
acredita, maior espontaneidade por parte do informante. Aqui tam
bém a posição do pesquisador é de dominação, porém uma domina
ção camuflada, que tende a dar ao informante a impressão de que ele
detém pelo menos alguma liberdade na condução da fala.
Na entrevista em que se registra praticamente o solilóquio do in
formante, deixa-se a este, depois de colocado o problema em sua gene
ralidade, o direito de tomar os rumos que preferir, de ir e vir no relato.
Não se quer que ele tenha apenas a impressão de que conduz livremen
te sua fala, como no caso anterior; o que se pretende na verdade é que
narre livremente, pois tanto é importante o que relata quanto o ritmo
de seus pensamentos e de suas recordações. Esta é a técnica apropria
da para a coleta de narrativas longas, com encadeamento de ações, de
acontecimentos, de circunstâncias, no tempo; também se pretende co
nhecer de maneira profunda o modo de pensar do informante e, atra
vés dele, sua visão do mundo.
Esta última forma de entrevista tem sido considerada a mais apro
priada para a coleta tanto de “ histórias de vida” quanto de “ depoi
mentos pessoais” . Para ambos, também, a entrevista com roteiro é
apropriada; porém o monólogo parece muito mais eficiente e satisfa
tório, oferecendo resultados mais ricos, pois se capta melhor a visão
do mundo do informante. “ Histórias de vida” e “ depoimentos pes
soais” constituem o conjunto de material que tem sido designado ulti
mamente, em ciências sociais, como “ documentação oral” , ou “ do
cumentação viva” .
Não se trata de procedimentos novos; antecedem de muito a exis
tência do gravador. Mesmo no Brasil já davam lugar em 1953, a um
conjunto de reflexões de vários pesquisadores (Bastide, 1953; Morei
ra, 1953; Pereira de Queiroz, 1953), e vinham sendo utilizados havia
tempo no exterior, principalmente pela antropologia cultural. Tiveram
um desenvolvimento rápido a partir do momento em que os gravado
res puderam ser utilizados e largamente difundidos, facilitando gran
demente o trabalho, e dando lugar à organização, no país, dos museus
da Imagem e do Som.
Sem dúvida a obra de Oscar Lewis já citada, que reunia um con
junto de histórias de vida colhidas numa mesma família mexicana, mar
cou o início de nova era, com o emprego então do gravador (Lewis,
1970). Definiu-se nesse momento mais claramente o que seria uma “ his
tória de vida” , isto é, a longa reconstituição e o relato do passado efe
tuado pelo próprio indivíduo, desde o ponto mais longínquo de que
se recorda, até os dias atuais. Relato autobiográfico, mas do qual a
escrita (que define a autobiografia) está ausente, substituída pela pala
vra ditada à máquina, ou pela palavra ditada a alguém.
59
A “ história de vida” será, portanto, tanto mais longa quanto mais
idoso for o informante e, desta maneira, exige grande seqüência de ses
sões de gravação. Mesmo no caso de informantes jovens, é trabalho
que requer tempo para a narração integral ser registrada, uma vez que
informante e pesquisador não devem ultrapassar certo período de du
ração de conversa, devido ao cansaço; duas horas parece ser o máxi
mo, ou por volta disso, sendo que também as entrevistas devem ser
espaçadas na semana para se manter o ritmo de interesse por parte do
informante. A coleta de histórias de vida, é, portanto, longa, sendo
necessário maior período para esta fase da pesquisa do que para ou
tras, nos projetos em que é empregada, podendo levar inclusive um
ano ou mais. Por isso, os autores que lidaram com histórias de vida
se concentraram muitas vezes numa apenas, ou numa quantidade mui
to diminuta, reproduzindo-as em seguida integralmente e fazendo con
vergir sua análise exclusivamente sobre elas. A passagem delas para
a datilografia é também longa e trabalhosa, dado o volume de infor
mações, como longa e trabalhosa é a análise posterior. É pesquisa que
absorve a atenção do cientista durante anos.
Os “ depoimentos pessoais” se concentram ou sobre um lapso de
tempo mais reduzido (na pesquisa que serviu de base a estas reflexões,
o período se estendia de 1920 a 1937), ou sobre uma série de aconteci
mentos marcantes que permita aprofundar informações e aumentar os
detalhes a respeito de algo que foi bastante delimitado (pedir, por exem
plo, o relato de um político antigo sobre os eventos de 1930). Não abran
gendo a totalidade da existência do informante, os depoimentos pes
soais podem ser mais numerosos, multiplicando-se a quantidade de in
formações. Sendo numerosos, e desde que colhidos sob a forma de
entrevistas-monólogos, também permitem, além de um conhecimento
das mentalidades dos informantes, uma comparação entre eles segun
do sexo, idade, instrução, etc., a fim de se destacarem convergências
e divergências. Objetivos que dificilmente podem ser alcançados nas
histórias de vida, devido à sua pequena quantidade.
Numerosos, os depoimentos pessoais permitem testar a veracida
de dos fatos relembrados, o que constitui importante tarefa do histo
riador. Mas, além deste aspecto, e talvez mais importante ainda, cum
pre verificar se informantes diversos têm os mesmos comportamentos,
as mesmas maneiras de ser e de pensar e, caso contrário, em que se
distinguem. Noutras palavras, trata-se de tentar descobrir por onde pas
sam linhas coletivas de diferenciação — separando, por exemplo, a co
letividade dos homens da coletividade das mulheres; a coletividade dos
que fizeram o primário, dos que não o fizeram; a coletividade dos que
se criaram na cidade, a coletividade dos que se criaram no meio rural etc.
Quer se trate de histórias de vida, quer se trate de depoimentos
pessoais, a gravação permite manter ao máximo as próprias expres
60
sões dos informantes e a sua maneira de encadear os fatos; às duas
formas de relato é adequada a expressão “ técnica de liberdade” , co
mo a chamou o prof. Roger Bastide (Bastide, 1953, p. 7). As interven
ções do pesquisador só ocorrem quando absolutamente necessárias; por
exemplo, quando o informante descreve uma passagem peculiar de sua
vida, pode-se pedir maior precisão sobre algum detalhe. Sobretudo,
não impedir que o informante vá e volte na narrativa como desejar;
pois esta aparente desordem é muito mais reveladora do que quando
se exigem seqüências marcadas e nítidas.
A diferença entre o diálogo (que é um questionário falado,
cabendo-lhe portanto as mesmas observações, praticamente) e o mo
nólogo é patente. Os questionários — forma extrema do diálogo —
são compostos de séries de questões estandardizadas, efetuadas da mes
ma maneira a todos os informantes, quaisquer que eles sejam; estão
disciplinados segundo temas que correspondem aos problemas que o
pesquisador visa esclarecer, de tal maneira que correspondem já ao es
quema do que será o relato final do pesquisador. Muitas vezes, o pró
prio âmbito das respostas é estritamente delimitado por este. Tudo de
corre, pois, das preocupações e da formação do pesquisador, nada tendo
a ver com os mecanismos de raciocínios próprios do informante; nou
tras palavras, este é compelido a responder segundo uma ordem que
não somente lhe é exterior, mas, e principalmente, estranha.
Todo o material assim colhido — inclusive as respostas às perguntas
abertas — se torna portanto muito menos rico, muito menos específi
co aos informantes, porém muito mais adequado ao que é buscado pe
lo pesquisador. Pode-se perguntar também, levantando uma questão
de relevo, se o pesquisador estaria mesmo atingindo o real visto pelo
“ outro” , ou se, ao contrário, não estaria captando um conhecimento
que ele mesmo inconscientemente construiu, no quadro de uma teoria
ou de teorias que corresponderíam à sua própria maneira de pensar.
Noutras palavras, por meio de seu questionário escrito, ou de suas per
guntas no diálogo, não estaria o pesquisador arquitetando um objeto
que correspondesse aos seus interesses? Mesmo quando se considera
que, do ponto de vista cientifico, um objeto de estudo é sempre especi
ficamente construído pela ciência, a pergunta atrás não perde o seu
interesse, principalmente quando o informante — pessoa humana —
é o repositório dos dados. Nesse caso se estaria levantando a dúvida
de que o conhecimento ou as informações alcançadas fossem plena
mente autênticas, uma vez que toda a sua conformação teria sido es
truturada pelo próprio pesquisador.
Por sua vez, as histórias de vida e os depoimentos pessoais, livre
mente narrados pelos informantes, comporiam objetos cuja constru
ção releva deles mesmos, depois do impulso inicial dado pelo pesqui
sador; consubstanciariam suas representações, a sua visão. Mesmo se
61
tratando de dados de caráter fixo e estável, exteriores a eles (como a
revolução de 24, ou a revolução de 30, no projeto de pesquisa que foi
objeto destas reflexões), captar-se-iam não apenas estes dados em si,
porém também o conhecimento, a percepção que os informantes deles
teriam. Talvez neste ponto esteja a diferença entre o procedimento de
questionário e de diálogo, de um lado, e o procedimento das histórias
de vida e dos depoimentos pessoais, de outro: o pesquisador busca cap
tar os dados, no primeiro caso, como se tivessem uma existência em
si, independente tanto dele mesmo quanto do informante, e por isso
procura formular todas as suas perguntas numa forma direta e percu-
tora que exclua as divagações; enquanto no segundo caso as divaga-
ções se tornam importantes dados de pesquisa também. Porém, a crí
tica vai mais longe: ao procurar atingir os “ dados em si mesmos” , atra
vés do questionário e do diálogo, não dará o pesquisador a este a for
ma que já lhes atribuía no seu próprio pensamento? A dúvida poderia
ser resolvida através do cotejo destas informações com outros docu
mentos obtidos das mais diversas maneiras.
No caso da pesquisa que motivou estes comentários, tratava-se de
conhecer a vida e o universo de comportamentos e pensamentos dos
informantes num período de 17 anos, período para o qual não haviam
sido delineados temas precisos. Por isso o procedimento dos “ depoi
mentos pessoais” pareceu mais adequado ao que se buscava alcançar,
desde que mantida, tanto quanto possível, a prática do monólogo por
parte do informante. A utilização do condicional, ao se redigir esta
frase, prendeu-se ao fato de que sempre se manteve a atenção alerta
a fim de verificar se realmente esta seria a técnica mais eficiente e mais
coerente com o que se pretendia alcançar. Pressupunha também que
no decorrer do trabalho, e no seu final, se fariam balanços do desem
penho técnico, para se expressar os aspectos positivos e negativos, pa
ra sugerir as melhorias que se poderia trazer a ele.
À gravação de depoimentos pessoais, que utilizava assim a “ téc
nica da liberdade” , foi acrescentada uma complementação sob duas
formas principais: a ficha do informante e o caderno de campo. Trata-se
de técnicas complementares, que constituem elemento imprescindível
em qualquer pesquisa; e o termo “ complementar” de forma alguma
significa secundário, ou algo que possa ser suprimido sem dano para
a mesma. Ao contrário, “ complementar” deve ser entendido no senti
do essencial do termo: algo que se deve acrescentar a uma coisa in
completa para que ela atinja a sua totalidade, para que a ela nada fal
te. É esta a real importância das duas técnicas apontadas.
A ficha de informante encerra os dados pessoais deste: idade, se
xo, estado civil, cor, nacionalidade, naturalidade, nível de instrução,
religião, ocupação atual, ocupação já exercida. Registra, portanto, da
dos que são imprescindíveis para a análise correta das entrevistas. Po-
62
deria talvez ser chamada de “ ficha de identificação” , termo mais abran
gente e que engloba também tudo quanto se deve saber de um docu
mento, quando a pesquisa é com este material e não com material hu
mano; pois é preciso sempre dizer com todos os detalhes qual a fonte
em que se colheu o material, para que possa ser procurado e utilizado
por outros pesquisadores, além de que deve ser também verificada sua
existência e seu valor pelos demais. A “ ficha de identificação” regis
tra, portanto, dados objetivos, isto é, que não dependem das opiniões
e modos de pensar dos pesquisadores e dos informantes.
Implicitamente se admite que tais informações podem esclarecer
algo a respeito do que se procura saber. Também está implícito o pres
suposto de que toda coleção de indivíduos, seja ela qual for, é por na
tureza internamente diferenciada, compondo “ agregados” ; cumpre ve
rificar até que ponto estas diferenciações pesam sobre seu comporta
mento e opiniões, estabelecendo, ao nível de comportamentos e de opi
niões, “ agregados” correspondentes aos “ agregados” de sexo, de ida
de, de instrução, etc. Noutras palavras, a ficha de informante não é
mero depósito de informações individuais; ela tem um sentido coletivo
dentro da pesquisa, de onde sua importância. Não deve ser tomada,
ou melhor, os dados que encerra não devem ser tomados como evidên
cias já esclarecidas; colocam sempre pontos de interrogação: “ Será que
homens e mulheres da mesma camada social têm as mesmas opiniões?
Será que a idade é um limite válido entre indivíduos de idades diferen
tes?” É possível que as respostas sejam negativas, e que as determina
ções de comportamentos e opiniões passem por outras delimitações,
que é sempre finalidade da pesquisa descobrir; ou é possível que a vali
dade das diferenciações seja corroborada.
Quando se trata de pesquisas por questionários, esta ficha consti
tui geralmente o cabeçalho dos mesmos; no entanto, ela tende muitas
vezes a ser esquecida ou considerada sem importância nas entrevistas,
ou então a ser estabelecida muito sumariamente. É para a sua condi
ção de grande relevância que se quer chamar a atenção. Mesmo que
na pesquisa em curso ela não seja plenamente utilizada, constitui um
armazenamento de dados para outras pesquisas, além de permitir a ou
tros pesquisadores uma identificação correta do material. Note-se ain
da que ela é sempre, em si mesma, um questionário; isto é, um conjun
to de perguntas diretas e muitas vezes fechadas que se dirige ao infor
mante. E que questionários semelhantes devem ser sempre construídos
também para documentos escritos, quando se trata de pesquisa efe
tuada com esta documentação, caso em que a preocupação principal
deve ser a de identificação e localização precisas.
No trabalho que serve de base para estas reflexões, figuraram tam
bém na ficha as condições econômicas dos informantes, embora estas
constituíssem os limites gerais do “ agregado” a ser inquirido (“ traba
63
lhadores de baixos recursos” ), o que pressupunha a semelhança destas
condições. É que, no caso em pauta, a definição dos “ baixos recur
sos” passava tanto pela ocupação presente quanto pelas ocupações pas
sadas, que podiam, ambas, agir como fatores de recortes da coletivi
dade pesquisada. Justifica-se a pergunta referente à ocupação atual por
dois motivos: primeiramente, porque é indispensável conhecer a con
dição do informante no momento em que a entrevista é efetuada, pois
toda a sua vida presente estará influenciando as recordações que vai
buscar ao passado: lembrar é uma atividade do presente, diz muito jus
tamente Ecléa Bosi (1979, p. 17). Em segundo lugar, porque pode re
velar rapidamente a evolução ou não das posições sócio-econômicas
do informante na escala social, do momento recordado até hoje.
O terceiro instrumento de coleta empregado na pesquisa em foco
foi o “ caderno de campo” , que muitos pesquisadores chamam de “ diá
rio de pesquisa” . Consta de anotações efetuadas pelo pesquisador, re
gistrando as condições em que foi feita a entrevista (onde, quando,
quem, o que, como) e contendo todas as observações e reflexões que
ocorreram ao pesquisador durante sua execução. Se várias entrevistas
foram efetuadas com a mesma pessoa, haverá registros referentes a cada
uma delas no caderno de campo, que é efetivamente um diário; pois,
ainda com a mesma pessoa, sempre se modificam, de uma entrevista
a outra, os contextos em que ocorrem; há sempre algo mais a registrar
referente à personalidade e às características do entrevistado. As ob
servações do caderno de campo esclarecem mudanças perceptíveis das
entrevistas, e atribuíveis às condições específicas em que se realizaram;
também contêm mais detalhes descritivos e pessoais acerca do infor
mante; encerram as particularidades do relacionamento entre pesqui
sador e informante; e contêm as observações a respeito da aplicação
da técnica, todas as vezes que esta foi posta em prática, suas facilida
des e dificuldades, seus aspectos positivos, satisfatórios, negativos. Seja
com referência às características do informante, às condições das en
trevistas, às relações entre informante e pesquisador, às impressões e
emoções de ambos, aos detalhes da aplicação técnica, seu conteúdo ga
nha outro significado e importância quando, ultrapassando a simples
descrição, se reveste de um significado crítico. Revela notar ainda que,
muitas vezes, sob uma aparente descrição singela do caderno de cam
po, a crítica (em seu sentido de colocar em dúvida as afirmações apa
rentemente irrefutáveis) existe implícita; a segunda, a terceira leituras
do caderno de campo, juntamente com a análise do material, fazem
então com que ela aflore, suscitando um aprofundamento das refle
xões.
É neste caráter que reside o maior valor do caderno de campo,
pois fornece bases para reflexão, quer sobre o material, quer sobre o
relacionamento informante-pesquisador, quer sobre as técnicas utiliza
64
das, reformulando-as quando necessário, buscando descobrir sua am
plitude e suas limitações. Muito empregado pela antropologia, o ca
derno de campo foi negligenciado, ou mesmo omitido, pelos sociólo
gos como algo de somenos; principalmente os utilizadores de questio
nários regra geral o desdenham, achando que está muito preso ao sub-
jetivismo do pesquisador. Na verdade, sua falta significa uma concen
tração da atenção na técnica mecânica da coleta e de interpretação dos
dados, como se estes fossem os únicos pontos merecedores de interes
se. Suprime-se, assim, toda a reflexão que existiu no decurso da cole
ta, conseqüência de todas as situações que podem tê-la influenciado,
como também de tudo quanto ocorreu durante a análise subseqüente
dos dados; as peculiaridades de cada momento da pesquisa, os aspec
tos proveitosos, o interesse ou as inutilidades de certos passos, os deta
lhes do relacionamento do pesquisador com o objeto pesquisado, dei
xam por assim dizer de existir. Implicitamente são considerados “ os
sos do ofício” , que se tem de suportar porque dele fazem parte intrín
seca, e, sendo “ naturais” , não merecem maior atenção. É fácil depreen
der o que este desconhecimento do valor do caderno de campo para
o sociólogo tem trazido de nocivo ao aperfeiçoamento das pesquisas,
e de fator de superficialidade para estas. Sua utilização deve então ser
exigida, seja qual for a técnica empregada na coleta, e mesmo que se
trate de pesquisas documentais.
O número de entrevistas por pesquisador, no caso de depoimen
tos pessoais, é calculado em geral de acordo com o prazo alocado à
realização da pesquisa e o tempo de que dispõem os pesquisadores pa
ra efetuar suas tarefas e levá-las a termo; pois raramente o pesquisa
dor em ciências sociais está unicamente encarregado da pesquisa, re
gra geral divide seu tempo com outras atividades de sua profissão, quan
do é professor, por exemplo; ou quando é funcionário; ou quando exer
ce um outro ofício. No caso em foco, os recursos financeiros obtidos
determinaram o prazo do trabalho, que deveria ser de um ano, prorro
gável somente por mais alguns meses. Tal período de tempo não per
mitiría mais que três, quando muito quatro depoimentos pessoais para
cada pesquisadora, uma vez que estas só poderíam dedicar meio perío
do à tarefa: os recursos disponíveis não admitiam que fossem remune
radas por tempo integral. O cálculo de quantidade de entrevistas é, as
sim, fortemente determinado pelo orçamento, isto é, por um fator ex
terior à pesquisa.
No entanto, como se trata de depoimentos pessoais que são rela
tos mais ou menos longos, o número de três ou quatro por pesquisa
dora parece suficiente para serem delineadas as primeiras linhas gerais
relativas ao problema. Como se viu, um dos objetivos do trabalho era
preencher uma lacuna de dados, através da memória dos trabalhado
res de poucos recursos na cidade de São Paulo. Realmente, a quan
65
tidade de depoimentos a serem levantados não podería satisfatoriamente
dar conta dessa finalidade. Tratando-se, porém, de ter apenas um pri
meiro bloco de informações, o número parecia suficiente; a partir do
que fosse descoberto, tornar-se-ia possível planejar pesquisas futuras,
que descessem a detalhes mais minuciosos e que ampliassem os conhe
cimentos.
A quantidade de entrevistas é sem dúvida pequena, diante da com
plexidade dos objetivos. É inútil, porém, pretender executar algo que
ultrapasse as possibilidades materiais e práticas da empresa. Coletar
entrevistas em quantidade, armazená-las, não leva a nenhum aumento
de conhecimentos, a não ser relativamente à utilização mecânica da téc
nica de gravador; continuar-se-á desconhecendo tudo a respeito da rea
lidade. Por outro lado, o escopo da pesquisa era também efetuar um
treinamento das pesquisadoras, que se pretendia o mais completo pos
sível. Deveríam elas, portanto, efetuar a coleta de dados, analisá-los,
chegar à síntese, formular conclusões, estas sob a forma de interpreta
ção e levantamento de novos problemas. Tal resultado só seria possí
vel delimitando-se a quantidade de entrevistas por pesquisadora.
Além disso, pode-se também arguir com Émile Durkheim que
“ uma observação só, mas bem feita” , ou “ uma única experiência bem
conduzida” , leva a conhecimentos válidos; não é a quantidade de fa
tos registrados que conduz a conhecimentos novos, e sim a análise cui
dadosa de “ fatos decisivos ou cruciais” (Durkheim, 1963, p. 74-75).
O inventário dos fatos é algo de inesgotável, diz ainda este autor; é
sempre necessário efetuar cortes na realidade e, para tal, escolher cri
térios que, na quantidade infinita dos dados, estabeleçam pontos de
referência eficazes, permitindo balisar as observações.
Os critérios foram, portanto, de duas ordens: uma, referente à fi
nalidade da pesquisa, que era o critério científico interno a ela; outra,
referente aos recursos financeiros e ao tempo de que se dispunha, e >
que eram critérios de ordem prática, exteriores à pesquisa. Uns e ou
tros tiveram por base o pré-conhecimento da vida na cidade de São
Paulo, através da experiência pessoal das pesquisadoras, e através da
documentação levantada previamente à formulação da pesquisa. To
das estas atividades anteriores, todas estas discussões, configuraram
o que em certas pesquisas tem sido denominado “ experiência piloto” ,
ou “ pesquisa piloto” : uma primeira tomada de contato com os pro
blemas que se quer pesquisar, para verificar sua exeqüibilidade e sua
adequação ao que se deseja conhecer.
Restava, então, iniciar o trabalho. Este constituiría o teste sobre
a validade ou não do que havia sido proposto e, no caso de resposta
positiva, sobre as vantagens e limitações das tarefas empreendidas a
fim de obter novos conhecimentos. Desvendar-se-ia então se as linhas
de diferenciação da coletividade (sexo, ocupação, etc.) haviam sido
66
úteis, ou, ao contrário, se seriam de importância muito menor do que
se supunha. Verificada esta última alternativa, o trabalho efetuado não
quedaria invalidado; pelo contrário, serviría para corrigir as idéias fei
tas de que determinados fatores são atuantes em todas as camadas so
ciais. Um resultado negativo faria ressaltar o que havia sido indevida
mente superestimado, e encaminharia a atenção dos pesquisadores pa
ra outros fatores que haviam sido negligenciados quando na verdade
eram atuantes. Toda pesquisa bem feita, isto é, que tenha sido acom
panhada pela reflexão crítica em todos os seus passos, contribui sem
pre para a expansão do conhecimento, seja pela descoberta, seja pela
correção de falhas e erros.
OBRAS CITADAS
Bastide, Roger, “ Introdução a dois estudos sobre a técnica das histórias de vida.” So
ciologia, vol. XV, n? 1, São Paulo, março de 1953.
Bosi, Ecléa, Memória e sociedade: lembrança de velhos. São Paulo, T.A. Queiroz, 1979.
Durkheim, Émile, A s regras do método sociológico. São Paulo, Cia. Ed. Nacional, 3?
ed„ 1963.
Moreira, Renato Jardim, “A história de vida na pesquisa sociológica.” Sociologia, vol.
XV, n? 1, São Paulo, março de 1953.
Lewis, Oscar, Os filhos de Sanchez. Lisboa, Moraes Ed., 1970.
Pereira de Queiroz, Maria Isaura, “ Histórias de vida e depoimentos pessoais.” Sociolo
gia, vol. XV, n? 1, São Paulo, março de 1953.
67
V — Sistematização do referencial
da pesquisa
68
detectar pontos de oposição, de contradição, até mesmo de conflito
no interior dessa camada, além das semelhanças e harmonizações.
Em terceiro lugar, encara-se a história de vida ou o depoimento
pessoal como um “ fato social total” , tal como o definiu Marcei Mauss
(1966, p. 274). Isto é, um fato que apresenta, em síntese, o estado em
que se encontra um grupo, uma camada ou mesmo uma sociedade, fa
cilitando por um lado a abordagem de seus diversos aspectos — estru
turais, de sua dinâmica, da sincronia e da diacronia, etc. — e, por ou
tro lado, a apreensão dos aspectos psicossociais — atitudes, opiniões,
aspirações — dos indivíduos que os experimentam. Noutras palavras,
o testemunho dos informantes de poucos recursos reflete os aspectos
mais importantes da sociedade global em que estão inseridos.
A delimitação de um período de tempo bem determinado e relati
vamente curto — 1920-1937 — mostra que o ponto de vista adotado
na pesquisa foi o sincrônico: trata-se de investigar comportamentos e
modos de ser de trabalhadores de baixos recursos, pertencentes, por
tanto, a uma mesma camada social de uma mesma sociedade numa
mesma época; o período curto não permitiría uma clara abordagem
diacrônica, isto é, uma abordagem através do tempo, porém este é tam
bém um ponto a ser investigado. Isto é, acredita-se que devido ao es
paço de tempo ser curto, a abordagem ressaltará como sincrônica, e
assim por enquanto é ela caracterizada; porém o resultado final deve
ria mostrar se tal realmente ocorreu.
Sincronia ou diacronia seriam, neste caso, porém, apenas uma pers
pectiva de apreensão da realidade, não importando em absoluto em
nenhum elemento explicativo ou de interpretação. Pois, de acordo com
a proposição inicial do projeto atrás apresentada, a explicação dos com
portamentos e modos de ser e pensar revelados através desta pesquisa,
em parte estaria ligada à primeira observação aqui efetuada, sobre a
posição dos informantes na hierarquia sócio-econômica da cidade de
São Paulo; em parte estaria ligada às circunstâncias históricas do mo
mento estudado, tanto específicas da cidade de São Paulo, quanto es
pecíficas dos diversos grupos e camadas nela existentes; em parte se
vinculariam às diferenciações internas da própria camada dos traba
lhadores de baixos recursos. Condições historicamente dadas, que se
inscrevem no inter-relacionamento das camadas sócio-econômicas de
uma sociedade, ou nas suas diferenciações internas, poderíam ser fun
damentais na orientação das interpretações, e não simplesmente o fato
de ocorrerem no mesmo período de tempo — isto é, o fato de serem
sincrônicas. Porém, novamente se observa que este é um ponto a ser
investigado; embora admitindo que a sincronia não seria neste caso ex
plicativa, não se exclui a possibilidade de ela se apresentar como tal,
ao contrário do que seria de esperar. Noutras palavras, será que algu
mas vezes um conjunto de circunstâncias presentes num momento da
69
do não se mostrará com mais força explicativa do que o movimento
da história? É o que precisa ser esclarecido.
É este, pois, o quadro teórico geral dentro do qual se desenvolve
rá a pesquisa que serviu de fundamento aos comentários desta obra.
Sua explicitação ao final, depois de tomadas todas as decisões cabíveis
antes do início da pesquisa, evidencia que não se trata de um conjunto
de princípios axiomáticos ou de postulados, ou de algo evidente por
si mesmo, que foi proposto anteriormente ao projeto de pesquisa, pai
rando sobre ela do exterior, e a partir do qual se deduzisse logicamente
o problema a ser esclarecido. Todo o conteúdo teórico do pensamento
dos pesquisadores é realmente exterior e anterior à proposição de qual
quer pesquisa; ele compõe as condições sob as quais os pesquisadores
podem formular o projeto de pesquisa, e por isso constitui sua base
necessária. É porque já foi exercitado na reflexão teórica de determi
nada disciplina que o pesquisador se capacita a compor um projeto
de pesquisa.
No entanto, não é porque são pontos de partida que tais contex
tos deveríam adquirir força de axiomas, isto é, de algo que nem pode
nem necessita ser provado, de algo que, pela sua evidência, é univer
sal. A utilização do contexto teórico não está, portanto, automatica
mente legitimada pela sua necessidade; pelo contrário, também a seu
respeito se exerce a dúvida, que, explicitada, permite ir mais longe nas
interpretações. Eis porque se considerou a própria condição sincrôni-
ca atrás referida como mais um problema a ser elucidado.
Explicando melhor: o quadro teórico estava presente desde o iní
cio; existia como parte do acervo de saber que a equipe adquirira du
rante os anos de sua formação universitária e em suas experiências de
trabalho. Porém, não foram suas proposições que compuseram o con
teúdo das discussões desde que a equipe decidiu efetuar a pesquisa, e
sim as condições específicas desta, em seus múltiplos aspectos. À me
dida que estes aspectos emergiam do limbo, iam as reflexões teóricas
se adensando relativamente a este ou aquele ponto, suscitando novas
discussões diretamente orientadas para o esclarecimento dos proble
mas que surgiam. Toda a reflexão teórica explícita foi, portanto, con
comitante à construção do projeto, e foi orientada por esta; teve por
função conscientizar as pesquisadoras da teoria implícita, adormecida
no interior do seu próprio saber, e que a execução do trabalho, envol
vendo determinadas questões, ia despertando. Sistematizando o pro
jeto, procurou-sé, ao fazer a sinopse dos seus pontos principais, des
vendar quais os princípios implícitos que tinham acompanhado ou ti
nham sido suscitados pelo desenrolar do raciocínio.
Como se vê, um outro princípio teórico surge aqui: a noção de
que a direção tomada pelo raciocínio deveria estar sempre intimamen
te ligada ao objeto de análise, tal direção não se definindo independen
70
temente, ou previamente, à definição do problema sobre o qual se exer
ce; noutras palavras, não se acredita que esta direção seja independen
te, ou possa ser definida de maneira independente, do problema a ser
investigado. O quadro teórico de uma pesquisa não constitui, assim,
algo preliminar e distinto daquilo a que se aplica, e portanto só pode
ser bem compreendido e bem evidenciado ao longo da discussão do
problema, isto é, do objeto direto da pesquisa.
O quadro teórico da pesquisa em pauta não foi, pois, formulado
previamente para, em seguida, servir de programa à composição de uma
série de operações, da qual a primeira seria a formulação do proble
ma. Se previamente estabelecido, o problema e as operações surgiríam
como deduções a partir do quadro teórico; só seriam aventados depois
de afirmados os princípios constantes do quadro teórico. Na maneira
de agir aqui exposta, ao contrário, o quadro teórico é um ingrediente
indispensável, como ingrediente indispensável é também toda a expe
riência de vida e de trabalho das pesquisadoras; todo o conhecimento
específico sobre a existência real no período de 1920 a 1937, e os acon
tecimentos da vida urbana da cidade de São Paulo, assim como a vi
vência dos informantes. Todos estes ingredientes concorrem igualmente
para a formulação do projeto de pesquisa. Todos eles compõem os pro
blemas que se deseja esclarecer.
Porém, na proposição destes problemas e no desvendamento de
suas implicações, todos eles caminham juntos. O conhecer, que é ação
e portanto práxis, vai exigindo certas definições a respeito de seu obje
to; e, plenamente definido este, é possível então buscar a uma profun
didade maior os delineamentos das linhas gerais que foram seguidas
ao se desenvolver a ação de pensar, formulando-as em palavras e con
densando-as em sínteses mais e mais abstratas. Eis porque, depois do
detalhamento do projeto, o seu fecho deve ser a sistematização do re
ferencial teórico.
Estas reflexões denunciam as relações que se admite existir entre
a teoria e a práxis: sem esta, toda teoria é um ingrediente morto que
nada consegue criar; é a práxis, com sua vitalidade, que “ anima” a
teoria no sentido essencial do termo, é a práxis que é criadora e trans
formadora. Tal admissão se espelha na própria escolha do problema
de pesquisa: buscar, através da memória individual, como seria a vida
de uma camada inferior na cidade de São Paulo do passado; a memó
ria individual seria como que a abstração do que os indivíduos real
mente experimentaram e vivenciaram no passado, e constituiría sua
“ teoria” individual sobre a cidade de São Paulo no período estudado,
que, em suas convergências e divergências, revelaria pelo menos algu
mas das características da coletividade a que pertenciam.
71
OBRA CITADA
72
VI — Técnica de gravador e registro
da informação viva
73
de dados em ciências sociais, e prosseguem ainda hoje como as mais
importantes. Os questionários, principalmente, tomaram um relevo sem
par, não somente depois da invenção dos computadores, porém desde
os tempos pioneiros de Le Play; compostos de indagações diretas, li
mitavam as respostas ao que parecia essencial, definiam com aparente
precisão a coleta a ser efetuada, e já indicavam o roteiro para a con
fecção de relatórios.
Além dos dados apanhados por essas formas de registro, utilizam
os pesquisadores de ciências sociais toda espécie de documentos escri
tos; assim, além de abarcar vasta parte da realidade presente, avan
çam pelo passado afora, tentando conhecê-lo através de incursões pe
las mais diferentes fontes. Todavia, estes repertórios escritos de dados
não provêm da coleta de um pesquisador que diretamente lidasse com
eles; foram obtidos por razões que muitas vezes nada tinham a ver com
suas preocupações específicas. Tais são os recenseamentos efetuados
com os mais diversos objetivos; os registros de cartórios ou os regis
tros paroquiais; os arquivos da mais variada espécie, inclusive os de
polícia. Resultantes de objetivos pragmáticos e imediatos, vão servir,
num período recuado ou não do tempo, como material para o estudo
de especialistas, — historiadores, antropólogos, sociólogos. Somente
uma parte da documentação em ciências sociais, representada pelo re
sultado de aplicação de questionários, ou realização de entrevistas di
rigidas, tem sua obtenção direta e efetivamente orientada pelos pes
quisadores, visando o esclarecimento de um problema preciso. Quan
to mais antigo o documento, menos corresponde, na finalidade que
norteou sua composição, aos objetivos diretamente perseguidos pelo
pesquisador que o analisa.
Já a técnica de histórias de vida e depoimentos pessoais que utili
za o gravador, não abarca um domínio muito extenso no tempo; cir-
cunscreve-se ao espaço de investigação representado unicamente pelo
presente e pelo passado imediato, isto é, pelo período que possa ser
armazenado na memória dos indivíduos, dependendo da conservação
das faculdades intelectuais pelos mais velhos. Porém seu emprego, no
que diz respeito ao tempo presente, constitui uma abertura às investi
gações de todos os grupos e camadas sociais pouco atingidos pelos re
gistros escritos, como os grupos indígenas, o campesinato, as camadas
inferiores urbanas. Não esquecer também que, mesmo as camadas so
ciais que manuseiam com freqüência a escrita, encerram na memória
conhecimentos e lembranças que se perdem no lufa-lufa cotidiano, e
que, uma vez gravados, enriquecem o acervo de documentos do pre
sente.
A grande diferença entre o registro da informação viva e o regis
tro através da escrita, que realça a observação que acaba de ser feita,
está em que a informação viva provém diretamente do informante
74
e de suas motivações específicas. Ao contrário, o questionário (para
apresentar um exemplo), ou a entrevista com roteiro, têm origem nas
preocupações do pesquisador, isto é, são impostos ao informante co
mo algo exterior a ele, tendo ele de se conformar com um ritmo de
perguntas que não é o seu, com perguntas orientadas por motivações
que não são as suas. Quando, no âmbito da coleta de uma história de
vida, o informante conta um caso em determinado momento, é por
que este caso tem para ele então um significado específico, que apa
rentemente pode não se ligar ao momento narrado, nem aos objetivos
do pesquisador, porém não pode ser por este desprezado porque “ faz
sentido” com o restante do relato, numa ligação que precisa ser des
vendada e que pode levar a tudo quanto estava subjacente à narração.
Verifica-se assim a riqueza de dados que esta técnica permite al
cançar, uma vez que, além de colher aquilo que se encontra explícito
no discurso do informante, ela abre portas para o implícito, seja este
o subjetivo, o inconsciente coletivo ou o arquetipal. Em qualquer des
ses casos, são novos rumos que a investigação pode tomar, mas que
se vinculam estreitamente com as próprias condições em que devem
ser efetuados os registros, isto é, com as exigências de uma boa
aplicação.
A primeira exigência é a de diminuição ao máximo de toda inter
ferência por parte do pesquisador. Este detém uma intervenção preli
minar de que não se pode fugir: a escolha tanto do tema do seu traba
lho quanto do informante. As decisões de base são, portanto, suas,
e em função delas assume a direção efetiva da aplicação da técnica —
o que mostra quão ilusório é supor que existam técnicas não dirigidas
e seleções de informantes feitas inteiramente ao acaso. A escolha do
informante provém de duas orientações, uma decorrente do tema em
pauta, a outra decorrente de se saber que determinado indivíduo pos
sui conhecimentos importantes a respeito do tema. Porém, no caso das
histórias de vida e depoimentos pessoais gravados, aí deve se deter a
intervenção do pesquisador. Embora esta intervenção seja limitada, ela
existe; por isso toda gravação, por mais livre e espontânea, deve ser
considerada semidirigida, mesmo quando adotada a “ técnica da liber
dade” .
A qualidade do material obtido depende da qualidade do infor
mante escolhido, em função do que se pretende desvendar. Esta cir
cunstância postula a existência de um conhecimento prévio do infor
mante, por parte do pesquisador; quanto mais conhecido aquele, mais
seguro estará o pesquisador de que obterá um relato interessante e apro
priado ao que está buscando; quanto menos conhecido, maior o peso
do acaso ou da contingência, isto é, da possibilidade tanto de se obter
quanto de não se obter as informações requeridas. De qualquer for
ma, por mais conhecido que seja o informante, não pode o pesquisador
75
prever com segurança que rumo tomará o relato — rumo que depende
do informante, de sua vivência específica, de sua capacidade de rela
tar, mas também de uma infinidade de circunstâncias momentâneas,
que também pésam na qualidade da narração.
Na utilização da “ técnica da liberdade” , uma vez ultrapassada a
escolha do tema e a escolha do informante, durante o decorrer das gra
vações este último passa a ter certa autonomia em relação ao pesquisa
dor, no que diz respeito à abordagem do tema e ao fornecimento de
informações; ele mesmo governa a escolha do que vai dizer, o seu rit
mo, a ordenação dos assuntos, com o mínimo possível de influência
exterior visível sobre o que diz e o que faz saber. E é nesta autonomia
do informante que reside o ilimitado potencial do que pode fornecer.
Qualquer informação se torna, então proveitosa, podendo abrir hori
zontes que o pesquisador não suspeitara. O campo de coleta se apre
senta, assim, infinito; uma revelação do entrevistado pode fazer deri
var a entrevista para direções imprevistas e imprevisíveis, num ques
tionamento que ao mesmo tempo se alarga e se estrutura a partir do
seu próprio desenrolar, dando-lhe o caráter de uma “ pesquisa progres
siva” .
A segunda exigência para o bom rendimento da técnica de histó
rias de vida e depoimentos gravados diz respeito às relações que se es
tabelecem entre o informante e o pesquisador. Que não exista entre
ambos determinado grau de confiança, e as respostas irão se limitando
somente ao que o entrevistado considera suficiente, não permitindo que
o pesquisador penetre muito a fundo em sua vivência. Um relaciona
mento impregnado de simpatia e amizade constitui condição impor
tante para uma boa colheita de dados. No entanto, reside aqui tam
bém uma dificuldade que nem sempre tem sido levada em conta, quando
se trata de pessoas de idade. Os velhos constituem uma parcela desva
lorizada dos membros em sociedades como a nossa, a qual repousa nu
ma base econômica de que a produtividade é o critério fundamental:
inaptos a produzir, nada mais se espera deles (ao contrário das crian
ças pequenas que, também inaptas para a produção, constituem no en
tanto uma certeza de produção futura); tal desvalorização se expressa
de mil maneiras, uma das quais é a falta de interesse que os rodeia.
Que alguém se disponha a ouvir-lhes as histórias, e ei-Ios se sentindo
realizados, por um lado, e, por outro, compelidos a “ fazer durar” aque
la relação gratificante. Esta é uma dificuldade já apontada para cuja
solução não existem receitas; o pesquisador a encontrará disfarçada
sob os aspectos mais diversos, dependendo de seu tacto, de sua amabi-
lidade, de seu sentimento de humanidade a forma pela qual consegui
rá resolvê-la.
A própria autonomia do informante, que deve ser salvaguardada
ao efetuar seu relato, pode resultar numa enorme dispersão de anedotas,
76
num acúmulo de detalhes repetitivos, num aglomerado de problemas
incoerentes e sem ligação entre si, que se revelam praticamente inúteis
para as finalidades do pesquisador. O que mostra a necessidade da “ pre
sença” deste, a fim de que discretamente reencaminhe o informante
para o rumo que se revelou mais interessante. Esta presença será na
maioria das vezes uma presença física; porém ela pode consistir num
pequeno conjunto de questões, nos casos em que o informante não ti
ver a necessária capacidade para efetuar sozinho o seu depoimento —
casos, no entanto, que são raros.
A técnica de histórias de vida e depoimentos pessoais gravados fi
ca limitada no tempo, porque existe um informante cuja memória, em
bora recuando bastante, não é infinita; e limitada em sua aplicação
porque, por mais apagado que se conserve o pesquisador, ele está pre
sente e exerce sempre uma espécie de censura, no seu desejo de obter
uma coleta dos dados precisos. Nunca é demais lembrar que estas limi
tações, que podem parecer muito estreitas, são amplamente compen
sadas por ser esta uma técnica que desvenda questões inesperadas, e
que permite conhecer por assim dizer do interior toda uma realidade
social, a partir da experiência vivida de indivíduos cuja maneira de ver
e de sentir pode estar muito longe da do pesquisador. Desta forma,
através desta técnica, pode-se também corrigir a própria visão do pes
quisador em relação ao problema que se propôs esclarecer.
Porque esta visão padece sempre de várias distorções. Em primei
ro lugar, toda proposição de uma pesquisa se efetua dentro de um uni
verso muito restrito, — o universo do pesquisador, seja este um histo
riador, um sociólogo, um antropólogo, um cientista social enfim, —
a partir de seus conhecimentos, de seus raciocínios e da sua visão do
mundo. Problema que não é específico do cientista social, aliás, mas
que existe de modo geral para todo e qualquer cientista. Um dos com
ponentes de seu raciocínio consiste em considerar implicitamente que
a sua é a forma “ certa” de raciocinar, que a sua é a visão do mundo
“ válida” , devendo por isso ser imposta e aceita pelos leigos. Todo cien
tista tende, assim, a se considerar “ o ” detentor da verdade.
Em segundo lugar, todo cientista, qualquer que seja sua proce
dência política, ocupa uma posição de dominação e de prestígio no in
terior de uma sociedade como a nossa, que lhe outorga certo grau de
autoridade em relação aos não-cientistas. Pode-se dizer que todo cien
tista, mesmo quando em oposição ao governo, está sempre em posição
de dominação que lhe permite de certo modo contrapor-se aos proje
tos e realizações situacionistas, e até mesmo ser obstáculo a eles — o
que demonstra alguma autonomia e alguma possibilidade de mando.
Finalmente, todo cientista, seja qual for sua origem sócio-
econômica, por isso mesmo que detém uma soma de prestígio e de po
der expressa em seus diplomas, passa a fazer parte das camadas sociais
77
dominantes, caracterizando-se como porta-voz, voluntário ou involun
tário, consciente ou inconsciente, dos poderes econômicos e políticos
vigentes. Nas ciências sociais, especialmente, dadas as características
destas, seus trabalhos são orientados para dirigir os demais indivíduos
segundo rumos pré-traçados, seja pelos próprios cientistas sociais, se
ja pelos poderes públicos, seja pela oposição — em geral, sem levar
em consideração as maneiras de pensar e as opiniões daqueles que são
assim conduzidos, e fazendo-os até abandonar a estas. Perdem, assim,
de vista os próprios anseios dos setores de população pelos quais jul
gam trabalhar. Noutras palavras, agem sempre como veículos da ideo
logia e dos projetos das camadas dominantes, porém mascarados pela
“ neutralidade” aparente de sua posição, assim como pela sua “ com
petência” de cientistas.
Desta forma, toda pesquisa é uma conseqüência da posição espe
cífica do cientista numa sociedade, e se torna um prolongamento das
ações dos mesmos — o que é especialmente visível nas ciências sociais.
Estas mazelas, que permeiam toda investigação científica, tornam-se
flagrantes quando o cientista social utiliza a técnica de questionários
fechados. Neste caso, não propõe apenas o tema e escolhe o informan
te: este fica preso numa rede miúda de questões previamente definidas
e discutidas em suas mínimas particularidades. A informação é tam
bém solicitada de maneira a não permitir que o informante ultrapasse
o espaço pré-estabelecido para sua resposta; ele não intervém, portan
to, na condução de suas próprias respostas, é totalmente orientado ne
las pela visão do pesquisador.
Em contraposição, as histórias de vida e os depoimentos pessoais
que compõem a informação viva, durante as quais a intervenção do
pesquisador deve se reduzir ao mínimo, asseguram ao informante fa
lar sua própria linguagem e abordar seus próprios problemas. É, pois,
através de uma análise cuidadosa deste material que o pesquisador po
de se desvencilhar o mais possível de seus próprios vieses, oriundos de
sua posição de superioridade enquanto cientista e enquanto membro
das camadas dominantes, e assim tentar apagar a constante censura,
consciente e inconsciente, que as camadas superiores impõem a tudo
quanto se oponha à consecução de seus fins, censura que em geral se
inscreve fortemente na documentação escrita.
Histórias de vida e depoimentos pessoais, quando cuidadosamen
te realizados, possibilitam conhecer um grupo e uma sociedade de seu
interior — em oposição às demais técnicas que projetam sobre ambos
esquemas formulados exteriormente, aplicando-lhes categorias defini
das muitas vezes a partir de teorias que não lhes dizem respeito. As
revelações dos informantes mostram como se relacionam entre si, co
mo se formam e se inter-relacionam as camadas, como se exprime a
dominação de grupos e camadas, e finalmente como tudo isto com
78
põe a sociedade global, fazendo ressaltar conflitos que podem se agi
tar sub-repticiamente e por isso quedar ignorados. A categorização uti
lizada decorre das revelações dos próprios informantes, as distribui
ções hierárquicas e os princípios que as regem são desvendados por eles,
a lógica da construção e do funcionamento interno da sociedade e do
grupo a que pertencem vem à tona. É possível então uma comparação
destas configurações, que conservam as complexidades do real; com
as teorias existentes, de tal modo que a reflexão teórica possa progre
dir a partir do confronto com uma vigorosa informação empírica.
A enumeração de tantas virtudes poderia fazer pensar que a técni
ca de histórias de vida e depoimentos pessoais deveria ser aplicada de
forma preferencial, quiçá única, porque levaria a uma coleta mais pró
xima do real. Não se exagerem os seus méritos, não se desconheçam
as suas limitações, algumas das quais já foram aqui enumeradas. Suas
maiores qualidades, quando empregadas dentro das limitações de tempo
e da não-intervenção do pesquisador, são: a descoberta de novas face
tas do real; a crítica aos dados já colhidos por outras técnicas; a auto
crítica do pesquisador, diante das revelações do discurso do informan
te. Seja como for, para qualquer trabalho que ultrapasse o levanta
mento de problemas e apresentação de dados, sua associação com ou
tras formas de coleta se torna imprescindível.
Quando se acredita estar desvendando, por meio de histórias de
vida e dos depoimentos pessoais, novas facetas do real, este conheci
mento inesperado da realidade necessita também ser verificado e com
plementado pela aplicação de outras técnicas. Ao se tratar de dados
já existentes, a submissão dos mesmos a uma verificação através do
registro de histórias de vida e depoimentos pessoais também é de gran
de utilidade. Num e outro caso, está sendo seguido o preceito mais sa
lutar das pesquisas em ciências sociais, que é o de assestar sobre o te
ma pesquisado o foco convergente de técnicas variadas, por um lado,
e por outro lado analisá-lo segundo diferentes eixos teóricos. Através
destes entrecruzamentos de análises, busca-se tanto criticar a validade
da informação viva quanto dar-lhe maior precisão, complementando-
a. No mesmo sentido se efetua a crítica das teorias e a autocrítica do
pesquisador.
O único modo de evitar que, numa sociedade como a nossa, as
ciências sociais se tornem o intérprete por assim dizer único da visão
do mundo das camadas dominantes e do grupo dos cientistas, seria con
seguir que os próprios interessados, isto é, os integrantes dos grupos
ou das camadas dominadas, noutras palavras, os “ sem-voz” , pudes
sem eles mesmo orientar ou efetuar os estudos necessários à reformu
lação do ambiente sócio-econômico, político e ecológico em que vivem.
No entanto, a necessidade de uma formação específica para a realiza
ção dessas pesquisas dá a esta aspiração um caráter de utopia; as ten
79
tativas nesse sentido, efetuadas muitas vezes no âmbito da “ educação
permanente” , — tal como a define, por exemplo, na França, Henri
Desroche, que se vem dedicando ao estudo desse problema (Desroche,
1971, 1978), — se encontram ainda na fase de tentativas quase de en
saio e erro. É preciso, pois, que os pesquisadores se liberem das mar
cas da dominação para com os informantes, buscando estabelecer en
tre ambos novas relações que não sejam de superior para inferior, no
vas relações que não nasçam já configuradas num esquema de poder.
Só assim se pode esperar que os resultados das pesquisas possam re
verter diretamente aos pesquisados, em lugar de servirem para refor
çar sua subordinação aos grupos dominantes. A técnica de histórias
de vida e depoimentos pessoais parece dar uma certa abertura nesse
sentido, levando pelo menos à formulação de uma esperança...
OBRAS CITADAS
N o ta : No decorrer de algumas entrevistas, houve a participação inevitável de mais uma ou duas pes
soas da família ou amigos; suas intervenções deturparam o monólogo e corroboram as observações
efetuadas: 1) quebraram o ritmo do informante; 2) entrelaçaram às vezes uma segunda história de
vida à primeira, com evidente confusão delas; 3) pouco enriqueceram do que estava sendo dito.
Recomenda-se, pois, que o informante esteja sozinho com o pesquisador.
80
VII — Das entrevistas e da sua transcrição
81
Se a atitude adotada pelas pesquisadoras fora a de deixar livre cam
po aos informantes em seus depoimentos, não havia porque modificá-
la em função de informações díspares dadas. Seria necessário, isso sim,
no momento da análise, verificar “ quem” havia dito “ o quê” , para
tentar averiguar por que apareceríam certos aspectos em alguns depoi
mentos e em outros não. A omissão de fatos, de ocorrências, de deta
lhes pode ser tão significativa quanto sua inclusão nos depoimentos;
nesse caso, o importante não era verificar se o entrevistado conhecia
ou não tal ou qual fato, mas sim buscar saber por que razão ele o ha
via esquecido, ou o havia ocultado, ou simplesmente dele não tivera
conhecimento. Justamente porque se está lidando com uma camada
social que não é indiferenciada em seu interior, obviamente haverá di
vergências nos relatos.
Reforçou-se, assim, a opinião das pesquisadoras de que, ao co
lher histórias de vida e depoimentos pessoais, deveria ser preservada
ao máximo a espontaneidade do relato; por espontaneidade entende-
se o que é feito por seu próprio impulso, em decorrência de um primei
ro movimento, sem provocação acusada ou influência alheia. Tentar
preservar esta qualidade significa acreditar que, com ela, a qualidade
das informações melhora de nível e de adequação ao real: o indivíduo
não teria tempo para disfarçar ou mascarar deliberadamente sua opi
nião ou sua informação. É verdade que a simples presença do pesqui
sador é uma influência, e mais ainda suas indagações, pois estas po
dem orientar o depoimento num sentido que não teria tomado, se o
entrevistado fosse deixado livre. Fora por esta razão que se optara pe
la “ técnica da liberdade” .
Repita-se, na coleta de histórias de vida e depoimentos pessoais,
o monólogo do informante deve ser preservado, pois é ele o “ dono”
de suas recordações, que devem ser colhidas segundo o seu próprio rit
mo e orientação. No caso em que se procura, ao contrário, esclarecer
dados precisos e objetivos, acontecimentos, circunstâncias, bem defi
nidas, e em que a técnica não pode mais ser o monólogo, e sim o diálo
go (mesmo quando neste se busca minorar a influência do pesquisa
dor), então a descoberta, numa das entrevistas, de algo que não surgi
ra nas demais, exigiría a retomada do encontro com os demais infor
mantes, para esclarecer: 1) se o informante conhecia aquele dado; 2)
no caso afirmativo, por que o havia esquecido ou omitido; 3) no caso
negativo, por que o desconhecia.
O próprio envolvimento entrevistador-entrevistado pode muitas
vezes ser responsável por essas omissões, conscientes e inconscientes.
No caso de entrevistas com pessoas de idade, por exemplo, a diferença
de gerações pode ocasionar esquecimentos e lacunas de determinados
fatos, ou, ao contrário, ênfase e exagero de determinados pontos, ora
por julgar o velho informante que os jovens não o compreenderíam,
82
ora para não parecer ridículo, ora por desejar mostrar, com detalhes
minuciosos, quão boa é sua memória, ou quão melhor era o seu tem
po. Tais dificuldades já haviam sido notadas no caso de mulheres en
trevistadas por homens, ou vice-versa. Estas atitudes variam de indiví
duo para indivíduo, e podem ser responsabilizadas pelas discrepâncias
entre as entrevistas; ou mesmo, sem variar o informante, de um dia
de entrevista para outro. Habituais, então, em todos os resultados da
técnica de entrevista, devem ser resolvidas previamente a cada pesqui
sa, com a adoção de um comportamento uniforme por parte de todos
os pesquisadores engajados.
Não esquecer também que, sempre, o pesquisador se encontra em
posição de superioridade para com o informante, pela própria defini
ção das relações de pesquisa: o pesquisador é quem “ sabe e determina
o que deseja” , e o informante está sempre na situação de quem procu
ra descobrir “ como agir melhor” para responder condignamente à de
manda. Desta forma, paradoxalmente, também o entrevistado se en
contra diante de uma incógnita, durante as conversas, procurando um
meio de se safar o melhor possível de uma situação incômoda, seja pe
la recusa pura e simples de responder, seja pelo exagero; em situação
de inferioridade, é necessário que consiga ultrapassar o constrangimen
to, que adquira confiança para, então, chegar a uma narração espon
tânea. Por isso o conhecimento prévio entre ambos e a simpatia se tor
nam importantes.
Além destas diferenças, existem também as imagens estereotipa
das correntes na sociedade global, que influenciam o estabelecimento
das relações entre informante e pesquisador. Se o informante é idoso,
está se defrontando com um jovem, ou uma jovem pesquisadora, tem
em mente a imagem estereotipada dos jovens de sua sociedade, que
imediatamente aplica àquele que tem diante de si; da mesma forma se
se trata de um homem entrevistado por uma mulher; ou um estrangei
ro inquirido por um nacional, etc. — sendo que também o pesquisa
dor tem as imagens correntes em sua sociedade, a respeito de seu in
formante. Há, pois, expectativas de comportamento de uma parte e
de outra, pois todos têm imagens estereotipadas a respeito uns dos ou
tros, e os relatos obtidos estão sempre influenciados por elas. Noutras
palavras, a autocensura, a autopromoção, ou ambas, estão sempre pre
sentes no relacionamento, a coleta de histórias de vida e depoimentos
pessoais encontra forçosamente esta limitação e esta fonte de desvios.
É claro que a maneira de agir do pesquisador poderá diminuir ou,
ao contrário, realçar estas limitações. Porém, estabelecido um clima
de confiança, a atitude defensiva será provavelmente muito menos im
portante, a “ se-mostração” e o desejo de impressionar ficarão mino
rados. A escolha de informantes entre as pessoas da família pode tam
bém ser um corretivo de vulto para estes males, a confiança recíproca
83
já estaria de antemão estabelecida. Porém, se aparentemente haveria
esta vantagem, não esquecer que existem problemas de família delica
dos que não se quererá desvendar, ou então imagens desfavorecidas
que se quererá melhorar, ocorrendo também as autocensuras ou as au
topromoções.
Finalmente, uma outra característica desta técnica não pode ser
deixada de lado: na medida em que relações confiantes, simpáticas e
amistosas se instalam entre o pesquisador e o entrevistado, todo um
envolvimento afetivo se opera, que freqüentemente desperta proble
mas. Não se trata mais, por parte do entrevistado, de selecionar histó
rias que serão narradas e outras que serão omitidas; trata-se agora da
satisfação de contar histórias a um interlocutor que está interessado
por elas, e do desejo de manter um relacionamento cuja possibilidade
e tempo de vigência foram determinados pela pesquisa, e que estaria
por isso mesmo fadado a desaparecer quando terminada a coleta de
dados. Esta circunstância é muito menor ou praticamente inexistente
nas entrevistas por diálogos, ou então na técnica de questionários, po
rém ela existe sempre, e conforme os casos pode ser uma fonte de an
gústia, quando se trata de histórias de vida e depoimentos pessoais,
principalmente quando as relações se dão entre pesquisador e infor
mantes pertencentes a grupos marginalizados ou carentes.
É o caso, por exemplo, como já se disse, das entrevistas com pes
soas idosas. Nunca é demais lembrar que o velho, na sociedade ociden
tal, é via de regra um marginalizado, principalmente nas grandes metró
poles. No contato com o pesquisador, sua boa vontade pode resultar
do entusiasmo por saber que alguém está desejoso de conhecer o mui
to que sua experiência armazenou. Porém, em entrevistas subseqüen-
tes, tanto pode haver como que um esgotamento da fonte, ou uma cla
ra rejeição, quanto também pode haver um exagero de lembranças, um
luxo de detalhes, no afã de reter junto de si um ouvinte atento. Como
se desvencilhar sem suscitar mágoas? As receitas não existem; cada ca
so é “ único” , cabendo ao pesquisador encontrar a melhor solução.
Esta situação, muito visível no caso de velhos, é na verdade habi
tual em toda coleta de histórias de vida e depoimentos pessoais: a pes
soa banal se transforma num “ personagem” , isto é, em alguém notá
vel, importante, numa figura dramática (no sentido de interessante e
comovente), o que a engrandece a seus próprios olhos. Ela deseja en
tão justificar diante do pesquisador a imagem que ele devia possuir,
uma vez que a escolheu para a entrevista; ou então, tendo o sentimen
to de que não corresponde ao que se espera, efetua a rejeição, no mo
mento do convite ou logo depois da primeira entrevista. Estes percal
ços da utilização das histórias de vida e depoimentos pessoais podem
terminar num profundo sentimento de frustração entre informantes e
pesquisadores; os informantes, insatisfeitos com os pesquisadores por
84
que o relacionamento termina; os pesquisadores, insatisfeitos consigo
mesmos porque despertaram simpatias e expectativas que sua função
estabelece serem breves.
Uma palavra ainda sobre a transformação da “ pessoa banal” em
“ personagem” e sua influência sobre a informação. Uma certa defor
mação dos fatos resulta sem dúvida alguma desta circunstância, por
mais sincero e verídico que seja o narrador. Mesmo que este procure
não realçar sua própria participação nos eventos, ou por não ter cons
ciência clara do que efetivamente realizou, ou por um desejo de não
parecer enfatuado e presunçoso, sua maneira de contar, a atenção que
chama para este episódio e não para aquele outro, os detalhes recorda
dos, a maneira de apresentar o conteúdo, são deformações que vai pro
duzindo e que podem chegar a alterações substanciais. Porém, este as
pecto, que será abordado mais adiante neste trabalho, liga-se ao pro
blema da “ busca da verdade” sobre determinados acontecimentos, o
que não constitui propriamente o objetivo das pesquisas por meio de
histórias de vida e depoimentos pessoais. Em linhas gerais, o cotidiano
está sempre presente nas narrativas; a brevidade ou o exagero dos rela
tos, além de permitir o seu conhecimento, levam diretamente ao co
nhecimento das mentalidades, dos universos de pensamento, que tam
bém são objeto da pesquisa. Para a verdade histórica dos fatos, é ne
cessária a aferição dos documentos vivos com outras fontes de dados
— necessária e indispensável; os relatos pessoais, por sua vez, esclare
cem essencialmente as mentalidades.
Uma vez terminado o registro das histórias de vida e dos depoi
mentos pessoais, a fase seguinte da pesquisa é a transposição das nar
rativas, que das fitas passam para a datilografia. Esta primeira trans
formação do material tem dupla finalidade: a) permitir um manuseio
mais fácil de todo ele, nas consultas, pois torna-o, então, independen
te da intermediação de uma máquina — o gravador — e dependente
tão-somente da reprodução de um texto; b) permitir uma conservação
mais longa e mais eficiente do documento, dada a fragilidade das fi
tas, que exige condições específicas e dispendiosas de armazenamento.
Esta etapa do trabalho tanto pode ser efetuada pelos próprios pesqui
sadores que se desincumbiram da coleta de entrevistas quanto por ou
tros pesquisadores que não o fizeram, ou mesmo também por profis
sionais, pois atualmente está aparecendo uma categoria ocupacional
diretamente ligada à transcrição de fitas gravadas.
Qual o termo mais adequado para expressar esta tarefa: transcri
ção ou tradução? O sentido habitual de “ tradução” é o de reprodução
de um texto, oral ou escrito, de um idioma para outro; como todo idio-
m a4é “ único” , em seu sistema simbólico e em sua estrutura interna,
uma tradução bem feita exige que sejam efetuadas todas as mudanças
impostas pelas diferenças, e não apenas uma substituição de termos de
85
um idioma pelos termos correspondentes da outra língua. A tradução
se preocupa, portanto, com o sentido último dos pensamentos expres
sos, mas também com sua apresentação na forma que melhor lhe pos
sa convir na nova linguagem, prendendo-se pouco à reprodução literal
e abandonando os caracteres específicos da linguagem de origem em
que foi composto o texto, que substitui pelos caracteres específicos da
nova linguagem para a qual o texto está sendo vertido.
Por “ transcrição” se entende, por sua vez, a reprodução, num se
gundo exemplar, de um documento, em plena e total conformidade
com sua primeira forma, em total identidade, sem nada que o modifi
que; é aplicado tanto a documentos escritos como a documentos orais.
E mais ainda, o termo encerra também, como significado intrínseco,
a noção de que tal reprodução é efetuada com o fim específico da con
servação dos mesmos em local onde fiquem bem preservados, porém
onde possam também ser facilmente atingidos por quem deseje consultá-
los. Distingue-se de “ cópia” , que significa reprodução idêntica, po
rém com a finalidade explícita da multiplicação e da divulgação — fi
nalidades que não contém o termo “ transcrição” . Portanto é este real
mente o conceito que se aplica à fase em que, da fita gravada, se ob
tém um documento escrito.
A definição de transcrição indica já como preferencial a execução
da tarefa pelo próprio pesquisador que realizou a coleta da história
de vida ou do depoimento pessoal; pois ele, em princípio, é que está
apto a realizar o trabalho de maneira que a escrita reproduza, o mais
fielmente possível, a gravação. Na sua falta, um outro pesquisador po
dería substituí-lo, e somente em último caso esta seria entregue a um
mero profissional de transcrição. A utilização do profissional tem o
inconveniente de não estar ele diretamente interessado pelo conteúdo
da fita, e sim pelo salário a receber por motivo da transcrição, pois
é pago por tarefa executada; sendo esta enfadonha e lenta, a tentação
é grande de suprimir o que for considerado muito repetitivo ou inútil,
a fim de abreviar o trabalho e terminá-lo mais depressa.
Aquele que transcreve fitas gravadas como seu ganha-pão, ou co
mo parte de seu ganha-pão, perde completamente de vista que o mate
rial com que lida pertence à experiência ativa de um informante, de um
indivíduo concreto, específico; sua relação com a fita é exclusivamente
profissional e econômica. A fita gravada deixa de ser, para ele, o relato
de experiência de vida de um ser consciente, ativo, feito de carne e de
sangue; todo valor humano é dela abstraído, restando apenas o valor
de troca que ela representa, isto é, somente seu valor como mercadoria.
Por isso o profissional não leva em consideração a necessidade de con
servar o relevo e o sentido que o informante tentou imprimir à narrati
va, e, mesmo consciencioso, é levado a tratá-la simplesmente como al
go que, terminado no mais curto prazo possível, representa um salário.
86
Por sua vez, o pesquisador que não efetuou as entrevistas mas foi
encarregado da transcrição, sabe que tem diante de si algo de muito
significativo; porém, sua falta de experiência efetiva com o informan
te impede-o de conhecer toda a riqueza, todas as implicações constan
tes do relato que está transcrevendo. Sua falta de conhecimento do in
formante e das condições da entrevista constituem barreiras para que
se dê conta de tudo quanto é necessário conservar — por assim dizer,
até mesmo os suspiros... — para guardar o contexto em seus mínimos
detalhes. Conscienciosamente procurará reproduzir tudo quanto con
tém a fita gravada, mas não poderá ir além do que escuta, e até mesmo
poderá não registrar tudo integralmente, inconsciente do valor dos si
lêncios e da mudança de tonalidade da voz; e isso se dá porque não
tem a possibilidade de recriar na memória a experiência constituída pela
entrevista.
Noutras palavras, sua apreensão da entrevista se opera a partir
de seus próprios conhecimentos, de sua própria vivência. Mesmo que
tente levar em consideração as atitudes, as reações e posicionamentos
do informante em relação aos valores que a narrativa revela, só as capta
através do referencial constituído pelos seus sentimentos e pela sua ex
periência passada. Não houve entre ele e o entrevistado uma partilha
de emoções que permite um conhecimento muito mais íntimo e do ma
terial, e do informante a quem se deve o material.
Desta maneira, o ideal, numa pesquisa, é que o próprio pesquisa
dor que entrevistou o informante seja também o transcritor da fita.
Ouvir e transcrever a entrevista constitui, para ele, um exercício de me
mória em que toda a cena é revivida: uma pausa do informante, uma
tremura de voz, uma tonalidade diferente, uma risada, a utilização de
determinada palavra em certo momento, reavivam a recordação do es
tado de espírito que então detectou em seu interlocutor, revelam as
pectos da entrevista que não haviam sido lembrados quando efetuou
o registro do dia no caderno de campo, ou mesmo dão a conhecer de
talhes que, no momento da entrevista, lhe escaparam. Cada vez que
re-escuta a gravação, refaz de certo modo o contexto todo da entrevis
ta na lembrança para explorá-la mais a fundo. Assim, a transcrição
feita pelo próprio pesquisador contraria uma “ despersonalização” da
entrevista, que existe com maior ou menor força nos dois casos ante
riores e que, mais tarde, será sociologicamente necessária.
A transcrição efetuada pelo próprio pesquisador poderá, pois, en
riquecer o documento e suas informações. Tudo o que recolhe então,
a partir da fita gravada ou de sua memória, irá transcrito também, ou
no próprio texto da entrevista, ou à parte, se se trata de um episódio
muito longo. O texto, porém, devendo ser o mais fiel e próximo possí
vel da gravação, é complementado de maneira que se perceba imedia
tamente que o complemento não estava diretamente nele, ou então
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estava nele sob outra forma que não a da palavra falada; colocado en
tre parênteses, ilustra o texto sem quebrar sua unidade. É para evitar
esta quebra de unidade, também, que os complementos longos devem
ir para o caderno de campo, com a data da entrevista e da transcrição,
evitando a interrupção da narrativa, que ocorrería se enxertado nela
entre parênteses.
Transcrever significa, assim, uma nova experiência da pesquisa,
um novo passo em que todo o processamento dela é retomado, com
seus envolvimentos e emoções, o que leva a aprofundar o significado
de certos termos utilizados pelo informante, de certas passagens, de
certas histórias que em determinado momento foram contadas, de cer
tas mudanças na entonação da voz. Tudo isto é material que o pesqui
sador obteve, de cuja construção diretamente participou — pois no pro
cesso de que resultou foi ele parte, numa legítima ação de “ observa
dor participante” , com todos os riscos que esta posição comporta. É
verdade que não partilhou estreitamente da vida cotidiana do infor
mante, como quer a expressão “ observador participante” usualmente
empregada em antropologia; porém, se a expressão não pode ser apli
cada em se tratando do sentido estrito, em sentido amplo houve uma
participação íntima entre eles, uma associação simbólica e não objeti
va que permitiu, pela instalação de laços de quase-identidade e de co
munhão entre ambos, o desencadeamento frutífero do processo de re
memorar. Talvez este dom de partilhar que torne mais eficiente o tra
balho do pesquisador nas ciências humanas, esta possibilidade de quase-
identidade com o “ outro” ; dom que o revela como “ o mais capaz”
para efetuar os registros, apesar de todas as dificuldades que possa tam
bém trazer. E sem dúvida é esse relacionamento que estimula vigoro
samente a memória do informante.
A transcrição efetuada pelo próprio pesquisador tem, também, o
valor de uma primeira reflexão sua sobre a experiência de que parti
lhou, e que ele cria uma segunda vez ao escutar a fita. Porém, nesta
segunda vez uma distância se estabeleceu entre ele e o informante, re
presentada pela fita gravada — distância que constitui uma “ coloca
ção em situação” , que possibilita captar toda a experiência havida a
partir, agora, do exterior, sem a acuidade dos envolvimentos emocio
nais que o contexto vivo acarretava. E quantas vezes julgar necessário,
poderá retomar a experiência para aprofundar suas observações. Ao
efetuar a transcrição o pesquisador tem, então, a invejável posição de
ser ao mesmo tempo interior e exterior à experiência.
A transcrição da entrevista feita pelo próprio pesquisador consti
tui, pois, uma tentativa de retardamento da transformação completa
do documento oral, com sua vivacidade, colorido e calor humano, no
documento escrito inerte, passivo, estático, que, além disso, reproduz
somente em parte tudo quanto realmente ocorreu. No documento es-
88
crito, o fato social não aparece somente cristalizado, isto é, fixo e imó
vel, mas também isolado de todo um conjunto de qualidades e circuns
tâncias para as quais não há registro escrito possível. Excisão, que sig
nifica a separação pouco volumosa de parte de um corpo, seria o ter
mo que expressa o que acontece quando a transcrição é efetuada pelo
próprio pesquisador que realizou a entrevista. Quando se trata de al
gum outro sem a experiência deste, o corte de partes da entrevista po
de ser mais e mais importante, chegando à mutilação, que trunca e de-
sumaniza, e por isso mesmo desvirtua o texto.
Este último caso é um caso extremo; um profissional dotado de
consciência pode efetuar uma transcrição que, sem atingir os refina
mentos do trabalho realizado pelo próprio pesquisador, pode ser con
siderado satisfatório. Tanto mais que se deve ter em mente que todo
trabalho de pesquisa resulta sempre numa cristalização dos dados do
real, no sentido de sua passagem da vivacidade e do movimento para
a fixidez e a passividade, e também numa redução, pois vários aspec
tos são sempre suprimidos a fim de se possibilitar seu registro. Nesta
perspectiva, nada mais mutilador, sob certos aspectos, do que a técni
ca de questionário — mutilador no sentido do termo, que significa cor
tar fora uma parte ou várias partes importantes de um conjunto, de
tal modo que este permaneça alterado e diferente do que era em sua
forma anterior.
A fita gravada pode correr tal risco quando se trata de um trans-
critor bisonho, ou então quando a gravação, mal feita, obriga ao aban
dono de alguns ou de vários de seus trechos; o risco é maior quando
se trata de um transcritor que não fez a entrevista, ou que nunca fez
uma entrevista. Mesmo no caso de um perito, ela é sempre um empo
brecimento em relação à totalidade da entrevista. Esta teve lugar em
determinado ambiente, foi acompanhada de determinados gestos, te
ve um colorido emocional que a gravação não registra. O pesquisador
pode descrevê-lo em palavras, no seu caderno de campo; porém, a vi
da estará dela ausente. Poder-se-ia argumentar que um documento au
diovisual seria muito mais adequado para a fidelidade do registro, do
que somente o documento oral. No entanto, o próprio documento au
diovisual tem sua limitações e suas falhas. O vivido é irrecuperável em-
sua total vivacidade.
O que se quer, com estas reflexões, é chamar a atenção para o sig
nificado da técnica de gravador, em suas diferentes fases. A primeira
é a do registro, durante a qual a fala do informante é captada com
grande fidelidade, mas que já constitui um recorte do real, uma vez
que a fita registra somente a fala, perdendo todos os demais detalhes
que compõem o contexto total da entrevista. Um primeiro empobreci
mento tem assim lugar. A segunda fase é a da passagem da fita grava
da para o documento escrito, na qual, na verdade, se perde muito
89
menos do real do que na primeira passagem, mesmo quando esta é
acompanhada de um copioso caderno de campo, porém na qual ainda
se perde algo. O documento escrito, resultado destas duas fases, é uma
pálida cópia da realidade, e é sobre esta pálida cópia que trabalha o
pesquisador.
Os termos utilizados até agora para exprimir a relação entre o do
cumento e a realidade — corte, recorte, excisão, mutilação, amputa
ção — exprimiam todos, de maneira mais branda ou mais incisiva, uma
perda de algo, uma alteração, um desvirtuamento em relação à ma
triz, encarado como negativo em relação a ela. Mas não será esta a
condição necessária e indispensável para se obter qualquer documento
sobre o qual se possa exercer a análise?
Se o conhecimento sensível, através do ato de perceber, constitui
já uma abstração, as fases acima referidas seriam abstrações necessá
rias à obtenção de um documento que possa ser objeto de um apro
fundar de reflexões. Dessa forma, toda a ação do pesquisador sobre
o real, a partir do momento em que propõe uma pesquisa, significa
desencadear uma seqüência de abstrações, cujo caráter isolante encon
tra sua validade no fato de constituir uma etapa para descobrir o que
se oculta sob o imediatismo da evidência empírica. É este raciocínio
que confere validade à ação científica. É neste contexto que as fitas
gravadas com o objetivo de pesquisa diferem das fitas gravadas que
integrarão a coleção de um Museu da Imagem e do Som, que visam
apenas e somente preservar.
Mas se o documento escrito recobra assim sua importância diante
da fita gravada, por que a exigência da fidelidade a esta última, a pon
to de se encarar como “ ótima” a transcrição efetuada pelo próprio
pesquisador? É que abstrair não é efetuar quaisquer cortes no real; exis
tem cortes que resultam da falta de instrumentos suficientemente refi
nados, ou de uma deficiência da habilidade do pesquisador, e são es
ses cortes que convém evitar para não pôr em risco a viabilidade do
que se pretende fazer. Foi para esses que se quis chamar a atenção.
Cumpre aceitar, pois, a transcrição como a criação de um novo
tipo de documento — o documento escrito — com todas as caracterís
ticas dos deste tipo habitualmente encontrados. Como documento es
crito, sua especificidade estará em poder ser confrontado com a ma
triz (a gravação) todas as vezes que necessário, o que não sucede com
questionários, nem com documentos históricos. Como documento es
crito, não dispensa o cotejo com outros tipos de documentos, para aqui
latar a veracidade ou o valor de suas revelações, englobando-se entre
estes outros documentos o caderno de campo e as próprias recorda
ções do pesquisador. É sobre o documento escrito que passará a traba
lhar o pesquisador, que entra assim numa nova fase de sua labuta.
90
VIII — Análise de documentos
em ciências sociais
91
pólogo Oscar Lewis,2 a intervenção do mesmo foi menor, buscando
ele resguardar a integralidade do que fora exposto pelos informantes,
e buscando o pesquisador somente ordenar de forma congruente a fa
la destes. Finalmente, no livro Ioiô Pequeno da Várzea Nova, de Má
rio Leônidas Casanova,3 o pesquisador procurou prender-se ao máxi
mo às maneiras de dizer, às idas e vindas no tempo efetuadas pelo in
formante, tal qual ficaram registradas na fita, sem nada mudar de suas
repetições; no entanto, também foi necessária uma escolha de tópicos
e o sacrifício de outros, para que todo o material recolhido fosse pu-
blicável num volume e adquirisse uma forma literária aceitável.
No entanto, apesar das intervenções dos pesquisadores, que pare
cem ser inevitáveis, o relato de cada informante é, em geral, apresen
tado como um todo. De acordo com o modo pelo qual foram ofereci
dos ao público, depreende-se que o estudioso que os colheu acredita
que este tipo de documento só será capaz de veicular informações a
outrem quando se apresentar na sua totalidade. Por esta forma de uti
lização, que afasta também uma interpretação do material contido nos
depoimentos, parecem aqueles pesquisadores afastar qualquer possi
bilidade de análise dos depoimentos colhidos. A interpretação ou é ine
xistente ou é mínima, reportando-se a aspectos como os mecanismos
da memória e não às informações transmitidas pelos depoentes.
Por análise, no sentido operacional do termo, entende-se o recor
te de uma totalidade nas partes que a formam, que são então apreen
didas na seqüência apresentada em sua naturalidade para, num segun
do momento, serem restabelecidas numa nova coordenação. Num e
noutro momento, isto é, na decomposição e na subseqüente recompo
sição, obedece-se tanto quanto possível às relações existentes entre es
tas partes. Admite-se que este desfazer de um objeto segundo uma mar
cha específica, seguido de um refazer em ordem diferente (pois no pri
meiro momento a ordem é de sucessão e no segundo momento a or
dem é de simultaneidade), permite chegar a uma compreensão mais pro
funda de seu sentido, a uma avaliação mais clara de suas qualidades.
Na verdade, na maioria dos trabalhos conhecidos que lidam com
histórias de vida e com depoimentos gravados, o material não foi em
seguida analisado, isto é, recortado para ser utilizado noutra forma.
Na própria obra, em tantos aspectos admirável, de Ecléa Bosi, não
foi utilizado este tipo de aproveitamento. Cada história de vida e de
poimento pessoal é encarado assim como um documento, cujo valor
de transmissão de informações ou de demonstração residisse na con
servação da maioria dos detalhes, como se não fosse possível
compreendê-lo senão conservando-o em forma monolítica. Acredita-
se que a divisão em partes, ou a busca de determinados dados com
a exclusão de outros, deturparia e a parte, e o todo. Os.pesquisadores
referidos parecem aceitar implicitamente que o aproveitamento des
92
tes documentos só seria possível com a conservação integral de forma
e conteúdo.
Estas observações não foram explicitamente formuladas pelos di
versos pesquisadores. Porém, a maneira constante e única pela qual
foram apresentados os documentos, por estudiosos muito diferentes
e sem contato entre si, leva a estas inferências. Como corolário, con-
clui-se que realmente não caberia ao pesquisador analisar e interpre
tar, porém sim e somente transcrever, no caso de histórias de vida e
depoimentos pessoais. O pesquisador, munido de seu gravador, se trans
formaria em mero coletor de material, em mero fabricante de docu
mentos. Sem dúvida, os bons fabricantes de documentos são necessá
rios, e noutra parte deste trabalho foi examinado como devem agir,
quais os parâmetros que orientariam sua coleta a fim de alcançar a
maior validade, quando utilizados os gravadores. Porém, deverá esta
finalidade ser a única, afastando-se qualquer aproveitamento ulterior
dos mesmos? E, caso este aproveitamento seja possível, não terá ele
regras que devam ser observadas?
Estas questões são tanto mais pertinentes quanto a intervenção do
próprio pesquisador já se fez sentir na transcrição da fita para o docu
mento escrito, fazendo-o às vezes escolher o que conservar e o que eli
minar. Noutras palavras, efetuou recortes no material levantado e con
servou, como documento escrito, os tópicos que determinados crité
rios lhe apontaram como válidos. Esta primeira intervenção, quando
inteiramente necessária, permite encarar outras intervenções posterio
res como possíveis.
Parecia cabível indagar dos especialistas em “ análises de texto”
— estudos da literatura e da filosofia — quais os passos a serem segui
dos a fim de se apreender o que contém um documento escrito. Ao
que parece, porém, não existiria nenhum esquema, nenhum conjunto
de regras que pudesse ser sistematicamente transmitido aos interessa
dos em efetuar uma operação desse tipo. Segundo os entendidos, in
tuição, erudição e experiência compõem o arsenal de que se serve o
estudioso em tal análise, tanto no que diz respeito à literatura e aos
textos filosóficos quanto no que tange às memórias, às autobiografias,
isto é, a textos próximos das histórias de vida e dos depoimentos colhi
dos por cientistas sociais. Não seria possível formular nenhuma nor
ma operacional que orientasse o trabalho de um pesquisador, uma vez
que cada pesquisador tem sua própria experiência e sua própria erudi
ção, que o levarão a um entendimento mais raso ou mais profundo
dos materiais estudados, porém sempre diferente dos demais.
Existiriam, portanto, múltiplas análises possíveis dos documen
tos, cada qual constituindo a expressão das peculiaridades de um estu
dioso e de suas intenções num momento dado; análises que poderíam
ser inclusive antagônicas, conflituosas e mutuamente exclusivas. As
93
sim, os estudiosos que se especializam em “ análises de texto” não uti
lizam em geral o termo “ análise” em seu significado atual de decom
posição em partes. O sentido atribuído é outro mais antigo: o de bus
car os princípios que presidiram à construção do texto e desvendar a
origem do mesmo, pela compreensão em profundidade daquilo que ele
contém. Note-se que, seguindo-se este rumo, realmente o texto deve
ser apreendido em sua totalidade, e o aprofundamento de seu signifi
cado só é alcançado através da conservação de sua integridade.
Tal maneira de ver parece considerar que os documentos escritos
só teriam uma forma possível de aproveitamento — a que revelasse
a visão do mundo de seus autores nos seus princípios mais recônditos.
Foi esta a perspectiva da chamada “ escola alemã de sociologia” que,
iniciada com Dilthey (1833-1911), teve em Max Weber (1864-1920) seu
mais alto expoente; perspectiva que, dos fenômenos da história, foi
estendida a todos os fenômenos sociais. Tais autores eram de opinião
que os fenômenos sociais só poderíam ser conhecidos através de uma
compreensão intuitiva que atingesse seu sentido intrínseco, essencial
mente singular. O ato de compreensão era entendido como a captação
empática da intimidade do objeto estudado, em sua individualidade,
porém também em sua totalidade. Recusava-se, assim, nas ciências so
ciais, a validade de uma análise tanto quanto possível seca, indiferen
te, fria, como a que habitualmente se exerce nas ciências exatas e
naturais.
A incongruência desta perspectiva com o objetivo que levou à uti
lização dos meios mecânicos de registro de dados é indiscutível. Os
meios mecânicos são enaltecidos porque permitem um afastamento do
pesquisador e de sua subjetividade na coleta dos dados; possibilitam,
desta forma, dados muito mais próximos da realidade, sem a distor
ção trazida pelas emoções dos estudiosos. Porém, no momento em que
o estudioso se volta para o aproveitamento do material que colheu,
então a subjetividade e as emoções se tornariam fundamentais... Na
verdade, estamos diante da antiga querela “ ciências da natureza — ciên
cias da compreensão” , que dividiu os cientistas sociais nos fins do sé
culo passado, perdurando em todo o início deste; querela que Georges
Gurvitch (1894-1965), na década de 50 deste século, incluiu entre os
“ falsos problemas” da sociologia.4 Como mostrou Gurvitch, não são
posições mutuamente exclusivas; dependem da perspectiva em que se
coloca o pesquisador a fim de efetuar o seu trabalho.
As perspectivas de pesquisa são, pois, múltiplas. No caso das his
tórias de vida e dos depoimentos pessoais, podem estes ser utilizados
para esclarecer a existência, os processos mentais, as características psi
cológicas de determinado indivíduo; somente estaria então em causa
a reconstrução daquela existência, ou do fato sobre o qual se solicitou
explicitamente o testemunho do informante. Nestes dois casos, real
94
mente, o documento deve ser conservado na sua integridade, e deve
ter o seu significado apreendido através da penetração cada vez mais
abrangente que o estudioso puder efetuar. Pode ser que tais documen
tos tenham sido colhidos exclusivamente com essa finalidade; porém,
mesmo neste caso seu aproveitamento para outros fins não fica em ab
soluto excluído.
Na verdade, histórias de vida e depoimentos pessoais, a partir do
momento em que foram gerados, passam a constituir documentos co
mo quaisquer outros, isto é, se definem em função das informações,
indicações, esclarecimentos, escritos ou registrados, que levam a eluci
dações de determinadas questões e funcionam também como provas.5
A utilização de histórias de vida e depoimentos pessoais — da mesma
forma que qualquer tipo de documento escrito ou registrado — passa
rá a depender então do interesse e do objetivo da pessoa que o consul
te, seja ele um pesquisador científico ou qualquer outro profissional.
Como sua utilização está governada pelo problema enunciado pe
lo consultante, somente através da análise, isto é, do desmembramen
to dos tópicos que contém, poderá ser aproveitada a informação nele
encerrada. Pode o pesquisador estar interessado em conhecer especifi
camente quais as informações que o documento guarda; sua busca não
estará orientada então por uma questão específica e delimitada, mas
seguirá em sua indagação o contexto que o mesmo apresenta, porém
também efetuando uma análise, ou, noutras palavras, identificando os
diferentes temas nele existentes, o que significa separá-los uns dos
outros.
De acordo com esta perspectiva, a análise permite infinitas inda
gações dirigidas aos documentos — desde que estes sejam suficiente
mente ricos para servirem a uma grande quantidade de pesquisas. Em
pregando um vocabulário atualmente em moda, múltiplas são as leitu
ras que qualquer documento permite, porém a atitude dos estudiosos
diante dele são apenas duas; tomá-lo em sua peculiaridade total e le
vantar os problemas que ele encerra; ou então efetuar a análise depois
de formuladas as questões que julga interessantes, na suposição de que
ele contém todos os elementos que permitem esclarecê-las. Estas atitu
des se aplicam a todos os tipos de documento, sejam eles escritos ou
gravados.
Uma diferença apresentam os pesquisadores que utilizam a técni
ca de questionários ou a de entrevistas dialogadas com roteiro (per
gunta e resposta) para a construção de documentos. Nestes dois casos,
o próprio pesquisador, ao construir seu questionário ou seu roteiro,
efetua nesse momento o primeiro corte da realidade, a primeira análi
se, assim como delimita, de maneira mais ou menos restrita, o âmbito
das respostas; já está, pois, definindo as seqüências em que devem ser
oferecidos os dados pelos informantes, e, em seguida, basta-lhe reunir
95
as respostas em itens ou capítulos segundo as questões, para alcançar
a síntese que se propôs realizar. Análise e síntese não partem, então,
diretamente dos dados narrados pelo informante; partem dos conheci
mentos prévios do pesquisador, correspondendo ao que ele “ supõe”
ou “ imagina” encontrar na realidade.
Porém, tal não ocorre quando se deixou aos informantes uma gran
de latitude na condução do seu discurso e de seus raciocínios, isto é,
quando a intervenção do pesquisador se reduziu ao mínimo possível,
como se dá nas histórias de vida e nos depoimentos pessoais. Eles têm
uma ligação muito menor com o pesquisador, e se aproximam dos do
cumentos históricos, isto é, dos conjuntos de informação escritas ou
gravadas que, gerados no passado, se criaram sem a mediação dos es
tudiosos que no presente visam utilizá-los. Se falamos em informações
gravadas, é porque consideramos a pintura, o desenho, a escultura tam
bém como documentos veiculadores de noções e indicações, ao mes
mo título que os escritos. Como nos documentos históricos, a indica
ção dos cortes a serem efetuados não preexiste às histórias de vida e
depoimentos pessoais — a não ser de modo muito amplo, quando se
indaga, por exemplo, o que o informante lembra de sua infância e ado
lescência predominantemente; no entanto, no decorrer da entrevista,
tem ele a liberdade de enveredar pela idade adulta, se o desejar, sem
que o entrevistador o traga de volta ao rumo sugerido. Como já se dis
cutiu anteriormente, o documento bem colhido é aquele em que a in
tervenção do pesquisador foi mínima — quando se trata de histórias
de vida e de depoimentos pessoais.
Estará então o pesquisador diante de um texto que se pretendeu
fosse o mais possível exterior a ele; e, repita-se novamente, diante de
um texto que pode ser encarado como um documento histórico. Exis
te, porém, uma diferença importante entre ambos, que é a forma de
sua obtenção: o pesquisador conhece o documento desde sua origem,
está a par das situações específicas que rodearam o seu nascimento,
foi o promotor delas, no caso das histórias de vida e dos depoimentos
pessoais — o que tudo foi anotado em seu caderno de campo. Esta
circunstância torna mais significativo o que ele vai retirar do documento,
permite uma análise mais fina, porém não é condição suficiente para
indicar qual o caminho a ser seguido no recorte dos temas que a análi
se pressupõe.
Diante do texto que assim obteve — isto é, de uma informação
gravada que, depois de transcrita, tomou a forma de uma narrativa
— o pesquisador tem três caminhos a seguir: a) leitura cuidadosa do
mesmo para ajuizar do seu conteúdo e, então, decidir os cortes que
nele poderá efetuar, a partir do material encontrado; b) trazendo já
em seu projeto as questões que lhe interessam, procurar no conteúdo
do texto as informações de que necessita; c) combinar os dois rumos,
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que não são mutuamente exclusivos, colocando no documento as ques
tões previamente definidas, e levantando do mesmo outros temas que
não figuravam em seu projeto, porém que de repente se lhe avultaram
como importantes. A segunda via de acesso ao material se aproxima
daquela que é seguida pelo pesquisador que utiliza questionários e en
trevistas com roteiro, pois, como no caso deste, já haviam sido previa
mente definidas as questões consideradas mais interessantes; porém,
ao contrário do que ocorre com os questionários, o informante não
foi pressionado no sentido de oferecer quase exclusivamente as infor
mações ligadas às questões, ao ser efetuada a entrevista.
A combinação das duas atitudes, a e b, contida em c, é a que per
mite a leitura mais rica do documento, de tal forma que se extraia dele
o máximo de informações, tanto a respeito das questões já formuladas
pelo pesquisador no seu projeto quanto no tocante às informações im
previstas, que o texto pode veicular. Num e noutro caso, há um corte
importante a ser efetuado logo de início, distinguindo o plano formal
e o plano do significado, como de há muito aconselhava a velha técni
ca da exegese. Não esquecer, porém, que se trata de dois planos pro
fundamente imbricados, que se pressupõem um ao outro e cuja sepa
ração se coloca, pois, como um verdadeiro artifício da parte do
pesquisador.
O plano formal diz respeito ao que, numa obra de arte, se designa
como “ estilo” , isto é, a marca pessoal que o artista impõe ao material
com que lida, a técnica que lhe é peculiar, a forma de escrita que o
distingue dos demais, que é expressão de sua sensibilidade e do seu ca
ráter. Assim como o artista, cada informante também possui uma ma
neira específica de conduzir a narrativa, escolhida inconscientemente
de preferência a outras, e que é importante considerar numa pesquisa.
No caso das histórias de vida e dos depoimentos pessoais, a forma se
expressa nos pontos de referência que o informante adotou para apoio
de sua narrativa, e que variam de indivíduo a indivíduo; podem ser
construídos ou pela cronologia, ou pela marca afetiva das comemora
ções familiares e profissionais, ou pela topografia e localização no es
paço, etc.
A forma se inscreve também na maneira pela qual se desenrola
a narrativa, — linear, circular, com idas e vindas, — marcha apoiada
nos pontos de referência específicos da fala do informante. Esta apre
senta, pois, uma estrutura que é preciso reconhecer e nomear; tem, as
sim, uma configuração que decorre de sua organização interna. De acor
do com tal configuração será possível classificar os informantes em es
pécies diversas, e, comparando as espécies com as características cons
tantes das fichas dos mesmos — sexo, idade, instrução, estado civil,
etc — pode-se indagar da existência ou não de ligações entre estes da
dos. Por exemplo, terão homens e mulheres da mesma faixa de idade,
97
de instrução e condição sócio-econômica semelhantes, os mesmos pon
tos de referência e a mesma marcha da narrativa? Ou a diferença de
sexo influencia estes aspectos?
A matéria exposta pelo informante tem um significado, represen
ta aquilo que ele comunicou ao pesquisador e que deve ser compreen
dido por este. A maior dificuldade da análise do significado está em
sua multiplicidade, cuja base se encontra, por um lado, na soma de
conhecimentos de que dispõe o informante e, por outro lado, no con
junto de interesses e de conhecimentos do próprio pesquisador, que,
no acervo coletado, poderá encontrar maior ou menor número de in
formações. Esta multiplicidade de sentidos tem sido denominada “ ho
rizontal” , porque ocorre no instante em que é avaliado o documento
pelo pesquisador, ajuizando da simultaneidade de assuntos por este vei
culados. A variação se dá através do tempo: em épocas diversas, cada
documento será também encarado de maneira diferente, outras infor
mações serão buscadas nele, porque os interesses e focalizações dos es
tudiosos variam com o correr dos anos. Variação horizontal e varia
ção vertical estão associadas: cada momento dó tempo tem a especifi
cidade de seus interesses, ao qual se associa a multiplicidade de infor
mações que o documento oferece.
De qualquer modo, é sempre num momento do tempo que o pes
quisador se defronta com o depoimento, avultando um primeiro dis
tanciamente entre ambos, entre o sentido que lhe foi dado pelo infor
mante e o sentido captado pelo pesquisador. No caso de entrevistas
gravadas, o pesquisador se encontra diante do texto em três circuns
tâncias diversas, pelo menos: na realização do depoimento; na escuta
da gravação para a transcrição escrita; na leitura aprofundada do do
cumento já escrito. A captação do significado pode variar a cada uma
destas circunstâncias; se tal ocorre, torna-se necessário ouvir a grava
ção muitas vezes, para a confirmação do significado mais próximo do
que foi veiculado pelo informante. É neste momento, também, que o
confronto com as anotações do caderno de campo do pesquisador po
dem trazer importantes contribuições, indicando qual o sentido regis
trado num detalhe ou num gesto, que esclareça qual a orientação mais
correta do significado.
Quando se trata de um trabalho de equipe, em que os depoimen
tos foram recolhidos por diversos pesquisadores, e em que é necessá
rio que todos tomem conhecimento dos mesmos para a unidade do tra
balho, a variação dos significados se torna ainda maior, multiplicada
pela diversidade de apreensão por cada um dos entrevistadores. O cui
dado deve também aumentar; entre maneiras de ver muito díspares,
deve prevalecer sempre a do pesquisador que colheu o informe, pois
estando presente na gênese do mesmo e em todos os momentos de sua
transformação de oral para escrita, é quem detém sensibilidade e co-
98
nhecimentos maiores a respeito do que encerra. Por estas razões se torna
aconselhável que o próprio pesquisador efetue todos os passos, da gra
vação até o documento, para garantia da maior proximidade entre a
coleta oral e o resultado escrito; por estas razões, também, um cader
no de campo redigido com cuidado pode servir de ponto de apoio para
dirimir dúvidas.
A constatação da multiplicidade de sentidos de um mesmo docu
mento, orientada pela especificidade de interesses de cada pesquisador,
não vai até o ponto de se concluir que cada intérprete chegará forçosa-
mente a compreensões divergentes. Na verdade, as convergências são
sempre maiores e mais importantes do que se poderia supor. No caso
de um trabalho de equipe, em que tais dificuldades poderiam se avolu
mar ao extremo, deve-se sempre lembrar que todos os pesquisadores
estão unidos pelo delineamento do projeto de que participaram, o que
significa um denominador comum de seus interesses e opiniões. Um
mesmo objetivo, uma mesma visão das questões, uma mesma maneira
de agir na coleta dos dados, reuniram os pesquisadores, diminuindo
as disparidades entres eles.
Se tal sucede com uma equipe, com mais razão quando se trata
do projeto de um único pesquisador. No entanto, tais reflexões mos
tram o perigo de um projeto ideado por um ou por alguns pesquisado
res, que utilizaram, na coleta de dados, certa quantidade de “ mão-de-
obra de pesquisa” ; estes elementos se definem simplesmente como gente
que efetua coleta de material, contratada para esta tarefa específica,
possua ou não treinamento para tanto. Também a transformação do
documento oral em documento escrito pode ser efetuada por tais ele
mentos. Trata-se, portanto, de gente que não participou da proposi
ção e da organização do projeto, cujos interesses não estão presos a
ele, que não têm unidade de objetivos com os pesquisadores; introdu
zem, por isso, um novo elemento de variação relativamente ao mate
rial, tanto no momento da gravação quanto no momento da transcri
ção, representado pelo desenfoque trazido pelos seus próprios interes
ses pessoais e pela menor soma de conhecimentos que possuem a res
peito da pesquisa. Por esta razão é sempre preferível que o próprio pes
quisador, ou a própria equipe, se encarregue tanto da coleta dos de
poimentos como da transcrição dos mesmos.
O conteúdo de uma história de vida ou de um depoimento pessoal
deve ser encarado também na qualidade das informações registradas.
À medida que formas mecânicas de registro do cotidiano foram sendo
inventadas (o disco primeiro, o gravador mais tarde para a voz; a fo
tografia a princípio, em seguida o cinema, para a imagem; a filmagem
falada, depois a televisão para voz e imagem ao mesmo tempo), a com
paração de seus registros com o que resultava da aparelhagem biológi
ca humana ressaltou a precariedade desta, em confronto com a minúcia
99
dos resultados dos demais. Chegou-se a admitir que os registros mecâ
nicos seriam sempre preferíveis aos humanos, devendo-se substituí-los
cada vez mais. No entanto, as experiências efetuadas para a utilização
do cinema como uma técnica sócio-antropológica demonstraram o ar
bítrio do pesquisador, primeiramente ao construir o projeto e, uma vez
terminada a filmagem, ao determinar os cortes que deveriam permitir
um encadeamento narrativo dos dados que levasse a uma compreen
são clara. Noutras palavras, a intervenção autocrática do pesquisador
estava sempre presente, orientando a coleta e, em seguida, a concate-
nação das imagens para transmitir as idéias, muito embora se procu
rasse resguardar a lógica do que se estava assim armazenando. Esta
ilusão de objetividade era semelhante à do pesquisador que empregava
técnicas quantitativas na coleta de seu material, e que se mostrava con
vencido de que a utilização dos algarismos era garantia de um afasta
mento de sua própria subjetividade; na verdade, tanto na formulação
do projeto quanto na construção da técnica de coleta, a subjetividade
está presente, e com mais ênfase talvez ainda na análise e na
interpretação.
Todavia, além dos problemas colocados pelos pesquisadores, existe
também, nas histórias de vida e depoimentos gravados, a subjetivida
de do informante, que muitas vezes substitui ao real aquilo que indivi
dualmente percebe do mesmo, seja de maneira parcial ou não; lado
a lado com percepções exatas, pode ele afirmar com toda a convicção
uma série de enganos. Quanto mais recuados forem os fatos no passa
do, ou quanto mais estiverem fora da experiência cotidiana do infor
mante, mais provável a falha da memória, registrando falsidades ou
nada registrando.
Seria possível pensar que estas lacunas estariam sanadas quando
vários depoimentos fossem colhidos sobre o mesmo fato. A socióloga
francesa Germaine Tillion, ao participar como testemunha nos julga
mentos de Nuremberg, depois da segunda guerra mundial,6 observou
que depoimentos de vários informantes convergiam para o mesmo en
gano, todos dando-o com sinceridade como verdadeiro. Efetuou en
tão um confronto entre tais documentos e os informantes, verificando
que se tratava sempre de indivíduos educados no mesmo grupo, ou em
camadas sócio-econômicas e culturais semelhantes; sua hipótese expli
cativa foi que tais indivíduos, a partir de uma socialização praticamente
idêntica, formulavam imagens mentais análogas, que orientavam todo
o seu registro da memória. Noutras palavras, não era o fato em sua
autenticidade que se gravava nas recordações, e sim uma interpreta
ção, uma verdadeira “ tradução” do mesmo. Assim, “ hábitos mentais” ,
adquiridos através de socialização e de experiências de vida homólo
gas, se substituíam à percepção “ pura” do real. Esses informantes afir
mavam convictos algo que em seguida se desvendava como sendo um
100
engano. A quantidade de depoimentos colhidos sobre um mesmo fa
to, todos no mesmo sentido, não era então garantia de que o fato ti
vesse ocorrido da forma como fora gravado na memória; antes de dá-
lo como verdadeiro, era preciso saber quem tinham sido os informan
tes, que posições ocupavam na escala social. A segurança do que fora
resgistrado só se evidenciava quando os depoimentos tivessem sido apre
sentados por informantes muito diferentes entre si quanto à sua expe
riência de vida, camada sócio-econômica, instrução, etc.
Tais observações poderíam ter levado Germaine Tillion a descrer
profundamente de todos os testemunhos que foi recolhendo, tanto du
rante seu cativeiro no campo de concentração de Ravensbrück, como
depois de libertada e, mais tarde, quando participou dos julgamentos
de Nuremberg. A quantidade de testemunhas e a convergência ou não
de seus relatos não lhe pareceram, efetivamente, meios seguros de reen
contrar a verdade do passado; de onde concluir que as estatísticas não
ofereciam nunca meios seguros de verificação do real. O estabelecimento
da verdade objetiva se prendia a outros cuidados, que procurou des
vendar, valendo-se de sua experiência de socióloga.
O primeiro cuidado era separar, nos documentos existentes, tudo
quanto se referisse a dados institucionais e permanentes; em geral tais
dados são registrados em documentos muito variados, além dos de
poimentos pessoais; o cotejo entre os outros tipos de documento e os
depoimentos pessoais permitia descobrir certos enganos. O segundo cui
dado era distinguir, nos depoimentos pessoais, tudo quanto se referis
se aos “ rituais” da vida cotidiana em seus detalhes, às hierarquias e
à composição interna dos grupos em que estavam inseridos os infor
mantes; também sobre estes aspectos existia documentação registrada
de outras formas, e seu cotejo com o depoimento efetuava a verifica
ção desejada.
Restavam então, nos depoimentos, os “ acontecimentos” e sua per
cepção, assim como as opiniões dos informantes. Germaine Tillion não
define o que entende p,or “ acontecimento” ; porém, a maneira pela qual
emprega o termo indica que o utiliza no sentido da verbalização de tu
do aquilo que sucede num momento e numa localização determinados,
e que se distingue do curso uniforme de fenômenos da mesma nature
za; o interesse do “ acontecimento” , seja ele previsível ou imprevisí
vel, está em que escapa inteiramente do corriqueiro. Este significado
do termo “ acontecimento” coloca imediatamente o problema da per
cepção dos informantes, os quais, conforme sua experiência e sensibi
lidade, o enxergarão ou não como divergindo do “ curso uniforme de
fenômenos da mesma natureza” . Assim, cada informante poderá de
finir ou não como “ acontecimento” os fatos que ocorrem em sua exis
tência, dependendo tal definição de seu próprio modo de encarar as
coisas. Além do “ acontecimento” , também depende da percepção in
101
dividual tudo quanto se refere à avaliação da duração, à situação no
espaço físico e social, aos movimentos, às formas, às cores, ao núme
ro, à quantidade; todas estas percepções trazem o selo do indivíduo
que as formulou, e, através dele, da posição sócio-econômica que ocupa.
É então que se coloca como primordial a escolha dos informan
tes, que deve ser orientada segundo os problemas delimitados no pro
jeto de pesquisa; noutras palavras, é preciso escolher informantes váli
dos para as questões a serem estudadas. Informante válido é aquele
que se supõe de antemão possuir uma vivência do que se procura co:
nhecer. Quando se buscava conhecer, como Germaine Tillion, o desti
no último de um grupo de mulheres internadas ao mesmo tempo que
ela no campo de concentração de Ravensbrück, tanto eram informan
tes válidos as suas companheiras de detenção quanto os componentes
da aparelhagem carcerária, burocrática e administrativa do mesmo, co
mo também podiam ser interessantes os depoimentos dos habitantes
das vizinhanças; mas, além destes, somente os membros da cúpula na
zista poderíam também ser considerados informantes válidos. Infor
mantes válidos são, portanto, aqueles que, no momento histórico es
colhido, tiveram vivência do que se procura conhecer, informantes que,
porém, deveríam ter experiências de vida diversas uns dos outros.
O segundo cuidado com estas informações é definir qual a rela
ção existente entre o informante e o que se quer conhecer (relação pro
fissional, relação afetiva, relação acidental, relação interessada ou de
sinteressada, etc.). A confiabilidade do relato, sua maior ou menor
aproximação do real, repousam no sentido desta relação. Voltando ao
caso de Germaine Tillion, o depoimento dos membros da burocracia
ou da aparelhagem carcerária de Ravensbrück se orientaram em dire
ção diferente daquela das prisioneiras; a definição de cada “ aconteci
mento” era diversa numa e noutra situação. Não se tratava de elimi
nar um conjunto de informantes em função de outro; o procedimento
era confrontar os depoimentos de cada conjunto, a fim de se estabele
cer divergências e convergências, a serem interpretadas'à luz das rela
ções dos informantes com os “ acontecimentos” .
O objetivo de Germaine Tillion era chegar à verdade a respeito
do campo de concentração de Ravensbrück e do destino dado às pri
sioneiras que periodicamente eram dele retiradas — objetivo que ul
trapassava a sua própria vivência como prisioneira; dos acontecimen
tos que sua memória havia então gravado, quais os que objetivamente
tinham existido como tal, quais os que resultavam de uma percepção
insuficiente, ou mal orientada, ou enganosa? Assim, a crítica da per
cepção se iniciava com a da sua própria maneira de ver as coisas. Sua
busca se equipara à dos historiadores em geral, que procuram desven
dar qual teria sido a realidade concreta de um momento recuado no
passado, através da quantidade de documentos escritos, iconográficos
102
ou outros; para todos eles, reencontrar o passado era a finalidade
principal.
Todas as pesquisas não se orientam forçosamente para este obje
tivo. Em outras palavras, a curiosidade pelo que ocorreu em tempos
idos recua para um segundo plano, estando em jogo a análise do pró
prio documento, ou de um conjunto de documentos, a fim de se verifi
car que temas podem estar ali contidos, ou que problemas encerra. Não
se trata mais de tentar desenredar um ou vários acontecimentos na tra
ma do texto. Importa verificar o que o informante define como acon
tecimento, e como se coloca diante dele, o que é revelado pelas opi
niões e julgamentos que efetua a esse respeito. Não é só o documento
que está em jogo neste segundo tipo de abordagem; o documento é mais
do que o que se encontra escrito, pois através de seu exame revela tam
bém os mecanismos de percepção e de julgamento do informante, e,
desde que estes se encontrem repetidos num conjunto de informantes
de determinada camada social, ou de determinada profissão, ou de de
terminada instrução, etc., detecta uma possível relação entre a posição
social-econômica do informante ou do conjunto de informantes e sua
maneira de ver um acontecimento. Deixa-se então o contexto da re
construção histórica para buscar entender estruturas e organizações so
ciais, através dos informantes, de suas qualidades, das percepções e
opiniões que exprimem.
Não cabe, neste caso, procurar a existência ou não daquilo que
o informante apresentou como “ acontecimento” ; cabe, isso sim,
registrá-lo como tal, e classificar o informante de acordo com os tipos
de evento que considerou extraordinários, isto é, que de seu ponto de
vista saíram do curso “ normal” dos fenômenos do mesmo gênero. Nes
ta perspectiva se captará o que é “ normal” e o que é “ extraordinário”
para cada informante ou grupo de informantes.
Antes de entrar na própria matéria veiculada pelo informante, cum
pre verificar que atitude ele manifesta em sua narrativa, como ele reú
ne “ acontecimentos” e “ julgamentos” . Três seriam estas atitudes pos
síveis: a) transmitir simplesmente os acontecimentos passados a que as
sistiu ou de que teve conhecimento, numa atitude específica de teste
munha; b) narrar os acontecimentos entremeando em seu discurso, ime
diata e explicitamente, reflexões de ordem geral ou específica, compa
rações de uns fatos com outros, manifestar julgamentos e opiniões, nu
ma atitude em que a testemunha fica inteiramente obscurecida pelo
“ avaliador” ; c) mesclar a atitude de testemunha com a atitude de
avaliador.
É verdade que não serão encontrados nem “ testemunhas” nem
“ avaliadores” puros; a classificação do informante num ou noutro gê
nero decorre da predominância de uma ou outra destas duas qualida
des, enquanto no terceiro gênero se torna impossível descobrir uma
103
predominância qualquer. A análise do texto nesta perspectiva leva a
um conhecimento voltado para os informantes e não para o material
veiculado pelo documento. No entanto, a separação entre “ aconteci
mento” e “ avaliação” é também extremamente importante para se co
nhecer o material que ele contém e defini-lo quanto ao conhecimento
que permite alcançar.
Se a riqueza dos “ acontecimentos” narrados é maior do que as
“ avaliações” do informante, os conhecimentos se dirigem mais para
o esclarecimento da realidade concreta; na vertente oposta, esclarecem-
se mais os valores, os modos de pensar, as visões do mundo do infor
mante e, no caso de haver convergências entre vários informantes, a
visão do mundo de um grupo ou de uma parte da sociedade, ou mes
mo de toda ela. Porém, mesmo quando o informante ou o grupo de
informantes tomam a atitude de testemunhas antes de tudo, a maneira
pela qual definem o que para eles é um acontecimento traz esclareci
mentos muito importantes a respeito de sua própria visão do mundo.
Separados os “ acontecimentos” e as “ avaliações” no documen
to, é preciso distinguir os temas principais, tanto da narrativa objetiva
quanto das reflexões e opiniões. Dois tipos de operações são necessá
rios previamente: a) eliminação de todas as repetições, paráfrases, im
plicações etc., ou melhor, uma “ limpesa” do texto quanto às reitera
ções que freqüentemente ocorrem em qualquer narrativa; b) seleção
dos temas que o pesquisador considera de importância para o seu tra
balho, tanto no que diz respeito aos “ acontecimentos” quanto às “ ava
liações” , deixando de lado os temas que não digam diretamente res
peito ao que está efetuando; esta seleção é fundamental. Lembrar, po
rém, que as repetições, paráfrases, etc., têm muita importância num
outro momento do trabalho, isto é, quando se estudou a forma da nar
rativa, na sua linearidade ou não, assim como nos pontos de referên
cia do informante; as repetições e paráfrases são, para tanto, indica
dores inestimáveis. Porém não apresentam a mesma importância quan
do se tem por objetivo o estudo do conteúdo.
Quando se inicia este, a seleção dos temas se torna fundamental.
A técnica de escolha leva a uma condensação sistemática dos “ aconte
cimentos” e das “ avaliações” apresentadas pelo informante. Coloca-
se, pois, como o oposto de um levantamento exaustivo do que contém
um documento;7 este levantamento exaustivo pode ser efetuado como
uma listagem preliminar, da qual serão extraídos os temas fundamen
tais para o informante e os temas fundamentais para o pesquisador.
Pretender conservar todos os temas encontrados torna impraticável a
análise; querer tudo conservar é simplesmente reproduzir o documen
to em sua totalidade. Na medida em que a análise se define como a
decomposição de um documento em suas partes, ela se apresenta co
mo o contrário de tal conservação.
104
Os temas ou tópicos são unidades de identidade diferente que com
põem a estrutura de uma narrativa. Numa história de vida, vários te
mas podem ser encontrados, dizendo respeito ao próprio evoluir do
informante (infância, adolescência, etc.), à família, à profissão, etc.
No momento da definição dos temas pelo pesquisador, o projeto de
pesquisa reaparece em cena, pois a identificação deles deve seguir os
propósitos do pesquisador ao construí-lo: se teve por objetivo conhe
cer a vida de determinada camada social num período do tempo e nu
ma localidade, seus temas se relacionarão com os acontecimentos his
tóricos daquele período e daquela localidade; com a família; com a pro
fissão; e assim por diante. Pode ser, no entanto, que o conteúdo do
documento seja de tal monta que o pesquisador, em lugar de seguir
a ordem dos problemas que colocou no seu projeto, escolha os temas
mais salientes que for encontrando; neste caso, estará efetuando uma
reformulação de seu projeto a partir do material encontrado, devendo
então apresentar a justificativa de sua mudança de orientação.
Uma vez selecionados os temas, tanto no que diz respeito aos
“ acontecimentos” quanto às “ avaliações” de informante (que podem
ser morais, sociais, econômicas, etc., quanto aos valores que as orien
tam), um outro momento da busca se abre para o pesquisador: rela
cionar os temas, sua ordem e a freqüência com que aparecem no docu
mento, com as características dos informantes, como já se fizera com
os aspectos formais (pontos de referência, marcha da narrativa, etc.),
com a maneira de narrar do informante (testemunha, avaliador, ou am
bos), isto é, com os resultados dos diversos cortes que foram sendo
efetuados no documento. A orientação a ser seguida nestas compara
ções se aproxima das que são habitualmente utilizadas nas análises de
questionários e de entrevistas com roteiro: verificar se a qualidade dos
informantes que apresentam determinados traços narrativos, por exem
plo, é a mesma de acordo com o sexo, a idade, a instrução, o nível
sócio-econômico, a profissão, etc. Compara-se, portanto, o resultado
da análise com a composição da ficha dos informantes.
A inserção do informante em camadas, grupos e conjuntos de sua
sociedade torna a ser importante neste passo. A escolha de informan
tes, num projeto de pesquisa, raramente é deixada ao acaso; eles re
presentam sempre uma coletividade, e as coletividades são sempre in
ternamente diferenciadas, estruturadas segundo a idade, o sexo, a ins
trução, a profissão, etc. O pesquisador delineia sempre, em seu proje
to, quais os contornos do grupo (em sentido amplo) em que será efe
tuada a pesquisa; por exemplo, pode escolher fazê-la exclusivamente
entre mulheres de 20 a 50 anos, tendo de levar em consideração então
as faixas de idade, as localidades a que pertencem as informantes, o
nível de instrução, o estado civil, as distinções econômicas. Nenhum
grupo ou parcela de grupo ou coletividade forma um todo monolíti
105
co. Admitir a importância de tais diferenciações equivale a afirmar que
provavelmente elas influem tanto nos aspectos formais quanto no con
teúdo das informações veiculadas. Tal afirmação genérica, implícita
na formulação do projeto de pesquisa, necessita ser explicitada sob a
forma de uma questão; por exemplo, influirão as faixas de idade nas
informações prestadas por mulheres entre 20 e 50 anos, de tal localida
de, ou a diferenciação das informações passará por outra linha, pelo
crivo da instrução, por exemplo? Todos os dados que compõem a fi
cha do informante se convertem, assim, em indagações a respeito do
que se procura encontrar. As respostas são buscadas nos cotejos entre
as qualificações da ficha e os resultados das análises efetuadas; pois
só assim se alcançará conhecer até que ponto tais distinções realmente
influirão sobre a percepção e o julgamento dos acontecimentos pelos
informantes.
Noutras palavras, os parâmetros observados na escolha dos infor
mantes contêm o pressuposto de que os critérios escolhidos deveríam
ser os mais eficientes para a obtenção dos informes desejados. A com
paração entre, de um lado, as diferenciações dos informantes previa
mente estabelecidas, e, de outro, os resultados da análise dos docu
mentos, desvendará concomitâncias ou não entre ambos, permitindo
inferir ligações entre eles; as respostas negativas ou positivas destas com
parações são uma das conclusões da pesquisa, que deve, porém, ser
encarada como hipotética. De fato, a pesquisa realizada se configura
como o levantar da ponta de um véu, demonstrando a existência de
novos problemas — no caso, a existência ou não da ligação entre os
caracteres dos informantes e os caracteres de seus depoimentos. Estas
conclusões, que sugerem novas questões, deverão determinar a formu
lação de novos projetos de pesquisa.
Os resultados do cotejo acima exposto permitem também avaliar
criticamente se a marcha adotada na realização da pesquisa foi satisfa
tória em seus diversos passos: a) se as questões propostas pelo pesqui
sador em seu projeto podem realmente ser esclarecidas pelo procedi
mento que adotou na realização da pesquisa; b) se a escolha dos infor
mantes foi válida para os problemas então colocados; c) quais os pro
blemas não delineados no projeto, mas que as informações dos depoen-
tes mostram existir; d) se as técnicas empregadas foram satisfatórias
para se alcançar alguns resultados, se foram suficientes; é) se a abor
dagem empregada aponta outras técnicas que seriam igualmente ne
cessárias a fim de complementar de maneira eficiente as informações
obtidas. O balanço destas questões constitui também uma parte das
conclusões da pesquisa.
Todas as comparações, todos os resultados, todas as críticas, to
mam então a forma de um reagrupamento do conteúdo dos documen
tos, alcançado através das diversas análises, compondo assim uma no
106
va narrativa. Nesta, as informações a respeito dos dependentes (fichas
de informantes), os acontecimentos e as avaliações de seus depoimen
tos (gravações transcritas), as condições em que os depoimentos fo
ram efetuados (cadernos de campo), e as análises efetuadas, foram reor-
denadas segundo as questões colocadas no projeto de pesquisa, for
mando um todo coerente, isto é, uma síntese. Esta é constituída, pois,
pela exposição de todos os resultados das várias etapas de pesquisa,
que reproduz, sob uma outra forma inteiramente diversa, o conteúdo
do documento. É certo que não se trata da reprodução integral do mes
mo; para quem quiser conhecê-lo em tudo quanto contém, as fontes
— gravações, documentos escritos — devem ficar à disposição. Aqui
o que se pretende é esclarecer algumas questões.
O pesquisador chegou ao término de seu trabalho quando apre
sentou, numa narrativa bem ordenada e coerente, tudo quanto se pro
pôs investigar no documento ou nos documentos de que lançou mão,
mostrando as respostas positivas e negativas às questões que colocara
em seu projeto. O balanço final das respostas configura a interpreta
ção dada ao que foi encontrado no documento, em seu cotejo com as
perguntas do projeto. Porém, a partir destas conclusões é possível efe
tuar novos raciocínios e novas indagações, que não seriam alcançados,
se não tivesse havido a síntese narrativa; novos raciocínios e novas in
dagações que são pontos de partida para outras pesquisas.
No momento em que foram iniciadas as comparações entre, de
um lado, os caracteres dos informantes e, de outro, os resultados das
indagações à forma e conteúdo dos documentos, passou-se da análise
para a síntese. Noutras palavras, os diversos aspectos que haviam sido
considerados separadamente são reunidos para compor um todo, di
verso do ponto de partida da pesquisa; desvendados os detalhes pela
análise, buscou-se o conjunto coerente que compunham. Muitas vezes
esta passagem é difícil de ser percebida, a análise conduzindo quase
imediatamente a uma síntese interpretativa, mas estes momentos, que
podem ser coexistentes ou sucessivos, existem sempre numa pesquisa
bem conduzida.
Nota-se então que, ao se proceder à solução do problema propos
to, três situações são configuradas: no primeiro tempo, a proposição
das questões que se pretende resolver, que forma então a “ tese” que
se deseja estudar; o segundo tempo é o da análise, que se configura
como uma antítese, uma vez que, desagregando a tese em diversas par
tes, e dando nesse momento toda a importância a estas, contradiz a
totalidade; no terceiro momento, a comparação dos resultados da aná
lise com as questões propostas no projeto configuram uma síntese, is
to é, uma fusão dos dois primeiros tempos, num conhecimento novo
que, expressando algo diverso em relação ao ponto de partida e à aná
lise, conserva no entanto elementos dele que forem importantes para
107
o conhecimento do problema, integrando-o num novo conjunto e for
mando uma nova globalidade.
NOTAS
1. Bosi, Ecléa, Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo, T.A. Queiroz,
1979.
2. Lewis, Oscar, Os filhos de Sanchez. Lisboa, Ed. Moraes, 1970.
3. Casanova, Mário Leônidas, Ioiô Pequeno da Várzea Nova. São Paulo, Clube do Li
vro, 1979.
4. Gurvitch, Georges, La vocation actuelle de la Sociologie. Paris, Presses Universitai-
res de France, 1957.
5. Mello e Souza, Gilda de, Exercícios de leitura. São Paulo, Livraria Duas Cidades,
1980.
6. Tillion, Germaine, Ravensbrück. Paris, Editions du Seuil, 1973.
7. Ghiglione, Rodolphe, Jean-Léon Beauvois, Claude Chabrol e Alain Trognon, M a
nuel d ’analyse de contenu. Paris, Armand Colin, Collection U, 1980.
108
IX - Da arte de dividir,
da engenhosidade de construir
109
que se casara, sem todavia mencionar o ano em que nascera, de onde
se deduzia o ano do nascimento), datas que seriam incluídas na crono
logia, porém com um sinal que as identificasse como indiretamente ob
tidas (por ex., escritas em cor diferente); c) reordenar todas as entre
vistas de acordo com as datas direta e indiretamente obtidas, para se
ter o encadeado das histórias através do tempo. Pois raramente se ha
via obtido narrativas que seguissem a seqüência do tempo; na maior
parte das vezes, caminhavam para a frente, recuavam, ao sabor das
recordações e das associações de idéias.
O segundo guia importante seria geográfico, pois estava em jogo
caracterizar a cidade de São Paulo; ele se expressa na menção de bair
ros e ruas em que tivesse habitado o entrevistado, com suas descrições
respectivas e acontecimentos. Seria útil, então, construir um mapa da
cidade que registrasse estes bairros e ruas, de modo a ter-se uma visão
geral do âmbito coberto pelas entrevistas, e qual o sentido das peregri
nações dos informantes no período pesquisado, mudando de moradia
ou de emprego.
Seguindo o relato cronológico e geograficamente ordenado,
construir-se-ia a biografia de cada informante, que conteria descrições
concernentes à família, à vida ocupacional, ao grupo de vizinhança,
aos acontecimentos gerais marcantes que tivesse mencionado. Três cor
tes seriam então tentados — segundo a cronologia, a geografia, o con
teúdo — na composição da biografia.
A separação destas partes podia ser efetuada por meio de ficha-
mentos, com um conjunto de fichas para cada informante, diversamente
coloridas segundo os temas, de maneira a poder-se rapidamente com
por conjuntos do mesmo colorido, originados em depoimentos diver
sos. Ou então se realizaria um relato corrente e discursivo, que seguis
se os marcos adrede determinados, sendo coloridos diversamente os
temas de conteúdo (uma cor para a família, uma cor para as ocupa
ções, etc.) para chamar rapidamente a atenção sobre eles. Esta segun
da alternativa foi escolhida pelas pesquisadoras depois de discussão em
grupo; argumentou-se que, como se deveria apresentar ao final um re
latório de tipo narrativo, seria mais eficiente desde o início da análise
seguir a via ligada à forma final. Por outro lado, o fichamento sendo
mais lento, e havendo certa premência de tempo, escolhia-se o cami
nho mais rápido.
As orientações assim expostas, que decorriam dos problemas exis
tentes no projeto de pesquisa, constituíam uma forma logicamente vá
lida de explorar os depoimentos, distinguindo os temas principais. Viu-
se, porém, que realmente a cronologia não podería ser um eixo válido
de reorganização, porque os relatos se afastavam muitíssimo dela, se
guindo outros caminhos; também as localizações geográficas, embora
existindo muitas vezes com grande precisão, nada tinham a ver com
110
o encaminhamento das narrativas, constituindo realmente detalhes. Se
guir estes dois rumos seria forçar uma ordem que não existira nos rela
tos, e que portanto deturparia o sentido dado pelos informantes. Por
outro lado, a visão da cidade estava profundamente entrelaçada com
a família, com as ocupações, com os acontecimentos, raramente res
saltando como algo em si mesmo, e não podendo ser separada daque
les tópicos.
Verificou-se igualmente que a variedade dos relatos era muito gran
de, sendo extremamente difícil distinguir temas gerais; reduzi-los a um
mínimo denominador comum era a única saída válida, caso contrário
se operariam cortes que redundariam em grande perda de detalhes e
até mesmo de partes importantes. Não se conseguiría, assim, chegar
a um conjunto coerente e ordenado de informações sobre a cidade, sem
operar transformações nos textos obtidos, quando do seu ordenamen
to. A “ grade” que se pensara construir (nome dado à reunião de te
mas ou de palavras-chave que servem para recortar um texto) defor
mava as contribuições obtidas.
Além do mais, aparecera uma espécie de descompasso entre en
trevistas “ ricas” e “ pobres” , com vários graus intermediários entre
os extremos. Noutras palavras, enquanto algumas entrevistas se desta
cavam pela abundância de acontecimentos e de detalhes, outras pare
ciam sucintas e secas. Algumas seguiam já uma ordenação espontânea
que facilitava a compreensão, enquanto outras eram marcadas pela de
sordem da narrativa, colocando dificuldades para se discernir os pró
prios temas que o informante pretendera abarcar.
Desta forma, o rumo que de início se determinara seguir, isto é,
a formação de uma narrativa final única, ordenada cronológica e geo
graficamente, composta dos temas mais comumentes encontrados, não
parecia poder ser trilhado. Nas discussões então havidas, voltaram no
vamente à baila questões que haviam sido discutidas anteriormente e
que se acreditava já solucionadas:
1 — A escolha do informante: seria válido fazê-lo ao acaso, como
se procedera no trabalho, respeitando somente a categoria econômica
e a idade, como se convencionara de início? Não seria necessário efe
tuar sempre uma seleção prévia, com critérios a serem fixados, que per
mitisse aproveitar apenas os informantes cuja memória se mostrasse
mais fértil, que apresentassem quantidade maior de lembranças e fos
sem capazes de desfiá-las de maneira mais organizada? E quais os pa
râmetros para a escolha destes informantes?
2 — As relações entre informante e pesquisador: a “ pobreza”
de uma entrevista não seria conseqüência da atitude do próprio pes
quisador, não querendo interferir na fala dos entrevistados? Ou pe
cando por demasiada simpatia ou, ao contrário, por demasiada indi
ferença? Como conduzir o relacionamento de maneira a criar entre
111
ambos um clima favorável, que redundasse numa abundante “ hora da
saudade” ?
A volta a estas questões que se acreditava resolvidas podia signifi
car que os rumos trilhados não haviam sido os mais adequados, resul
tando num material pouco apropriado ao que se pretendia. Podia sig
nificar também que depoimentos pessoais e histórias de vida dificil
mente poderíam ser utilizados para resolver problemas históricos bem
determinados no tempo e no espaço; seriam mais adequados para o
estudo de questões relacionando memória individual e memória coleti
va, como mostrava o estudo de Ecléa Bosi, ou então para instruir so
bre relacionamento familiar e de vizinhança, como se depreendia do
trabalho de Oscar Lewis.
Noutras palavras, no caso de se admitir a inoperância dos dados
colhidos para resolver os problemas do projeto de pesquisa, então se
estaria condenando a esta tal qual fora programada, ou melhor: 1)
condenava-se o instrumento escolhido, que não servia para colher da
dos que respondessem às questões do projeto — isto é, as histórias de
vida e os depoimentos pessoais seriam inadequados para tanto; 2)
condenava-se a forma de escolha dos informantes, que fora deixada
ao acaso; 3) condenava-se o relacionamento adotado entre informante
e pesquisador, que exigira se deixasse o informante livre para efetuar
qualquer associação de idéias, indo e vindo de um fato a outro, sem
seguir nenhuma ordem preestabelecida, e sem a intervenção do pes
quisador.
Admitindo-se que o rumo não se mostrara frutífero, e que tanto
a escolha do instrumento quanto a do informante — assim como o re
lacionamento deste com o pesquisador — deveríam ser diversos do que
fora estabelecido, estava-se também admitindo que histórias de vida
e depoimentos pessoais não eram adequados à solução de problemas
histórica e geograficamente determinados. Era o que tinha sido geral
mente admitido pelos pesquisadores que até então haviam lidado com
esta técnica, os quais simplesmente reproduziam em seus trabalhos as
narrativas, elucidando com elas somente questões muito gerais da so
ciologia e da antropologia, ou então problemas específicos da psicolo
gia individual e coletiva. A dificuldade em re-arranjar as entrevistas
obtidas parecia indicar que esta última via era a única a ser seguida:
a recusa em recortá-las, utilizando-as em sua totalidade.
Se as críticas sobre o encaminhamento do trabalho fossem váli
das, então toda pesquisa com a utilização de documentação oral exigi
ría um tempo de preparo muito mais longo, pois seria indispensável:
1) estabelecer de antemão normas rígidas para a escolha dos informan
tes, que seriam buscados rigorosamente de acordo com elas; 2) apro
fundamento das discussões sobre relações entre pesquisadores e infor
mantes, buscando o que seria mais apropriado para o tipo de infor
112
mante que se determinara escolher. A cada novo projeto de pesquisa
estas discussões seriam necessárias, aumentando o tempo de preparo
da mesma a fim de se estabelecer com segurança os parâmetros a se
rem obedecidos. O tempo de realização da pesquisa se alongaria, im
portando em maiores gastos, uma vez que novas etapas se adiciona
vam às que haviam sido previstas, por exemplo, na pesquisa em curso.
Várias discussões em seminário giraram em torno destes assuntos;
porém, o conhecimento que possuíam já as pesquisadoras de todos os
textos obtidos, a riqueza que encontravam neles, mostravam claramente
que as técnicas e a escolha dos informantes não deviam ser postas de
lado como inoperantes. O defeito devia estar na forma pela qual se
pretendera efetuar a divisão dos textos e, talvez, também, na decisão
de transformá-los em conjuntos de dados anônimos a respeito de cada
tema, fragmentando-os de acordo com estes. Tinham razão os pesqui
sadores anteriores, ao quererem conservar os depoimentos e histórias
de vida em sua totalidade, isto é, conservando-os como documentos
personalisados. Porém, isto não impedia que se recolocasse o proble
ma de sua distinção por temas.
Reconheciam, pois, as pesquisadoras que os depoimentos colhi
dos não eram inúteis para o esclarecimento dos problemas propostos,
muito pelo contrário; na verdade, encerravam aspectos importantes e
insuspeitos para o esclarecimento da vida das camadas inferiores da
cidade de São Paulo, em pontos os mais variados. Esta observação vi
nha mostrar que a escolha ao acaso dos informantes, tal como se efe
tuara, era perfeitamente válida. Por outro lado, o bom relacionamen
to entre as pesquisadoras e os informantes, sua não-interferência nos
relatos, e a riqueza destes em geral, mostravam que não se devia tam
bém recolocar em questão o procedimento adotado desde o início. O
acordo era total quanto à avaliação do material obtido e quando cote
jado este com o que fora colhido por Ecléa Bosi e por Mario Leônidas
Casanova: os depoimentos colhidos pelas pesquisadoras, com seus apa
rentes altos e baixos, eram preciosos. Diante desta constatação, não
tinha mais sentido distinguir entrevistas “ ricas” e “ pobres” ; todas e
cada uma constituíam um manancial de dados que era preciso
aproveitar.
O mais indicado era, pois, não recolocar questões que dissessem
respeito ao que já estava efetuado, buscando solucionar um possível
defeito da análise e da síntese, tais como se havia pensado realizar. Era
necessário, então, retomar as entrevistas para descobrir que outras di
visões temáticas seriam cabíveis. Para tanto, volveram as pesquisado
ras às transcrições datilografadas, numa quarta leitura das mesmas,
a contar da primeira, que fora a própria transcrição.
Esta nova investigação tornou patente às pesquisadoras o quanto
a busca da distinção temática que haviam efetuado, e que aparente
113
mente tinha sido desnecessária e falha, lhes permitira penetrar a fundo
nos textos: ao realizarem o desmembramento dos temas, tinham per
cebido novos detalhes, novos ângulos, novas perspectivas que agora
tomavam vulto e realce. A etapa falha não se constituira em tempo
perdido; ao contrário, o desmembramento em temas se apresentava ago
ra como uma fase indispensável para ampliar e aprofundar o conheci
mento, para enriquecer com novas descobertas o acervo de dados de
cada texto. Constituira esta fase, para as pesquisadoras, um verdadei
ro “ deixar-se possuir” pelo texto da maneira a mais minuciosa e
completa.
Além disso, desta primeira composição temática resultara uma cro
nologia que tinha utilidade para balizar os eventos (embora não deves
se constituir um guia fundamental para a reconstituição da síntese) e
um mapeamento do espaço em que se movimentavam os informantes,
mostrando as especificidades dele no período estudado.
A quarta leitura dos textos evidenciou que as linhas temáticas en
contradas em todos eles eram histórico-sociológicas, isto é, diziam res
peito a dados específicos da sociologia e da história; eram a família,
o trabalho, os acontecimentos notáveis da vida citadina. Através deles
surgia a cidade, com suas características e peculiaridades. Estes três
temas é que constituíam o mínimo denominador comum perpassando
todos os depoimentos. As lembranças da cidade, geograficamente lo
calizadas, eram medidas pelos eventos familiares. A cidade propria
mente dita, com suas diversas ruas e variados bairros, nem sempre im
primira sua marca nas recordações dos informantes; cenário existente,
não tinha no entanto conteúdo em si. Porém, se eventos familiares,
ocupações, acontecimentos eram realmente o fulcro das lembranças,
ao mesmo tempo que seu conteúdo, não apareciam soltos num espaço
indiferenciado, nem flutuantes no tempo; ligavam-se a bairros, a ruas,
a períodos da existência, que caracterizavam e qualificavam. Era por
seu intermédio que estes se tornavam conhecidos.
Notou-se também como era raro que a cronologia determinasse
a seqüência dos relatos e o fluxo da memória. Por isso não podia ser
vir de linha mestra orientadora de todos eles, pois somente em alguns
aparecia como viga-mestra. A noção de tempo e de seu fluir não exis
tia, pois, em si mesma; fazia parte de um conjunto, e era através de
outras balizas que passava a ser recortada. Não se dizia: em tal ano
aconteceu tal coisa. Dizia-se, ao contrário: tal coisa aconteceu assim,
assim, assim, e essa coisa acho que foi em tal ano. Sendo que muitas
vezes nem mesmo aparecia a localização no tempo.
Dois dos temas gerais que haviam sido escolhidos para uniformi
zar os relatos, dando-lhes certa unidade, ficavam desmentidos desta
função pela prática. Além dos temas gerais serem diversos dos ante
riormente propostos, também a marcha que fora escólhida não pare
114
cia adequada. Em lugar de um desmembramento das entrevistas se
gundo temas, a fim de reduzi-las ao anonimato e com seus dados anô
nimos construir uma nova narrativa, chegou-se à conclusão de que se
devia manter a integridade de cada uma delas. As condições de vida
dos trabalhadores de poucos recursos na cidade de São Paulo, entre
1920 e 1937, seriam assim captadas por intermédio da leitura de pe
quenas narrativas autobiográficas completas, formadas cada qual por
um depoimento inteiro.
Não se recusava a necessidade da análise, consubstanciada em re
cortes de cada depoimento segundo determinados temas; esta se mos
trava indispensável para a compreensão em profundidade dos mesmos.
A fragmentação que havia sido efetuada não podia ser encarada como
inútil, muito ao contrário; ela devia persistir sempre, como uma fase
intermediária, entre a totalidade da proposição do problema e a totali
dade da síntese final. Depois desta fase é que cada entrevista podia ser
recomposta numa outra ordem coerente com os temas levantados, por
um lado, e por outro com a ordem de exposição peculiar a cada infor
mante. Não havia somente uma análise e uma síntese; havia uma aná
lise ao nível de cada depoimento, seguindo-se uma síntese do mesmo,
segundo a ordem de exposição peculiar a cada informante. Em segui
da, uma nova análise, verificando-se quais os mínimos denominado
res comuns a todas as entrevistas, e ordenando-se finalmente a estas
de acordo com estes temas, numa síntese final.
A re-escrita de cada entrevista segundo os temas mais freqüentes
teve como resultado exposições ordenadas e coerentes de fatos, con
servando o mais possível o que era específico de cada informante, em
termos de forma do relato e particularidades de linguagem. Houve, as
sim, ao nível de cada depoimento, um recorte e uma recomposição,
em que foram suprimidas repetições muito numerosas de detalhes e de
frases, anedotas recorrentes, etc., a fim de se ter um conjunto de leitu
ra coerente e expressiva. Neste ponto, seguia-se o caminho indicado
pelos especialistas anteriores, que, a partir de Oscar Lewis e, entre nós,
de Ecléa Bosi, haviam assim agido também. Este re-arranjo, porém,
só parecia possível depois de fragmentação temática e do conhecimen
to de como se organizavam, na sua aparente desorganização, os de
poimentos obtidos.
Assim reconstruídas, as entrevistas que haviam sido consideradas
“ pobres” subitamente surgiram com todas as suas potencialidades; sua
aparente “ pobreza” -resultava de um relato mais seco, menos rico em
pequenos detalhes, porém muitas vezes também mais ordenado, seguin
do uma linha narrativa mais nítida. Tornava-se claro novamente que
não se devia prejulgar os depoimentos depois de uma primeira leitura
e antes de analisá-los em profundidade; só então revelavam tudo quanto
podiam informar. Assim, não era realmente a qualidade dos infor
115
mantes ou dos relatos que estava em questão, nem o relacionamento
entre entrevistador e informante, e sim o tipo de análise utilizado, e
a forma de passagem da análise para a síntese. Os rumos tomados no
início ficavam, portanto, revalidados.
Não se pense também que o recuo para discutir de novo questões
que pertenciam ao início do trabalho constituía uma falha ou uma perda
de tempo. Ao contrário, a pesquisa bem conduzida exige re-
questionamento de todas as etapas, o que implica voltar atrás, e rede
finições, mostrando que os pesquisadores estão agindo de maneira cons
ciente ao tomarem certos caminhos, e buscando incansavelmente to
dos os pressupostos, todas as conseqüências implícitas do que estão
fazendo. Mesmo que se tenha que alterar por completo a orientação
que o trabalho havia tomado, o reconhecimento de que tal orientação
deveria ser abandonada constituiría também uma descoberta impor
tante: registrada a tomada de novos caminhos, deveríam ser consigna
das as reflexões e razões para a iniciativa, a fim de que outros pesqui
sadores, ao realizar trabalhos semelhantes, ficassem alertados a fim de
não repetir o mesmo percurso inútil. O registro escrito dos questiona
mentos e das discussões de cada etapa se reveste, assim, de grande
importância.
Admitida a necessidade de se conservar cada depoimento como
uma totalidade, verificou-se em seguida, pelo manuseio constante do
material, que eles se diferenciavam de acordo com certa ordem temáti
ca; noutras palavras, havia certas semelhanças entre determinados de
poimentos que permitiam distinguir como que “ famílias” de depoi
mentos. Era possível, pois, reunir todos os que se assemelhassem, com
pondo subtotalidades que, justapostas, comporiam o relatório final.
Se este fosse encarado como um livro, cada subtotalidade seria uma
das partes do livro; dentro de cada parte, os depoimentos que a com
punham formariam seus diversos capítulos. A totalidade final ofere
cia uma visão das condições de vida na cidade de São Paulo, entre 1920
e 1937, ordenada de acordo com as espécies de depoimentos que se ha
via obtido. As revelações sobre a vida na cidade, que eles encerravam,
mostravam que se podiam auferir novos conhecimentos sobre a urbe
através da mediação de cada depoimento, e também através da media
ção de todo o conjunto de depoimentos.
Assim, se por um lado os autores especialistas tinham razão ao
admitir, explícita ou implicitamente, que depoimentos e histórias de
vida não deveríam ser desmembrados e transformados em dados anô
nimos, por outro lado não tinham razão quando pareciam pretender
que este material não podería esclarecer problemas restritos histórica
e espacialmente. Na pesquisa em curso, os depoimentos colhidos ao
mesmo tempo constituíam documentos que preenchiam um vazio efe
tivamente existente no acervo sobre a vida na cidade, como também
116
esclareciam aspectos particulares desta. Mantidos como documentos
cuja autoria se conservava, respondiam no entanto a questões de am
plitude restrita, bem delimitadas no espaço e no tempo. Ficavam à dis
posição também de outros pesquisadores que, por sua vez, poderiam
utilizá-los parceladamente, de acordo com o tipo de trabalho que pre
tendessem efetuar
A análise, com suas idas e vindas, tal como havia sido processa
da, constituía fase obrigatória, levando à descoberta dos temas princi
pais de cada depoimento, e do conjunto de depoimentos. Porém, em
lugar de se passar diretamente da análise de cada depoimento para uma
síntese construída com a fragmentação dos mesmos, cada tema consti
tuindo um eixo em torno do qual se concentravam os detalhes toma
dos às diversas entrevistas — partia-se para uma síntese final construí
da a partir dos depoimentos conservados em sua integridade e escalo
nados de acordo com as características de cada um.
De todas estas reflexões, destacava-se uma nova conclusão, refe
rente à gravação de “ depoimentos orais” , concernentes a um período
de tempo suficientemente largo para abarcar uma faixa de vida dos
informantes, porém sem as pretensões do tamanho e dos detalhes das
histórias de vida: dizia respeito à discriminação das fases sucessivas de
tratamento do material colhido, ou melhor, das fases de interrogató
rio e recomposição a que o material devia ser submetido a fim de res
ponder ao problema proposto no projeto de pesquisa. As fases eram:
1 — análise temática das entrevistas, a fim de detectar os tópicos
gerais que continham em comum, destacando-se os mesmos; análise,
que era uma “ terceira leitura” dos textos;
2 — fragmentação (isto é, nova análise) das entrevistas segundo
os temas emanados da análise acima referida, constituindo uma “ quarta
leitura” que permitia penetrar mais a fundo nos depoimentos e retifi
car, se necessário, a primeira temática levantada;
3 — recomposição de cada entrevista em função de uma ordem
segundo a importância e a seqüência dos temas encontrados — ordem
que poderia não ser forçosamente a mesma em todas as entrevistas,
mas que variaria conforme as características de cada uma delas; quan
do possível, porém, seguir a mesma ordem;
4 — construção de um conjunto coerente de que cada depoimento
seria uma unidade; a ordenação interna do conjunto também seguiria
uma temática que reunisse em “ famílias” os depoimentos, todos os
da mesma “ família” permanecendo juntos. A temática obedecida de
veria emanar da análise dos depoimentos, agora cada qual encarado
em sua unidade.
Estas quatro fases exprimem movimentos de análise e de síntese
em dois níveis. Na primeira análise, seriam detectados os temas mais
importantes de cada depoimento, que eram recompostos de acordo com
117
eles, numa primeira síntese. Em seguida foram verificados os temas
gerais (no sentido de que abarcavam vários depoimentos, ou talvez a
totalidade deles), que serviríam de guias para a recomposição do todo;
uma análise, pois, ao nível de todos os depoimentos, seguida de uma
síntese que comporia uma nova globalidade com eles, mas na qual ca
da um deles conservaria a sua unidade. As duas análises equivaliam
a dois momentos diferentes de leitura do material; as duas sínteses, a
dois momentos diversos de recomposição pela escrita. O primeiro mo
mento, que era também o primeiro nível, dizia respeito a cada depoi
mento per se; o segundo momento — o segundo nível — se passava
ao nível do conjunto de todos os depoimentos e da ordenação de uns
em relação aos outros.
Terminada esta última ordenação, estava construído um novo do
cumento a respeito da vida da cidade — documento composto de uni
dades formadas pelos depoimentos, cada um destes conservando suas
peculiaridades. O novo documento construía uma fonte de informa
ções e de dados específicos sobre variados aspectos da vida das cama
das inferiores, na cidade de São Paulo, isto é, podendo ser utilizado
para elucidar questões muito restritas.
Desta forma, a fragmentação analítica por temas se integra como
parte imprescindível do procedimento de pesquisa. É possível, porém,
que aquilo que se acreditava uma fase importante, venha a se configu
rar como ufn rumo pouco frutífero ou inútil. No caso aqui exposto,
o engano fora supor que, em seguida à fragmentação por temas dos
depoimentos, seria diretamente realizada uma recomposição global re
ferente à vida da cidade, reordenada por estes mesmos temas. Pelo que
foi verificado, não seria possível abandonar a mediação dos depoimen
tos, sem riscos graves de deformação de uma parte das informações
que se pretendia obter.
Na verdade, era possível recolher todos os detalhes da vida na ci
dade de São Paulo através da fragmentação dos depoimentos. Mas es
sa não era senão uma parte do problema proposto. A outra era a da
visão do mundo do informantes, e era esta questão que não podia ser
respondida caso a organização final dos dados seguisse os temas, sa
crificando a unidade de cada depoimento. Pois a visão do mundo só
poderia ser aquilatada pela maneira de ver dos depoentes, cada qual
narrando a sua história, cada qual conservando, em seu relato, a sen
sibilidade e o temperamento que lhe eram peculiares. A ordenação dos
depoimentos entre si, como unidades reunidas na formação de uma
globalidade, é que resultaria na visão do mundo dos informantes; esta
visão do mundo seria composta de unidades representadas pelos de
poimentos, — visões do mundo parciais, — as quais se mostraram in
dispensáveis para a compreensão da amplitude e da variedade das opi
niões existentes nas camadas de poucos recursos.
118
O encadeamento dos depoimentos em “ famílias” , ordenando uma
globalidade final, compunha, portanto, a resposta final às questões do
projeto de pesquisa. Não formar esta globalidade significaria conser
var os depoimentos como relatos independentes entre si, que armaze
nariam informações cuja conexão, visível ou profunda, não se procu
rara ressaltar. Seu objetivo seria somente o de perpetuar tanto quanto
possível a memória de indivíduos de baixos recursos na cidade de São
Paulo, entre 1920 e 1937, sem inter-relacioná-los tanto em vista de es
clarecer as condições de vida quanto em vista de revelar as mentalida-
des em seus pontos de convergência. Isto é, desistia-se de responder
às questões do projeto de pesquisa, para somente arquivar informa
ções sob a forma narrativa. A persistência em querer responder a essas
questões levou as pesquisadoras a descobrir os rumos do procedimen
to necessário, resumidos nas quatro fases atrás explicadas; estas se en
cadeiam umas às outras de maneira tal que não seria possível executar
a última sem ter passado pelas três anteriores.
Assim, ao chegar à fase final, estava-se no ápice a partir do qual
se podia descortinar todos os passos que haviam sido percorridos des
de o início: 1) a proposição do projeto de pesquisa, com todos os seus
problemas de definição; 2) a escolha dos informantes, suas discussões,
a discussão do relacionamento entre informante e pesquisador; 3) a rea
lização das gravações, em que muitas vezes se recolocavam, conforme
o informante, problemas de relacionamento; 4) a passagem da fita gra
vada para a datilografia, com suas dificuldades de transcrição e ampu
tações inevitáveis — parte em que a audição compõe uma “ leitura”
sui generis da fita gravada, estreitamente associada à “ escrita” da gra
vação; 5) a primeira manipulação dos dados, para se desvendar a te
mática de cada depoimento — primeira análise, portanto; 6) a frag
mentação do texto de acordo com os temas, seja sob a forma de ficha-
mento, seja sob a forma de um relato — segunda análise do mesmo;
7) a recomposição de cada depoimento segundo a ordem de temas que
lhe é própria, de modo a reconstruí-lo em sua unidade; 8) a distinção
de “ famílias” de depoimentos, conforme a importância e a ordem dos
temas que os distinguem; 9) a ordenação destas “ famílias” a fim de
compor uma totalidade que responda aos problemas propostos no pro
jeto de pesquisa.
Todo o procedimento descrito podería ser resumido em poucas pa
lavras, mostrando as três fases primordiais: da inteligência no propor,
passando pela arte de dividir, a fim de chegar à engenhosidade da cons
trução. Essas são as etapas pelas quais passa a pesquisa, e nas quais
provam os pesquisadores que estão efetivamente dominando o seu ofí
cio, tanto no que diz respeito à utilização de um instrumento quanto
ao manuseio do material por este colhido, em função das questões pro
postas.
119
X — Síntese e avaliação final:
o término de uma pesquisa
Numa pesquisa, a toda análise segue-se uma síntese, pois é ela uma
recomposição original reagrupando, no todo ou em parte, os compo
nentes que foram desarticulados; quando inexiste, estes quedam espar
sos. A síntese se opõe à análise como a visão de conjunto se opõe à
visão por partes; enquanto a análise decompõe a realidade para lhe des
cobrir os elementos formadores, a síntese reconstrói numa nova for
ma a realidade, a partir dos elementos assim descobertos. É este o sen
tido geral destes termos, e também o significado que lhes empresta a
filosofia da ciência.
Poderia parecer que a síntese é pura recomposição, não fosse a
utilização do qualificativo “ original” e da expressão “ numa nova for
m a” ; estão indicando que a síntese é criadora de algo mais do que se
encontrava na forma primeira anterior à análise — análise que, por
sua vez, tem como característica o ser unicamente descritiva. A síntese
é então irredutível aos componentes resultantes da análise, pois,
reagrupando-os e recoordenando-os de maneira diversa da que apre
sentava a totalidade anterior, desta combinação ou fusão resultou ou
uma qualidade ou um valor, ou elementos que não existiam antes. Di
versa da análise, ela também é diversa da totalidade primeira; é “ ou
tra ” em relação a ambas. Por isso mesmo, pode ela incitar uma nova
análise, no afã de se conhecer as novidades que encerra — nova análi
se que será seguida por uma também nova síntese. E seria este o proce
dimento do “ conhecer” , e principalmente do “ conhecer científico” .
Análise e síntese serão operações antagônicas, ou ao contrário es
tarão ligadas intimamente como operações complementares, se bem que
inversas? As duas concepções não se excluem; análise e síntese são an
tagônicas, se retivermos o sentido de “ direções opostas” , porém, as
“ direções opostas” são complementares desde que se pretenda, termi
nada a análise, alcançar uma nova visão da totalidade que foi desmem
brada. Na verdade, quer se procure partir dos detalhes para o conjun
to, como advogam os historiadores, a síntese sendo então uma recom
posição que permitirá chegar mais longe no conhecimento da totalida
de; quer se busque juntar diversas representações desmembradas para
se conceber, a partir de sua multiplicidade, um conhecimento que não
existia antes, e que as engloba num conjunto coerente, como querem
120
os psicólogos que tratam de teorias do conhecimento, — o momento
da síntese pressupõe sempre o momento prévio da análise, sem o qual
o momento da síntese não seria alcançado, — donde a íntima conexão
entre ambos.
A estas duas abordagens seria necessário acrescentar a concepção
das ciências da matéria; na química, por exemplo, a simples reconsti
tuição de corpos já conhecidos, detalhados através da análise, não sç-
ria uma síntese, uma vez que não existe aqui novidade; a síntese se da
rá quando, a partir desta reconstituição, se alcança um nível de orga
nizações que revela problemas de uma outra ordem. Em qualquer des
tas perspectivas, portanto — no caso da reconstrução histórica, no ca
so da teoria psicológica do conhecimento, no caso das ciências da ma
téria — a síntese se apresenta contendo sempre algo a mais do que se
encontrava nos momentos ou nas proposições que lhes foram anteriores.
No entanto, no caso dos historiadores e no caso das ciências da
matéria, é ela concebida como um procedimento sistemático diante
do real, como um preceito metodológico, portanto. No caso da teoria
do conhecimento, é ela tida como a própria marcha do intelecto no
afã de conhecer, reunindo assim várias representações para, a partir
da multiplicidade, compor um conhecimento único, o qual é sempre
algo mais do que a simples reunião dos elementos que o formam. Dever-
se-á escolher entre uma e outra postura? Ou não serão ambas com
plementares?
Hegel expressou o problema sob a forma do conjunto tese-antítese-
síntese, em que os três termos estão interligados e compõem a lei que
rege a marcha do pensamento, definindo a natureza específica do en
tendimento humano, o entendimento humano sendo considerado en
tão diferente do objeto do conhecimento. Retomando o mesmo pro
blema, Marx e Engels o encaram diferentemente; se tal é a marcha do
pensamento, também existe um “ método dialético” que, adequado à
realidade, permite desvendar, por detrás das aparências, das identida
des, das harmonias, o que existe em termos de combate subterrâneo
ou pelo menos de divergências. Marcha do pensamento, método dialé
tico, ambos constituem para estes autores também expressões do pró
prio movimento da matéria e do universo. Pois o universo seria uma
totalidade em evolução ascendente, atingindo níveis sucessivos, em que
um grau maior de complicação faria necessariamente aparecer o seu
contrário, do confronto de ambos surgindo modificações qualitativas
inteiramente novas. A própria natureza evoluiría então segundo o rit
mo ternário da dialética, existindo assim laços indissolúveis entre o uni
verso, a percepção e o procedimento pelo qual se alcança o conheci
mento. Por ser adequado à realidade, o método dialético seria aquele
que permite ampliar cada vez mais o conhecimento. De acordo com
a perspectiva marxista, método e conteúdo, ciência e seu objeto, reali
121
dade sócio-histórica e pensamento não estão interconexos simplesmente
por uma metodologia; são intimamente conexos pela sua própria na
tureza, pela natureza sócio-histórica de que participam, pela realidade
universal de que fazem parte.
A perspectiva em que se realizou a pesquisa aqui acompanhada
parece, pois, se conformar com todo este procedimento: à proposta
inicial da pesquisa seguiu-se a análise da realidade, chegando-se depois
à síntese, isto é, à recomposição da totalidade. Deste modo, tal enca
minhamento foi concorde com as diversas concepções das relações
análise-síntese aqui observadas, e igualmente com a concepção dialéti
ca atual que as engloba e ultrapassa; que as ultrapassa porque reúne
num só conjunto a concepção do universo, a concepção da marcha do
pensamento, e o procedimento metodológico por meio do qual ambos
podem ser captados e compreendidos.
Desta maneira, o próprio trabalho de pesquisa em ciências sociais
se desenrolaria segundo aquele ritmo: proposição do problema a ser
esclarecido; desmembramento, em suas partes, da realidade na qual
existe o problema; recomposição nova, através da qual é ele compreen
dido e explicado. Recomposição nova que, implicitamente abrindo ca
minho para novas indagações ou explicitamente formulando-as, pro
põe novas questões que poderão servir de base a outros projetos —
novas teses em relação às quais poderá ser reeditado todo o movimen
to da descoberta.
A síntese final de uma pesquisa depende, na maneira de ser apre
sentada, de três ordens de considerações: á) do problema proposto no
projeto; b) da orientação que o pesquisador entendeu dar ao seu pro
cedimento de pesquisa; c) da análise efetuada. A síntese não é, pois,
arbitrária, nem resulta de uma inspiração que baixasse sobre o pesqui
sador, uma vez embebido nos dados do problema; muito ao contrário,
está fundamentalmente ligada tanto à própria pesquisa, nos itens a e
c, quanto ao pesquisador, pelo item b.
No exemplo que motivou estas reflexões, a análise descobrira os
eixos que orientavam as recordações dos informantes, e segundo estes
eixos se procedera a uma reformulação das entrevistas, de maneira a
tornar patente a descoberta. Os eixos eram família, trabalho, aconte
cimentos do período; conforme o caso, o informante orientara sua nar
rativa segundo um deles preferencialmente: por exemplo, se o eixo era
a família, toda apresentação de acontecimentos ocorridos no período,
ou toda menção das ocupações e do trabalho, envolviam sempre a es
ta, a qual se encontrava constantemente presente nas historietas e nos
detalhes. Terminada a recomposição das entrevistas, tratava-se de re
tomar o problema proposto no projeto de pesquisa e verificar como
era ele respondido através das recordações.
Em lugar de se haver recomposto as entrevistas de acordo com os
122
eixos da memória, teria sido possível também conservá-las fragmenta
das, construindo em seguida a síntese segundo um esquema que seguisse
os eixos das recordações: a) características da família na cidade de São
Paulo no período dado; b) características das formas e condições de
ocupação para trabalhadores de poucos recursos, nessa época; c) os
acontecimentos da época através das recordações. Estes três itens re
sumiam os temas principais encontrados em todas as entrevistas, e con
corriam para o esclarecimento de três aspectos fundamentais da vida
dos indivíduos de poucos recursos na cidade de São Paulo, entre 1920
e 1937. Cumpria-se, assim, uma das finalidades da pesquisa.
Cada entrevista seria então tratada como habitualmente se efetua
em ciências sociais com a documentação escrita, seja de cunho históri
co, seja referente ao presente: o documento é recortado segundo as ques
tões formuladas pelo pesquisador que, com os retalhos dos documen
tos, chega à composição de uma nova visão da realidade, coerente e
compreensiva. Esta composição responde às questões inicialmente pro
postas no trabalho, pois os diversos itens em que o documento é des
membrado foram construídos de acordo com tais questões. É neste pon
to que o trabalho das pesquisadoras do projeto em foco se afastara
do que se faz habitualmente com o documento escrito; pois os itens
segundo os quais analisaram cada entrevista não provinham de ques
tões colocadas no projeto de trabalho (embora estivessem a este dire
tamente ligadas), mas provinham diretamente da leitura crítica das en
trevistas, de seu próprio manuseio.
Embora tendo esta vantagem sobre o caminho clássico das sínte
ses sócio-históricas — vantagem expressa no fato de que os itens cons
tituíam uma primeira descoberta — relutaram as pesquisadoras em se
guir tal rumo. No desmembramento que seria efetuado, cada entrevis
ta perdería sua unidade, seus fragmentos seriam dispersos em três ca
pítulos diversos; as entrevistas quedariam inteiramente destruídas,
desfazendo-se assim a expressão de uma personalidade que havia nar
rado suas experiências de maneira individual e peculiar, segundo um
modo de ser que lhe era próprio, num ritmo que era o seu. Anulava-se
a possibilidade de resposta a um dos problemas do projeto, que era
a revelação das mentalidades e de suas diferenças. Estas permanece
ríam inscritas na fita gravada e no texto datilografado, porém deixa
riam de existir na síntese final do trabalho, na qual ressaltariam como
preponderantes e únicas a imagem, as especificidades, os detalhes so
bre as condições de vida e sobre a cidade, abstraídas dos indivíduos
que as haviam apresentados. Fragmentadas as entrevistas, perder-se-
ia toda a noção da totalidade individual, isto é, do conjunto de ele
mentos que, compondo a pecualiaridade de cada um, o apresentaria
como uma unidade orgânica. Ora, este conhecimento fora um dos ob
jetivos principais do projeto de pesquisa.
123
Por outro lado, trairíam as pesquisadoras o propósito de respei
tar tanto quanto possível o modo de narrar de cada entrevistado, que
vieram mantendo desde o início da pesquisa: primeiramente, procu
rando não intervir nas entrevistas, senão quando absolutamente ne
cessário, preservando assim a liberdade de cada informante de con
duzir como quisesse sua narrativa; em segundo lugar, buscando sal
vaguardar suas maneiras de dizer e de encadear os fatos ao transcre
verem as fitas em documentos escritos; em seguida, ao decompor as
entrevistas, não segundo temas que elas, pesquisadoras, tivessem ima
ginado de antemão, e sim segundo aqueles que foram sendo encon
trados na leitura e reeleitura dos depoimentos; finalmente, na recom
posição das entrevistas segundo os próprios temas dos informantes,
conservando características que imprimiram à narrativa, respeitando
suas formas de expressão. Partilhar as entrevistas de modo a disper
sar seus componentes entre capítulos diversos que construiríam o re
lato final, isto é, construir uma síntese sem respeitar a unidade de
cada depoimento, seria contradizer as normas que haviam sido ado
tadas em todo o trabalho.
Era preciso, pois, resolver o problema de estruturar uma síntese
sem quebrar a individualidade das entrevistas, isto é, passando pela
mediação de as conservar intactas. A existência de três grandes temas
que haviam orientado a recomposição de cada depoimento indicou o
rumo a ser seguido. Havia-se verificado que alguns informantes viam
todo o seu universo através da família; outros, através do trabalho;
finalmente outros seguiam mais ou menos a seqüência de acontecimen
tos no período escolhido para a pesquisa, e eram estes que serviam de
marcos para organizar as lembranças familiares e as lembranças ocu-
pacionais. Os três temas serviram agora de pontos de apoio para agru
par os depoimentos na totalidade de cada um. Voltou-se então aos de
poimentos, procurando diagnosticar, em cada um, qual dos três temas
tinha exercido o papel de eixo das recordações, separando assim os in
formantes cujo encadeamento da memória se fazia através da família,
daqueles que utilizavam seu trabalho e ocupações, e finalmente daqueles
que seguiam o fio dos acontecimentos.
Este agrupar de depoimentos podia trazer consigo um novo co
nhecimento, permitindo discernir quais os marcos de referência seme
lhantes para todo o conjunto de indivíduos de poucos recursos, quais
os diferentes. Ao contrário do que se supunha, não houve uma linha
de variação nítida separando homens e mulheres; na grande maioria
das entrevistas, o mediador por excelência das recordações era quase
sempre o trabalho, para ambos os sexos. Em poucas entrevistas ele apa
recia como o mediador único; na maioria delas, surgia associado a um
outro mediador — ora a família, ora os acontecimento marcantes do
período estudado, ora o grupo de vizinhança. Parecia haver, pois,- uma
124
homogeneidade muito grande entre homens e mulheres quanto ao eixo
das recordações.
Esta observação constituía na verdade uma suposição tão-somente.
A pequena quantidade de informantes não permitia nenhuma genera
lização válida para toda a camada de poucos recursos. Tratava-se, no
entanto, de um novo problema formulado, que deveria ser investigado
mais a fundo num outro projeto de pesquisa: não seriam realmente
sexo e instrução fatores de recortes quanto à memória no interior da
camada de baixos recursos da cidade de São Paulo, entre 1920 e 1937?
Como se tratava agora de um problema muito mais restrito do que aque
le formulado na pesquisa aqui analisada, e necessitando para sua com
provação de um número muito maior de depoentes, os depoimentos
pessoais não seriam indicados para resolvê-lo; seria necessário, prova
velmente, lançar mão de documentação já existente, ou então compor
uma pesquisa de tipo dialogado, com tempo menor de entrevista, a fim
de se poder colher maior quantidade de material. De qualquer forma,
o importante era mostrar como a pesquisa em foco, ao chegar a seu
final, levantava por sua vez outros problemas diferentes.
A solução de agrupar as entrevistas pelos três grandes temas foi
então a escolhida, pois respondia às duas questões mais importantes
do projeto de pesquisa: 1) captar a imagem da cidade de São Paulo;
2) conhecer as mentalidades de seus habitantes de poucos recursos. Foi
composto assim um volume no qual, em seguida à proposição dos pro
blemas e breve apresentação de dados históricos qualitativos e quanti
tativos sobre a cidade de São Paulo no período estudado (dados se
cundários colhidos em trabalhos já existentes), foram apresentados, em
sua unidade e totalidade, os depoimentos colhidos, reorganizados se
gundo as três mediações que haviam sido distinguidas como fundamen
tais para orientar as recordações deles: família, trabalho, acontecimen
tos.
Ao refletir sobre o arranjo final que estavam dando aos depoi
mentos, percebia a equipe que análise e síntese se haviam combinado
em dois níveis diversos. A primeira análise fora ao nível de cada de
poimento a fim de encontrar os temas peculiares aos informantes,
efetuando-se o desmembramento das entrevistas segundo esses temas;
a esta primeira análise, seguira-se uma síntese ainda ao nível de cada
depoimento, que consistiu na recomposição de cada um deles, de acordo
com a ordenação dos temas descobertos. Em segundo lugar, foi dada
uma ordenação aos depoimentos refeitos, procurando-se qual a divi
são que se adotaria para eles, a qual seria também a divisão do volume
em capítulos. Surgiu então novamente o problema da cidade, pois a
memória dos informantes se orientava segundo localizações precisas
no espaço urbano, que tinham sido as suas durante a vida; a divisão
em grandes capítulos se faria segundo as localizações. Os depoimentos
125
conservaram sua totalidade e unidade e se dividiram segundo os bair
ros a que diziam respeito. Neste novo nível de análise, as categorias
mais amplas foram constituídas pelos bairros, que formaram pontos
de apoio para a classificação dos depoimentos. Neste nível mais abran
gente do que o dos temas, as divisões disseram respeito, pois, ao co
nhecimento da cidade.
Em todas estas decomposições e recomposições, o procedimento
para se atingir o conhecimento final fora sempre o mesmo, depois de
efetuada a coleta dos dados. No entanto, a escolha deste procedimen
to não constituira o resultado de uma reflexão teórica prévia que, a
partir de obras existentes e de resultados de pesquisa já conhecidos,
possibilitasse à equipe preferir um caminho em detrimento de outro.
O encaminhamento foi seguindo, tanto quanto possível e tanto quan
to se pode perceber, as injunções dos problemas propostos no projeto
de pesquisa, por um lado, e por outro lado as injunções dos documen
tos colhidos, isto é, dos dados empíricos. De tal forma que as refle
xões teóricas e tecnológicas foram sendo efetuadas à medida que o tra
balho avançava e as tarefas se sucediam, sempre em reuniões de dis
cussão. A falta de uma bibliografia suficientemente extensa sobre a con
dução de pesquisas em geral, e sobre este caso particular, foi sem dúvi
da uma das razões pelas quais a análise e a síntese se deram sem maio
res informações sobre os rumos possíveis. Porém, sua falta não foi obs
táculo para que se alcançasse um resultado que se acredita válido.
Cabe ainda uma observação sobre essa lacuna. Preocupam-se os
pesquisadores em oferecer o mais depressa possível a seus pares o re
sultado das investigações que levaram a efeito, com as interpretações
que julgam cabíveis. Apresentam também, às vezes com luxo de deta
lhes, todos os passos da proposição do problema e da escolha das téc
nicas. Porém, uma vez esclarecidas estas etapas, conservam na som
bra todas as demais, com os percalços e sucessos que foram encontrando
pelo caminho, com os rumos seguidos que se mostraram inadequados
e foram abandonados, com os rumos proveitosos e suas vantagens, is
to é, todas as etapas das análises e das sínteses. Estes aspectos que cor
rem ao longo de qualquer pesquisa já têm sido denominados “ andai
mes” , “ estruturas de apoio” , etc., mostrando que são considerados
secundários e, como tais, desdenhados no computo final. Perde-se as
sim uma experiência que poderia servir aos pesquisadores novatos, sem
dúvida, mas que também faria refletir mais profundamente muito pes
quisador experimentado, ao decidir que tomaria uma orientação e não
outra, no decorrer de sua pesquisa.
Para que os procedimentos de pesquisa sejam devidamente apre
ciados, aproveitados, criticados, cumpre procurar uma forma de inte
grar estes passos também nos relatórios dela, seja como anexos, seja
como um texto à parte, para que todas estas discussões e experiências
126
não se percam mas venham enriquecer o encaminhamento de outras
pesquisas, contribuindo assim para o aceleramento dos conhecimen
tos metodológicos e tecnológicos. Foi o que se procurou fazer nesta
pesquisa, de que resultou o texto ora apresentado.
Efetuada a síntese final que reúne num grande conjunto todos os
dados levantados pela pesquisa, uma outra questão se coloca: pode ela
ser considerada o fecho da pesquisa, a sua conclusão? Questão que me
rece alguns comentários.
É comum entre os pesquisadores das ciências sociais, principal
mente entre aqueles que seguem os rumos traçados pelos norte-
americanos, a confusão entre “ resumo” e “ conclusão” de uma pes
quisa: acreditam que, chegando ao final das análises e das sínteses, uma
apresentação resumida de tudo quanto foi encontrado constitui a me
lhor maneira de se terminar, dando uma idéia dos novos conhecimen
tos obtidos a cada passo. O ponto final é colocado, então, depois de
uma repetição em breves palavras do que já existe no corpo do texto.
Tal resumo é entendido como uma recapitulação, em que se retoma
ponto por ponto o que foi tratado, de maneira precisa, porém agora
sem os detalhes; recapitulação que se apresenta muitas vezes de manei
ra enfadonha, como uma enumeração de itens. Toda recapitulação é
essencialmente descritiva, no sentido de reprodução estrita de partes
do texto, sem nenhuma tentativa de, utilizando-a como um apoio, jo
gar a reflexão para as extrapolações e generalizações possíveis, para
o levantamento de novos problemas. Desse modo, tal recapitulação na
da tem de uma síntese, uma vez que nada de novo nela existe, consis
tindo somente numa repetição.
Nem mesmo existe, nesta forma de concluir, uma tentativa de ava
liação do que foi realizado, isto é, uma tentativa de rever o conjunto
de passos dados a fim ou de ajuizar sua adequação e seus limites ou
defini-lo em sua especificidade — sendo estes os dois rumos que pode
tomar uma avaliação. O procedimento de avaliação final é em geral
descartado sob a justificativa de que, ao efetuá-lo, o pesquisador aban
donaria a objetividade com que vinha executando seu trabalho: no pri
meiro caso, porque toda avaliação é tentativa de estimar o grau de per
feição de algo, em função de normas que são juízos de valor; no se
gundo caso, porque definir a especificidade do que se fez é uma busca
das essências, embora disfarçada; em ambos os casos, enveredar-se-ia
para o subjetivismo e o arbitrário. Porém, mesmo que a avaliação possa
se configurar sob esta forma, por que não ajuizar o que foi feito, dan
do um balanço final, uma vez que este fecho em nada prejudica a mar
cha anterior do trabalho desde que mostrando os parâmetros do
julgamento?
Ao contrário destas maneiras de resumir tão habituais, a conclu
são deveria ser entendida como a última etapa do trabalho intelectual
127
que termina os raciocínios efetuados, na qual se responde às questões
colocadas na proposição do projeto de pesquisa, de uma maneira críti
ca, e que se configura como uma avaliação de todo o procedimento
seguido, avaliação que justifica os resultados oferecidos. A conclusão
enfatiza o novo conhecimento obtido; ou retifica o problema propos
to ao iniciar-se a pesquisa; ou demonstra que o caminho seguido não
havia sido plenamente adequado, propondo conseqüentemente um novo
caminho a ser explorado; ou, finalmente, traz o descortínio de novos
problemas, possibilitados justamente pelos conhecimentos adquiridos
no decorrer da pesquisa; ou mesmo apresenta uma reunião de todas
estas ilações. Trata-se, portanto, de tirar todas as conseqüênciaspossí
veis tanto das orientações tomadas no decorrer da pesquisa, quanto
das descobertas efetuadas, e não de repetir, esquematicamente ou em
resumo, estas descobertas.
É verdade que o termo “ conclusão” , quando aplicado a uma pes
quisa, está sempre carregado de ambigüidade. Em relação à pesquisa
terminada, ela é um resultado final, no sentido definitivo do termo;
no entanto, ela é também uma exposição das conseqüências daquilo
que se descobriu, das conseqüências do conhecimento novo que se ad
quiriu, e como tal levanta pontas de véu, abre as portas para novas
pesquisas. É neste sentido que a conclusão adquire conotações de ava
liação, referindo-se tanto aos dados obtidos quanto aos raciocínios efe
tuados, e também aos procedimentos e técnicas adotados: que corre
ções apresenta, que novos caminhos abre, que outras questões coloca?
No caso da pesquisa que foi o centro das preocupações destes co
mentários, seria desnecessário efetuar um levantamento dos aspectos
imprevistos e das revelações insuspeitadas que os dados trouxeram em
relação à cidade; estas descobertas são parte integrante do texto, não
há porque repeti-las. Porém, as descobertas efetuadas, a separação que
se notou entre depoimentos de homens e depoimentos de mulheres, entre
depoimentos dos que tinham um pouco mais de instrução e os demais,
levam a perguntar, diante da pequena quantidade de depoimentos co
lhidos: tais diferenciações se manteriam se, em lugar de uma pequena
quantidade de dados, se pudesse efetuar uma pesquisa com grande
quantidade de informantes, visando especificamente esclarecê-las? Além
disso, caberia também indagar se estas diferenciações seriam específi
cas das camadas de poucos recursos ou se, ao contrário, permeariam
toda a estrutura sócio-econômica, distinguindo sempre homens e mu
lheres, maior e menor instrução, dentro de cada uma das camadas. Es
tas seriam algumas das conseqüências a serem tiradas dos resultados
obtidos, que abriríam campo para novas pesquisas, inteiramente dis
tintas daquela apresentada neste trabalho; pesquisas focalizando ago
ra a estrutura da memória dos informantes, recuando a cidade de São
Paulo para um segundo plano.
128
No entanto, estas sugestões não esgotam a possibilidade de se for
mularem outras questões concernentes à cidade, ou ainda em relação
aos próprios informantes. Os novos conhecimentos adquiridos nesta
pesquisa seriam, então, o ponto de partida para outras indagações. Nes
tes aspectos se evidencia a ambigüidade da conclusão: ponto final de
uma pesquisa, ela constitui também o ponto de partida para a busca
de novos conhecimentos.
Ação de fechar, de chegar ao término do trabalho, a conclusão
constitui a última etapa de um encaminhamento intelectual demons
trativo em que, a partir de casos individuais, se chegou à formulação
de um conjunto com suas propriedades específicas, e não mais de cada
caso; das particularidades se chegou a uma totalidade geral. Porém,
é ela também uma abertura, o ponto inicial de um novo trabalho, um
transbordamento daquilo que realmente se verificou com os dados co
lhidos, analisados e sintetizados, para formular enunciados que ante
cipam outras descobertas, que apontam para outros caminhos a serem
percorridos por outras pesquisas. A conclusão, na plenitude de suas
potencialidades, deve ultrapassar o conhecimento adquirido para, a par
tir dele, formular novos problemas, aventurar novas possibilidades.
Desse modo, a generalização contida nas conclusões de uma pesquisa
não é nem definitiva nem universal, é apenas um passo adiante na aqui
sição de conhecimentos, que devem sempre e constantemente ser sub
metidos ao princípio crítico de uma verificação cada vez mais ampla.
129
ANEXOS
ANEXO I
133
indicado para se coletar conhecimentos a respeito de períodos mais
recuados.
Algumas pesquisas ora em curso1 no Centro de Estudos Rurais
e Urbanos têm demonstrado que, enquanto se conhece com algum
detalhe o modo de vida na cidade de São Paulo de camadas de baixos
recursos em períodos mais recuados, o que existe relativamente ao
período que nos propomos estudar é muito falho. Até 1930, mesmo
quando a documentação é abundante, há quase que absoluta falta
de estudos. A pesquisa ora apresentada visa trazer esclarecimentos
e pontos de apoio aos trabalhos em curso e, mais ainda, promover
um conhecimento primeiro a respeito de uma faixa da população pra
ticamente ignorada.
Assim, o objetivo principal é concorrer para aumentar o acervo
de noções válidas a respeito da sociedade paulistana. O segundo obje
tivo, que se nos afigura também da maior importância, é proporcio
nar as possibilidades de um treinamento integral de pesquisa a um
grupo de jovens que colaram grau recentemente em história, e que,
durante o curso, revelaram acentuado pendor e dedicação para a pes
quisa.
É sabido que as universidades brasileiras poucas vezes proporcio
nam a seus estudantes um treinamento de pesquisa que lhes seja útil
em sua futura profissão. Essa crítica tem sido muitas vezes feita à Fa
culdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. No entanto,
pelo menos alguns professores procuram desenvolver nos alunos o gosto
pela investigação sistemática, e ao mesmo tempo discernir quais aque
les que poderão mais tarde realizar trabalhos úteis. Foi o que fizemos
em nosso curso do 2? semestre de 1980, em que tivemos a satisfação
de descobrir algumas vocações para a pesquisa. É o caso das compo
nentes da equipe que vai trabalhar conosco, e que conosco assinam o
projeto de trabalho.
Não se trata meramente de assinar o projeto; este pertence à equi
pe, tanto quanto à coordenadora dos trabalhos. Em primeiro lugar pela
proposição do tema, que foi formulada pela equipe; portanto, foram
estas jovens que, ao escolhê-lo, se mostraram sensibilizadas pela falha
existente que apontamos acima e desejosas de contribuir para saná-la,
pelo menos em parte. Em segundo lugar, porque o projeto ora apre
sentado foi delineado e discutido em comum, pela equipe e pela coor
denadora. Trata-se, portanto, de um trabalho coletivo, numa forma
(1) As pesquisas são: 1?) estudo sobre a evolução das vilas operárias, a partir de fins
do século passado e até a atualidade, efetuado pela Profa. Eva Alterman Blay, Dep.
de Ciências Sociais, USP; 2?) estudo sobre o carnaval paulistano e suas transformações,
de 1850 aos nossos dias, efetuado pela Profa. Olga Rodrigues de Moraes võn Simson,
Centro de Estudos Rurais e Urbanos, USP.
134
bastante rara, em que equipe e coordenadora se empenham de manei
ra idêntica, não podendo então ser apontada uma autora, porque a
autoria é de todas. Se a coordenadora chama para si a responsabilida
de da realização da pesquisa, é porque seu maior grau de experiência
lhe permite orientá-la no sentido de evitar certos desacertos que entra
vam a fluência da realização e podem até comprometê-la.
O projeto tem, portanto, grande originalidade, porque se apre
senta como uma continuidade e uma complementação de um curso,
concorrendo para o aperfeiçoamento das alunas nele formadas.
135
O pouco que conhecemos da vida desse gupo social está relatado
em algumas memórias;2 em poucos romances, que não se preocupa
vam em ser totalmente fiéis à realidade, como obras literárias que
eram;3 em algumas pesquisas.4 A grande imprensa da época, que tem
sido fonte de dados para certos trabalhos, só relatava a vida cotidiana
da elite social, praticamente.5 Já a imprensa operária, muito utilizada
atualmente como fonte de pesquisa, foi o veículo de comunicação e
registro que mais se aproximou dos trabalhadores de baixos recursos,
mas com muitas limitações, na medida em que se peocupava apenas
com os assalariados da indústria e atingia somente os operários mais
próximos da militância política.6 Pouco há sobre a cidade de São Pau
lo nesse período.7
Pode-se dizer que, embora a documentação ligada aos movimen
tos operários da época seja abundante, como é abundante a documen
tação cultural, existe uma documentação não aproveitada e uma com
pleta falta de estudos sobre o período que pretendemos abarcar. Mes
mo quem se preocupou com os movimentos operários, voltou-se so
bretudo para o período anterior a 1920. Trata-se, assim, de um perío
do bastante obscuro, esse que propusemos no trabalho, apesar de se
mostrar muito interessante por tudo quanto já foi dito, cabendo res
saltar mais uma vez que as raízes de muitos aspectos, que se desenvol
veram depois, nele se encontram.
Cumpre lembrar ainda que o Centro de Pesquisa de Arte Brasilei
ra do IDART — Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo vem
desenvolvendo pesquisas ligadas a esse período, como se vê da pesqui
sa recentemente publicada sobre Teatro Operário na Cidade de São Pau
lo.8 O trabalho que pretendemos realizar trará sem dúvida subsídios
para essas investigações.
(2) Gattai, 1980; Gunspun, 1979; Dias, 1962; Chaves Neto, 1977; Linhares, 1977.
(3) Alcântara Machado, 1927; Schmidt, 1954; 1955; 1980.
(4) Amaral, 1975; Carone, 1979; Fausto, 1976; Simão, 1971.
(5) Capelatti e Prado, 1980.
(6) Ferreira, 1978; Pinheiro, 1975.
(7) Boudoy, 1979; Vargas, 1980.
(8) Vargas, 1980.
136
com as pesquisas que tratem dos habitantes de baixos recursos, nesse
período, e que indiquem não apenas como viviam, e sim também quais
as suas idéias e maneiras de pensar; 3? a relação do projeto com a lite
ratura dizendo respeito à técnica de história de vida e depoimentos pes
soais, a fim de se aquilatar qual a sua contribuição para o aperfeiçoa
mento dos procedimentos de pesquisa.
São muito poucas as obras que retratem ou analisem a cidade de
São Paulo na época escolhida, de uma forma sistemática, não consti
tuindo então nem livros de memórias, nem crônicas. Estes dois últi
mos tipos de publicação são bastante numerosos, mas devem ser con
siderados como outros tantos repositórios de dados, a serem também
analisados de forma sistemática.
No caso específico da cidade, destaca-se a tese de doutoramento
de 3? ciclo defendida em Paris por Maryvonne Boudoy, em 1979: “ La
ville de S. Paulo dans 1’oeuvre de Mario de Andrade” . A autora pro
curou reconstituir o que era a cidade de São Paulo na primeira metade
do século XX, especialmente nos períodos importantes para a vida de
Mário de Andrade, que foram a Semana de Arte Moderna (1922) e a
criação do Departamento de Cultura da Prefeitura Municipal (1935);
a fisionomia urbana e suas transformações em curso; a estrutura sócio-
econômica; as relações das diversas camadas sociais e a importância
dos imigrantes na formação de uma classe média; a vida cultural. Uma
vez delineado o cenário a partir de dados do real, procura ela verificar
como tudo isto ecoa na obra do grande escritor, de que forma ele cap
tou o dia-a-dia, a variedade dos inter-relacionamentos, de que forma
ele os transferiu para a sua poesia e a sua prosa. Neste trabalho, depa
ramos com a imagem da cidade tal qual a viu um dos integrantes da
intelectualidade da época, que era ao mesmo tempo um paulista de ve
lha cepa.
De que forma os trabalhadores de baixos recursos captavam essa
mesma realidade? As lembranças que pretendemos registrar visam es
clarecer esta questão, e encontrarão na tese de doutoramento de Mary
vonne Boudoy um ponto de contraste para se penetrar mais a fundo
na análise.9
Um segundo trabalho que tem por fulcro a cidade de São Paulo
é o de Richard Morse, Formação histórica de São Paulo, cuja 3? parte
trata da evolução da cidade no século XX, que é o momento de sua
passagem de “ cidade” a “ metrópole” .10 Operando com grande quan
tidade de dados de variada origem, delineia um pano de fundo que
Maryvonne Boudoy (tratando de um período específico) utilizou com
propriedade. Nosso intuito é esclarecer de que modo uma parcela es
137
pecífica dos habitantes viveu e registrou na memória as transforma
ções então em curso.
Também em relação a um outro conjunto de obras a pesquisa que
realizaremos trará uma complementação útil: são as que investigam a
população trabalhadora da cidade, nesse período. Deixamos de lado
as memórias, sejam elas de operários ou não, para tratarmos somente
de estudos de alguns pesquisadores que tentaram colocar de forma sis
temática algumas questões e respondê-las.
A maior parte deles diz respeito aos assalariados da indústria, e
muitos não fazem mais do que apresentar, de forma generalizada, al
gumas partes da documentação existente.11
Numa perspectiva diferente, Ecléa Bosi trouxe inestimável contri
buição com seu livro Memória e sociedade: lembranças de velhos; ne
le, porém, não se limita exclusivamente aos trabalhadores, incluindo
também elementos da classe média e da classe média alta. Todavia,
quando reproduz as entrevistas de trabalhadores de baixos recursos,
a comparação que podemos estabelecer entre elas indica diferenças con
forme se trate de homens ou de mulheres, de operários ou de trabalha
dores não-operários. Ecléa Bosi chama principalmente a atenção para
as diferenças entre os modos de pensar dos trabalhadores manuais e
dos que tinham outros tipos de trabalho; e, entre os primeiros, dife
renciando aqueles que foram operários daqueles que foram artesãos
ou empregados. O que a leva a observar que no caso dos primeiros,
a vivacidade da “ biografia social” que vão delineando apresenta uma
“ continuidade linear” , não encontrada noutros depoimentos.1112
O que pretendemos fazer difere do que fez Ecléa Bosi. Dentro da
área da psicologia social, essa autora se preocupou com o funciona
mento da memória, com a busca do sentido das relações entre memó
ria coletiva e memória individual, nos velhos. “ Não pretendí escrever
uma obra sobre memória, tampouco sobre velhice. Fiquei na interse
ção dessas realidades: colhi memórias de velhos.” 13 Nosso intuito é
nos fixarmos mais no conteúdo sociológico dos depoimentos registra
dos do que no significado dos mesmos do ponto de vista da memória,
seja individual, seja coletiva, já que nosso interesse é conhecer a vida
e o modo de pensar do grupo social de baixos recursos, na cidade de
São Paulo, no período 1920-1937, e através dele esclarecer certos as
pectos da própria cidade, fixados nas lembranças.
Existem hoje certas coordenadas que são reconhecidas como im
portantes na diferenciação dos comportamentos dos indivíduos: sexo,
nível econômico, etnia, cultura. A idade não está aqui englobada por
138
que ela constitui o critério fundamental na busca, na escolha de quem
deverá ser entrevistado, uma vez que procuraremos contactar indiví
duos que tenham sido jovens ou adultos no período de 1920 a 1937.
As demais diferenciações serão também levadas em conta na escolha,
definindo assim a abordagem sociológica.
Finalmente, esta pesquisa tem também uma terceira dimensão e
se relaciona, então, com um tipo específico de literatura, não mais li
gado ao tema escolhido, porém integrado num aspecto fundamental,
que é o do procedimento escolhido: a colheita de histórias de vida e
de depoimentos pessoais. Não se trata de uma técnica nova; ela havia
sido utilizada pela antropologia sócio-cultural, e aqui mesmo no Bra
sil deu lugar a um conjunto de reflexões publicadas em 1953,14 o que
demonstra sua falta de novidade.
Estas técnicas conheceram um desenvolvimento rápido a partir do
momento em que gravadores puderam ser utilizados para o registro
das entrevistas, o que facilitava grandemente o trabalho. E sem dúvi
da a obra de Oscar Lewis, Os filhos de Sanchez, realizada graças ao
gravador e reunindo um conjunto de histórias de vida dentro de uma
mesma família mexicana, marca o início de uma nova era no emprego
deste método de trabalho;15 não era “ uma” história de vida que se co
lhia, e sim várias. O gravador permitiu dissociar em dois tempos a co
leta (a gravação, a datilografia), permitindo maior rapidez e maior apro
fundamento da mesma, e conseqüentemente da análise.
No entanto, depois desta experiência não se procurou mais levar
adiante reflexões e estudos de tal procedimento, que tem sido pouco
utilizado para coleta de material de pesquisa. Recentemente, no Brasil
e na França, duas pesquisadoras, que não se inter-relacionam pois não
se conhecem, lançaram mão do mesmo, empregando-o em perspectiva
semelhante: Ecléa Bosi16 e Fernande Schulmann.17 Recolheram histó
rias de vida de personagens múltiplas para esclarecimento de determi
nados problemas — personagens que não pertencem nem à mesma fa
mília, nem à mesma faixa sócio-econômica, nem à mesma cultura, e
que por isso mesmo, comparadamente, podem esclarecer aspectos di
versos de uma mesma realidade. O problema de Ecléa Bosi é verificar
como age o mecanismo da memória em indivíduos de sexo diferente
e de origem sócio-econômica diversa, desvendando também certos da
dos da vida paulistana do passado. Fernande Schulmann, recolhendo
histórias de vida de judeus idosos, de poucos recursos, refugiados em
Paris desde longa data, procurou conhecer como estes homens e mu
139
lheres, nascidos ou não na França, ashkenazes ou sefarades,18 enca
ram sua própria existência e seu relacionamento com os não-judeus.
Nestas duas obras já se apela para aquelas coordenadas a que nos
referimos atrás. Porém, se elas serviram para determinar a variedade
da escolha dos informantes, não foram utilizadas no momento da aná
lise como linhas orientadoras desta; seu papel se esgotou na própria
escolha. Nosso intuito é ir mais além; é utilizar os critérios de diferen
ciação, numa perspectiva que Roger Bastide chamava de “ múltiplos
refletores” , para iluminar um problema de vários ângulos dissemelhan-
tes. Desta forma, os critérios de escolha dos informantes serão conser
vados na análise a ser efetuada em seguida, de maneira a poder diag
nosticar similitudes e diferenças. Nossa pesquisa pretende, pois, se in
serir no conjunto da literatura sobre a técnica das histórias de vida e
dos depoimentos pessoais, como um complemento àquilo que já tem
sido feito.
Esperamos ter, assim, relatado com clareza como nosso projeto
se liga a três acervos diversos — a cidade de São Paulo na época, a
vida e as maneiras de pensar de seus habitantes de baixos recursos, a
utilização das técnicas de história de vida — trazendo a todos eles uma
complementação necessária.
140
o termo “ hipótese” tem sido utilizado em ciências sociais de maneira
extremamente restrita, numa cópia que pretende ser o mais fiel possí
vel do que se passa nas ciências exatas e naturais, com evidente empo
brecimento das perspectivas específicas das primeiras.
Não podemos antecipar quais serão as formas de agir e de pensar
dos indivíduos qiie comporão o grupo entrevistado, nem conjecturar
sobre suas aspirações e desejos. Nossas conjecturas se colocam num
plano muito mais geral: o de supor que homens e mulheres de mais
de 70 anos, brancos uns e outros pretos, de origem brasileira ou de
origem estrangeira, poderíam manifestar comportamentos e aspirações
diversas, associados a essas divergências. Noutras palavras, a questão
é descobrir, a partir dessa diferenciação que hoje é reconhecida como
importante em ciências sociais para determinar comportamentos e ma
neiras de ser, se ela realmente funcionava na cidade de São Paulo, en
tre os trabalhadores de baixos recursos, no período de 1920 a 1937,
e como, desvendando também quais outras determinações existiríam,
separando os indivíduos no interior desse grupo. Muito mais do que
o termo “ hipótese” , parece-nos válido utilizar o conceito de “ proble
ma” para a investigação que se pretende, pois esta se configura na rea
lidade como tarefa consistente em “ determinar uma coisa segundo as
relações que ela deve ter com outras coisas dadas” .21
A escolha deste problema não provém apenas do desconhecimen
to que se tem a respeito da maneira de viver da população de baixos
recursos na cidade de São Paulo, nesse período; origina-se também no
fato de que esta camada inferior é em geral considerada homogênea
em seu modo de ser, como se no seu interior as diferenciações quedas
sem superadas e mesmo apagadas pelo determinante econômico. Nou
tras palavras, os “ baixos recursos” são tomados implicitamente, na
maioria das vezes, como um poderoso fator de homogeneização dos
indivíduos, impondo aos componentes do grupo investigado caracte
res e valores uniformes. Verificar se isto ocorre, identificando os limi
tes que recortam internamente o grupo, eis o problema a ser pesquisado.
5 — A metodologia da pesquisa
No seu sentido mais adequado, metodologia é a exposição lógica
e sistemática dos princípios que orientam a pesquisa que se quer cientí
fica; no entanto, esta definição (que se aplica justamente ao item ante
rior) tem sido cada vez menos utilizada, e o termo passou a ser empre
gado principalmente no sentido da totalidade dos procedimentos de
141
investigação de um problema, e das técnicas que parecem pertinentes
— num sentido, portanto, inteiramente descritivo. É nesse sentido que
o empregamos aqui.
Três instrumentos de coleta de material serão utilizados por nós:
o depoimento gravado; a ficha do informante; o diário de pesquisa.
Já vimos como a técnica de histórias de vida e depoimentos pes
soais tem sido utilizada em ciências sociais, e qual a contribuição que
nossa pesquisa podería trazer para o seu manuseio. Queremos justifi
car agora a preferência outorgada ao “ depoimento pessoal” sobre a
“ história de vida” , delineando uma diferenciação entre estas técnicas,
que no entanto é essencialmente fluida. Já havíamos discutido o as
sunto em trabalho anterior, de que apresentamos aqui os tópicos
pertinentes.22
A “ história de vida” , como o nome indica, é uma biografia regis
trada pelo pesquisador, do ponto mais antigo de lembranças do infor
mante até a atualidade. É um trabalho que requer muito tempo para
se conseguir a narração integral; e tempo maior ainda para se conse
guir várias delas. Sua análise será também mais trabalhosa, tanto mais
que, no nosso caso, a história se desenrola por mais de 70 anos, e as
recordações, dispersando-se por esse vasto período, arriscam-se a se
diluir e perder detalhes muitas vezes importantes.
Os “ depoimentos pessoais” , concentrados num lapso de tempo
mais reduzido, permitem aprofundar o número de informações e de
detalhes a respeito desse espaço preciso. Sendo mais curtos, é possível
multiplicar o número de entrevistados para conseguir uma quantidade
de material que permita comparações, a fim de se destacarem conver
gências e divergências. Não que se procure testar a veracidade dos fa
tos relembrados, o que seria tarefa antes histórica; mas tentar verifi
car, principalmente, por onde passam linhas de diferenciação que se
riam coletivas — por exemplo, separando a coletividade dos homens
da coletividade das mulheres, a coletividade dos operários da coletivi
dade dos não-operários. Aos aspectos históricos, que serão focaliza
dos, vêm se somar como parte de primeira plana as convergências e
divergências nos comportamentos, nas maneiras de ser e de pensar.
No que diz respeito a esta técnica, o primeiro passo será colher
depoimentos através de entrevistas gravadas, mantendo com a máxi
ma fidelidade as próprias expressões dos informantes e sua maneira
de encadear os fatos, portanto, entrevistas livres. Segundo Roger Bas-
tide, a “ técnica da liberdade” revela muito mais a realidade, mesmo
que sob aparente desordem, do que entrevistas muito dirigidas ou ques
tionários.23 As intervenções das pesquisadoras serão feitas somente
142
quando se mostrar necessário; por exemplo, quando o informante des
creve uma passagem peculiar de sua vida, poderemos pedir maior pre
cisão sobre a época do acontecimento, ou sobre as pessoas envolvidas,
etc.
Cada depoimento é acompanhado de uma ficha de informante,
na qual devem constar seus dados pessoais: idade, sexo, estado civil,
cor, nacionalidade, naturalidade, religião, ocupação atual e já exerci
da. A importância dessa ficha deve-se ao fato de que ela registra a si
tuação atual do informante, que sempre influencia sua memória dos
fatos. Lembrar, diz Ecléa Bosi, é uma atividade do presente, por isso
é fundamental conhecer o presente do informante.24
O terceiro instrumento de coleta é o diário de pesquisa ou, como
chamam alguns, caderno de campo. Consta de anotações feitas diaria
mente pelo pesquisador, registrando as condições em que foi feita a
entrevista (onde, quando, quem, o que), isto porque todo estímulo fí
sico, psicológico e social poderá alterar o encaminhamento do depoi
mento. O diário de pesquisa é importante porque fornece materiais para
que se reflita criticamente sobre a técnica utilizada. Conforme já tive
mos ocasião de observar, só se aperfeiçoarão as técnicas de pesquisa,
em ciências sociais, quando se refletir a fundo sobre experiências acu
muladas e devidamente registradas, e principalmente sobre o instru
mental então utilizado.25
Além das técnicas de coleta de material, é preciso dizer algo sobre
as técnicas de análise que serão empregadas. Este aspecto é raramente
abordado em ciências sociais, nas quais tem sido dada muito mais aten
ção às técnicas de coleta; pressupõe-se assim que a parte delicada da
pesquisa, sobre a qual é preciso acumular as garantias de confiabilida
de, é aquela na qual se operam òs cortes do real para permitir o estu
do. Na verdade, a parte de análise do material colhido não é menos
importante, muito ao contrário; é nesta parte que se evidenciarão as
qualidades de sistematização e de diagnóstico dos pesquisadores.
Duas técnicas de análise serão principalmente empregadas. A pri
meira é a recuperação das entrevistas através da datilografia dos tex
tos gravados. Efetuada pelas pesquisadoras da equipe, constitui uma
retomada de contacto com os dados, em maior profundidade, e uma
primeira identificação de temas que forem aflorando. A segunda é a
análise de conteúdo, entrevista por entrevista, para reconfirmação dos
temas e encaminhamento da síntese que será objeto do relatório final.
São essas, a nosso ver, as técnicas que serão aplicadas tanto na
coleta quanto na análise do material, as quais são as mais adequadas
ao tipo de trabalho que pretendemos efetuar.
143
6 — A s fontes e a natureza dos dados
a serem coletados
Os dados que serão analisados são de natureza essencialmente qua
litativa, referindo-se à vida na cidade de São Paulo no período
1920-1937, sendo pesquisadas as fontes vivas constituídas pela memó
ria de homens e mulheres de baixos recursos que ainda possam dar tes
temunho desse período através da memória.
Já expusemos atrás (item 2) a importância deste período histórico
na vida brasileira e na cidade de São Paulo. Queremos agora explicar
por que as datas-limite de 1920 e 1937. Com relação à primeira, é ela
justificada pelos próprios limites que as dificuldades de existência im
punham à esperança de vida. Com relação à segunda, porque ela defi
ne um marco histórico importante para os trabalhadores de baixos
recursos.
No primeiro caso, dificilmente encontraremos pessoas de baixos
recursos, que viveram e trabalharam em São Paulo anteriormente a
1920, que se conservem lúcidas ou mesmo vivas para prestar seus de
poimentos. Portanto, em termos práticos, a escolha do ano de 1920
nos parece a mais recuada possível para tornar viável o trabalho. Isto
não quer dizer que se encontrarmos gente se lembrando de anos ante
riores a deixaremos de lado; ao contrário. Porém, achamos esta possi
bilidade pouco provável.
O ano de 1937 para término do período recai num fator de máxi
ma importância para o grupo pesquisado: a instalação do Estado No
vo, em que Getúlio Vargas abre nova fase de existência para os traba
lhadores, inaugurando a legislação trabalhista. A partir daí as caracte
rísticas da vida destes são alteradas (salários, horas de trabalho, apo
sentadoria, etc.), e este fato é patente em muitas histórias de vida, no
livro de Ecléa Bosi; baseando-nos nesta constatação é que estabelece
mos tal limite.
Como já observamos, o período marca uma fase de efervescência
política, de renovação cultural e de valores, numa cidade que começa
a ser sacudida pelo arranque da urbanização e da industrialização, ad
quirindo novos aspectos. O intuito é procurar distinguir quais fatos
marcaram a memória dos indivíduos de baixos rendimentos então nela
residentes. Para tanto serão escolhidos: 1?) informantes homens e mu
lheres, supondo-se que, numa sociedade como a nossa, em que se dis
tinguem claramente atividades e comportamentos masculinos e femi
ninos, tal distinção possivelmente influenciará as recordações; 2?) ori
gem nacional e estrangeira, pois a socialização e a educação sendo em
geral diferentes conforme as sociedades, provavelmente agirão sobre
a orientação de comportamentos e modos de pensar; 3?) diversidade
de cor (brancos e pretos), pois ela indica uma diferença cultural que
144
pode se revelar importante, o contingente negro conservando talvez tra
ços e atitudes de origem africana, que os distinguem dos brancos; 4?)
diversidade de ocupação, o trabalho operário e sua disciplina podendo
influenciar maneiras de ser e atitudes.
Os entrevistados serão primeiramente buscados entre as relações
das pesquisadoras, por vários motivos: a maior facilidade de descobri-
los sem grande dispêndio de tempo; a maior facilidade de marcar en
contros, por estarem nas vizinhanças das pesquisadoras; a maior faci
lidade de estabelecer contactos, por serem pessoas com as quais elas
já estão familiarizadas, não necessitando de uma fase de adaptação re
cíproca. No caso de o número de informantes nestas condições não
perfazer a quantidade que se resolveu pesquisar, serão eles buscados
em círculos diversos dos das relações das pesquisadoras.
As quatro pesquisadoras que compõem a equipe, interessada em
efetuar este trabalho, são já dotadas de experiência de entrevistas, de
vendo no entanto efetuar um treinamento prévio sob a forma de entre-
vistas-piloto. Foi calculado um número de três (3) informantes por pes
quisadora, perfazendo assim o número de doze (12) depoimentos. A
escolha desta quantidade de entrevistas se baseou no prazo que se quer
dar à pesquisa — um ano, prorrogável — e no tempo de que dispõem
pesquisadoras e orientadora para realizá-la.
A quantidade de depoimentos parece suficiente para se obter as
linhas gerais relativas ao problema, uma vez que teremos também três
depoimentos para cada um dos critérios estabelecidos. A partir do que
for descoberto será possível planejar pesquisas futuras, que desçam a
detalhes mais minuciosos.
Poder-se-ia argüir que a quantidade de entrevistas é pequena e os
problemas a serem analisados bastante complexos. O procedimento aqui
adotado encontra apoio na advertência de Émile Durkheim sobre a im
portância de “ uma observação só, mas bem feita” , ou de “ uma única
experiência bem conduzida” , para se chegar a conclusões válidas; e is
so porque não é a quantidade de fatos registrados que leva ao conheci
mento, e sim a análise cuidadosa de “ fatos decisivos ou cruciais” .26
O inventário dos fatos, diz este autor, não pode nunca ser esgotado;
é sempre necessário efetuar cortes na realidade e, para tal, determinar
critérios que, na quantidade infinita dos fatos, estabeleçam pontos de
referência, permitindo balisar as observações. É devido a tais reflexões
que uma técnica como a das histórias de vida e depoimentos pessoais
pode ser empregada em sociologia.
A escolha desses conjuntos de critérios, como explicamos atrás,
soma-se à escolha de informantes de mais de 70 anos e ao limite do
145
período 1920-1937; todos eles se basearam no conhecimento que se
possui da sociedade urbana de São Paulo, tanto atual como na época
pesquisada. Porém, mesmo o quadro aqui traçado para a pesquisa
não foi pensado em termos de afirmações, e sim em termos de ques
tões, para as quais a análise possivelmente nos dará algumas respos
tas.
As respostas poderão confirmar que as linhas de diferenciação es
colhidas foram úteis, ou então que elas seriam de menor importância.
Esta alternativa não invalida o trabalho efetuado; ao contrário, servi
rá para corrigir aqueles critérios que, em grande parte, se basearam
em ilações a partir dos trabalhos citados, ou em deduções a partir do
senso comum, isto é, da experiência de vida na própria cidade. Ao se
desvendar um resultado negativo, ressaltarão também, como pode ocor
rer em qualquer pesquisa, quais os critérios de diferenciação mais ade
quados ao real, específicos das camadas de baixos recursos na cidade
de São Paulo, entre 1920 e 1937, e que deverão substituir os anteriores
em futuras pesquisas.
7 — O quadro de referência
no qual se situa a pesquisa
Ao terminar a apresentação do projeto, e procurando-se penetrar
no nível teórico nele implícito, cumpre ressaltar as linhas mestras que
orientam sua construção e que constituem o quadro de referências ge
ral, no qual foram sistematizados os passos para a obtenção do que
se deseja conhecer.
Em primeiro lugar, acredita-se que a posição dos informantes na
hierarquia sócio-econômica da cidade de São Paulo influencia seus mo
dos de ser e de pensar; por isso, a documentação existente, escrita ou
não, sobre o período 1920-1937, referindo-se em grande maioria às ca
madas média e superior da população urbana, não permite conhecer
os comportamentos, opiniões e aspirações dos trabalhadores de bai
xos recursos.
Em segundo lugar, admite-se que a camada de baixos recursos não
seria monolítica, embora homogeneizada em muitos de seus compor
tamentos pela limitação econômica, comportamentos que compõem
uma atmosfera de similitude de condições para os indivíduos nela in
seridos; cumpre, então, procurar no seu interior quais as linhas de di
ferenciação, se elas revelam condições, contradições, conflitos, de que
ordem, como se manifestam.
Em terceiro lugar, admite-se a história de vida ou depoimento
pessoal como um “ fato social total” , tal como o definiu Marcei
146
Mauss.27 Isto é, fatos que apresentam em síntese o estado em que se
encontra uma sociedade ou um grupo dados, facilitando, por um la
do, a abordagem de seus diversos aspectos institucionais — econômi
cos, morais, religiosos, culturais, etc. — e, por outro lado, a apreen
são dos aspectos psicossociais (atitudes, opiniões, aspirações) dos in
divíduos que os vivem.
A delimitação de um espaço de tempo relativamente curto
(1920-1937) mostra que o ponto de vista adotado foi o sincrônico: in
vestigar comportamentos e modos de ser de trabalhadores de baixos
recursos inseridos numa mesma camada social, de uma mesma socie
dade, num mesmo momento de tempo. Perspectiva de análise apenas,
que não implica nenhum elemento explicativo ou de interpretação. Pois
acreditamos que a explicação dos comportamentos e modos de ser e
pensar revelados através desta pesquisa em parte estará ligada à pri
meira observação feita neste item, sobre a posição dos informantes na
hierarquia sócio-econômica da cidade de São Paulo; em parte estará
ligada às circunstâncias históricas, tanto específicas à cidade de São
Paulo quanto específicas aos diversos grupos e camadas nela existen
tes. Condições historicamente dadas, que se inscrevem no inter-
relacionamento das camadas sócio-econômicas de uma dada socieda
de, são elas que orientarão as interpretações que se tomarem necessárias.
Deixamos para o final a exposição do quadro de referências teóri
cas no qual foi delineado o trabalho, para que ele não se apresente co
mo um conjunto de princípios pairando do exterior, a partir do qual
se deduziu logicamente o problema a ser proposto. Ao contrário, o pro
blema surgiu de pesquisas em curso e do conhecimento de toda uma
literatura referente à realidade da época; foi a falha sentida na prática
daquelas pesquisas e no manuseio daquela literatura que sugeriu o pro
blema a ser investigado. E, uma vez estruturado o procedimento a ser
seguido para seu esclarecimento, a reflexão sobre a prática do encami
nhamento da mesma levou ao diagnóstico mais profundo do quadro
de referências de base.
Não que estas não estivessem presentes desde o início; porém, a
proposição da pesquisa não partiu delas, e sim das condições específi
cas de outras pesquisas e da literatura existente; partiu, portanto, das
representações concretas e efetivas que se possuía a respeito da reali
dade, da soma de casos descritos e analisados. Uma vez construído o
projeto, foi que se procurou distinguir quais os princípios mais gerais
que tinham servido de base ao raciocínio.
Nossa maneira de agir decorre de aceitarmos que a direção toma
da pelo pensamento está sempre intimamente ligada ao objeto de aná
147
lise; não acreditamos que esta direção possa ser definida independen
temente da matéria sobre a qual vai se exercer; noutras palavras, não
acreditamos que esta direção seja independente, ou possa ser definida
de maneira independente do problema a ser investigado. Ao contrá
rio, ela se liga ao problema, intimamente. O quadro teórico não cons
titui, assim, algo que seja distinto daquilo a que vai ser aplicado, e por
tanto só pode ser bem compreendido depois de definido o objeto direc
to da pesquisa.
O quadro teórico não deve, pois, ser formulado previamente para
em seguida servir como que de programa a uma série de operações (da
qual a primeira seria a formulação do problema) — operações que não
se poderia distinguir senão depois que os princípios do quadro teórico
fossem avançados. Na nossa maneira de ver, ambos caminham jun
tos; o conhecer, que é ação, e portanto práxis, vai exigindo certas defi
nições que se vão fazendo no decorrer da proposição do problema. E
plenamente proposto este, então se busca em sua profundidade os de-
lineamentos das linhas gerais que o englobam, e que constituem gran
des sínteses abstratas, nas quais ele se insere juntamente com uma gran
de quantidade de outros fatos.
É porque acreditamos na enorme influência da práxis sobre a teo
ria que nos pareceu possível pesquisar, através da memória individual,
toda a vida de uma camada da cidade de São Paulo, no passado: da
memória que seria como que uma “ abstração” do que os indivíduos
realmente viveram, e constituiría as bases de suas “ teorias” individuais
sobre suas vidas.
Equipe:
ANTONIA ALVES DE OLIVEIRA
DIRCE SPEDO RODRIGUES
MARIA LUCIA PEREIRA
VIVIANE GALISTEU MACERON
148
OBRAS CONSULTADAS
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149
A N E X O II
150
sempre da oposição tradicional entre o indivíduo e o coletivo. Ou, me
lhor, entre o fato social considerado como uma “ coisa” e o fato social
considerado como uma “ vida” . É verdade que a “ reciprocidade das
perspectivas’’ de Gurvitch nos fornecería uma solução teórica à dificul
dade. Mas esta solução teórica ainda é muito geral, muito conceituai
para auxiliar o pesquisador na utilização da história de vida. Portanto,
como será possível manejar a história de vida para que esta se transfor
me num método realmente sociológico, deixando de ser, como aconte
ce no mais das vezes, um método de psicologia social? Se os critérios
de Dollard nos parecem insuficientes, como completá-los e qual o novo
caminho a seguir? Não pretendemos, é claro, com os dois artigos em
apreço, solucionar definitivamente esta dificuldade. No entanto, acha
mos que podem servir como um começo de elucidação.
Maria Isaura Pereira de Queiroz tentou solucionar o problema, de
uma maneira aparentemente paradoxal, utilizando-se ao mesmo tem
po da comparação de diversas histórias de vida, a fim de depreender
o comum do individual, o geral do particular — e de uma técnica em
que se deixa a maior liberdade à pessoa interrogada. Se usamos o termo
paradoxal é porque a comparação só parece possível através da estan-
dardização das histórias de vida: portanto, através de uma técnica orien
tada com o auxílio de um questionário, o qual permite à comparação
generalizar com mais segurança e mais facilidade os resultados encon
trados. Mas o paradoxo só é aparente. Pois a estandardização ou a orien
tação do pesquisador arriscaria, como bem via Maria Isaura Pereira de
Queiroz, relegar para a sombra os fatos importantes e desvirtuar o va
lor da experiência. Talvez o resultado mais feliz da técnica da liberdade
tenha sido, justamente, o de revelar num caso particular — o da classe
“ mais baixa” de cor — o papel exato que a “ cor” desempenha na vida
dessa classe, não explicando à pessoa interrogada as razões do questio
nário, mas deixando-a contar sua vida ao acaso das lembranças sem pro
curar retê-la ou dirigi-la. Pois, como já tivemos ocasião de observar,
as experiências negativas realizadas pelo homem de cor não passam de
“ momentos” de uma “ duração” ; não é toda a sua vida que se cristali
za em torno da “ cor” , pois para o negro, como para o branco, a vida
é uma sucessão de pequenas alegrias ou de pequenas dores marcadas
por uma infinidade de coisas além da “ raça” : o nascimento de um fi
lho, a corte amorosa, o orçamento que se tenta equilibrar, etc. Ora, es
te é um fato de grande valor sociológico posto a nu pela própria técnica
da liberdade. A comparação tornará possível, em seguida, ampliar ou
limitar este fato a todo o conjunto do grupo de cor, ou a uma classe
determinada, a “ classe baixa” , ou talvez mesmo, no interior dessa classe,
a uma certa categoria social: a das “ famílias de negros protegidos pelas
grandes famílias tradicionais brancas” . Como vemos, o paradoxo que
nos poderia sugerir uma leitura superficial é apenas aparente. Quanto
151
a nós, temos certa predileção por essa técnica da liberdade, que já ape
lidamos de “ técnica proustiana” , pois que a pessoa interrogada, ne
gligenciando a cronologia dos astrônomos, se abandona, como o me
nino Proust, às “ intermitências do coração” infinitamente mais reve-
ladoras que as outras, sob a desordem aparente das datas.
Renato Jardim Moreira procura solucionar o problema tomando
outra direção; fazendo da história de vida uma técnica verdadeiramente
sociológica. O erro de Dollard consiste em pensar que a história de vi
da é sociológica na medida em que é feita através de um sistema de
referências de conceitos sociológicos: no entanto, desse modo não se
vai além do problema da personalidade. A história de vida só se trans
forma em instrumento realmente sociológico na medida em que nos
faz atingir os fatos sociais e não a simples reflexão dos mesmos através
da personalidade — uma realidade objetiva, e não sua “ individualiza-
ção” , ou, como diria Kardiner, a zona de suas variações e desvios. Ora,
a história de vida permite justamente a Renato Jardim Moreira desco
brir essa realidade social objetiva, num duplo ângulo complementar:
o da própria dinâmica das relações sociais, e do social in statu nascen-
di (fora de toda re-construção experimental, como na sociometria de
Moreno). Eis, aí, uma sugestão do mais alto interesse e que, tecnica
mente, podia traduzir-se por um conjunto de regras orientando os fu
turos pesquisadores.
Vemos, portanto, que diante da mesma dificuldade, nossos dois
pesquisadores reagiram de maneira diversa. Aliás, estas diferenças se
explicam pelas condições peculiares a cada uma das duas experiências.
Maria Isaura Pereira de Queiroz estudava uma pessoa da “ classe bai
xa” , pedia-lhe que lhe contasse a vida; mas esta vida era uma vida iso
lada (ou ligada apenas a uma “ grande família” ). Renato Jardim Mo
reira estudava um líder, cuja vida se misturava à dos grupos que fun
dara ou dirigira ou aos a que se opusera pela luta; sua vida era, assim,
menos um conjunto de acontecimentos (onde a cor desempenhava um
papel) que a história de um pensamento, de uma ideologia, e de uma
racionalização, determinada sem dúvida pela cor, mas agindo como
força “ dinâmica” na modificação das relações sociais, dotada de uma
potência criadora, manifestando-se através da formação de grupos.
Compreende-se como deste modo foram nossos dois pesquisadores le
vados pelas próprias respostas recebidas a orientar suas soluções em
direções diferentes — o método comparativo e a dinâmica social.
Diferentes, mas não contraditórias. E esta seria a última lição que
teríamos de reter deste confronto de experiências. Talvez a técnica de
história de vida deva se amoldar à própria natureza dos meios sociais
estudados. Talvez os teóricos desse método devam partir da estrutura
social e, em vez de fornecer regras ou critérios gerais, — sempre infru
tíferos, — devam amoldar a técnica à sua finalidade sociológica, con
152
forme se trate de grupos isolados ou em interação, deste ou daquele
estrato da sociedade, de meios de vida fixos ao solo ou móveis, de co
letividades tradicionais ou em transição. Assim, a história de vida, pa
ra poder atingir o fim sociológico e não as personalidades socializa
das, deveria forjar para si seu próprio instrumento de apreensão do
social. Não haveria assim uma e sim várias histórias de vida, que os
teóricos do método deveríam ligar a uma classificação preliminar dos
grupos sociais.
153
A N E X O III
154
tância para a sociologia; ao seu primeiro ponto de vista puramente
objetivo e exterior seguiu-se outro, o de “ compreender o social não
apenas como o que se realiza por meio dos homens, mas como o que
é vivido e agido por eles” ,1 isto é, o estudo do fato social humani
zado, encarado na sua matriz que é o indivíduo, criador e criatura
do grupo. A história de vida permite justamente estudar o fato social
de seu interior, na fonte. O que os homens pensam, sentem e fazem,
constituindo fatos sociais tanto quanto, por exemplo, as técnicas que
empregam em seus trabalhos, a história de vida os mostra ao vivo;
ela permite uma abordagem interior de fatos que antes só eram ob
servados do exterior.
Tome-se, por exemplo, a afirmação da inexistência de diferenças
de cor entre nós, que pode ser estudada em seus aspectos objetivos —
quando mais não seja, na lei que proíbe sua manifestação; são esses
fatos sociais frios e desumanizados. Mas a atitude de um brasileiro bran
co diante seja da comunidade negra, seja de um negro em particular;
ou a atitude do negro para com os brancos: tudo quanto se oculta por
detrás desta frase comuníssima: “ Eu não tenho preconceito, m as...” ;
o significado que para negros e brancos se prende ao elemento cor; o
preconceito que se manifesta em certas situações e noutras não — fa
tos sociais, pois resultam da vida em grupo — só podem ser alcança
dos através do comportamento e das opiniões dos indivíduos, e a his
tória de vida é um dos bons auxiliares para sua investigação. O pre
conceito será assim estudado em função do membro do grupo; será
estudado dentro da comunidade, que não será encarada como uma reu
nião de indivíduos a que se impõe uma coleção determinada de insti
tuições, de valores e de hábitos, mas sim como uma realidade palpi
tante, isto é, levando-se em conta o grupo de indivíduos vivendo, sen
tindo, agindo dentro da armadura das instituições, à qual o viver, sen
tir e agir afrouxa, dá elasticidade, modifica.
Consideradas sociologia e psicologia como o estudo de duas faces
complementares e inseparáveis de uma mesma realidade, a história de
vida do ponto de vista psicológico, estudando a integração do indiví
duo em determinada cultura, a formação de sua personalidade pela in
teração entre suas qualidades individuais e o meio em que vive, se com
pleta com a história de vida do ponto de vista sociológico, que mostra,
dentro da rigidez do esqueleto estrutural da sociedade, em suas insti
tuições e “ mores” , as linhas “ fáceis” de conduta, os “ arranjos” , a
flexibilidade do comportamento humano, que não são individuais por
que seguidos por muitos.
(1) Mikel Dufrenne, “ Coup d’oeil sur 1’anthropologie culturelle américaine” . Cahiers
Internationaux de Sociologie, Ed. du Seuil, Paris, 1952, vol. XII, 7e. année.
155
Desta compreensão da história de vida decorrem duas conseqüên-
cias: primeiro, que psicologia pode encontrar seu material em uma his
tória de vida, pois seu objetivo é o indivíduo (mesmo que deste indiví
duo se generalize para os restantes, sendo então necessária a escolha
de um indivíduo representativo); segundo, que a sociologia não pode
se contentar com uma história de vida, pois, mesmo que tenha escolhi
do um indivíduo característico do grupo estudado, não poderá nunca
afirmar, a partir de um, que os maneirismos que ele manifesta diante
das instituições sejam coletivos.
Na verdade, qualquer história de vida tem em si seu problema e
seu interesse para a psicologia; uma vez que se trata da interação per-
sonalidade-meio, a questão a formular é interior, imanente à história
de vida; o psicólogo pode abordá-la sem ter em mente quesito algum,
ela própria os fornece (o que não impede, é claro, que ele proponha
anteriormente uma questão e utilize a história de vida para seu conhe
cimento). Para o sociólogo não; o problema sociológico em relação
à história de vida tem o mesmo caráter do fato sociológico em relação
ao indivíduo: é-lhe ao mesmo tempo exterior e interior, enquanto em
relação ao fato psicológico é apenas interior. A biografia de um negro
que demonstra sentimentos de rancor contra brancos explica, para o
psicólogo, como estes sentimentos se desenvolveram a partir do conta
to e experiências com brancos, mostra em que situação tais sentimen
tos aparecem e as reações que o indivíduo apresenta então; o proble
ma psicológico é interior à vida desse negro, não existe fora dela, a
não ser na medida em que ele seja membro de uma comunidade onde,
entre as instituições, figure a da animadversão entre as raças; mas aqui
saímos do campo da psicologia porque o problema não depende mais
do negro como indivíduo nem de sua vida particular, e sim do meio;
quando o negro penetra naquele meio, o problema podia já existir, e
mesmo que não existisse, desde que surja, aparece como linha de con
duta de muitos, resultante de um complexo de fatores sociais; é de cer
ta maneira imposto ao negro do exterior. Eis porque dizemos que, na
história de vida encarada do ponto de vista sociológico, o problema
é ao mesmo tempo exterior e interior — exterior porque é um modo
de agir coletivo, que se inscreve nos costumes do grupo; interior por
que o indivíduo o absorve, tornando-o parte de sua personalidade.
O relato de uma história de vida pode sugerir problemas ao soció
logo, e sempre possui elementos que o interessam, pois nunca se viu
um homem que existisse completamente só, sem inscrever em sua vida
os aspectos da comunidade em que se criou e habita; todavia, diante
de uma história de vida, como ter certeza de que o problema nela
encontrado é de fato sociológico e não peculiaridade individual? Duas
soluções se apresentam: acumular as histórias de vida para delas dedu
zir o que é coletivo e o que é individual, ou formular o problema an
156
tes de iniciar a história de vida, de acordo com o que se observou na
comunidade que se pretende estudar, pressupondo-se então um estudo
ou um conhecimento prévio do grupo, da cultura, da comunidade em
foco. Sabendo-se, por exemplo, que em certa comunidade, que reúne
indivíduos de raças diferentes, existe a “ linha de cor” , pode-se investi
gar qual o valor e o significado atribuído por brancos e negros à cor
e como reagem diante dela.
A formulação prévia da questão é uma das regras mais importan
tes na colheita da história de vida para fins sociológicos; de acordo com
a questão escolhida se orientarão as diferentes fases do trabalho: pre
paro do pesquisador, escolha do informante, entrevistas, análise dos
dados. Regra, aliás, básica em toda pesquisa sociológica atualmente;
foi-se o tempo em que se confundia prenoção com hipótese de traba
lho ou com problema e em que se encarecia que o pesquisador devia
ser como uma tabula rasa, ao qual a simples observação revelaria a
estrutura íntima dos fatos sociais. A coleta cega do material foi substi
tuída pela colheita dirigida, sendo a direção exercida pelo problema
que o sociólogo tem em mente.
Tocamos então o preparo do pesquisador; para que este possa for
mular o problema, é preciso que conheça sociologia em geral e o gru
po que pretende estudar em particular; quanto maior a familiaridade
com este grupo, maior a facilidade para a formulação da questão, que
ganha em sutileza e agudez. Será muito mais fácil formular problemas
a respeito da sociedade em que vivemos do que a respeito de socieda
des bantus ou indígenas.
Se o sociólogo é, porém, um membro do grupo, que assim conhe
ce do interior, ele mesmo terá uma opinião, uma atitude, da qual pode
não ter muita consciência, diante do problema que pretende estudar.
Analisar sua atitude pessoal por meio de um depoimento honesto, em
que sejam expostas não somente sua própria opinião, experiências e
comportamentos, como também as opiniões, experiências e compor
tamentos das pessoas em cujo círculo vive, é alcançar, por meio do me
lhor conhecimento de si mesmo, maior objetividade para a pesquisa
em vista; a análise permite-lhe desvendar tendências que ignorava ou
que não levava em conta; consciente da existência delas, poderá vigiá-
las e evitar que deformem os dados no ato da colheita. Por outro lado,
este depoimento enriquecerá o acervo de dados sobre o problema que
estuda.2
A escolha do informante também está diretamente presa ao pro
blema pré-formulado. O informante tem de ser alguém em cuja vida
e atitudes se possa estudar a questão; no caso do preconceito de cor,
(2) É um preparo que o Professor Bastide vem exigindo dos alunos de sociologia, sem
pre que os encarrega de obter uma história de vida.
157
por exemplo, de nada adianta obter a história de vida de um indivíduo
que não tenha contatos com outros de cor diferente. Coloca-se aqui,
outrossim, a questão da escolha do “ indivíduo representativo” ; dian
te de muitos indivíduos desconhecidos que fecham em si mesmos o se
gredo de seus comportamentos e opiniões, como descobrir o tipo mé
dio? O pesquisador, ou conhece tão intimamente o grupo, seus com
ponentes e seus “ mores” que lhe é fácil escolher o informante repre
sentativo da média ou cuja vida seja especialmente interessante para
a hipótese a investigar, ou então terá de operar uma sondagem prévia.
Esta seria feita pedindo-se a vários informantes em potencial que redi
jam curtas biografias, ou que dêem seu depoimento pessoal sobre o
problema visado; aos que fornecerem os relatos mais interessantes,
pedir-se-á a história de vida completa e detalhada, sendo de bom aviso
figurarem entre os escolhidos tanto representantes do comum quanto
aberrantes. As restantes biografias são outros tantos dados, servindo
como meio de verificação de que as atitudes manifestadas pelos infor
mantes são de fato coletivas e não produtos inteiramente pessoais.
Nota-se mais uma vez o afastamento do “ um” pelo sociólogo; por
que mesmo que só um indivíduo seja escolhido, ele o é como represen
tante da coletividade, como amostra de como agem todos; e para sua
escolha, ou para a verificação dos dados que forneceu, recorre-se sem
pre à pluralidade. Para um estudo sociológico em que se queiram utili
zar unicamente histórias de vida, muitas delas devem ser buscadas; não
sendo assim, ficamos na psicologia. Se considerarmos que, para a ob
tenção de histórias de vida, é necessário o preparo prévio do pesquisa
dor (mesmo que ele possua conhecimentos sociológicos e familiarida
de com a sociedade a estudar, é preciso sempre um pequeno preparo
teórico peculiar ao assunto escolhido, assim como a auto-análise a que
nos referimos atrás), a escolha cuidadosa do informante, a entrada em
relações com este para que se estabeleça um clima de confiança sem
o qual o trabalho é impossível, a grande quantidade de colóquios para
se conseguir uma narração integral, vemos que esta técnica de estudo
é das que consomem tempo e das que mais vagar e paciência reque
rem; o trabalho não pode ser feito de maneira intensiva — longas en
trevistas para esgotar rapidamente o assunto — porque os detalhes se
perdem e o cansaço do pesquisador e do informante deforma o relato.
A história de vida, para o sociólogo, dificilmente poderá então consti
tuir um único instrumento de trabalho. O meio de remediar esta difi
culdade é recorrer a depoimentos pessoais, a fragmentos de histórias
de vida, que são fáceis de obter em maior quantidade.
Toda história de vida tem de ser um depoimento, isto é, não ape
nas um relato cronológico de acontecimentos, mas trazer em si a ri
queza de sentimentos, opiniões e atitudes da pessoa que a relata; a não
ser assim, revelar-se-á pobre, incolor, pouco significativa e pouco útil,
158
tanto para a psicologia quanto para a sociologia. Para o psicólogo que
estuda uma personalidade, porém, depoimentos pessoais ou apenas
fragmentos de história de vida não são de muito valor porque incom
pletos; ele precisa conhecer não só como o indivíduo reagiu numa de
terminada circunstância, mas também que motivos o impeliram a isso,
o que deve ser buscado geralmente no passado, porque é o desenvolvi
mento individual em interação com o grupo e a cultura que dá esses
motivos. Para o sociólogo, desejoso de conhecer como se comporta
a coletividade, os depoimentos e os fragmentos de história de vida têm
grande interesse porque focalizam justamente o comportamento a co
nhecer, indicando a quantidade de material, se ele é coletivo ou não;
depoimentos, opiniões e fragmentos de histórias de vida abundantes
completar-se-ão uns aos outros, agindo também como correção e con
trole não só em relação uns aos outros como em relação às poucas his
tórias de vida que se obtiverem.
Diante da necessidade de utilização desses depoimentos, ressalta
novamente a importância da formulação do problema antes de inicia
da a pesquisa; sem uma questão precisa, que depoimentos buscar? E
mesmo quando se trata do relato de uma história de vida, em que a
maior quantidade possível de dados e de informações deve ser solicita
da, o pesquisador não pode perder de vista seu problema porque corre
o risco de deixar vagos e obscuros os lances que mais de perto lhe inte
ressam, enquanto lhe são fornecidos com abundância dados de some-
nos importância para seu objetivo; com maior razão ainda em se tra
tando de depoimentos que são buscados tendo em vista determinado
fim, que devem focalizar determinado comportamento ou determina
da opinião, isto é, que se deve colher visando o problema formulado
anteriormente.
Colhidos os dados, é óbvio que a análise será feita de acordo com
o problema. Não só a análise, mas antes dela as pesquisas sobre a con
fiança que o documento pode merecer, a verificação dos dados, serão
também orientadas pelo problema. No caso, por exemplo, de o docu
mento ser confrontado com outros diferentes, estes também devem ter
sido coligidos de acordo com o problema central e o confronto será
diretamente influenciado por ele, pois o que se procura verificar é jus
tamente a confiança que pode merecer o documento em relação ao pro
blema.
Toda esta exposição parece concorrer para a conclusão de que só
um sociólogo ou indivíduo que conheça bastante sociologia será capaz
de coligir uma história de vida com os requisitos necessários; de fato,
um sociólogo ou um estudante de sociologia serão a pessoa melhor in
dicada para a tarefa, porque só eles terão o preparo especial para ob
ter o documento mais rico e mais preciso do ponto de vista do proble
ma a estudar, pois têm consciência muito mais aguda desse problema e
159
das dificuldades da obtenção do material. Isso não quer dizer que da
dos colhidos sem a orientação de um foco especial de interesse devam
ser desdenhados como inúteis; no caso, por exemplo, de uma biogra
fia escrita por qualquer autor, dela pode e deve lançar mão o sociólo
go, para seu estudo; mas os dados assim obtidos são menos precisos
e necessitam de uma análise muito mais delicada e cuidadosa, como
nota Robert Angell.3 Podemos esculpir madeira com qualquer cani
vete; mas o trabalho será muito mais fácil, rendoso e perfeito se usar
mos o instrumento apropriado.
Pode-se argüir que os autobiógrafos embelezam-e a si mesmos,
ou que os escritores tendem sempre a dar uma idéia simpática ou anti
pática de seu biografado, criando uma imagem fictícia das ações, ati
tudes, reações, emoções. O mesmo, porém, acontece quando o indiví
duo conta sua história ao pesquisador; todos somos levados, às vezes
de maneira inteiramente inconsciente, a nos mostrar como queremos
ser idealmente e não como realmente somos. Mas o psicólogo é quem
sofre mais com isto, ele é que está lidando com uma personalidade em
sua formação e vicissitudes; quanto ao sociólogo, pode sanar a falha
pela comparação com outras autobiografias e depoimentos, se lida com
documentos frios, ou pelo interrogatório de pessoas da família sobre
o informante, em se tratando de histórias de vida. Neste último caso,
o próprio conhecimento do informante, à medida que as entrevistas
vão-se acumulando, permitirá de certo modo ao pesquisador uma ati
tude de confiança ou de desconfiança para com a narração que está
ouvindo. Aliás, a falta de veracidade em relação a certos acontecimen
tos ou detalhes (desde que descoberta e constatada pelo sociólogo) po
de até constituir um dado suplementar; conhecido o grupo social do
informante, a falha indica a existência, nesse ponto, de uma valoriza
ção ou de uma desvalorização social que o indivíduo voluntária ou in
voluntariamente pretende ignorar, exagerar ou contradizer. Todos es
tes cuidados que requer a obtenção de uma história de vida, estão a
repetir que somente um estudioso de psicologia ou de sociologia deve
se encarregar do trabalho; os leigos ou os poucos treinados fornecem
documentos imprecisos ou deformados e, dada a dificuldade de se ob
ter uma história de vida completa devido ao tempo que toma, o risco
não deve ser corrido.
*
* *
(3) Louis Gottschalk, Clyde Kluckhohn e Robert Angell, The use o f personal documens
in history, anthropology and sociology. Social Science Research Council, Nova York,
Boletim 53, 1945.
160
Colhi, o ano passado, fragmentos de uma história de vida que es
pero completar mais tarde, e alguns depoimentos pessoais.
O problema que norteou a escolha de meus informantes foi o das
relações entre brancos e pretos em São Paulo, de princípios do século
até 1930, isto é, no período em que, libertados havia pouco, tiveram
os negros de se haver com a concorrência dos imigrantes melhor pre
parados do que eles para a luta no terreno do trabalho livre.
Minha informante para a história de vida é pessoa de cor, nascida
em 1900; passou sua infância e mocidade na cidade de São Paulo; em
pregada doméstica desde os 26 anos, tem vivido quase exclusivamente
no meio de brancos, suas amizades são, em grande maioria, com gente
branca. Conheço-a há tempo; estava, assim, afastada a primeira difi
culdade das relações entre informante e pesquisador, que é a conquis
ta da confiança para que a narração seja feita com a maior franqueza.
Outra dificuldade é a perda de interesse por parte quer do pesquisa
dor, quer do informante; muitas vezes, colóquios começados com to
do o entusiasmo vão adquirindo um aspecto de obrigação que acelera
o relato para acabar depressa ou que lhe abate a vivacidade; ora, mi
nha informante não só tem decidido pendor para contar histórias co
mo as narra com vivacidade e sabor; sabia de antemão que nosso inte
resse não diminuiría, antes tendería a aumentar com o correr das en
trevistas, dadas as suas qualidades de narradora.
Aqui intervém o perigo do “ bovarysmo” que sói ocorrer quando
se trata de pessoa de muita imaginação: a criação de um personagem
fictício pela informante para se revelar, a meus olhos, interessante co
mo uma heroína de romance; dadas, porém, as relações antigas entre
nós duas, o conhecimento que tenho dela e de uma parte de sua vida,
com relativa facilidade descobriría os exageros.
Havia uma terceira vantagem na escolha desta informante, e que
não era de desdenhar: as entrevistas podiam ter lugar no ambiente o
mais normal possível, sem afastá-la de suas atividades e obrigações co
tidianas, sem criar para ela um “ clima” diferente e sem dar aos coló
quios nenhum aspecto formal ou fora do comum. Ela leva a passeio,
todas as manhãs, a criança de quem é pajem; várias vezes eu já a tinha
acompanhado, conversando. As entrevistas tiveram, assim, caráter nor
mal dentro de seus hábitos e de nossas relações mútuas, realizando-se
nesses passeios matinais.
Outro perigo era o de ela não se mostrar inteiramente franca por
ocupar em relação a mim posição subalterna e temer me desgostar; es
te perigo também não existiu no caso: houve uma época, a de minha
infância, em que ela, apesar de empregada, ocupou em relação a mim
a posição contrária; como adulta e minha pajem, representava a auto
ridade superior a quem eu devia obediência; dessa autoridade ficou um
resíduo que impossibilita o estabelecimento, entre nós, de relações de
161
superior para inferior; a afeição proveniente de um longo conhecimento,
o respeito que despertaram seu caráter e inteligência, concorrem para
destruir qualquer diferença de nível que tenda a se estabelecer; ela sa
be que pode ser franca comigo na exteriorização de suas opiniões e es
pera de mim a mesma atitude.
Todavia, estas condições, que acreditei no começo serem “ condi
ções ótimas” para a obtenção de uma história de vida, tinham o in
conveniente da própria amizade que nos liga. Se o interesse de nós am
bas, no desenrolar da narrativa, não diminuía; se, pelo fato de eu
conhecê-la bem e de longa data, era menor o perigo de ela construir
para mim um personagem fictício, por outro lado eu mesma, de ma
neira insensível (percebi um dia, quando relia o que acabara de escre
ver imediatamente após a entrevista), era levada a atenuar ou acentuar
certos traços pelo uso de determinadas expressões, sempre tendendo
a dar uma impressão favorável do personagem. A imparcialidade, que
é difícil de ser conservada diante de outrem — é raro sermos inteira
mente indiferentes, reações de antipatia ou simpatia norteiam tanto nos
sas atividades em relação a outro indivíduo quanto nossa maneira de
representá-lo aos olhos do público — torna-se mais difícil quando está
em jogo a amizade. Mesmo no caso de não existir a amizade entre in
formante e pesquisador, o perigo da afetividade, menor no início das
entrevistas, vai avultando, pois os encontros amiudados, o conhecimen
to mais íntimo vão minando a indiferença inicial no sentido da simpa
tia ou da antipatia. O perigo, maior no meu caso, existe sempre. E a
escolha de um informante inteiramente desconhecido e indiferente é
solução precária que funciona somente no início dos colóquios, mas
que deixa de ser solução à medida que o trabalho vai desenvolvendo
entre pesquisador e informante relações amistosas ou não.
Há duas maneiras de sanar o inconveniente. O primeiro é o siste
ma de anotar tudo, palavra por palavra, à medida que o informante
vai falando (sendo então de grande utilidade a taquigrafia), o que eli
mina as reações do pesquisador. Ou então tomar plena consciência da
deformação acarretada pela afetividade e estar sempre em atitude de
desconfiança em relação a nós mesmos ao redigirmos as entrevistas.
A mais segura é sem dúvida a solução de anotar, no próprio momento
em que a pessoa fala, tudo quando conta.4 Adotei, porém, a segun
da; a primeira tendería justamente a formar o clima de exceção e de
artificialismo que tentei eliminar, colocaria a informante numa situa
ção fora do comum para ela — a de ditar qualquer coisa a alguém —
diminuiría sensivelmente a espontaneidade do relato, que é uma das
preciosidades da história de vida.
(4) Esta história de vida foi colhida era 1951, antes da vigência do gravador.
162
Deixei, pois, minha informante falar livremente; raramente lhe per
guntava uma ou outra coisa, fazendo-o apenas quando havia dúvidas
a esclarecer, detalhes a acrescentar concernentes à questão que mais
me preocupava. Apesar dos inconvenientes — depender muito da me
mória do pesquisador, sofrer a história de vida duas deformações, pri
meiro da pessoa que conta e em seguida da pessoa que anota — esta
maneira não só é mais suave para informante e pesquisador como eli
mina a atitude natural de defesa que sentimos diante do lápis e do pa
pel, a qual levaria insensivelmente o informante a fornecer um relato
“ expurgado” no sentido de se dar a conhecer tal qual deseja ser visto
pelos outros e não tal qual realmente é.
Também não mencionei que meu problema central era o do pre
conceito de cor. Não sabendo qual a questão que preocupava o pes
quisador, o informante conta sua história naturalmente, tal como a
compreende, sem dar maior importância a determinado aspecto, exa
minando o passado sem idéias preconcebidas. Conhecendo o proble
ma, será levado, insensivelmente embora, a acentuar uma ou outra pas
sagem a que não daria maior importância em situações normais. No
caso da minha informante, por exemplo, se eu dissesse que estava es
tudando as relações entre brancos e pretos, imediatamente ela busca
ria em sua memória tudo quanto a isso se referisse, relatando os acon
tecimentos sem a isenção de ânimo com que o fez. O inconveniente
está em que o informante pode se perder numa quantidade de detalhes
que não interessam de perto ao pesquisador. Todavia, o material que
parece não se ligar ao problema central não é de desdenhar; muitas
vezes o que num relance se acredita desligado da questão revela, num
reexame, raízes profundas que o prendem sutilmente a ela; por outro
lado, como a obtenção de histórias de vida requer tempo, o que limita
sua quantidade, quanto mais rica em dados de toda a espécie, melhor,
porque permitirá que pesquisadores do mesmo ou de diferentes ramos
das ciências sociais a possam aproveitar também.
Não pedi que respeitasse a cronologia; minha informante avança
va e recuava na história como bem entendia, contando os episódios
de acordo com associações que ia espontaneamente estabelecendo. O
abandono da cronologia — que só deve ser empregada para esclarecer
a situação dos acontecimentos mais importantes no tempo, nunca pa
ra dirigir o fio da narrativa — é interessante porque aproxima a histó
ria de vida das associações livres da psicanálise, permitindo ao pesqui
sador uma penetração mais funda na mente do informante.
São estas as melhores maneiras de se obter um material vivo, ob
jetivo, espontâneo: deixar ao informante toda a liberdade no relato,
sem o conhecimento do problema do pesquisador que influiría na orien
tação de sua narrativa, sem lápis nem papel que o constrangeríam, sem
a cronologia que o obrigaria a uma ordenação dos fatos de sua vida
163
que lhes tiraria o sabor de aparecerem associados da maneira que ele
os vê associados. Mas estas regras (e nenhuma outra) não devem ser
erigidas em dogma; como sempre, a situação, os temperamentos de pes
quisador e de informante, as relações entre ambos, o tipo de problema
a investigar ou outros fatores podem tornar preferível a entrevista em
que funcionem intensamente lápis e papel, em que a cronologia seja
respeitada e em que o informante esteja a par do objetivo do pesqui
sador.
Ao redigir a narrativa que ouviu, deve o pesquisador anotar quais
as perguntas que fez e em que ponto as formulou. Se, por exemplo,
os pontos que necessitavam de esclarecimento foram sempre os mes
mos, indicarão por parte do informante um desejo, consciente ou não,
de fugir diante deles, o que muitas vezes é significativo para o proble
ma estudado.
Quanto ao tempo que deve durar cada entrevista, variará de pes
quisador para pesquisador, de informante para informante, estando
não somente na dependência do temperamento e do vigor de cada um
deles quanto da relação que entre ambos se estabelece; numa relação
de simpatia, a duração da entrevista poderá ser maior do que se a anti
patia se for desenvolvendo entre pesquisador e informante. Assim, so
mente a experiência poderá estabelecer o tempo ótimo para cada caso.
Em se tratando do meu, verifiquei que mais de hora e meia era dema
siado para minha memória; no dia em que a conversa se prolongou
por duas horas — não só não quisera quebrar o fio de um episódio
que apaixonava minha informante, como também tentei experimentar
quanto tempo eu agüentaria — tive muita dificuldade em lembrar de
tudo na ordem em que fora contado; minha informante não se mos
trava cansada depois de duas horas de entrevista; tive a impressão de
que poderia continuar ainda por mais duas...
*
* *
164
vida — deixar o informante na ignorância do problema central —
utilizei-a desta vez; porém, como também no caso das histórias de vi
da, depende do problema, do pesquisador, do informante, do encon
tro entre ambos, a adoção desse sistema ou do sistema de pedir direta
mente a informação.
A tarefa do sociólogo é mais ingrata na obtenção dos depoimen
tos. As questões devem ser muito claras e objetivas para que rapida
mente o informante dê um parecer preciso. No caso da obtenção indi
reta, a dificuldade aumenta; não se trata, como na história de vida li
vremente obtida, de deixar o indivíduo falar como queira, mas sim de
dirigi-lo veladamente, com segurança e presteza, para determinado fim.
Não basta o pesquisador consignar os depoimentos obtidos; sol
tos, nada significam. É preciso que anote cuidadosamente tudo quan
to sabe a respeito do depoente, de sua vida, profissão, nível social, am
biente em que vive, para que a opinião dele se situe dentro de determi
nado contexto e queira dizer qualquer coisa. Também as condições em
que se realizou a entrevista devem ser relatadas. Mesmo na história de
vida, em que a situação grupai e o ambiente estão explícitas e visíveis
através da narrativa, é muito útil completar o trabalho com tudo quanto
o pesquisador sabe a respeito do informante; os dois documentos se
completam: a história de vida de um lado, o informante visto pelo pes
quisador, de outro. As condições das entrevistas, os momentos de maior
interesse do informante pela narrativa, os de maior emoção, tudo isso,
quando anotado, enriquece o material.
* *
165
é necessário não só que a técnica seja abundantemente utilizada como
que o pesquisador, além de dar os resultados de seu trabalho, conte
como agiu na obtenção dos dados e quais as dificuldades que encon
trou.
É muito útil narrar o sociólogo suas peripécias ao utilizar qual
quer técnica. Têm razão os que se queixam de que, em sociologia, a
maioria dos pesquisadores exibe o material obtido, analisa-o, interpreta-
o, sem descrever como agiu para obtê-lo. Torna-se necessário que se
prestem contas, aos outros estudiosos da matéria, não só do critério
usado na escolha dos dados mas também de como estes foram conse
guidos e manipulados; contar se o lápis e o papel funcionaram ou não
enquanto o narrador falava não é detalhe de somenos importância, co
mo parecem pensar os que se contentam em fornecer o resultado de
seus estudos. Somente o acumular da experiência em relação às técni
cas e ao seu modo de emprego permitirá o aperfeiçoamento delas; aper
feiçoamento que só será alcançado por meio da comparação da maior
quantidade de casos semelhantes ou diferentes entre si; a comparação
não é possível quando se silencia sobre a maneira pela qual foi obtido
e tratado o material. Por outro lado, mostrar o caminho que se seguiu
é permitir que outros o aproveitem, critiquem, aperfeiçoem ou o refu
tem em proveito de um sistema melhor.
Poder-se-á argumentar que os problemas sociológicos são em ex
tremo variáveis e que a abordagem necessariamente se modificará de
acordo com cada caso e cada pesquisador, de tal modo que nunca se
conseguirá fixar normas para o tratamento dos diferentes problemas.
A variabilidade existe sim; porém também existe o elemento comum;
o que é variável, o é dentro de certos limites que somente a apresenta
ção de muitos casos permitirá perceber. Isto é, dentro da variabilidade
há uma constância que poderá ser alcançada desde que se acumule gran
de número de casos. Os problemas sociológicos não fogem a esta cons
tatação; dentro de sua variabilidade há que procurar a constante, a qual
irá se desprendendo e afirmando com o amontoar da experiência e com
o relato minucioso das diferentes técnicas empregadas no seu estudo,
até permitir a sua classificação em várias categorias e o afinamento dos
melhores meios de se pesquisar cada uma delas.
166
ANEXO IV
Este artigo tem suas origens numa pesquisa sobre relações raciais
em São Paulo, realizada em 1951-52, ocasião em que fui encarregado
de colher duas histórias de vida de negros. Como os trabalhos sobre
o assunto, em geral por uma questão de perspectiva, não me valeram
de muito frente a certos problemas surgidos no decorrer da pesquisa,
pareceu-me oportuno relatar minha experiência, assim como algumas
reflexões que me suscitou sobre a técnica de coleta de material para
a elaboração de uma história de vida.
Em geral, os autores entendem por história de vida a coleta e or
denação das experiências de um indivíduo com o fim de conhecer e ex
plicar o desenvolvimento de sua personalidade, sendo visível a conota
ção psicológica de suas definições. Dollard, por exemplo, compreende
a história de vida “ como uma tentativa deliberada de definição do cres
cimento de uma pessoa num meio cultural” .1 De outra parte, a socio
logia, enquanto ciência da realidade social, toma o indivíduo (biológi
co e psíquico) como um dado em suas construções sobre a sociedade.
Certamente, não se pode ignorar as tentativas de síntese que procuram
fazê-la uma “ ciência do comportamento humano” , mas estas orienta
ções recentes não autorizam o abandono do que se pode chamar de
“ posição tradicional” da sociologia: a explicação do social pelo so
cial. A sociologia, nestes termos, interessa-se pela história de vida na
medida em que ela possibilita o conhecimento do meio social em que
vive o indivíduo,2 mas como é impraticável a realização de trabalhos
167
baseados em um número de histórias de vida suficiente para fornecer
base empírica à interpretação sociológica, elas se apresentam como um
elemento de controle das interpretações feitas através de dados conse
guidos por outras técnicas.3
Esta exposição apresenta, inicialmente, minha experiência de cam
po e as dificuldades que enfrentei ao coligir o material necessário para
a elaboração das histórias de vida; propõe em seguida o modo pelo
qual penso ter superado essas dificuldades, isto é, indica uma técnica
de coleta de material capaz de fornecer uma história de vida da qual
constem os dados necessários à pesquisa sociológica e que possa ser
aplicada por pesquisador de formação sociológica, sem que se torne
preciso uma equipe de especialistas nas diversas ciências humanas co
mo, em última análise, o exigirá a natureza dos dados usualmente con
siderados necessários para a elaboração de uma história de vida.4
sity of Chicago Press, 1938) e “Editor’s preface” (in Clifford R. Shaw, The Jack-
Roller, Chicago, The University of Chicago Press, 1938); G.A. Lundberg, Técnica
de ia investigación social, trad. esp. de Social Research por Jose Miranda, México,
Fondo de Cultura Economica, 1949, esp. p. 447-457; Oracy Nogueira, “A história
de vida como técnica de pesquisa” . Sociologia, v. XIV, n? 1 (março de 1952), p.
3-16; Kimball Young, Personality andproblems o f adjustment, Nova York, Crofts,
1941, esp. p. 250 e segs.; Pauline V. Young, Scientific social surveys and research,
Nova York, Prentice-Hall, 1939. Sobre a aplicação da técnica de coleta e elaboração
dos materiais de uma história de vida, veja-se: John Dollard, Criteria for the life
history, op. cit., e Caste and class in a Southern town, Nova York, Yale University
Press, 1937; Henry A. Murray e outros, Explorations in personality, Nova York,
Oxford University Press, 1945; Clifford Shaw, The natural history o f a delinquent
career, op. cit., in The JackRoller, op. cit.; W.I. Thomas e Florian Znaniecki, The
Polish peasant in Europe and America, v. III, Boston, Gorham Press, 1918.
(3) Este papel de controle, entretanto, não é aceito por todos os sociólogos. Mesmo Tho
mas e Znaniecki, que pretendem que as histórias de vida constituem o “tipo perfeito
do material sociológico” (op. cit., v. III, p. 6), reconhecem sua limitação ao consta
tar a impossibilidade de realizar trabalhos com dados fornecidos somente por histó
rias de vida, considerando esse fator como um “defeito do atual metódo sociológi
co” (op. cit., v. III, p. 7). Lundberg entende que elas são muito úteis para a formu
lação de hipóteses de trabalho, levantando problemas cuja análise e interpretação
devem ser feitas à base de outros dados, fornecidos por outras técnicas e suscetíveis
de tratamento estatístico. Clifford Shaw as usa como documentos que devem ser in
terpretados com auxílio de dados obtidos por outros meios, a fim de se conhecerem
as interpretações que o próprio pesquisado faz dos diferentes fatos, passo esse de
importância na “terapêutica do caso” . Dollard considera a história de vida como
capaz de fornecer o sistema de referência para a integração dos conhecimentos obti
dos isoladamente pelas diversas ciências que se preocupam com o homem, pois a
vida do indivíduo é o resultado de reações e estímulos biológicos, psíquicos e sociais.
Limito-me a indicar em nota os diferentes papéis atribuídos à história de vida por
que sua discussão escapa aos limites deste artigo.
(4) Aliás, isto está implícito na análise feita por Dollard em Criteria for the life history
(op. cit.). Constata-se aí que as histórias de vida pecam, de modo geral, pela ausên
cia dos critérios mais ligados ao social, quando realizadas por psicólogo, e cios rela
cionados mais diretamente ao psíquico, quando feitas por sociólogo; a preocupação
de um e outro é conseguir material completo no tocante à sua especialidade.
168
Na pesquisa já referida, um dos problemas consistia em determi
nar quais as barreiras opostas à ascensão do negro, para conhecimen
to das condições de ajustamento entre negros e brancos em São Paulo,
sendo utilizada para isso, juntamente com outras, a técnica de história
de vida.5 Iniciadas as entrevistas, verifiquei não ser possível levar a ca
bo com êxito as histórias de vida, obedecendo a todas as exigências
prescritas pelos autores e, em particular, aos “ critérios” formulados
por Dollard. Tendo em vista os interesses da pesquisa, passei a orien
tar a entrevista no sentido de obter a maior quantidade possível de da
dos sobre as relações entre brancos e negros, tomando estas últimas
como o eixo em torno do qual girava a vida do pesquisado.
Um dos entrevistados, pessoa de evidência nos movimentos sociais
surgidos no meio negro, procurou narrar objetivamente os aconteci
mentos de que participou, tendo daí resultado uma verdadeira história
dos movimentos negros. Fatos de ordem pessoal só apareciam na me
dida em que suas atitudes explicavam algo desses movimentos; por ou
tro lado, surgiam constantemente dados sobre a estrutura social do meio
negro. O sucesso obtido no caso presente, em que houve por iniciativa
do pesquisado uma focalização nos fatos de ordem social, está a indi
car uma possível seleção nos dados necessários para uma história de
vida no sentido de registrar aqueles com interesse sociológico e capa
zes de fornecer elementos que esclareçam os problemas colocados pela
pesquisa.
O outro entrevistado não me forneceu elementos que permitissem
a elaboração de sua história de vida. Depois de algum tempo, realiza
das cerca de dez entrevistas, no decorrer das quais cheguei a estabele
cer com ele uma certa intimidade e a perceber alguns traços de sua per
sonalidade, fui obrigado a desistir de levar avante a coleta de dados,
uma vez que ficou patente que o pesquisado fazia uma escolha dos da
dos que me narrava, com o fito de tornar suas ações passadas coeren
tes com seus ideais e atitudes atuais. Sem dúvida, para o pesquisador
preocupado com problemas de personalidade, este caso poderia apre
sentar interesse; mas como meu objetivo era esclarecer determinadas
questões ligadas à evolução das condições de contato entre brancos e
negros, para o que as informações do pesquisado não traziam contri
buição, fui levado a abandonar sua história de vida. Esta experiência,
confirmando a anterior, embora de modo negativo, no que concerne
à natureza dos dados que interessam a uma história de vida tendo em
vista a análise sociológica e a pesquisa que se realiza, evidencia tam
bém ser possível controlar a objetividade dos fatos narrados através
(5) Cf. Roger Bastide e Florestan Fernandes, O preconceito racial em São Pauto (Proje
to de estudo), São Paulo, Publicações do Instituto de Administração da Universida
de de São Paulo, n? 118, 1951, esp. p. 34-35.
169
do conhecimento prévio de alguns traços da personalidade do pesqui
sado, tornando ainda patente a necessidade de o pesquisador orientar
as entrevistas no sentido que o interessar, sob pena de não chegar a
obter material adequado aos fins da pesquisa.
O procedimento adotado na elaboração dessas duas histórias de
vida trouxe, a par de uma dupla delimitação, uma ampliação que leva
a ultrapassar os limites usualmente estabelecidos para uma história de
vida. A dupla delimitação está em restringir a coleta dos dados que
interessam particularmente à explicação sociológica e, em seguida, no
plano específico da sociologia, ao esclarecimento dos problemas foca
lizados pela pesquisa. A ampliação consiste em libertar a história de
vida da ênfase posta no desenvolvimento da personalidade, com o fim
exclusivo de explicar sua organização. Conseqüentemente, as experiên
cias individuais, em qualquer fase da vida, ganham significado para
a explicação sociológica e o campo de interesse do pesquisador abran
ge a totalidade dos fatos ocorridos ao pesquisado.
O interesse central do pesquisador desloca-se da reconstrução e
explicação de uma personalidade, levando em consideração os estímu
los recebidos do grupo, para referir-se aos próprios estímulos, isto é,
procura conhecê-los através das situações que a sociedade ofereceu ao
indivíduo. A personalidade deixa de ser objeto de conhecimento, trans-
formando-se num meio valioso de controle da objetividade dos fatos
mais significativos para o sociólogo. Deste modo, fica superado para
a sociologia um prejuízo estreitamente ligado às origens psicológicas
da técnica em questão. Realmente, do ponto de vista das condições de
ajustamento entre brancos e negros, por exemplo, é tão significativo
o fato de o pesquisado, um negro, não ter sido correspondido em sua
mocidade no amor que dedicava a uma branca, ouvindo dela “ você
é muito bom... só tem um defeito, é meio escurinho” — de profundas
repercussões nas suas atitudes em relação a brancos — como o fato
de ter sido preterido, por ser negro, numa promoção em seu emprego,
já homem feito — sem repercussões em suas atitudes, já definidas
anteriormente.
Do ponto de vista da técnica de coleta de dados para a história
de vida, esta reviravolta implica orientar as entrevistas no sentido de
obter material de interesse para a análise sociológica e capaz de contri
buir para a interpretação dos dados levantados mediante outras técni
cas; permite também uma verificação das informações obtidas, uma
vez que torna possível extrair delas, usando a personalidade como fa
tor de controle, os elementos devidos à perspectiva pessoal do entre
vistado. Praticamente, o pesquisador conseguirá isto, procurando co
nhecer, de início, os interesses e ideais do pesquisado, seja dedicando
as primeiras entrevistas a conversas sobre assuntos gerais, seja discu
tindo sua pessoa com outras pertencentes aos grupos em que convive.
170
Viu-se, nessa exposição, como a história de vida, tendo o papel
específico de fornecer dados para o controle de interpretações feitas
à base de materiais colhidos através de outras técnicas, assume carac
terísticas diferentes das que lhe são comumente atribuídas. Assim, a
referência das situações sociais vividas pelo indivíduo aos períodos su
cessivos de sua existência permite uma ordenação cronológica do ma
terial; a sociologia e o objeto específico da pesquisa limitam o interes
se do pesquisador a determinados fatos; a personalidade deixa de ser
o objeto central de conhecimento para transformar-se num elemento
de controle das informações recebidas; todas as experiências individuais,
na medida em que possibilitam o conhecimento de situações sociais,
ganham significado, alargando-se o campo de interesse do pesquisa
dor para abranger o curso de toda a vida do indivíduo.
Encarada nos termos deste artigo, a história de vida do ponto de
vista da sociologia é o relato das situações sociais vividas por um indi
víduo, ordenadas cronologicamente. A ênfase posta nos estímulos so
ciais recebidos pelo indivíduo não implica no desconhecimento dos as
pectos biológicos e psíquicos, mas os transforma de objeto em meio
de conhecimento.
Finalmente, a intenção deste artigo é, em última análise, ressaltar
a necessidade de reelaboração de uma técnica quando tomada de ou
tra ciência. E se implicitamente contém uma crítica a Dollard, ela se
explica em razão da diversidade entre os objetivos desse autor e os meus,
pois sua preocupação era a de usar a história de vida numa “ ciência
do comportamento humano” e não na sociologia, como acontece no
caso presente.
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