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MARIA ISAURA PEREIRA DE QUEIROZ

Variações sobre a
*

TÉCNICA DE GRAVADOR
no registro da
INFORM AÇÃO VIVA
ISBN 85-7182-019-8

fiWíiiiih'
Verdadeiramente indispensável a pesquisa­
dores e a responsáveis por levantamento de
dados através de entrevistas, este trabalho de
Maria Isaura Pereira de Queiroz — anterior­
mente publicado na Coleção Textos do CE-
RU, Centro de Estudos Rurais e Urbanos,
com a colaboração do Departamento de
Ciências Sociais da FFLCH da Universida­
de de São Paulo — vem à luz em nova con­
figuração, revista, atendendo a necessidades
acadêmicas e profissionais.
Objetivo, rico de informações e considera­
ções sobre o registro da informação viva, este
livro é um seguro guia de trabalho: a partir
de uma substanciosa introdução à natureza
e história do relato oral, em que discute sua
revalorização como transmissão de conheci­
mentos e histórias de vida, também nas pes­
quisas brasileiras, a autora desenvolve refle­
xões metodológicas e tecnológicas; analisa e
compara a pesquisa individual e a de equi­
pe; apresenta um paradigma de projeto de
pesquisa, suas técnicas e sistematização do
seu referencial; discorre sobre a técnica de
gravador, com suas vantagens e cuidados a
observar, e sobre a transcrição de entrevis­
tas; fala sobre a análise de documentos em
ciências sociais; e faz uma síntese e avalia­
ção final da conclusão de uma pesquisa.
Na parte final, reproduz um projeto especí­
fico de pesquisa (“ São Paulo, 1920-1937: de­
poimentos de trabalhadores de baixos recur­
sos” ) realizada por uma equipe do CERU
em 1981/82 e apresenta três importantes es­
tudos sobre histórias de vida: de Roger Bas-
tide, de Renato Jardim Moreira, e da pró­
pria autora.
Trata-se, pois, repetindo o que afirmamos
no início desta nota, de trabalho verdadei­
ramente indispensável a quantos estejam, di­
reta ou indiretamente, envolvidos em pesqui­
sas. E é, por igual, trabalho que põe em re­
levo a importância e o elevado nível dos es­
tudos e realizações desenvolvidos nesse cam­
po no CERU por Maria Isaura Pereira de
Queiroz, socióloga e pesquisadora cujo re­
nome há muito ultrapassou nossas frontei­
ras.
BIBLIOTECA BÁSICA DE CIÊNCIAS SOCIAIS

Direção:
GABRIEL COHN
(da Universidade de São Paulo)
TAMÁS SZMRECSÁNYI
(da Universidade Estadual de Campinas)

Série 2a. — Textos


Volume 7

A relação dos livros


publicados nesta coleção
encontra-se no fim deste volume.
MARIA ISAURA PEREIRA DE QUEIROZ

VARIAÇÕES SOBRE A TÉCNICA

DE GRAVADOR NO REGISTRO DA

INFORM AÇÃO VIVA

T. A. QUEIROZ, EDITOR
São Paulo
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Queiroz, Maria Isaura Pereira de.


Variações sobre a técnica de gravador no registro
da informação viva / Maria Isaura Pereira de Quei­
roz. — São Paulo : T.A. Queiroz, 1991. — (Biblioteca
básica de ciências sociais. Série 2. Textos ; v. 7)

ISBN 85-7182-019-8

1. Ciências sociais — Pesquisa 2. Comunicação oral


— Registros 3. Entrevistas I. Título. II. Série.

CDD-300.72081
91-1496 -001.55

índices para catálogo sistemático

1. Brasil : Ciências sociais : Pesquisa 300.72081


2. Brasil : Pesquisas : História de vida : Ciências
sociais 300.72081
3. Gravação: Informação oral 001.55
4. Informação oral : Registros gravados 001.55

Direitos desta edição reservados

T. A. QUEIROZ, EDITOR, LTDA.


Rua Joaquim Floriano, 733 — 9?
04534 São Paulo, SP

1991
Impresso no Brasil
Para
Antonia,
Dirce,
Maria Lucia,
Viviane,
que compuseram a equipe da pesquisa
“ S. Paulo, 1920-1937: depoimentos de
trabalhadores de baixos recursos” ,
representando todos os estudantes que
comigo fizeram pesquisas em meus 30 anos
de magistério, e com os quais aprendi o
significado do trabalho em equipe.
São Paulo, outubro, 1982
A pesquisa de que resultou este trabalho foi efetuada com financiamento
da Ford Foundation. Sua primeira versão foi publicada como volume n? 4 da
Coleção Textos, editada pelo Centro de Estudos Rurais e Urbanos — CERU
com a colaboração do Departamento de Ciências Sociais, FFLCH-USP.
Sumário

Introdução — Relatos orais: do “ indizível” ao “ dizível” .... 1

I — Reflexão metodológica — reflexão tecnológica: convergências


e confrontos..................................................................................... 27
II — Pesquisa individual, pesquisa de equipe: irmãs inimigas ou
íntimas colaboradoras?................................................................... 33
III — Proposição de um projeto de pesquisa....................................... 46
IV — Das técnicas..................................................................................... 56
V — Sistematização do referencial da pesquisa............................... 68
VI — Técnica de gravador e registro da informação viva............... 73
VII — Das entrevistas e da sua transcrição......................................... 81
VIII — Análise de documentos em ciências sociais............................. 91
IX — Da arte de dividir, da engenhosidade do construir................ 109
X — Síntese e avaliação final: o término de umapesquisa............ 120

Anexos
1. Projeto de pesquisa: “ S. Paulo, 1920-1937: depoimentos de
trabalhadores de baixos recursos” .................................................... 133
2. Introdução a dois estudos sobre a técnica das histórias de vida
(Roger Bastide)..................................................................................... 150
3. Histórias de vida e depoimentos pessoais (Maria Isaura Pereira
de Queiroz)............................................................................................ 154
4. A história de vida na pesquisa sociológica
(Renato Jardim M oreira).................................................................... 167
Introdução - Relatos orais:
do “indizível” ao “dizível”

Revalorização do relato oral


Não há muitos anos, o “ relato” , denominado agora “ história
oral” , fez seu reaparecimento entre as técnicas de coleta de material
empregadas pelos cientistas sociais; com tanto sucesso que, por mui­
tos deles, foi encarado como “ a ” técnica por excelência, e até mesmo
a única válida para se contrapor às quantitativas. Enquanto estas últi­
mas, reduzindo a realidade social à aridez dos números, pareciam
amputá-la de seus significados, a primeira encerrava a vivacidade dos
sons, a opulência dos detalhes, a quase totalidade dos ângulos que apre­
senta todo fato social.
Diz-se reaparecimento porque, do começo do século ao início dos
anos 50, a “ história oral” fora utilizada por sociólogos como W.I. Tho-
mas (1863-1947) e F. Znaniecki (1882-1958) em sua pesquisa conjunta,
datada de 1918-1920; ou como John Dollard (1900), que pretendeu tra­
çar-lhe as regras de aplicação; e também por antropólogos, entre os
quais Franz Boas (1858-1942), geógrafo alemão convertido à antropo­
logia e naturalizado americano em 1886, que recolheu relatos e depoi­
mentos de velhos caciques e pajés a fim de preservar do desapareci­
mento a memória da vida tribal. Estes cientistas sociais encaravam a
história oral, e principalmente, a história de vida como um instrumen­
to fundamental de suas disciplinas. Porém, enquanto Boas a emprega­
va sem grandes discussões, tanto Dollard quanto Thomas e Znaniecki
alertavam para as dificuldades que apresentava.
Para estes dois últimos, a história de vida mostrava apenas um
aspecto parcial da realidade; assim sendo, não podia ser utilizada iso­
ladamente, mas devia ser completada e esclarecida por toda sorte de
dados colhidos segundo outras técnicas. O monumental trabalho que
empreenderam sobre o camponês da Polônia imigrante e em seu país
de origem encerra com efeito coletas realizadas por meio de instrumen­
tos de pesquisa os mais variados. Quanto a John Dollard, sua preocu­
pação eram as implicações psicológicas das histórias de vida.
Considerava-as aptas para se conhecer como se desenvolvia um indiví­
duo em seu meio sócio-cultural; estariam, portanto, muito coloridas
pelo subjetivismo do informante, o que deturparia sua narrativa. Po­
rém, para estes autores, o relato oral se apresentava como técnica útil

1
para registrar o que ainda não se cristalizara em documentação escri­
ta, o não-conservado, o que desaparecería se não fosse anotado; ser­
via, pois, para captar o não-explícito, quem sabe mesmo o indizível.1
O grande desenvolvimento das técnicas estatísticas, em fins dos
anos 40, relegou em seguida para a penumbra relatos orais e histórias
de vida, que pareciam demasiadamente ligadas às influências da psi­
que individual. A técnica de amostragem com a aplicação de questio­
nário surgia agora como a maneira mais adequada de se obterem da­
dos inquestionavelmente objetivos.
Pouco a pouco se percebeu, no entanto, que valores e emoções
permaneciam escondidos nos próprios dados estatísticos, já que as de­
finições das finalidades da pesquisa e a formulação das perguntas es­
tavam profundamente ligadas à maneira de pensar e de sentir do pes­
quisador, o qual transpunha assim, para os dados, de maneira perigo­
sa, porque invisível, sua própria percepção e seus preconceitos. Os nú­
meros perdiam sua auréola de pura objetividade, patenteando-se do­
tados de vieses anteriores ao momento da coleta, escondidos na for­
mulação do problema e do questionário; ocultos, pareciam inexisten­
tes... Porém influenciavam o levantamento, desviando-o muitas vezes
do rumo que devia seguir.
O desenvolvimento tecnológico, colocando à disposição do cien­
tista social novos meios de captar o real, como o gravador, reavivou
novamente o relato oral; as fitas pareciam agora o meio milagroso de
conservar na narração uma vivacidade de que o simples registro no pa­
pel as despojava, uma vez que a voz do entrevistado, suas entonações,
suas pausas, seu vai-e-vem no que contava constituíam outros tantos
dados preciosos para estudo. Sem dúvida Oscar Lewis foi um pioneiro
neste sentido; muito embora se considere hoje discutível a maneira pe­
la qual agiu, ao colher as várias histórias de vida de membros da famí­
lia Sanchez, mostrou como utilizar um novo meio de registro, reco­
lheu precioso repositório de dados, criou documentos cuja exploração
é ainda possível, apesar das dúvidas levantadas.2 Como que se redes-
cobriu nesse momento o relato oral e se aquilatou de maneira positiva
sua grande importância.

Relato oral e transmissão de conhecimentos


No entanto, através dos séculos, o relato oral constituira sempre
a maior fonte humana de conservação e difusão do saber, o que equi­
vale dizer a maior fonte de dados para as ciências em geral. Em todas
as épocas, a educação humana (ao mesmo tempo formação de hábitos
e transmissão de conhecimentos, ambos muito interligados) se baseara
na narrativa, que encerra uma primeira transposição: a da experiência
indizível que se procura traduzir em vocábulos. Um primeiro enfra­

2
quecimento ou uma primeira mutilação ocorre então, com a passagem
daquilo que está obscuro para uma primeira nitidez — a nitidez da pa­
lavra — rótulo classifícatório colocado sobre uma ação ou uma emoção.
A transmissão tanto diz respeito ao passado mais longínguo, que
pode mesmo ser mitológico, quanto ao passado muito recente, à expe­
riência do dia-a-dia. Ela se refere ao legado dos antepassados e tam­
bém à comunicação da ocorrência próxima no tempo; tanto veicula
noções adquiridas diretamente pelo narrador, que pode inclusive ser
o agente daquilo que está relatando, quanto transmite noções adquiri­
das por outros meios que não a experiência direta, e também antigas
tradições do grupo ou da coletividade.
O relato oral, está, pois, na base da obtenção de toda sorte de in­
formações e antecede outras técnicas de obtenção e conservação do sa­
ber; a palavra parece ter sido, senão a primeira, pelo menos uma das
mais antigas técnicas utilizadas para tal. Desenho e escrita a sucede­
ram. Quando o “ homem das cavernas” deixou, nas paredes destas,
figuras que se supõe formarem um sentido, estava transmitindo um
conhecimento que possuía e que talvez já tivesse recebido um nome,
estando já designado pela palavra.3 O fruto de suas experiências e des­
cobertas ficava assim concretizado e passava aos demais, inclusive aos
pósteros. Mais tarde a escrita, quando inventada, não foi mais que uma
nova cristalização do relato oral.
Desde que o processo de transmissão do saber se instala, implica
imediatamente a existência de um narrador e de um ouvinte ou de um
público. Ao se operar a passagem do oral para um signo que o “ solidi­
fica” , seja ele desenho ou escrita, instala-se novo intermediário entre
narrador e público. O intermediário pode ser também um indivíduo
que funcione como transmissor dos conhecimentos que ouviu de ou­
trem. Da mesma forma que desenho e palavra escrita constituem uma
reinterpretação do relato oral, também o indivíduo intermediário, por
mais fiel que seja, acrescenta sua própria interpretação àquilo que está
narrando.
O gravador parece à primeira vista um instrumento técnico pró­
prio para anular ou, pelo menos, diminuir o possível desvio trazido
pela intermediação do pesquisador. Logo se viu, no entanto, que o po­
der da máquina não era absoluto e nem mesmo tão grande quanto se
havia suposto, uma vez que a utilização dos dados nas pesquisas exi­
gia, em seguida, a transcrição escrita. Uma parte do registro se perdia
na passagem do oral para o texto, e este ficava igualado a qualquer
outro documento. A vantagem era conservar com maior precisão a lin­
guagem do narrador, suas pausas (que podiam ser simbolicamente trans­
formadas em sinais convencionais), a ordem que dava às idéias. O do­
cumento resultante era sem dúvida mais rico do que aquele registrado
pela mão do pesquisador, mas apesar de tudo havia um empobreci­

3
mento quando comparado com a fita gravada, e de novo o pesquisa­
dor se tornava um intermediário que podia deturpar de alguma forma
o que fora registrado.
A fita, porém, não é passível de ser guardada indefinidamente.
Se repetidas vezes empregada por um mesmo ou por sucessivos pes­
quisadores que quiserem evitar a transcrição escrita, logo se deteriora;
obter dela cópias em quantidade leva a despesas apreciáveis, embora
concorra para conservá-la. Toda fita, mesmo quando utilizada com par­
cimônia, ainda assim é frágil, exige cuidados especiais para maior du­
rabilidade e armazenagem bastante cara. A única forma de se conser­
var o relato por longo tempo está ainda em sua transcrição. Volta-se
ao que se acreditara evitar com o gravador, isto é, à intermediação es­
crita entre o narrador e o público para a utilização do relato, e às pos­
síveis deturpações dela decorrentes.
Tal constatação contribui para desfazer nova ilusão: a de que se
deveria conservar a narrativa o mais próximo possível de seu registro,
evitando a intervenção do pesquisador e a ocorrência de cortes que pre­
judicariam o conhecimento integral do dado recolhido. Tropeça-se aqui
com algo que parece obstáculo intransponível: a nítida distinção entre
narrador e pesquisador, que é fundamental. O pesquisador é guiado
por seu próprio interesse ao procurar um narrador, pois pretende co­
nhecer mais de perto, ou então esclarecer, algo que o preocupa; o nar­
rador, por sua vez, quer transmitir sua experiência, que considera dig­
na de ser conservada e, ao fazê-lo, segue o pendor de sua própria valo­
rização, independentemente de qualquer desejo de auxiliar o pesquisa­
dor. Procurará por todos os meios relatar, com detalhes e da forma
que lhe parecer mais satisfatória, os fatos que respondem aos seus pró­
prios intentos, e tudo isto pode convir ou não ao pesquisador, o qual
tentará então trazer o narrador ao “ bom caminho” , isto é, ao assunto
que estuda.
Mais tarde, ao utilizar o relato, o pesquisador o fará de acordo
com suas preocupações e não com as intenções do narrador; isto é, as
intenções do narrador serão forçosamente sacrificadas. Assim, o pro­
pósito deste último fica sempre em segundo plano, desde o início da
coleta de dados. Em primeiro lugar, porque nunca coincide inteiramente
com os propósitos do pesquisador; foram os desejos deste que deslan-
charam o relato, sendo então predominantes sobre o intento do narra­
dor. Em segundo lugar, porque o pesquisador utilizará em seu traba­
lho as partes do relato que sirvam aos objetivos fixados, destacando
os tópicos que considerará úteis e desprezando os demais.
Noutras palavras, desde o início da coleta do material, quem co­
manda toda a atividade é o pesquisador, pois foi devido a seus interes­
ses específicos que se determinou a obtenção do relato. Durante a en­
trevista, portanto, por mais que se procure deixar o narrador como

4
senhor do que está expressando, o pesquisador terá sempre uma posi­
ção dominante. Que este mais tarde recorte o material segundo suas
finalidades, a fim de aproveitá-lo da maneira que melhor convenha a
estas, não estará senão seguindo a mesma linha de dominação tomada
desde o início e agora reafirmada de maneira mais clara.
Na verdade, a narrativa oral, uma vez transcrita, se transforma
num documento semelhante a qualquer outro texto escrito, diante do
qual se encontra um estudioso e que, ao ser fabricado, não seguiu for-
çosamente as injunções do pesquisador; de fato, o cientista social in­
terroga uma enorme série de escritos, contemporâneos ou não, que cons­
tituem a fonte de dados em que apóia seu trabalho. Recortes de jornal
relativos à atualidade, documentos históricos de variado tipo e de di­
versas épocas, correspondência hodierna ou passada, os mais diversos
registros, — sem esquecer as estatísticas estabelecidas pelos governan­
tes ou por instituições específicas, — foram redigidos com intenções
que nada tinham a ver com a pesquisa que decidiu fazer; e não é por
esta razão que devam ser afastados como menos úteis. Pelo contrário,
constituem hoje, como constituíram no passado, a base mais sólida so­
bre a qual se erguerá o edifício da investigação. É sobre ela que se rea­
lizará o procedimento primordial de toda pesquisa — a análise. E aná­
lise, em seu sentido essencial, significa decompor um texto, fragmentá-lo
em seus elementos fundamentais, isto é, separar claramente os diver­
sos componentes, recortá-los, a fim de utilizar somente o que é com­
patível com a síntese que se busca. Assim, diante destas considerações,
o escrúpulo em relação aos recortes das histórias orais e à sua utiliza­
ção parcial se afigura nitidamente como um falso problema.

História oral, história de vida


“ História oral” é termo amplo que recobre uma quantidade de
relatos a respeito de fatos não registrados por outro tipo de documen­
tação, ou cuja documentação se quer completar. Colhida por meio de
entrevistas de variada forma, ela registra a experiência de um só indi­
víduo ou de diversos indivíduos de uma mesma coletividade. Neste úl­
timo caso, busca-se uma convergência de relatos sobre um mesmo acon­
tecimento ou sobre um período de tempo. A história oral pode captar
a experiência efetiva dos narradores, mas destes também recolhe tradi­
ções e mitos, narrativas de ficção, crenças existentes no grupo, assim
como relatos que contadores de histórias, poetas, cantadores inventam
num momento dado. Na verdade, tudo quanto se narra oralmente é
história, seja a história de alguém, seja a história de um grupo, seja
a história real, seja ela mítica.
Dentro do quadro amplo da história oral, a “ história de vida”
constitui uma espécie ao lado de outras formas de informação tam­

5
bém captadas oralmente; porém, dada a sua especificidade, pode igual­
mente encontrar um símile em documentação escrita. Trata-se de tipos
de documento próximos uns dos outros, mas que é necessário distin-
güir, pois cada qual tem sua peculiaridade de coleta e de finalidade.
Assemelham-se às histórias de vida as entrevistas, os depoimentos pes­
soais, as autobiografias, as biografias; fornecem todas elas material
para a pesquisa sociológica, porém diferem em sua definição e carac­
terísticas.
A forma mais antiga e mais difundida de coleta de dados orais,
nas ciências sociais, é a entrevista; considerada muitas vezes como sua
técnica por excelência, tem sido ao contrário encarada como desvir-
tuadora dos relatos. Nunca chegou, porém, a ser totalmente posta de
lado, o que demonstra sua importância. A entrevista supõe uma con­
versação continuada entre informante e pesquisador; o tema ou o acon­
tecimento sobre que versa foi escolhido por este último por convir ao
seu trabalho. O pesquisador dirige, pois, a entrevista; esta pode seguir
um roteiro, previamente estabelecido, ou operar aparentemente sem
roteiro, porém, na verdade, se desenrolando conforme uma sistemati-
zação de assuntos que o pesquisador como que decorou. A captação
dos dados decorre de sua maior ou menor habilidade em orientar o
informante para discorrer sobre o tema; é este que conhece o aconteci­
mento, suas circunstâncias, as condições atuais ou históricas, ou por
tê-lo vivido ou por deter a respeito informações preciosas. Elas ora for­
necem dados originais, ora complementam dados já obtidos de outras
fontes. Na verdade, a entrevista está presente em todas as formas de
coleta dos relatos orais, pois estes implicam sempre um colóquio entre
pesquisador e narrador.
A história de vida, por sua vez, se define como o relato de um
narrador sobre sua existência através do tempo, tentando reconstituir
os acontecimentos que vivenciou e transmitir a experiência que ad­
quiriu. Narrativa linear e individual dos acontecimentos que ele con­
sidera significativos, através dela se delineiam as relações com os mem­
bros de seu grupo, de sua profissão, de sua camada social, de sua
sociedade global, que cabe ao pesquisador desvendar. Desta forma,
o interesse deste último está em captar algo que ultrapassa o caráter
individual do que é transmitido e que se insere nas coletividades a
que o narrador pertence. Porém, o relato em si mesmo contém o que
o informante houve por bem oferecer, para dar idéia do qtte foi sua
vida e do que ele mesmo é. Avanços e recuos marcam as histórias
de vida e o bom pesquisador não interfere para restabelecer cronolo­
gias, pois sabe que também estas variações no tempo podem consti­
tuir indícios de algo que permitirá a formulação de inferências; na
coleta de histórias de vida, a interferência do pesquisador seria prefe­
rencialmente mínima.

6
Outro aspecto fundamental da história de vida é ser ela uma téc­
nica cuja aplicação demanda longo tempo; não é com uma ou duas
entrevistas que se esgota o que um informante pode contar de si mes­
mo, tanto mais que a duração delas é limitada devido ao cansaço. Além
de exigir muitos encontros com o narrador, também se deve contar
quanto tempo levam os relatos para serem transcritos. Finalmente, uma
das dificuldades consiste em pôr um ponto final nas entrevistas, pois
o narrador em geral afirma que tem sempre novos detajhes a acrescen­
tar: não quer perder seu papel de personagem...
Toda história de vida encerra um conjunto de depoimentos. O ter­
mo foi muito cedo definido juridicamente, significando interrogações
com a finalidade de “ estabelecer a verdade dos fatos” . Perde, porém,
esta conotação nas ciências sociais, para significar o relato de algo que
o informante efetivamente presenciou, experimentou, ou de alguma for­
ma conheceu, podendo assim certificar. O crédito a respeito do que
é narrado será testado, não pela credibilidade do narrador, mas sim
pelo cotejo de seu relato com dados oriundos de outras variadas fon­
tes, que mostrará sua convergência ou não. Desta forma, nas ciências
sociais, o depoimento perde seu sentido de “ estabelecimento da verda­
de” para manifestar somente o que o informante presenciou e conheceu.
A diferença entre história de vida e depoimento está na forma es­
pecífica de agir do pesquisador ao utilizar cada uma destas técnicas,
durante o diálogo com o informante. Ao colher um depoimento, o co­
lóquio é dirigido diretamente pelo pesquisador; pode fazê-lo com maior
ou menor sutileza, mas na verdade tem nas mãos o fio da meada e con­
duz a entrevista. Da “ vida” de seu informante só lhe interessam os
acontecimentos que venham inserir-se diretamente no trabalho, e a es­
colha é unicamente efetuada por este critério. Se o narrador se afasta
em digressões, o pesquisador as corta para trazê-lo de novo ao seu as­
sunto. Conhecendo o problema, busca obter do narrador o essencial,
fugindo do que lhe parece supérfluo e desnecessário. E é muito mais
fácil a colocação do ponto final neste caso, assim que o pesquisador
considere ter obtido o que deseja. A obediência do narrador é patente,
o pesquisador tem as rédeas nas mãos. A entrevista pode se esgotar
num só encontro; os depoimentos podem ser muito curtos, residindo
aqui uma de suas grandes diferenças com relação às histórias de vida.
Voltando novamente às histórias de vida, embora o pesquisador
sub-repticiamente dirija o colóquio, quem decide o que vai relatar é
o narrador, diante do qual o pesquisador deve se conservar tanto quanto
possível silencioso. Não que permaneça ausente do colóquio, porém
suas interferências devem ser reduzidas, pois o importante é que se­
jam captadas as experiências do entrevistado. Este é quem determi­
na o que é relevante ou não narrar, ele é que detém o fio condutor.
Nada do que relata pode ser considerado supérfluo, pois tudo se en­

7
cadeia para compor e explicar sua existência. Pode ser difícil fazê-lo
concluir, pois há sempre mais e mais acontecimentos, mais e mais de­
talhes, mais e mais reflexões que a memória vai resgatando.
Vê-se, portanto, que estabelecer diferenças entre histórias de vida
e depoimentos pessoais não constitui exagero de pesquisador demasia­
damente escrupuloso. A escolha de uma ou outra técnica não pressu­
põe apenas diferenças na maneira de aplicá-las, mas inclusive, e sobre­
tudo, diferença nas preocupações do pesquisador com relação aos da­
dos que pretende obter. Noutras palavras, as diferenças recaem sobre
o tipo de pesquisa que se quer realizar, pesquisa esta que, na sua espe­
cificidade, deverá requerer a aplicação da história de vida, ou a coleta
por meio de depoimentos.
Dois exemplos podem esclarecer estas divergências. Quando se bus­
cou conhecer como se desenrolava a existência cotidiana de indivíduos
de baixa renda, na cidade de São Paulo, durante as décadas de 20 e
30, a técnica escolhida foi a das histórias de indivíduos que tivessem
sido adolescentes ou jovens naquele período; e, como se tratava de his­
tórias de vida, não foram elas limitadas no tempo, mas, nas idas e vin­
das do narrador, chegaram sempre até os dias de hoje. No entanto,
justamente porque se tratava de velhos, às vezes mesmo anciãos de mui­
ta idade, a atenção deles naturalmente se voltou para infância e moci­
dade, trazendo ao pesquisador aquilo que estava buscando.4 No en­
tanto, ao se estudar o carnaval na cidade de São Paulo, tal como se
realizara em variadas épocas até 30/40, através de entrevistas com ve­
lhos foliões, a técnica escolhida foi a dos depoimentos. Tratava-se de
conhecer não a sequência da vida dos mesmos, porém as formas que
havia tomado o folguedo no decorrer do tempo; para tanto, urgia co­
nhecer também o que havia sido contado por pais e avós, além de sa­
ber como todos se divertiam durante as folias de Momo. Um aspecto
era mesmo essencial: quais os grupos e coletividades participantes, a
que camadas sociais pertenciam, quem eram os líderes na organização
da festa. Não era possível deixar a iniciativa do diálogo aos informan­
tes; cabia ao pesquisador orientá-lo de modo a colher a maior quanti­
dade possível de material.5 O pesquisador guiava, pois, a narrativa do
informante. Como se verifica, na história de vida o colóquio é condu­
zido pelo narrador, que detém a condução do relato, enquanto nos de*-
poimentos é o pesquisador que abertamente o dirige.
Embora na história de vida o pesquisador se abstenha de intervir
e a maneira de se realizar caiba ao narrador, na verdade o pesquisador
foi quem escolheu o tema da pesquisa, formulou as questões que dese­
ja esclarecer, propôs os problemas. O comando é dele, muito embora
procure não intervir durante a narração; não impõe, portanto, os te­
mas ao informante, que os abordará ou não, a seu talante. No caso
da pesquisa para esclarecer o cotidiano paulistano de pessoas de baixa

8
renda entre 1920 e 1937, uma das questões que o pesquisador tinha em
mente era saber como os informantes haviam vivenciado ocorrências
como as revoluções de 1924, 1930, 1932. Todavia, se o informante na­
da dizia a respeito, também nada perguntava o pesquisador, não ten­
tando “ avivar a memória” de seu interlocutor. Ao contrário, a “ falha
da memória” , encontrada em vários casos, podia ser reveladora da for­
ma de participação desta parcela de população em tais acontecimen­
tos. Verificar também se a “ falha” ocorria mais nos relatos femini­
nos, e muito menos nos masculinos, igualmente era algo que não po­
dia ser desprezado.
Além de distinguir histórias de vida e depoimentos pessoais, é pre­
ciso ainda destacar a diferença com autobiografias e biografias. Nar­
rar sua própria existência consiste numa autobiografia, e toda história
de vida poderia, a rigor, ser enquadrada nesta categoria tomada em
sentido lato. Mas no sentido restrito a autobiografia existe sem nenhum
pesquisador, é essa sua forma específica. É o narrador que, sozinho,
manipula os meios de registro, quer seja a escrita, quer o gravador.
Foi ele também que, por motivos estritamente pessoais, se dispôs a nar­
rar sua existência, fixar suas recordações; deu-lhes o encaminhamento
que melhor lhe pareceu e, se utilizou o gravador, não raro ele mesmo
efetua em seguida a transcrição, ou pelo menos a corrige. Na autobio­
grafia não existe, ou se reduz ao mínimo, a intermediação de um pes­
quisador; o narrador se dirige diretamente ao público, e a única inter­
mediação está no registro escrito, quer se destine ou não o texto à pu­
blicação.
A biografia, por sua vez, é a história de um indivíduo redigida
por outro; existe aqui a dupla intermediação que a aproxima da histó­
ria de vida, consubstanciada na presença do pesquisador e no relato
escrito que sucede às entrevistas. O objetivo do pesquisador é desven­
dar a vida particular daquele que está entrevistando ou cujos depoi­
mentos está estudando; mesmo que neste estudo atinja a sociedade em
que vive o biografado, o intuito é, através dela, explicar os comporta­
mentos e as fases da existência individual. A finalidade é sempre um
personagem, isto é, uma pessoa encarada em suas ações e em suas qua­
lidades, naquilo que faz e diz através do tempo, em variadas situações
e circunstâncias. Busca-se conhecê-lo através da sucessão de suas con­
dutas e segundo dois princípios fundamentais, que orientam tanto as
entrevistas quanto o relato posterior: o personagem sempre se revela
em seus comportamentos que compõem um todo integrado, de tal ma­
neira que este todo não poderia ser dividido sem se encontrar imedia­
tamente destruído; o personagem é um indivíduo especial e particular,
diferente de todos os outros, dos quais se destaca.
Uma vez que estas são as características de um personagem, a fi­
nalidade de um biógrafo, ao escrever-lhe a história, é oposta à de um

9
pesquisador ao utilizar a técnica de histórias de vida. O primeiro fará
.ressaltar em seu trabalho os aspectos marcantes e inconfundíveis do
indivíduo cuja existência decidiu revelar ao público. O segundo busca,
com as histórias de vida, atingir a coletividade de que seu informante
faz parte e o encara, pois, como mero representante da mesma através
do qual se revelam os traços desta. Mesmo que o cientista social regis­
tre somente uma história de vida, seu objetivo é captar o grupo, a so­
ciedade de que ela é parte; busca encontrar a coletividade a partir do
indivíduo. O biógrafo, mesmo que retrate a sociedade de que seu per­
sonagem participa, o faz com o intuito de compreender melhor a exis­
tência do biografado.
Uma segunda diferença, agora na maneira de serem utilizadas bio­
grafias e histórias de vida, se depreende aqui também. Justamente por­
que se trata de um indivíduo considerado em sua integralidade, a bio­
grafia não pode ser decomposta em elementos ou utilizada em frag­
mentos, sob pena de se perder completamente o sentido do que se pro­
curava: o desenvolvimento da personalidade, isto é, do “ eu” único e
permanente que, embora evoluindo através do tempo, mantém certa
linha constante que o distingue dos demais. É este o caso da biografia,
mas também da utilização da história de vida pela psicologia, mesmo
quando trata das relações entre um indivíduo e sua sociedade; por is­
so, quando apenas parte dela é utilizada, pode induzir a graves falhas
na análise e na compreensão do que se quer estudar.
Esta exigência não tem razão de ser quando se trata de um estudo
sociológico ou antropológico. Neste caso, o aproveitamento da bio­
grafia ou da autobiografia se faz no sentido de buscar como estão ali
operantes as relações do indivíduo com seu grupo, com sua sociedade.
Não se trata de considerá-lo isoladamente, nem de compreendê-lo em
sua unicidade; o que se quer é captar, através de seus comportamen­
tos, o que se passa no interior das coletividades de que participa. O
indivíduo não é mais o “ único” ; ele agora é uma pessoa indetermina­
da, que nem mesmo é necessário nomear, é somente unidade dentro
da coletividade. Todavia, em seu anonimato, contém o indivíduo,num
microcosmo, as configurações que sua coletividade abarca, ao orde­
nar, umas em relação às outras, as unidades de que se compõe o gru­
po. O recorte do material não somente se torna viável, agora, como
até mesmo imperioso, pois são facetas do mesmo que serão analisadas. ’
Embora colhidas com finalidades muito diferentes, autobiogra­
fias e biografias são perfeitamente utilizáveis pelos cientistas sociais co­
mo material de análise. Ambas, principalmente se bem feitas, podem
constituir excelentes repositórios de dados que, no entanto, devem ser
verificados e completados por informações de outras fontes. Pode-se
dizer que autobiografias e biografias, desse ponto de vista, estão em
convergência com histórias de vida e depoimentos pessoais para o es­

10
clarecimento de um dado ou de um momento histórico; porém, não
se confundem com estes. Também devem ser manuseadas com muito
cuidado; justamente por se tratar da análise de uma personalidade, não
raro encarecerão o que é peculiar ao indivíduo estudado. Ora, o que
o sociólogo trabalha vai na direção do que é coletivo, isto é, do que
é geral, não se detendo nos particularismos. Sua direção é oposta à dos
biógrafos e dos psicólogos.

Histórias de vida: características


Quando John Dollard examinou os critérios que tornariam acei­
táveis as histórias de vida como fornecedoras de dados para o sociólo­
go, tropeçou justamente no problema de estar lidando com o desen­
volvimento de um indivíduo dentro de determinada sociedade e, por­
tanto, de estar abarcando o comportamento deste, e não diretamente
os dados sobre a coletividade em foco. E quando, no período em que
publicou seu livro, outros cientistas sociais cogitaram do aproveitamento
deste tipo de material, assim como dos depoimentos orais, pareceu a
muitos deles que a interferência da subjetividade do narrador falseava
de maneira perniciosa as entrevistas. Franz Boas, porém, colhendo os
relatos de anciãos das tribos norte-americanas, não se deixou deter por
este aspecto. Tencionava reconstruir, através do que reunia, a organi­
zação deliqüescente dos grupos a fim de compreendê-los. O que lhe
chamou a atenção foi a relativa independência de certos fatos cultu­
rais, que os fazia persistir mesmo quando desorganizado o grupo em
que haviam previamente existido. Descobria assim a condição sine qua
non para que a história de vida e os relatos orais sobre o passado pu­
dessem ser utilizados: comportamentos e valores são encontrados na
memória dos mais velhos, mesmo quando estes já não vivem na orga­
nização de que haviam participado no passado, e assim se pode conhe­
cer parte do que existira anteriormente e se esmaecera nos embates do
tempo.
Realmente, se a memória de determinados valores e comportamen­
tos se desfizesse com o desaparecimento das organizações sociais, en­
tão seria impossível a utilização dos relatos orais em geral, e das histó­
rias de vida em particular, na análise de coletividades e sociedades.
Muito antes de Dollard e de Boas, os sociólogos Thomas (ameri­
cano) e Znaniecki (polonês) haviam utilizado histórias de vida em seu
célebre trabalho sobre os camponeses poloneses que permaneciam em
sua pátria e os que haviam emigrado para os Estados Unidos. Porém, ás
preocupações de Dollard haviam constituído dificuldades para ambos,
que consideraram, ao contrário, a história de vida como excelente téc­
nica de coleta de material. Chamaram a atenção, todavia, pára o fato
de não poder ela ser utilizada sozinha numa pesquisa, pois não for­

11
nece base empírica suficiente para se levantar inferências; deve, por­
tanto, ser sempre completada por material coletado de outra maneira.
De fato, estes autores trabalharam com grande cópia de documentos
escritos, como, por exemplo, a correspondência entre os imigrantes e
seus parentes que haviam permanecido na Polônia.6
A constatação destes dois cientistas sociais, proveniente da expe­
riência que realizaram, chama a atenção para um aspecto que foi em
seguida retomado por muitos outros pesquisadores: o da necessidade
de uma complementação proveniente de outras fontes. Sua justifica­
tiva era a de que nunca se poderiam obter grandes quantidades de
histórias de vida indispensáveis para dar embasamento empírico sa­
tisfatório e amplo que permitisse chegar a conclusões. Na verdade,
todo registro de uma história de vida, mesmo quando hoje é feita
por intermédio do gravador, desliga-a do contexto em que se deu a
entrevista; e esta falha é mais grave se a entrevista teve lugar fora
do sítio em que o informante habita ou trabalha. De fato, nem a es­
crita do pesquisador nem o gravador registram o local onde se passa
o colóquio, ou o local onde o informante habita, amputando o mate­
rial de uma preciosa messe que pode encerrar detalhes primordiais.
A falha é muito mais importante na coleta de histórias de vida do
que nos depoimentos orais; a focalização destes sobre determinado
ponto, sua concentração sobre um dado preciso, excluem a utilização
de elementos circundantes, que, pelo contrário, seriam esclarecedores
no caso de histórias de vida, como comprovantes, ou como demons­
tradores de contradições.
Na verdade, é específico das ciências sociais necessitar sempre o
pesquisador de dados colhidos de fontes as mais variadas, quando quer
abarcar de forma ampla a realidade que estuda. A unanimidade a esse
respeito tem sido constante.7 Mesmo aqüeles que se manifestaram de
modo muito entusiástico a respeito das histórias de vida reconheceram
que a utilização somente delas resultava em trabalhos limitados. A
maior dificuldade estava em que a coleta de uma história de vida é de
duração longa; as entrevistas não podem ultrapassar certo lapso de tem­
po porque são cansativas, devendo ser empregadas com intervalos. Para
os idosos, a quantidade de colóquios deve ser grande quando se reve­
lam bons informantes, a fim de se coletar o maior número possível de
informes. Este alongamento no tempo é acrescido por uma transcri­
ção (que consome horas e horas, sendo trabalhosa e aborrecida), as­
sim como por uma análise forçosamente demorada. Desta forma, é mui­
to difícil conseguir muitas histórias de vida que forneçam base empíri­
ca suficientemente larga para se chegar a algum grau de certeza, a não
ser por meio de uma pesquisa que demore vários anos. O meio de fugir
a este obstáculo estava em juntar à técnica em pauta uma coleta de
dados utilizando outros procedimentos.

12
Mesmo a utilização de depoimentos orais, cuja obtenção é mais
breve, aponta para dificuldades inerentes à própria natureza do infor­
me. Nunca é demais lembrar o belo trabalho de Germaine Tillion so­
bre os campos de concentração nazistas em que esteve detida durante
a 2? Grande Guerra, e que teve como uma das fontes de dados, além
da vivência da autora, uma larga coleta de depoimentos orais.8 Seu in­
tuito era desvendar o destino dado a prisioneiras que periodicamente
eram retiradas do campo. Verificou que os depoimentos e sua própria
recordação do que fora vivenciado se orientavam em direções diferen­
tes e não raro contraditórias. Resultavam do fato de que, individual­
mente, os informantes haviam captado somente uma parcela da reali­
dade de Ravensbrück, e a narrativa de cada acontecimento era diver­
sa, conforme cada indivíduo se encontrasse numa ou noutra situação,
ou de acordo com a sensibilidade e a experiência passada de cada um.
Verificou assim a autora a impossibilidade de basear sua análise, que
desejava sociológica, simplesmente nos relatos de seus companheiros
e em sua experiência pessoal; organizou então uma coleta de dados mui­
to mais ampla, a fim de que da complementação e do cotejo entre eles
se reformulasse uma imagem do campo de concentração cuja confia­
bilidade fosse muito maior do que a que resultava dos depoimentos.
Há que observar, no entanto, que a necessidade de se acrescentar
outras fontes às histórias de vida não invalida a possibilidade de utili­
zação de uma única dentre elas, para o conhecimento de problemas
de uma coletividade. É certo que toda pesquisa sociológica, quer utili­
ze técnicas como a história de vida, quer outras técnicas diversas (in­
clusive e principalmente as quantitativas), ganha novas dimensões,
maior profundidade, maior envergadura, desde que acompanhada e
complementada por outras maneiras de coleta. Porém, uma única his­
tória de vida, desacompanhada de captações complementares de ma­
terial, desde que convenientemente analisada, pode ser da maior im­
portância para a definição de problemas de uma coletividade, princi­
palmente se o pesquisador não conhece bem esta coletividade; caso já
possua uma visão da mesma e dados em quantidade apreciável, serve
ela para um refinamento das observações e das inferências, assim co­
mo para um controle. Certamente, uma só história de vida não esgota­
rá todos os aspectos e nem todas as interpretações dos fenômenos que
se pretende esclarecer; mas sempre levanta relevante série de questões
sobre as quais não se havia cogitado ainda, ou fornece novas perspec­
tivas a respeito do que já se conhecia. Histórias de vida de indivíduos
de camadas sociais diversas a respeito de um mesmo momento ou acon­
tecimento são, por exemplo, preciosas como fontes de dados e controle.
O levantamento da história de vida tem sido ora remetido para
o início da pesquisa, a fim de se formularem questões pertinentes cuja
investigação seria efetuada por meio de emprego de outras técnicas;

13
ora é empregado como elemento de controle para certos resultados
obtidos através de outros procedimentos. Num e noutro caso, chega-
se por meio dela aos valores inerentes aos sistemas sociais em que
vivem os informantes, que dados como os estatísticos certamente não
fornecem. No entanto, uma vez captada e analisada uma história de
vida, apresenta ela informações cuja amplitude pode ser em seguida
pesquisada por meio de amostragem estatística e utilização de ques­
tionários.
A diversidade de modos de emprego das histórias de vida e dos
depoimentos orais mostram a riqueza dos dados que captam; e a este
respeito, atualmente, mais ou menos todos os cientistas sociais são con­
cordes. Não se nega mais, também, que mesmo uma única história de
vida possa ser objeto de um estudo sociológico aprofundado e frutífe­
ro. Todo fenômeno social é total, dizia Marcei Mauss na década de
20; o indivíduo é também fenômeno social; aspectos importantes de
sua sociedade e do seu grupo, comportamentos e técnicas, valores e
ideologias podem ser apanhados através de sua história.
Na verdade, tudo quanto recolhe o cientista social se compõe de
histórias, ou de parte de histórias de indivíduos, ou pode nelas ser trans­
formado. No entanto, encontrar histórias de vida a partir de material
colhido em pesquisa não pode ser confundido com a técnica emprega­
da para registrar a realidade, isto é, com modos de agir peculiares à
coleta de material. De quase todos os documentos podem ser extraídas
histórias de vida; mas isto não quer dizer que o cientista social esteja
a todo momento utilizando a técnica das histórias de vida.
Técnica é procedimento ou conjunto de procedimentos de modos
de fazer bem definidos e transmissíveis, destinados a alcançar determi­
nados objetivos; como todo procedimento, é ação específica, sistemá­
tica e consciente, obedecendo a determinadas normas e visando deter­
minado fim; é conservada e repetida se sua eficiência for comprovada
pelos resultados obtidos. Toda técnica é mecanismo de captação do
real em sociologia, e não pode ser confundida com o material reunido,
isto é, com os dados. A captação de dados nas ciências sociais pode
servir para a construção de biografias; porém, não é esse o trabalho
do pesquisador. A atividade que este desenvolve no tempo e no espaço
se destina a resolver questões propostas por relações existentes no inte­
rior de coletividades. Para ele, o levantamento de dados é o primeiro
momento de um processo que se desenrola com várias fases, isto é, de
modificações em seqüência, escalonando-se a partir do projeto de tra­
balho, passando pela coleta do material, pela sua análise, até chegar
ao relatório final ou à publicação do livro. A coleta do material atra­
vés de histórias de vida limita-se a um momento específico da pesquisa
e não perdura pela totalidade da realização desta, nem é representati­
va da totalidade da mesma.

14
O material levantado é, por sua vez, um conjunto de informações
reunidas de acordo com um ponto de vista e um sistema — conjunto
empírico que deve, em seguida, ser trabalhado por outros procedimentos
como a descrição, a análise, o levantamento de inferências, a compreen­
são, a explicação, os quais se sucedem como fases diferentes e incon­
fundíveis. O material, uma vez recolhido, permanece igual a si mesmo
no tempo e no espaço desde que conservado com o devido cuidado;
ao correr dos anos encerrará sempre as mesmas informações, servindo
para outras pesquisas que levarão a confirmações ou a novos conheci­
mentos e comprovações. Fruto de procedimentos do pesquisador, não
pode ser confundido com as técnicas utilizadas para a coleta, e nem
com qualquer momento da pesquisa. A técnica, como se vê, nada mais
é que a ferramenta destinada a desencavar o dado.
A história de vida, como qualquer outro procedimento emprega­
do na coleta de dados, é, pois, um instrumento, não é nem coleta, nem
produto final da pesquisa; ela recolhe um material bruto que necessita
ser analisado. Porém, uma vez registrado, o material bruto permanece
inerte e imutável através do tempo, tendo as mesmas características de
persistência e identidade que possui qualquer outro documento e, co­
mo estes, durando através das idades desde que convenientemente ar­
mazenado.
O início da utilização das histórias de vida como técnica de coleta
em regiões diferentes mostrou convergências interessantes. Nos Esta­
dos Unidos, o desaparecimento de tribos indígenas levou ao emprego
de variadas formas de história oral, a fim de se conservar pelo menos
a lembrança de sua organização e costumes. Na Europa, e principal­
mente na França, a transformação do estilo de vida dos camponeses
a partir de fins do século XIX fomentou também a coleta de relatos
orais, de depoimentos pessoais, de histórias de vida, visando registrar
as maneiras de agir e de pensar existentes numa organização social que
se apagava. A quase inexistência de documentos escritos, assim como
de outras formas de conservação de informações, determinou o desen­
volvimento de técnicas que permitissem o armazenamento de dados do
passado e também de costumes que, ainda existentes, iam pouco a pouco
caindo em desuso.
Em muitas regiões da França, por exemplo, viveram os campone­
ses, até a década de 20, em estruturas sócio-econômicas e culturais que
persistiam havia longo tempo. Continuavam muito importantes os lia-
mes do parentesco, as alianças matrimoniais tradicionais; valorizava-
se a experiência dos mais velhos, sempre respeitados; na infra-estrutu­
ra material do cotidiano inexistiam água corrente, luz elétrica, estra­
das asfaltadas; e apesar da leitura e da escrita se terem difundido des­
de a segunda metade do século XIX, a transmissão de conhecimentos
por via oral e pela experiência direta continuava de grande relevância,

15
sob a orientação dos mais velhos que detinham o saber prático refe­
rente às atividades agrícolas e aos ofícios.
A reformulação da infra-estrutura material e a expansão dos meios
de comunicação determinaram a utilização crescente da escrita como
veículo de registro e transmissão de conhecimentos; os livros foram
substituindo cada vez mais os ensinamentos dos velhos. A transmissão
oral perdeu paulatinamente importância; com ela decaiu a influência
dos idosos, cujos conhecimentos não eram mais tão adequados ao no­
vo contexto sócio-econômico que emanava das grandes aglomerações
urbanas. Na antiga sociedade camponesa, continuidade e preservação
haviam constituído valores muito importantes para a orientação dos
comportamentos; na sociedade que agora despontava, a atenção de
adultos e jovens focalizava modificações e transformações como atri­
butos fundamentais de uma vida que se queria moderna.
O desaparecimento de sistemas e valores que acompanhavam a es­
trutura de uma sociedade “ tradicional” , a anulação da própria lem­
brança deles, parecia iminente. Os anciãos seriam as últimas testemu­
nhas ainda existentes de um estilo de vida que se desfazia, e esta cons­
tatação levou cientistas sociais franceses a se interessarem pela história
oral em todas as suas formas. Da década de 50 em diante, foram elas
complementadas por filmes, por audiovisuais, por vídeo-cassetes. Tra­
tava-se de resguardar falas, opiniões, aspecto físico, gestos dos idosos,
além dos discursos, pois também constituíam algo do passado. A or­
ganização de arquivos e museus foi muitas vezes paralela à utilização
destas técnicas, que armazenavam documentos sobre os antigos mo­
dos de vida.
No entanto, para as ciências sociais, o importante não é armaze­
nar documentação nem reconstituir antigas sociedades ou épocas, mas
atingir um problema de estrutura social por meio de mecânicas especí­
ficas de coleta de dados. Thomas e Znaniecki, dos primeiros a utilizar
histórias de vida, pretendiam esclarecer questões ligadas à integração
de imigrantes europeus e de outras proveniências que a partir de mea­
dos do século XIX passaram a chegar em grande quantidade aos Esta­
dos Unidos; procuravam, por meio da história oral, conhecer as mu­
danças ocasionadas na sociedade de chegada e nas próprias sociedades
de origem decorrentes da partida dos que emigravam. Tratava-se de
um problema contemporâneo e não mais de uma tentantiva de recupe­
ração do passado.
Mais tarde, também Oscar Lewis se preocupou em conhecer as re­
lações familiares de indivíduos de baixa renda no México, sobre os
quais ou escasseavam ou inexistiaiii dados. O simples arquivamento
do material, nestes casos, passa a constituir um derivado interessante,
porém o objetivo principal é outro. Para esclarecer a questão escolhi­
da pelo pesquisador não é necessário recorrer a pessoas idosas; tor­

16
na-se primordial destacar informantes cujos relatos cubram o campo
investigado. Em se tratando de Oscar Lewis, foi imprescindível entre­
vistar também jovens, para se perceber, no interior da família, como
se estabeleciam as relações entre diversas faixas de idade. Conhecer o
relacionamento no interior da constelação familiar tornava-se possível
através das narrativas de pais, de filhos, de parentes que com eles con­
vivessem.
Todavia, enquanto Thomas e Znaniecki utilizaram os relatos orais
como documentos iguais a quaisquer outros, Oscar Lewis ficou de tal
modo fascinado pela riqueza das histórias de vida que julgou não ne­
cessitar o sociólogo de análises e inferências; bastava que tomasse co­
nhecimento do material empírico em seu estado “ natural’’. Não de­
senvolveu, pois, um estudo, mas quis levar de maneira direta aos inte­
ressados o conhecimento de seus dados, realizando tão-somente a trans­
crição das fitas gravadas; efetuou, isso sim, uma limpeza e ordenação
dos relatos para compreensão mais fácil e amena por parte do leitor.
E quase transformou seu material em literatura...
O respeito à integridade das histórias de vida não foi somente pra­
ticado por Oscar Lewis; vários pesquisadores também hesitaram em
aproveitar partes do material colhido, como se o desvirtuassem se não
o conservassem em sua inteireza; apresentaram portanto a história ou
as histórias colhidas, tanto quanto possível, em sua totalidade. Não
se davam conta de que relato escrito ou fita gravada constituem regis­
tro semelhante a qualquer outro dos habitualmente analisados. Se não
se furtavam a utilizar, destacadamente umas das outras, as respostas
a um questionário, não havia razão para não recortarem, das histórias
de vida, as passagens que diziam diretamente respeito ao que estavam
estudando. Tal utilização não implicava mutilações do material; rela­
to escrito ou fita gravada, permaneciam intactos para serem emprega­
dos por outros pesquisadores. Desde que a história de vida ou os rela­
tos orais não tinham sido colhidos meramente para serem arquivados,
urgia analisar os dados neles encontrados, escolhendo-os na massa bruta
do material coletado. A massa bruta completa ficaria arquivada, à dis­
posição de outros cientistas para novas pesquisas, em absoluto não se
perdería. Utilizada como instrumento de coleta de dados em ciências
sociais, a história de vida deve forçosamente ser analisada e, portanto,
fragmentada.

Histórias de vida na pesquisa brasileira


No Brasil, a técnica de histórias de vida, depois de breve apareci­
mento em fins dos anos 40 e início da década de 50,9 quedou ignora­
da. No entanto, as características gerais da sociedade brasileira e, prin­
cipalmente, a rapidez de suas transformações, deveríam ter levado

17
mais cedo os pesquisadores à utilização desta técnica.10 Seu eclipse du­
rante tanto tempo deveu-se à espécie de encantamento pelas técnicas
estatísticas de amostragem com o emprego de questionários. Aos olhos
dos cientistas sociais, as histórias de vida e, de um modo geral, o rela­
to oral se apresentavam “ cheios de subjetividade’’, tanto do narrador
quanto do pesquisador, constituindo assim instrumento que não raro
levaria a desvios de observação e a interpretações errôneas.
A revalorização da história oral ocorrida recentemente na Europa
despertou o interesse dos cientistas nacionais. Primeiramente foi a his­
tória oral que ressurgiu, suscitando iniciativas traduzidas na fundação
do museus da Imagem e do Som e também de grandes arquivos que
armazenassem entrevistas com personalidades políticas famosas. Nes­
tes repositórios se encerra a “ memória” de algo que se perderia com
o desaparecimento de pessoas mais velhas, num país em que sempre
se deplorou a falta de documentação para estudo.11
Além disso, o ritmo extraordinariamente rápido de mudanças na
sociedade brasileira devia forçosamente contribuir para a difusão da
técnica. Quando se dá conta, por exemplo, de que em 1950 o meio
rural era habitado por 70% da população e de que em 1980, num
período de 30 anos, as proporções se inverteram inteiramente, os ha­
bitantes do meio urbano passando então a 70%, compreende-se que
a conservação do que “ foi” adquira importância aos olhos dos estu­
diosos. Recolher a maior quantidade possível de testemunhos sobre
formas de vida para as quais não existam senão parcos registros; sa­
ber como agiam os “ silenciosos” , aqueles que pouco aparecem na
documentação escrita, isto é, as camadas de baixa renda; saber como
encaram sua existência diante das modificações velozes em curso, cons­
tituiu uma larga abertura para a utilização de relatos orais e de histó­
rias de vida.
Porém, desse ponto de vista não se trata senão de armazenar a
memória. A verdadeira utilização das histórias de vida como técnica
específica de pesquisa não fez seu reaparecimento nem na sociologia
nem na antropologia neste país, e sim na psicologia social. A finalida­
de foi o esclarecimento de problemas da memória enquanto atributo
humano estreitamente dependente da vida social e por esta alimenta­
d a.12 O trabalho pioneiro se desenvolveu em São Paulo, cidade cujo
crescimento acelerado e transformações radicais constituem grandes
provocações para se inquirir o que sucede com os processos de conser­
vação das lembranças. Somente em seguida a esta primeira aplicação
da técnica, foi ela estendida a investigações sobre aspectos propriamente
sociais para os quais não se possuía farta documentação, fosse em ca­
madas sociais inferiores, fosse em determinados grupos étnicos, fosse
em certas categorias profissionais,13 tanto no meio urbano quanto no
meio rural.

18
Nestes casos, é agora a sociologia que está em jogo. Os mecanis­
mos da memória, sua ligação com a base biológica e com o contexto
sócio-econômico em que se dão as experiências individuais, não cons­
tituem para ela questões fundamentais. A organização de arquivos, a
constituição de acervos de documentação, o armazenamento de dados,
também por si sós não se colocam diretamente como metas a serem
alcançadas. O que se busca é o esclarecimento de relações coletivas en­
tre indivíduos num grupo, numa camada social, num contexto profis­
sional, noutras épocas e também agora.
Nenhuma sociedade é um todo monolítico; em seu interior coe­
xistem grupos e camadas sociais de diversos tipos, divisões por sexo
e idade, coletividades variadas. Histórias de vida de indivíduos com
posições diferentes dentro de um grupo, quer sejam membros da mes­
ma família (como já colhera Oscar Lewis), quer se trate de homens e
mulheres, quer diga respeito ao contraste entre os mais velhos e os mais
jovens, servem para dirimir dúvidas e aprofundar conhecimentos. E
estas investigações transbordam das camadas inferiores para todas as
demais, uma vez que em todas elas se colocam os mesmos problemas
de descobrir relações ignoradas.
No meio rural, por exemplo, as mudanças extremamente rápidas
ocorridas no estado de São Paulo atingem indivíduos de todas as ca­
madas sociais; no entanto, as pesquisas, utilizem ou não histórias de
vida, têm-se voltado quase que somente para as camadas inferiores.
Não se atenta para o fato que ainda há poucos anos havia também,
habitando em suas propriedades, grandes e médios proprietários, e des-
conhece-se como vivenciaram a transformação que se operou em suas
existências com sua implantação nas cidades.14 Além deles, toda uma
gama de indivíduos citadinos está ligada aos habitantes do meio rural,
não por auferirem diretamente do solo seu sustento, porém por servi­
rem aos moradores urbanos: funcionários públicos (professores primá­
rios, tabeliães, delegados etc.), gente do setor terciário (pequenos e mé­
dios comerciantes, pequenos industriais, artesãos etc.). Como vivem
eles as reviravoltas havidas com o êxodo dos campos e com as mudan­
ças de relações de trabalho ali acontecidas? O esvaziamento do meio
rural tem determinado também o esvaziamento das cidades dele de­
pendentes — aspecto do problema que permanece ignorado e pratica­
mente não estudado.
Constituem as histórias de vida, nestes casos, excelentes técnicas
para se efetuar um primeiro levantamento de questões, pois ainda fal­
tam dados a respeito destas; revelam o cotidiano, o tipo de relaciona­
mento entre os indivíduos, as opiniões e valores e através dos dados
assim obtidos é possível construir um primeiro diagnóstico dos proces­
sos em curso. Alcança-se então uma visão do que ocorre, cuja exten­
são seria a seguir, numa outra pesquisa, investigada por meio de téc­

19
nicas estatísticas de amostragem, por exemplo. Vive-se hoje um mo­
mento privilegiado para se captar, por meio de história oral, e mais
particularmente por intermédio de histórias de vida ou de depoimen­
tos pessoais, a maneira pela qual diferentes camadas sociais, diferen­
tes grupos, homens e mulheres, várias faixas de idade estão experimen­
tando as mudanças que ocorrem, segundo que valores as estão enca­
rando, quais as normas que aceitam para seus comportamentos e quais
as que rejeitam.
Uma técnica qualitativa como a das histórias de vida pode coexis­
tir tranqüilamente com técnicas quantitativas como a da amostragem,
desde que cada uma delas seja aplicada a um momento específico da
pesquisa. A técnica de história de vida é, em geral, muito útil para um
primeiro levantamento de questões e de problemas, ao se notar a ine­
xistência de conhecimentos a respeito. Também é da maior utilidade
como meio de verificação e de controle do que já foi colhido por ou­
tros meios. A técnica quantitativa, seja a da amostragem ou outra, serve
principalmente para se conhecer a intensidade de um fenômeno, o quan­
to se espraia por um grupo ou camada, como atinge grupos e camadas
diferentes. Os dois conjuntos de técnicas não são opostos ou mutua­
mente exclusivos; são procedimentos a serem empregados em determi­
nados tipos de pesquisa ou em determinados momentos da mesma.15
Não tem sentido, nas ciências sociais, tomar-se partido por este ou aque­
le procedimento, tanto mais que a obtenção de dados de fontes varia­
das, que enriquecem uma pesquisa, determina a necessidade de se uti­
lizarem técnicas também variadas. A querela é vã; o importante é sa­
ber escolher a técnica adequada ao tipo de problema, à especificidade
do dado e ao momento preciso da investigação.

Histórias de vida: do individual ao coletivo


A história de vida é contada por um personagem e gira em torno
deste. À primeira vista, dir-se-ia que é algo eminentemente individual,
sofrendo as distorções trazidas pela subjetividade do narrador. Esta
colocação tem sua razão de ser; no relato de uma história de vida, o
pesquisador colhe dados que indicam como se formou a personalidade
de um indivíduo, através de seqüências de experiências no decorrer do
tempo. “ Indivíduo” significa alguém que se tomou isoladamente,
extraindo-o do interior de uma coletividade para considerá-lo em si mes­
mo, naquilo que o distingue dos demais. Quando se estuda a persona­
lidade do indivíduo, admite-se que os predicados encontrados são ex­
clusivamente seus e não ocorrem em nenhum outro, por mais seme­
lhante que possa ser; isto é, tanto sua constituição quanto suas quali­
dades o marcam como único, o distinguem dos demais de. seu grupo,
de sua sociedade. Indivíduo e personalidade seriam noções que re­

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cobriríam aquilo que existe de mais íntimo e de mais inconfundível em
alguém.
Se o indivíduo obedecesse a determinações exclusivamente suas e
inconfundíveis, então realmente as histórias de vida seriam impróprias
para uma análise sociológica.16 No entanto, o que existe de individual
e único numa pessoa é excedido, em todos os seus aspectos, por uma
infinidade de influências que nela se cruzam e às quais não pode por
nenhum meio escapar, de ações que sobre ela se exercem e que lhe são
inteiramente exteriores. Tudo isto constitui o meio em que vive e pelo
qual é moldada; finalmente, sua personalidade, aparentemente tão pe­
culiar, é o resultado da interação entre suas especificidades, todo o seu
ambiente, todas as coletividades em que se insere. Não é novidade al­
guma afirmar que o indivíduo cresce num meio sócio-cultural e está
fundamente marcado por ele. Sua história de vida se encontra, pois,
a cavaleiro de duas perspectivas: a do indivíduo com sua herança bio­
lógica e suas peculiaridades, e a de sua sociedade com sua organização
e seus valores específicos. A história de vida, em resumo, se encontra
a cavaleiro de duas disciplinas, a psicologia e a sociologia.
A história de vida é, portanto, técnica que capta o que sucede na
encruzilhada da vida individual com o social. Conforme seja a pesqui­
sa desenvolvida por um sociólogo ou por um psicólogo, assim a orien­
tação da coleta de dados levará uma ou outra acentuação. No primei­
ro caso, serão procuradas no informante as marcas de seu grupo étni­
co, de sua camada social, de sua sociedade global — vários níveis que
apresentam estruturas, hierarquias, valores ora harmoniosos, ora em
desacordo, o que tudo se reflete no seu interior. No segundo caso, são
buscadas as particularidades que singularizam o indivíduo, delineia-se
o caminho seguido na formação de sua personalidade através do ema­
ranhado das relações variadas tecidas pela sua coletividade, e é o pro­
duto final, considerado como único, que se quer compreender e explicar.
Sociólogo e psicólogo poderão, ambos, utilizar uma história de
vida que tenha sido colhida por um deles; o material é válido para am­
bos os estudiosos, justamente por se encontrar no cruzamento das duas
disciplinas a que se votaram. Diante do material colhido pelo psicólo­
go, o sociólogo naturalmente se queixará de falhas; e vice-versa. Mas
as lamentações não invalidam a utilização do material pelos dois. No
entanto, embora muitos cientistas sociais tenham alertado para as li­
mitações da técnica em sociologia, considerando até que seu emprego
deveria ser evitado, na verdade ela foi-se apresentando como cada vez
mais relevante para esta ciência, justamente em função da área cada
vez maior que a sociologia foi abarcando no correr do tempo.
No século atual a sociologia, apoderando-se também da psique co­
mo seu campo de estudos, estendeu seu âmbito até os sonhos, durante
muito tempo considerados algo exclusivamente pessoal; encarou-os

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como representações simbólicas do relacionamento do indivíduo com
seus semelhantes e com sua sociedade. Englobou em seguida em seus
estudos o inconsciente, vendo-o como o repositório das agressões e das
opressões do meio social, e portanto material revelador para a análise
de controles e coerções. Finalmente, foi-se orientando também para
a subjetividade, isto é, para a faixa interior que parecia mais próxima
do biológico porque carregada de afetividade, implicando por isso mes­
mo um caráter marcadamente individual. Com efeito,“ subjetivo” sig­
nificou primeiramente aquilo que pertence a um indivíduo e somente
àquele, distinguindo-o dos demais; negava-se, assim, que a forma to­
mada por suas manifestações pudesse ser igualada pela dos demais. Nes­
ta caracterização se consubstanciaria a oposição entre subjetivo e ob­
jetivo; este último encerrava características válidas para todos os indi­
víduos porque exterior a eles, enquanto o primeiro permanecería en­
cerrado no íntimo do indivíduo, formado pelas qualidades que lhe se­
riam exclusivamente peculiares. No julgamento subjetivo de um indi­
víduo estariam as marcas de suas impressões, de seus gostos, seus há­
bitos, seus desejos e aspirações única e fundamentalmente seus, incon­
fundíveis com os dos demais.
Apesar de todas estas definições, no entanto, a sociologia atual­
mente se orientou também para o subjetivismo, considerando que ele
não decorre exclusivamente de bases biológicas e psicológicas, porém
que se desenvolve numa coletividade, sendo portanto revelador desta.
O subjetivismo deixa assim de ser, para esta disciplina, a marca indi­
vidual intraduzível e inexplicável, cujo vislumbre de alguma interpre­
tação só poderia ser captado através da biologia e da psicologia; a
sociologia tambérmtem sua palavra a dizer a respeito desses proble­
mas, que podem ser objeto de seu estudo. Tanto mais que as mani­
festações do subjetivismo respondem sempre a algo que é exterior aos
indivíduos.
Necessidades físicas, inclinações, paixões, prazer e dor significam
reações da parte do indivíduo a algo que captou a partir do exterior,
e que só adquirem significado através da mediação do exterior; con­
forme sua sensibilidade, serão mais ou menos intensas, desencadearão
ou não ações de variado tipo. Uma vez existindo a mediação exterior
(e a palavra é uma delas, provavelmente a mais importante) para que
se expresse o puramente individual este fica já comprometido com o
exterior, sempre mergulhado numa atmosfera plenamente coletiva. Mes­
mo que se trate de sensações térmicas, respiratórias, circulatórias, isto
é, do conjunto de sensações internas de que trata a cenestesia, — sen­
sações que parecem independer até da intermediação dos sentidos pa­
ra serem percebidas, — ainda assim sua apreensão pelo indivíduo for-
çosamente passa pela conscientização (ou pelo menos pela tentativa de
conscientização) através da palavra; o que significa através de um ins­

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trumento forjado pela realidade social. Não escapa, portanto, de se
tornar em parte, também, objeto de estudo sociológico.
Assim, ainda quando o subjetivo seja entendido como as sensa­
ções inefáveis provenientes dos órgãos internos, da circulação, da nu­
trição celular etc., constituindo um estado psíquico proveniente da ação
interna deles e resultando em confusas impressões internas, e desde que
se admita que estas sensações podem chegar ao estado de percepção,
neste momento sua formulação se opera por meio de manifestações
que deixam de ser puramente subjetivas; pois as sensações confusas
provenientes de todas as partes do corpo estão sendo constantemente
transmitidas aos sentidos e, ao se transformarem em percepções, so­
frem as imposições do contexto circundante e perdem seu caráter de
exclusiva subjetividade. Pela formulação que então adquirem, entram
para o domínio dos fatos passíveis de serem analisados pela sociologia.
Nesta maneira de se compreender o subjetivismo, permanece ele
como puramente individual, e mesmo como essencialmente individual,
enquanto não é apanhado nas malhas da percepção: sua base seriam
as funções vegetativas que dariam lugar a sensações vagas e difusas
de bem-estar ou de mal-estar, cuja influência se faria sentir fora dos
órgãos dos sentidos, porém que constituiríam uma das causas dos so­
nhos, por exemplo; mas causa exclusivamente física, o sonho tendo
também um conteúdo que se liga estreitamente ao contexto sócio-
cultural do indivíduo. Em tal perspectiva, o conteúdo do sonho pode
ser abarcado pelo estudo sociológico; quanto ao aspecto cenestésico,
somente quando, como já se disse, de sensação passasse a percepção.
Ainda que o subjetivo seja entendido como as sensações intradu-
zíveis, é próprio do indivíduo tentar compreendê-las primeiramente,
e transmitir aos outros o que compreendeu; porém, ao fazê-lo forço-
samente utiliza os mecanismos que tem à sua disposição e que lhe fo­
ram dados pela família, pelo grupo, pela sociedade. A história de vida
pode tentar desvendar o ponto em que características destas coletivi­
dades se juntam às sensações cenestésicas, buscando a interação entre
ambas, e esclarecendo quais os instrumentos sociais utilizados para a
tradução.
A esta maneira mais antiga de compreender o subjetivismo veio
juntar-se outra mais recente, baseada na teoria de Jung, dos arquéti­
pos enraizados na própria natureza do ser humano; isto é, existiríam
representações simbólicas comuns a todos os indivíduos através dos tem­
pos, sejam quais forem as raças e os momentos. A semelhança das es­
truturas mentais seria fundamental, e dela emanariam representações
similares banhadas sempre numa dominante de tonalidade afetiva. As­
sim, modelos de ação e de comportamento se encontrariam em povos
muito diversos, muito afastados no tempo e no espaço, que não te-
riam desenvolvido nem contatos nem influências recíprocas.

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Este conjunto comporia o “ inconsciente coletivo” e constituiría
o fundamento do subjetivismo individual na medida em que estaria uni­
do ao conjunto que, no plano biológico, foi chamado de “ instinto” .
Nesta maneira de ver, a concepção de subjetivismo se inverte, já que
ele não tem mais por base o que seria essencialmente individual, mas
repousaria em materiais coletivos inconscientes; herdados juntamente
com as estruturas mentais, representariam o aspecto psíquico destas.
Todo o psiquismo seria, então, menos individual do que coletivo, pois
estaria sempre sob a influência das representações e imagens arcaicas
reunidas no inconsciente coletivo.
Se aceita esta segunda concepção do subjetivismo, com mais ra­
zão então recai ele no campo de estudos da antropologia e da sociolo­
gia. O conhecimento dos arquétipos, figuras dinâmicas com estrutura
relativamente geral, estaria presente no inconsciente de qualquer indi­
víduo; uma análise que desvendasse estas configurações invariantes,
veladas pelos significados simbólicos acumulados através dos tempos,
constituiría um objetivo daquelas duas disciplinas. As vias de acesso
para descerrar os véus que ocultariam as imagens arcaicas seriam va­
riadas: análise dos sistemas mágicos, religiosos, filosóficos, interpre­
tação dos sonhos individuais etc. As histórias de vida aparecem então
como instrumentos de grande utilidade para atingir, sob a ganga dos
modelos de pensamento e de ação mais recentes, adquiridos no conta­
to com a realidade sócio-cultural cotidiana, as estruturas mentais mais
antigas.
Adote-se uma ou outra maneira de compreender o subjetivismo,
cabe sempre submetê-lo à perspectiva sócio-antropológica a fim de apro­
fundar sua compreensão. Não foram muitos, porém, os estudiosos des­
tas disciplinas que se abalaram à exploração ampla destas profundezas
dos seres humanos e das sociedades. Sem dúvida há necessidade de um
refinamento dos instrumentos de trabalho para poder ser levada a efeito
com suficiente êxito. Mas, pergunta-se: é possível refinar mecanismos
sem ao mesmo tempo exercitá-los?
As histórias de vida poderíam constituir ferramenta valiosa para
a intensificação de tais estudos, uma vez que se colocam justamente
no ponto de intersecção das relações entre o que é exterior ao indiví­
duo e o que ele traz em seu íntimo. Tais observações reforçam as afir­
mações de que há nesta técnica uma riqueza potencial ainda não utili­
zada pelas ciências sociais, e de que seu refinamento enquanto mecâni­
ca de pesquisa, para ser alcançado, necessita de uma utilização prática
devidamente acompanhada de uma reflexão metodológica cada vez mais
aprofundada.

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NOTAS E REFERÊNCIAS

1. W.I. Thomas e F. Znaniecki, ThePolish peasant in Europe and America (1918-1920).


2? ed., 2 vols. Dover, Nova York (1927); J. Dollard — Criteria fo r the life history
— Yale University Press, Nova York (1935). F. Boas — Race, language and culture
(1942).
2. O. Lewis, Os filhos de Sanchez. Moraes, Lisboa (1970).
3. A. Leroi-Gourhan, Le geste et Ia parole. Ed. Albin Michel, Paris (1964).
4. M.I. Pereira de Queiroz, A. Alves de Oliveira, D.S. Rodrigues, V.G. Maceron, São
Paulo, 1920-1930: Depoimentos de trabalhadores de baixos recursos. Cadernos CE-
RU, São Paulo, n? 15,1? série, agosto de 1981. É interessante verificar que, ao orientar
esta pesquisa, não havia ainda a autora refletido suficientemente sobre a terminolo­
gia e a técnica que estava empregando, tendo utilizado assim “ depoimentos” como
sinônimo de “histórias de vida” . Na verdade, só esta última técnica foi empregada.
5. A técnica de depoimentos foi abundantemente empregada por Olga R.M. Von Sim-
son, em suas pesquisas sobre o carnaval paulista, ainda em curso, de que se pode
ter uma primeira idéia através do artigo “Transformações culturais, criatividade po­
pular e comunicação de massa: O carnaval brasileiro ao longo do tempo” . Cader­
nos CERU, São Paulo, n? 14, 1? série, dezembro de 1981.
6. W.I. Thomas e F. Znaniecki (ver nota 1).
7. J. Poirier, S. Clapier-Valladon e P. Raybaut, Les récits de vie (theorie et pratique).
Presses Universitaires de France, Paris, Col. Le Sociologique (1983).
8. G. Tillion, Ravensbrück. Ed. Seuil, Paris (1973).
9. No Brasil, Roger Bastide parece ter sido o primeiro a utilizar as histórias de vida
como técnica de estudo, tendo suscitado também as primeiras reflexões metodológi­
cas a respeito. Ver na revista Sociologia, vol. XV, n? 1, março de 1953, seu artigo
“ Introdução a dois estudos sobre a técnica das histórias de vida” . Os dois estudos
constantes da mesma revista foram: M.I. Pereira de Queiroz, “ Histórias de vida e
depoimentos pessoais” , e R. Jardim Moreira, “A história de vida na pesquisa so­
ciológica” . Todo o conjunto está incluído nos Anexos deste volume. Dessa mesma
época, ligada à mesma pesquisa sobre relações raciais entre negros e brancos em São
Paulo, ver O. Nogueira, “A história de vida como técnica de pesquisa” , Sociologia
XIV (1), São Paulo, março de 1952.
10. Florestan Fernandes utilizou a técnica de histórias de vida a partir de outros docu­
mentos, numa direção pouco usual nas ciências sociais: fez análise da história de
vida de Tiago Marques Aipobureu, recolhida pelo etnólogo Herbert Baldus e figu­
rando em seus Ensaios de Etnologia Brasileira, São Paulo (1937); completou o tra­
balho com as observações efetuadas pelos pesquisadores Antonio Colbacchini e Cé­
sar Albisetti, registradas em Os bororos orientais, Orarimogodoque do Planalto Orien­
tal de Mato Grosso, São Paulo (1942). Trata-se também de excelente exemplo de
como uma única história de vida pode ser utilizada em profundidade para o esclare­
cimento de problemas sócio-antropológicos. F. Fernandes, “Tiago Marques Aipo­
bureu: um bororo marginal” , in Mudanças sócias no Brasil, Difusão Européia do
Livro, São Paulo, 1960. Tiago Marques Aipobureu faleceu em 1958.
11. Cite-se os museus da Imagem e do Som, no Rio de Janeiro e em São Paulo, que encer­
ram hoje fartíssima documentação. Na Fundação Getúlio Vargas, o Centro de Pes­
quisas e Documentação (CPDOC) foi fundado com duplo objetivo: o de arquivo de
história oral sobre as décadas que precederam e se seguiram imediatamente à Revolu­
ção de 30, e de centro de estudos sobre essa mesma documentação, com o desejo de
conservar a história viva através de depoimentos e histórias de vida dos remanescen­
tes dessa época. Também tem sido estudada a técnica da história de vida. Ver A. Camar-

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go, V. da Rocha-Lima e L. Hipólito, O método das histórias de vida na América
Latina. Cadernos CERU, n? 19, lí série, S. Paulo (1984).
12. E. Bosi, Memória e sociedade: lembranças de velhos. T.A. Queiroz, São Paulo (1979).
13. Um bom exemplo são as pesquisas em curso de Zeila de Brito F. Demartini: Velhos
mestres de novas escolas: professores primários rurais na 15 República (São Paulo).
CERU, mimeo., São Paulo (1985).
14. Um exemplo nunca é demais. Em pequeno survey, efetuado no município de Torri-
nha (São Paulo), na década de 60, pelo CERU, verificou-se que recentemente a grande
maioria de fazendeiros, sitiantes, agricultores, passou a habitar na cidade; conta­
vam que trabalhar era “como ir ao escritório” : saíam de manhã para a propriedade
e regressavam à tarde. Esperava-se efetuar em seguida uma série de histórias de vida
com produtores de variado nível econômico, tanto que tivessem mudado de habitat
quanto não o tivessem feito, para verificar o que experimentavam de material e con­
creto, e também psicológica e valorativamente, com a mudança. Porém os “aza­
res” da época em que se vivia então impossibilitaram o prosseguimento da pesquisa.
15. As pesquisas utilizando técnicas quantitativas preconizam a realização de um pré-
levantamento, ou pesquisa-piloto, para se tomar conhecimento dos problemas exis­
tentes efetivamente: histórias de vida são sempre repositórios destes problemas,
podendo-se para tal consultar previamente as já existentes com o mesmo intuito da
pesquisa-piloto.
16. Veja-se a respeito o artigo de R. Jardim Moreira citado na nota n? 9 e reproduzido
nos Anexos deste volume.

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/ - Reflexão metodológica - reflexão
tecnológica: convergências e contrastes

O termo “ metodologia” tem sido muito empregado em ciências


sociais para designar a totalidade dos procedimentos de investigação
e das técnicas, utilizadas numa pesquisa, numa disciplina ou numa ciên­
cia; com tal significado, nada mais é que um nome a designar o con­
junto de instrumentos empregados para resolver um problema, para
esclarecer uma questão, para chegar a uma descoberta. Assim entendi­
do, ficam praticamente excluídas de seu âmbito as preocupações com
os fundamentos, o valor, o alcance desses instrumentos, e também com
a posição do pesquisador diante do objeto em estudo. Seria somente
um termo descritivo, que não implica, para dele se ter uma idéia, um
grande desenvolvimento expositivo, pois apenas se trata de saber o me­
canismo utilizado em relação com o objeto a conhecer.
Existe, porém, uma outra definição deste termo: o da apreensão
do sentido íntimo do que se pretende efetuar, assim como das opera­
ções a serem realizadas no decorrer do trabalho, que devem ser cap­
tadas tanto no início quanto no desenrolar do mesmo, através do ques­
tionamento da atividade do estudioso em sua plenitude; noutras pala­
vras, busca-se o desvendamento do significado profundo que existe
em seus objetivos e em seus procedimentos, inclusive na própria lin­
guagem por ele utilizada. Não se trata de fixar as regras ideais de
uma pesquisa, nem de opinar sobre suas etapas sucessivas, ou sobre
a validade ou não de seus raciocínios científicos; esta maneira de agir
seria antes normativa, buscaria avaliações a partir de categorias que
se consideraria absolutas, e se enquadraria então no domínio da epis-
temologia.
Ao contrário da maneira de ver normativa, porém, a metodologia
seria a reflexão sobre o caminho ou caminhos seguidos pelo cientista
em seu trabalho, nas diversas fases da proposição da pesquisa e de sua
realização; em lugar de estar orientada por normas ou por valores ideais,
estaria orientada pela própria práxis, pela ação do cientista sobre a rea­
lidade. É neste sentido que será aqui empregado o termo.
Porém, esta maneira de defini-lo, ligando-o com a proposição do
problema a ser investigado, e também com todos os passos que vai dan­
do o pesquisador em seu trabalho, não levaria à confusão entre “ me­
todologia” , “ tecnologia” e “ técnicas” ? Podem estes termos ser toma­

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dos como sinônimos? Caso contrário, onde se encontram as suas di­
vergências?
Técnica é procedimento, é maneira de agir para se obter um resul­
tado, mas maneira de agir particular, seguida para executar algo; seu
sentido é material e prático. Não é reflexão, a qual significa meditar
sobre o caminho seguido a fim de penetrar mais profundamente neste
ou naquele ponto, numa consideração atenta que permita chegar ao
significado dos procedimentos e operações, e até mesmo aos seus prin­
cípios de base. A técnica, enquanto atividade, pode resultar tanto da
existência de um conhecimento prévio, que pressupõe portanto refle­
xão, quanto simplesmente de um exercício prático, isto é, de uma ex­
periência puramente empírica: não foi sem razão que se deu a denomi­
nação de “ ensaio e erro” à forma mais singela de se adquirir uma téc­
nica eficaz...
Tecnologia, por sua vez, poderia ser definida como a teoria de uma
técnica, ou de um conjunto de técnicas; noutras palavras, seria o con­
junto sistematizado de conhecimentos práticos sobre a realização de
uma técnica ou de uma reunião de técnicas. Enquanto o conceito de
“ técnica” parece bastante afastado do conceito de “ metodologia” , o
de “ tecnologia” se aproximaria deste e poderia talvez ser com ele con­
fundido; é o que se necessita verificar com clareza, ressaltando as dife­
renciações. Pois cumpre explicitar se se trata de dois conceitos real­
mente diversos, e não de sinônimos, de dois conceitos cuja possível con­
vergência estaria no fato de ambos lidarem com os procedimentos em
que estão engajados os cientistas, quando realizam seu trabalho.
A tecnologia reflete sobre os procedimentos enquanto tais, em con­
junto ou separadamente, e nas suas várias fases: antes da execução da
pesquisa, a fim de verificar quais as técnicas mais adequadas às diver­
sas tarefas a serem realizadas; durante a realização das tarefas, para
melhorar o desempenho e a eficiência delas; finalmente, quando tudo
termina, efetuando um balanço do que foi executado, para registrar
as modificações havidas, para alcançar maior eficiência nos meios em­
pregados. Existe aqui também uma meditação sobre o caminho segui­
do, — para utilizar as mesmas expressões acima, na referência à meto­
dologia, — porém que não ultrapassa o nível dos próprios instrumen­
tos manuseados, numa ligação estreita com o arsenal prático que foi
posto em funcionamento durante o trabalho, e procurando verificar
somente suas implicações e conseqüências.
Há, pois, algo na tecnologia que a aproxima da metodologia. Esta,
por sua vez, reflete sobre procedimentos e comportamentos do cientista
e do técnico, tanto quando utiliza seus instrumentos como em todos os
passos que vai desenvolvendo ao trabalhar, e também sobre suas moti­
vações em relação à aquisição de conhecimentos, motivações subjacen­
tes às atividades e aos diferentes meios de agir de que lança mão. Ad­

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quirem então grande importância, por exemplo, todas as indagações
a respeito da proposição inicial do problema ou dos problemas; quais
as suas ligações com as maneiras de ver mais gerais do pesquisador que
o formulou; quais as relações de tudo isto com as técnicas escolhidas,
e até onde vai a própria influência destas na referida formulação do
problema; quais as limitações do pesquisador, do problema, das técni­
cas, quais as interligações entre tudo isto. Tais raciocínios vão acom­
panhando o desenrolar do trabalho; isto é, durante este percurso esta­
rão em questão o desempenho dos instrumentos, a fisionomia dos da­
dos, a maneira pela qual estão sendo captados os dados, mas também,
e sobretudo, a atitude, o comportamento, o modo de pensar do pes­
quisador ou do cientista. E o remate final do trabalho é a inquirição
do âmbito das conclusões a que se chegou, diante do problema da ade­
quação e eficiência das técnicas empregadas, diante dos comportamen­
tos desenvolvidos.
Assim definidas, metodologia e tecnologia se inter-relacionam cer­
tamente, porém a segunda mantém uma posição de subordinação em
relação à primeira, que é mais ampla; noutras palavras, a tecnologia
seria uma parte da metodologia, mas as finalidades desta são mais vas­
tas, mais complexas, mais profundas. Empregando os conceitos da ló­
gica formal, o termo “ tecnologia” estaria compreendido no termo mais
extenso “ metodologia” , este constituindo o gênero, de que o outro se­
ria uma das espécies. Pode-se questionar somente problemas referen­
tes à tecnologia, quando se efetua uma pesquisa, e então o questiona­
mento não transborda desse nível. Porém, quando se refletir sobre a
metodologia empregada estarão em foco, além destes problemas, as
posições do cientista e do pesquisador diante do objeto estudado. Os
dois termos não podem, pois, ser utilizados como sinônimos.
Estas colocações são necessárias para se compreender qual o ca­
minho percorrido pela equipe que efetuou o trabalho “ S. Paulo,
1920-1937: depoimentos de trabalhadores de baixos recursos” . O em­
prego da técnica de gravador se difundiu entre os pesquisadores das
ciências sociais, sem uma reflexão mais profunda sobre sua utilização,
tanto do ponto de vista da própria técnica quanto do ponto de vista
do pesquisador e, finalmente, do ponto de vista do informante. Desde
o início desta pesquisa ficou patente a necessidade de voltar a atenção
para o que estava sendo realizado, questionando os passos dados e bus­
cando visualizar suas conseqüências num plano superior ao do simples
manuseio das técnicas.
Procurou-se, pois, efetuar um esforço de conscientização para des­
vendar os pressupostos e as conseqüências da utilização da técnica de
gravador em seus diferentes passos; e também para perceber quais as
prenoções das pesquisadoras, por um lado, e, por outro, quais os pon­
tos das diversas teorias sociológicas em que se estaria tocando, e co­

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mo o que se estava inquirindo concordava ou contradizia tais pontos.
Teria sido interessante uma discussão desse tipo também com os infor­
mantes, que elucidasse suas motivações e suas maneiras de ver a pes­
quisa a que se estavam submetendo, e como encaravam suas relações
com as pesquisadoras. No entanto, a idade deles e seu nível de instru­
ção não permitia esta troca de reflexões; só era possível deduzir, a par­
tir de suas atitudes e de suas respostas, como encaravam tudo quando
se passava, que conseqüências tanto a aplicação da técnica quanto a
execução de todo o trabalho poderíam ter em suas vidas.
O resultado de todas estas reflexões é trazido aqui. Seu ponto cen­
tral foi a técnica de gravador com todas as suas implicações e resulta­
dos. Porém, a partir da utilização da técnica, estendeu-se para as rela­
ções entre pesquisadoras e informantes; para a conformidade ou a opo­
sição entre trabalho individual e trabalho de equipe; para as maneiras
de se tratar o material colhido, até chegar à conclusão do trabalho,
e todas as implicações e conseqüências que foi possível levantar. A ação
das pesquisadoras esteve, portanto, constantemente na mira, e estas
cogitações se inserem certamente no contexto da tecnologia, com in­
cursões freqüentes, porém limitadas, ao domínio mais amplo da meto­
dologia.
O trabalho em foco foi efetuado em equipe; houve uma divisão
interna do mesmo, cabendo parte às pesquisadoras e parte à coorde­
nadora; a equipe era, pois, internamente hierarquizada, com base na
dose de experiência muito maior da coordenadora tanto em conheci­
mentos sociológicos quanto de pesquisa, e na menor soma de conheci­
mentos das pesquisadoras. Coube às pesquisadoras todo o manuseio
do instrumental de trabalho, isto é, da técnica de gravador, da coleta
de material, da passagem deste para a escrita, de sua análise, da com­
posição de uma síntese que respondesse às questões colocadas no pro­
jeto inicial e que permitisse sua divulgação para- um público que fosse
o mais amplo possível. As pesquisadoras tiveram, assim, a seu cargo
toda a realização efetiva da pesquisa. A coordenadora, por sua vez,
orientou todo o questionamento teórico e metodológico que seguiu pas­
so a passo a pesquisa, transportando em seguida para um relato escri­
to o resultado das discussões, das descobertas que iam sendo realiza­
das no campo da técnica e da metodologia; aprofundando e ligando
entre si os variados problemas que surgiam; buscando conectá-los,
quando possível, com o arsenal teórico da sociologia, a partir de seus
próprios conhecimentos e experiências; buscando, num relato final,
mostrar quais as implicações de tudo quanto foi feito.
Embora interligadas, as duas ordens de reflexão tiveram um tra­
tamento em separado, resultando delas dois volumes. O ideal seria que
um só volume reunisse os dois aspectos que foi assumindo a pesquisa,
— o aspecto empírico, o aspecto metodológico. No entanto, verifi­

30
cou-se que a própria leitura ficaria árida e enfadonha, constantemente
entrecortados os depoimentos dos entrevistados pelas observações re­
sultantes da análise crítica do “ fazer” . Por outro lado, enquanto os
depoimentos constituíam um conjunto que poderia interessar um pú­
blico muito mais largo do que simplesmente o acadêmico, pois desper­
taria talvez a atenção de todos os indivíduos medianamente cultos que
se interessam pela história da cidade e de seus habitantes, a parte tec­
nológica e de metodologia seria apenas do interesse de pesquisadores
e cientistas das ciências do homem, sendo apelativa, assim, somente
para uma pequena parte do público.
Desta forma, as contingências de publicação impuseram a divisão
do material em dois livros diversos. Aquele que reúne os dados obti­
dos na pesquisa destina-se a um público amplo; todos os indivíduos,
qualquer que seja a sua profissão, atraídos pela “ memória” da cida­
de, além dos estudiosos de sua história e do seu povo, terão acesso a
um volume cujo conteúdo é composto pelos depoimentos. O volume
com o resultado das discussões tecnológicas e metodológicas será útil
a pesquisadores e cientistas sociais que estejam lidando com documen­
tação oral; mas será de utilidade também para qualquer um que esteja
trabalhando em pesquisas de ciências humanas, pois muitas das refle­
xões inspiradas no manuseio da técnica de gravador ultrapassam a es­
ta, e se aplicam também a outras técnicas, assim como às diversas fa­
ses de qualquer pesquisa.

Dada a divisão da pesquisa e o envolvimento diverso dos mem­


bros da equipe com uma e outra parte da mesma, o livro em que figu­
ram os dados vai assinado pelas quatro pesquisadoras que se dedica­
ram a esse aspecto; enquanto o volume tecnológico e metodológico tem
a responsabilidade da coordenadora.
Terminando esta apresentação, reafirma-se a grande necessidade
de reflexões tecnológicas e de comentários metodológicos efetuados ao
longo de toda e qualquer pesquisa, para esclarecimento tanto da utili­
zação das técnicas quanto das atitudes dos pesquisadores e dos infor­
mantes (ambos em geral inconscientes do que está sendo feito, de suas
implicações e conseqüências), e finalmente em relação às transforma­
ções por que passa todo e qualquer material coletado, a fim de revelar
as implicações profundas e as conseqüências do trabalho de pesquisa
efetuado. Tudo isto tem sido tacitamente considerado de menor im­
portância ao se efetuar qualquer trabalho, todas as atenções se voltan­
do para o material em si mesmo, e para as interpretações a serem da­
das; como se todas as interpretações não fossem influenciadas por este
trabalho intelectual silencioso, que acompanha subterraneamente o de­
senrolar da pesquisa. Também o preparo tecnológico tem sido consi­
derado muito mais importante do que a explicitação das críticas dos

31
pesquisadores a respeito de tudo quanto se executa. Mas sem o homem,
seus objetivos conscientes ou velados, suas hesitações e suas dúvidas,
suas soluções, onde estariam as pesquisas e as técnicas?

32
II - Pesquisa individual pesquisa de equipe:
irmãs inimigas ou íntimas colaboradoras?

Em ciências sociais, a preferência dos pesquisadores costuma ir,


geralmente, para a pesquisa individual, sendo relativamente poucas as
de equipe; esta observação é acompanhada pelo reconhecimento habi­
tual de que deveríam ser expandidas, e também pelas queixas dos pes­
quisadores de que se encontram enclausurados e isolados no âmbito
de seu próprio trabalho. Aponta-se como uma das causas principais
deste estado de coisas o fato de a maioria das pesquisas ser executada
para fins universitários e de carreira, as teses e concursos devendo dar
testemunho do nível e da qualidade do trabalho individual de seus au­
tores.
Uma outra justificativa aventada é a de que não raro surgem de­
sentendimentos no interior de uma equipe, que freiam o desempenho,
tornando-o muito moroso; degenerando em conflitos, promovem mui­
tas vezes a dissolução da equipe, necessitando-se então ou organizar
uma outra, o que demanda tempo e treinamento, ou simplesmente aban­
donar o trabalho inacabado. Inúmeras pesquisas de equipe têm termi­
nado desta maneira inglória.
Explica-se também que o brasileiro é, por natureza, extremamen­
te individualista, não conseguindo adaptar-se bem ao trabalho coleti­
vo — afirmação que seria válida tanto para pesquisadores masculinos
quanto femininos. Além disso, numa sociedade altamente competitiva
como as sociedades capitalistas ocidentais, não seria de admirar que
no interior da própria equipe se desenvolvessem rivalidades que po­
riam em perigo a continuidade da mesma.
Duas são as teorias subjacentes a tais explicações. As que se refe­
rem ao caráter individualista do brasileiro baseiam-se numa “ psicolo­
gia dos povos” que atribui qualidades específicas a cada coletividade
nacional, embora nada exista até hoje que possa, a partir de pesquisas
efetivamente realizadas, servir de fundamento a esse tipo de teoria. As
que dizem respeito às peculiaridades da sociedade capitalista, referem-
se a qualidades psicossociais decorrentes da estrutura econômica que
lhe é particular; acredita-se então que uma equipe só funcionaria quando
entre os participantes reinassem a concórdia, a harmonia, a fraterni­
dade, virtudes frontalmente opostas à realidade do mundo capitalista.
Desta forma, por um lado o brasileiro seria congenitamente inapto para

33
o trabalho de equipe, que exigiría uma verdadeira violência de sua parte
para adaptar-se ao mesmo; e por outro lado, o trabalho de equipe se­
ria incongruente com toda a sociedade capitalista, requisitando cuida­
dos e habilidades diplomáticas para poder ser realizado. Haveria, as­
sim, uma dupla inadequação dele às condições específicas do país. Pa­
recería então que a conformação da equipe a aparentaria ao que Tõn-
nies definiu como “ comunidade” , incompatível e oposta à sociedade
complexa que é a do país.
Na realidade, uma noção muito clara de comunidade, em sua de­
finição afetiva, perpassa o conceito de equipe, e o opõe ao conceito
de trabalho individual, este implicitamente qualificado de personalis­
ta, muito certamente, até mesmo francamente egoísta, e chegando a
tocar as raias do egocêntrico. Desta forma, somente em condições muito
especiais a pesquisa de equipe conseguiría firmar-se e levar o trabalho
avante, na sociedade ocidental em geral e especificamente no Brasil.
Estas maneiras de ver contêm então a noção de que trabalho de equipe
e trabalho individual seriam mutuamente excludentes em ciências so­
ciais; ou se escolhe uma via ou outra, a associação entre ambas pare­
cendo impossível. Também aparece como preferencial para os brasi­
leiros a pesquisa individual, dadas suas próprias características psico­
lógicas, a que se somam as características psicossociais da sociedade
capitalista ocidental, de que fazem parte.

Mas, não existiríam outras razões por trás destas explicações de


cunho ou profissional, ou psicológico, ou mesmo psicossociais, vigo­
rando cada qual por si mesmas ou conjuntamente segundo os discur­
sos de diferentes especialistas? A oposição dos contrários expressaria
realmente as relações entre as duas formas de pesquisa?
Pesquisa individual é aquela que o pesquisador executa sozinho,
não dividindo tarefa alguma com ninguém mais, e este isolamento cons­
titui sua marca específica. É possível que num ou noutro aspecto do
trabalho conte ele com um auxiliar esporádico, mas raríssimas vezes
tal ocorre. O termo “ individual” é significativo; encerra o sentido de
que o trabalho efetuado pelo pesquisador compõe uma totalidade, apre­
sentando tal coesão interna que se pode considerá-lo uma só coisa; tam­
bém significa que o trabalho possui caracteres distintivos, permitindo
o seu reconhecimento quando colocado lado a lado com outros seme­
lhantes, com os quais, portanto, não é nunca confundido. A idéia de
“ menor divisão de um todo” , que contém o termo “ indivíduo” , asso-
cia-se também à idéia de peculiaridades que o tornam único; a pesqui­
sa individual apresenta, assim, a característica de ser uma unidade —
menor divisão de um todo — e uma totalidade — no sentido de ser
a extensão mais completa que engloba as particularidades internas.
Constituindo unidade, esta pesquisa não pode ser parcelada; porém,

34
ela é uma unidade tal que todos os aspectos possíveis estão interliga­
dos, o que a “ individualiza” , isto é, a torna concretamente distinta
de outras unidades semelhantes; é então totalidade.
Que se entende por pesquisa de equipe? A expressão significa lite­
ralmente “ conjunto de indivíduos executando juntos as mesmas tare­
fas ou o mesmo trabalho” , quer na labutação, quer no jogo. Trata-se,
portanto, de uma labutação ou jogo que pode ser dividido em sua exe­
cução e, o que é mais, que deve ser dividido em sua execução para po­
der ser realizado. Deste ponto de vista, sua oposição a trabalho indivi­
dual não poderia ser mais clara. Outras noções estão também presen­
tes naquele enunciado, que é necessário examinar.
Além de uma noção de coletividade (conjunto de indivíduos), a
expressão encerra também uma noção de igualdade entre eles, uma vez
que se desincumbem juntos das mesmas tarefas; não se trataria de uma
divisão do trabalho no sentido orgânico, e sim de uma repartição de
tarefas semelhantes. Como se trata de realizar algo coletivamente, há
também uma noção de organização, de um arranjo tal que permite al­
cançar a finalidade proposta. A organização implica portanto a exis­
tência de uma estrutura, informal quando não existem normas preci­
sas estabelecidas para se alcançar a finalidade proposta; formal quan­
do existem as normas. E a um e outro caso de estrutura acompanha
também uma forma específica de liderança, paralela e da mesma natu­
reza: liderança informal na primeira alternativa, quando um dos com­
ponentes do grupo tende a ser ouvido e seguido espontaneamente; li­
derança formal quando o líder, apoiado na estrutura vigente, tem ex­
plicitamente autoridade para ser o ordenador, o condutor, o anima­
dor do trabalho todo, podendo executar ou não as tarefas juntamente
com os demais.
Talvez estivesse no próprio sentido profundo das duas expressões,
trabalho individual e trabalho de equipe, a razão de terem sido encara­
das como contraditórias e mutuamente excludentes. Pois, se numa equi­
pe todos realizam tarefas semelhantes ou idênticas, e se o trabalho in­
dividual se caracteriza pela sua qualidade de “ único” , não podendo
portanto ser confundido com um outro e não possuindo semelhantes,
então se trataria realmente de duas formas inconfundíveis e irredutí­
veis. Dentro destes limites é que foram entendidos os trabalhos univer­
sitários de tese, cuja característica principal reside em sua originalida­
de, isto é, em sua singularidade; vale dizer, no fato de serem únicos.
Um trabalho único entre outros trabalhos, original, que é tam­
bém um trabalho cujo autor se conhece, que é portanto um trabalho
assinado, são essas as características da pesquisa individual. A recusa
do trabalho em equipe se enraizaria também num orgulho da autoria
de algo inconfundível, de algo que ninguém mais executou ou sequer
pensou executar. É aqui que se encontraria provavelmente a raiz do

35
apego ao trabalho individual de pesquisa, como forma preferida a
trabalho de equipe; preferência que leva a opô-lo ao de equipe com
contrários irreconciliáveis.
No entanto, o trato contínuo com as duas formas de trabalho, res
saltando suas convergências, suas implicações mútuas, foi mostrando,
em toda uma vida voltada para as mais diversas pesquisas, o erro qu<
havia em considerá-las antagônicas. A base de ambas as formas está
no fato de qualquer pesquisa ser composta de múltiplas tarefas que,
conforme o caso, ou conforme a escolha previamente efetuada, po­
dem ser desempenhadas por um único indivíduo, ou por um grupo deles.
A partir da forma extrema, em que o indivíduo executou tudo sem
o menor auxílio de outrem, compondo o caso da pesquisa puramente
individual, existem várias outras em que o trabalho individual pode
associar-se a diversos tipos de trabalho coletivo, quer sob o comando
de um especialista que formulou todo o projeto, quer sem liderança
e compondo um grupo que age como tal desde o início, isto é, desde
a proposição do problema.
Um dos tipos mais habituais é aquele em que um pesquisador ideou
todo o projeto, do qual executará as partes que considera “ nobres” ,
porque exigem maior soma de conhecimentos e de reflexão, distribuindo
entre os auxiliares tarefas mais mecânicas, e relegando-os, mutatis mu-
tandis, ao papel de operários não especializados de uma fábrica; isto
é, reservando-lhes as tarefas que qualquer um, com um mínimo de trei­
namento, pode executar. Neste tipo de pesquisa, as parcelas do traba­
lho ficam partilhadas hierarquicamente entre o pesquisador, de um la­
do, e, de outro, a mão-de-obra. Tal conjunto também compõe uma
equipe, na qual existe desde o início um líder formal, o pesquisador-
chefe.
No interior deste conjunto, a relação entre pesquisador e mão-de-
obra é de superior para inferior; a mão-de-obra é somente um execu-
tante, sem maiores conhecimentos, nem a respeito das tarefas a serem
realizadas nem quanto à finalidade para a qual as tarefas se encami­
nham, nem tampouco com respeito à disciplina ou à ciência na qual
a pesquisa se insere. Note-se novamente uma relação como que de pa­
trão para assalariado; e, como em geral esta mão-de-obra é paga, o
vínculo empregatício tom a patente a qualidade do relacionamento. Mas
pode-se levantar a dúvida: tratar-se-á realmente de uma equipe? Se o
termo equipe significa realmente executar algo em conjunto, a aplica­
ção do termo é irrecusável.
Não são muito raras equipes de pesquisa deste tipo, compostas
de “ patrões” e de “ trabalhadores braçais” da ciência. Este relaciona­
mento nem sempre implica remuneração monetária, que pode ser subs­
tituída por um ersatz qualquer. É o caso, por exemplo, de estagiários
ou de estudantes que pensam adquirir assim certo tipo de experiência I

36
huma técnica ou numa fase da pesquisa. A remuneração estaria então
na prática efetuada; ou, na melhor das hipóteses, numa citação de que
fulano trabalhou com o professor sicrano em tal pesquisa, citação que
sempre vai para o seu currículo. Ainda outras vezes, quando se trata
de estudantes de graduação principalmente, a tarefa de que são incum­
bidos lhes dará a nota necessária para se aproximarem da obtenção
do diploma.
Em todas essas equipes de pesquisa, o esquema autocrático é de
regra. O pesquisador responsável, que dela em geral teve a iniciativa,
escolhe o tema, formula os problemas, designa as técnicas, constrói
as justificativas. Quando se trata de estudantes ou de estagiários, algu­
mas vezes podem eles discutir certos aspectos ou, pelo menos, recebem
explicações mais ou menos detalhadas a respeito do que será efetuado,
das razões das escolhas, das implicações das mesmas, das ligações com
quadros teóricos mais gerais. Obrigados à leitura da bibliografia perti­
nente, podem (pelo menos em teoria...) discutir alguns dos pontos que
lhes pareçam duvidosos, podem sugerir pequenas modificações e me­
lhorias. Porém, o produto do trabalho não lhes pertence, como não
lhes pertencera a proposta inicial.
Num outro extremo da escala das equipes, existe a pesquisa cole­
tivamente proposta e coletivamente levada a termo, em que todos os
passos foram discutidos e tomados em grupo, desde o início do proje­
to até a interpretação final. Pode ela ter um coordenador mais experi­
mentado, ou nem mesmo isso, e suas diversas fases se originam da li­
vre discussão de todos os participantes. Esta última forma de equipe,
que tem sido dada como a ideal, parece mais rara; e isso porque toda
pesquisa requer uma organização e uma disciplina que pressupõem a
existência de um condutor responsável, o qual pode ser formal ou in­
formalmente designado.
Poder-se-ia argüir que somente neste caso ideal se teria realmente
um trabalho de equipe, pois somente então todos teriam efetuado as
mesmas tarefas em conjunto; não existindo um chefe designado a par­
tir de algo exterior à equipe, a hierarquia interna, que por acaso se es­
tabelecesse, decorrería simplesmente da vontade comum, revelando o
que deveria ser específico das equipes., o “ espírito de grupo” . Na ver­
dade, em toda discussão que opõe trabalho individual a trabalho em
equipe existe, subjacente, a idéia de que, numa equipe, o indivíduo deixa
o frio isolamento para mergulhar no calor da coesão humana, no rela­
cionamento fraterno com seus iguais, o que talvez não fosse mais fru­
tífero para seu trabalho, mas seria muito mais satisfatório do ponto
de vista humano. Na língua francesa, a expressão esprit d ’équipe sig­
nifica justamente a solidariedade que une os membros de um grupo,
ao efetuarem juntos certas atividades. Considerado específico de gru­
pos não muito extensos, o esprit cTéquipe expressaria a adesão íntima

37
dos indivíduos uns aos outros, impelindo-os a agir como se constituís­
sem uma só pessoa. Noutras palavras, o esprit d ’équipe seria uma for­
ma de consenso social, caracterizada pela conformidade de pensamen­
tos, de sentimentos, que se originaria das ações semelhantes e sincro­
nizadas dos indivíduos que compõem o grupo. Esta coesão seria indis­
pensável para que a equipe funcionasse de maneira eficiente, e daria
ao indivíduo os apoios de que necessita para prosseguir, sem fraque­
jar, nos percalços e dificuldades que toda pesquisa encerra. Assim, o
aprofundamento da análise relativa a trabalho de equipe e trabalho in­
dividual reforçou a idéia de que a condenação do trabalho individual
estaria presa à valorização da equipe como um conjunto solidário e
harmonioso, dentro do qual os esforços seriam amenizados pelo calor
do companheirismo.
Esta definição de equipe muito se aproxima das antigas concep­
ções de “ comunidade” , em sua oposição com “ sociedade” , formula­
das por Tõnnies (1944), no dealbar das ciências sociais. A marca dis­
tintiva das comunidades seria sua pequena envergadura, permitindo um
contato íntimo entre os participantes, que os levaria a uma integração
profunda, a uma harmonia nas maneiras de ser e de pensar, a uma coe­
são do tipo “ um por todos e todos por um ” .
O caráter ilusório dessa concepção de comunidade já tem sido su­
ficientemente denunciado, mostrando-se que todo grupo, seja ele pri­
mário ou complexo, contém sempre fermentos de discórdia que ora
se avivam, ora entram em latência, uma vez que os grupos são sempre
compostos de elementos díspares, diversamente colocados em relação
uns aos outros. A dissemelhança dos elementos, a variedade de suas
posições no interior do grupo, seriam dois primeiros fatores de oposi­
ção; noutras palavras, às variações oriundas das peculiaridades de ca­
da indivíduo, se somariam as variações de seus inter-relacionamentos,
decorrentes das variações de suas posições no interior do grupo. A pró­
pria existência dos indivíduos, a cada um ligando conjuntos de circuns­
tâncias derivadas de suas peculiaridades e experiências, porém destas
também criadores, constitui sempre um fator de oposições, de contra­
dições, de conflitos.
Como qualquer outro grupo, a equipe de pesquisa é composta de
indivíduos no sentido específico desta palavra; ela significa literalmen­
te o que é indivisível por sua natureza, e definido por caracteres distin­
tos mais ou menos permanentes, que permitem sua identificação no
meio de outros indivíduos aparentemente semelhantes; como tal, o in­
divíduo é ao mesmo tempo “ unidade” e “ totalidade” , em suas parti­
cularidades inconfundíveis. Esta contradição que define o indivíduo,
ele a carrega para o interior do grupo, no qual age sempre de maneira
ambígua, pois é ao mesmo tempo semelhante aos demais, porém com
eles inconfundível. E é esta contradição fundamental que foi esqueci-

38
da, ou foi considerada de menor importância, quando, por exemplo,
Tònnies definiu as comunidades pela sua forte homogeneidade e coe­
são internas.
Tais considerações se aplicam também às equipes de pesquisa. Se­
ja qual for sua qualidade, quer se trate de uma equipe fortemente hie-
rarquizada, quer se trate de uma equipe tendendo para o igualitaris-
mo, encerram sempre possibilidades de harmonização e de conflito,
que se estabelecem ou se anulam num dinamismo que pode tomar as
mais diversas formas. A equipe jamais pode ser reduzida a cada indi­
víduo que a compõe — nem mesmo ao seu líder ou ao seu chefe; mas
também não pode ser considerada dotada de coesão monolítica. Ela
tem uma vida que lhe é própria, uma realidade em constante “ se fa­
zer” , que se altera segundo os diversos momentos do trabalho e con­
forme os influxos dos indivíduos componentes.
Não é possível, pois, considerar a equipe sem referência aos indi­
víduos que a formam; o que equivale a introduzir o conceito de indiví­
duo como parte integrante do modo de ser da equipe — indivíduo que
é sempre parte dela, que a influencia, e sobre o qual ela também exerce
influência. O conceito de equipe e o conceito de indivíduo são indisso­
lúveis, estão em reciprocidade de perspectivas, contêm inplicações mú­
tuas. É através da exploração dos aspectos aparentemente contraditó­
rios da associação equipe-indivíduo que se poderá aquilatar as poten­
cialidades e as limitações de todo trabalho efetuado em conjunto.
É necessário, então, rever a noção de que a equipe formaria uma
pequena comunidade no sentido que Tònnies deu ao termo, e que a
caracterizaria em função das relações diretas e afetivas que se instalam
entre os membros, fomentando a coesão, criando a harmonia e rom­
pendo o isolamento individual. Segundo esta maneira de ver, a reu­
nião de pesquisadores numa equipe seria o antídoto contra a heteroge-
neidade e os conflitos decorrentes das estruturas sócio-econômicas, das
localizações geográficas, das preferências e rivalidades psicossociais etc.
e desenvolvería em seu interior uma união profunda.
Porém, ao contrário do que se imagina, a estrutura internamente
hierarquizada de uma equipe pode desenvolver entre os participantes
uma coesão mais vigorosa do que entre os componentes de uma equi­
pe de cunho igualitário, mesmo quando se trata de uma equipe inter­
namente hierarquizada de maneira rígida entre “ patrão” e “ mão-de-
obra” , que se diria não formar uma “ verdadeira” equipe... Existe, neste
caso, uma clara diferenciação entre “ ego” (a mão-de-obra) e “ alter”
(o chefe). Formada de uma camada subordinada, sobre a qual pesa
o poder dominante do chefe, ela contém o ingrediente até hoje consi­
derado o mais importante para o fortalecimento de laços de união en­
tre indivíduos: a consciência de que existe o “ outro” como um elemento
potencial ou efetivo de mando e de opressão.

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De há muito estabeleceu a filosofia que o conhecimento de “ ego”
é inseparável do conhecimento de “ alter” , conceitos fundamentais e
primeiros do pensamento, indissoluvelmente ligados. “ Ego” e “ alter”
não surgem, pois, separados, cada qual com sua existência em si; es­
tão sempre unidos, só podendo ser definidos reciprocamente. Esta cons­
tatação tem seus prolongamentos em descobertas sociológicas: também
se conhece há tempo em sociologia que toda solidariedade interna de
um grupo se cria ou se reforça quando reconhecida a existência de “ al­
ter” ; “ ego” , em sua forma plural de “ nós” , tem sua solidariedade ele­
vada ao auge quando outro grupo, “ alter” , ou “ eles” , o ameaça.
As equipes de pesquisa não fogem a estes preceitos. Compostas
de poucos membros, ou muito numerosas; de estrutura hierarquizada,
ou igualitária, — encerram sempre em seu interior ou divisões, ou vir-
tualidades de divisões, que se exprimem sob a forma de “ nós” e “ eles” ,
as quais se solidificam desde que um dos termos sinta a resistência ou
a ameaça do segundo, a que deva fazer face. Ou então desde que o
conjunto todo se veja diante de um “ alter” que lhe seja externo, re­
presentando competição ou perigo. Todas as pesquisas de equipe têm,
portanto, em comum o fato de internamente se constituírem de parce­
las individualizadas, — os indivíduos, — entre os quais pode se insta­
lar ou coesão ou conflito; e também o fato de, voltadas para o exte­
rior, se distinguirem do meio circundante e poderem reagir em relação
a ele ou pelo fomento de consenso interno entre os indivíduos e conse-
qüente aumento da diferenciação para com o exterior, ou pela dilui­
ção no meio externo e consequente desaparecimento como grupo.

O termo equipe não nomeia, pois, exclusivamente aquele conjun­


to em que todos os participantes, executando tarefas semelhantes, exer­
cem também a gestão da pesquisa. Esta seria uma forma extrema da
equipe, de que formas hierarquizadas diversas, até chegar à forma au­
toritária, seriam outras tantas maneiras de ser.
O reconhecimento de que a perspectiva do indivíduo não pode ser
deixada de lado quando se encara uma equipe tem conseqüências de
relevo para a organização das tarefas. Se se admitir que somente quando
“ todos fazem tudo ao mesmo tempo” se teria um verdadeiro trabalho
de equipe, — isto é, quando a equipe seguisse o ideal harmonioso da
comunidade coesa, — não seria possível introduzir reais divisões de
trabalho dentro dela. A divisão do trabalho consiste na distribuição
de tarefas diversas entre os indivíduos, segundo estes se diferenciem
pelo sexo, pela idade, pela instrução, pela habilidade, pela experiên­
cia, etc., de tal forma que cada qual exerce uma atividade diferente; a
integração das tarefas, neste caso, compõe a totalidade de uma pes­
quisa. Desta divisão do trabalho também se origina um tipo de solidarie­
dade muito específico, denominada por Durkheim “ solidariedade orgâ­

40
nica” (Durkheim, 1893); resulta ela da própria diversidade das tare­
fas, e da importância de todas para se alcançar o resultado final, de
modo que a falha de uma prejudicará o produto, e, conseqüentemen-
te, prejudicará também o grupo.
Ora, em toda pesquisa de equipe existem tarefas que ganham em
serem executadas por todos, e ao contrário outras que exigem por as­
sim dizer a divisão do trabalho. Divisão do trabalho que pode consti­
tuir inclusive base para ampliação de coletas, para alargamento de pon­
tos de vista, para aceleração da execução. Em todo trabalho de equipe
é muito freqüente existirem parcelas e fases realizadas em comum, e
parcelas e fases individuais, como se pôde observar, por exemplo, na
pesquisa que deu lugar a todas estas reflexões. A distinção entre umas
e outras fases pode ser efetuada pelo coordenador da pesquisa; porém,
nada impede que decorra de uma discussão bastante acurada em grupo.
Na pesquisa referida, o princípio de base fora o da distinção entre
o trabalho da coordenadora e o trabalho das pesquisadoras; à primei­
ra, devido à sua experiência, caberia a organização da pesquisa em ge­
ral; às segundas, cuja finalidade específica era a aquisição de experiên­
cia, caberia a execução da mesma. Haveria discussões em conjunto,
sempre que necessário, não se estabelecendo nenhuma periodicidade
a priori. No que dizia respeito às pesquisadoras, as tarefas seriam se­
melhantes entre si, — isto é, a divisão do trabalho, no interior da equi­
pe, se inscreveria praticamente apenas na separação entre organização
e execução.
Reconheceu-se em discussão em grupo que, por sua própria natu­
reza, algumas tarefas só poderíam ser executadas individualmente: a)
a coleta do material por meio de entrevista gravada; b) a transcrição
das fitas; c) a consulta bibliográfica em bibliotecas e centros de estu­
dos; d) a análise das entrevistas, cada pesquisadora analisando as suas;
e) a composição de relatórios parciais, relativos às tarefas que cada uma
executasse, os quais seriam reunidos depois num todo.
Outros passos da pesquisa, todavia, se impunham como eminen­
temente coletivos: a) a discussão do elenco de tarefas e de sua seriação
no tempo; b) a discussão de esquemas para as entrevistas, a fim de que
todas as pesquisadoras soubessem o que perguntar aos informantes,
quando necessário, e colocassem questões semelhantes; c) o estabeleci­
mento dos rumos de análise das entrevistas; d) a discussão dos esboços
de relatórios parciais, a fim de obedecerem a padrões semelhantes; e)
a discussão em seminário das leituras efetuadas individualmente, para
se chegar a uma orientação teórica homogênea.
Releva notar que, embora se admitisse a existência de parcelas de
trabalho individuais, também se tomou por princípio de base, desde
o início, que nenhuma tomada de decisão seria possível se não fosse
precedida de discussão por todo o grupo, inclusive a coordenadora.

41
Tais discussões significaram um esforço conjunto de crítica e de reso­
luções durante as quais pesquisadoras e coordenadora manifestariam
livremente suas opiniões, sem a observação de nenhuma hierarquia.
Descendo agora a detalhes, havia todo um conjunto de leituras
que devia ser básico e efetuado por todas as pesquisadoras; o restante,
em muito maior quantidade, foi partilhado entre elas, que executariam
esta tarefa individualmente. Assim, cada pesquisadora teve a seu car­
go um elenco específico de leituras, de que deu ciência às demais em
seminário. As leituras comuns também foram discutidas em grupo pa­
ra chegar-se a uma compreensão uniforme e pára que o mesmo ques­
tionamento fosse aplicado ao trabalho em curso.
A organização das tarefas teve, pois, como pontos essenciais, por
um lado a discussão em grupo de todos os passos, de todas as deci­
sões, de todos os problemas que fossem surgindo, e por outro lado a
execução de tarefas individuais pelas pesquisadoras, que iam da aqui­
sição de conhecimentos bibliográficos à coleta de material, à redação
de relatórios, passando pela análise dos dados. Desta forma,
combinaram-se tarefas coletivas e tarefas individuais e, no tocante a
estas, tarefas semelhantes (como a coleta de material) e tarefas dife­
rentes (como a leitura de partes diversas da bibliografia).
Esta organização deu flexibilidade à equipe; não exigia horários
fixos, não ordenava que todas trabalhassem ao mesmo tempo, não es­
tipulava datas regulares de encontro entre elas, ou delas com a coorde­
nadora. Tudo foi sendo fixado na medida das necessidades. E os pró­
prios relatórios parciais se compuseram de partes da responsabilidade
de cada pesquisadora, cada uma assinando individualmente a sua.
Poder-se-ia dizer que este exemplo não é muito concludente no
que diz respeito à divisão do trabalho, pois não houve real especializa­
ção das pesquisadoras, de tal modo que cada uma realizasse uma tare­
fa individualizada. A especialização seria a característica fundamental
da divisão do trabalho, manifestando-se na execução, por um indiví­
duo, de parcela diversa da dos demais. Na pesquisa aqui examinada,
a especialização existirá somente na separação entre coordenação e exe­
cução, por um lado, e na atribuição de leituras diferentes às pesquisa­
doras, por outro. As demais tarefas, embora não executadas coletiva­
mente, eram iguais e intercambiáveis entre si, exigindo atividades idên­
ticas, se bem que individualmente executadas.
No entanto, mesmo a pouca divisão existente, representada pelas
tarefas diversas da coordenadora e das pesquisadoras, e também pela
leitura de uma bibliografia diferenciada, permite aquilatar a importância
de uma divisão de tarefas mais pronunciada. Quando todos, no inte­
rior da equipe, realizam atividades absolutamente idênticas, a falta ou
erro de um dos membros não acarretará grande distúrbio no trabalho;
uma pequena quantidade do trabalho não será executada, mas a qua-

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lidade do todo permanece intacta. Porém, quando se opera uma real
divisão do trabalho no interior do grupo, a falha de um prejudica o
resultado do conjunto e é ressentida por todos, sendo nociva ao
produto.
Depreende-se destas observações que a exigência de integração da
equipe e, portanto, da sua coesão interna, torna-se maior no caso de
aumento da divisão do trabalho e de especialização das tarefas, que
poderíam ser definidas pela “ solidariedade orgânica” de que fala Durk-
heim; e a esta solidariedade, demandada pela própria diferenciação in­
terna daquilo que se executa, opunha ele a solidariedade mecânica, re­
sultante da afetividade que une os indivíduos entre si, proveniente da
semelhança de suas experiências e de suas situações (Durkheim, 1893).
Para a coesão da equipe não seria importante, pois, que todos execu­
tassem as mesmas tarefas e tivessem a mesma situação; o importante
seria que todos os componentes da mesma conhecessem a relevância
da tarefa que executavam para a realização do todo, de tal modo que
se sentissem presos uns aos outros pela divisão das próprias atividades
que executam e pela consciência de que também o produto final estava
sob sua responsabilidade.
Os comentários efetuados chamam, portanto, a atenção para o
vulto e o significado do trabalho individual no interior de uma equipe.
Todo trabalho de equipe é uma soma ou uma organização de traba­
lhos individuais; as duas formas não são mutuamente exclusivas, co­
mo habitualmente se pensa. O trabalho de equipe aparece como prefe­
rencial em relação ao individual, não porque seja de outra qualidade,
ou de qualidade superior, e sim porque constitui uma categoria mais
ampla, dentro da qual existe o trabalho individual.
Assim, o trabalho de equipe não é apenas uma forma preferencial
de trabalho científico (o que é amplamente admitido em todas as disci­
plinas, porém pouco realizado em ciências sociais); constitui também
a categoria mais ampla das formas de trabalho científico, de que o tra­
balho individual constitui uma das espécies. Pois, embora pareça pa­
radoxal, não se pode na verdade compreender a existência de um tra­
balho científico puramente individual. Este não tem realidade em si.
Todo pesquisador, todo cientista é sempre parcela de um conjunto mui­
to mais amplo de especialistas, de todo um grupo engajado nas tarefas
de desenvolver os conhecimentos de sua área. No interior desta vasta
equipe, o trabalho aparentemente individual nada mais é que uma par­
cela executada por um pesquisador que ilusoriamente se julga único
e solitário, e que se envaidece de chegar sozinho a resultados que só
ele alcançou...
No entanto, esta ilusão é muito mais encontrada nas ciências so­
ciais do que nas ciências da matéria, ou nas ciências da vida; nestas,
o pesquisador tem muito mais consciência de que, sem seus pares,

43
não podería realmente trabalhar, mesmo que aparentemente seja um
pesquisador individual. Quais as razões para a inveterada persistência,
nas ciências sociais, da consideração ilusória do valor do trabalho in­
dividual?
Uma explicação, que deveria ser investigada para se aquilatar sua
importância, estaria ligada aos custos de uma pesquisa de equipe, em
relação às pesquisas individuais. Nas ciências sociais, que até há pou­
co tempo não foram ciências de laboratório, nem de aparatos mecâni­
cos, um pesquisador isolado pode escolher um tema, trabalhá-lo sozi­
nho, chegando de maneira mais ou menos rápida ao término de sua
busca; este tipo de pesquisa não exige grandes verbas, nem grandes dis-
pêndios monetários. O mesmo não ocorre quando se trata de pesquisa
de equipe. Quando o especialista em ciências sociais se encontra diante
da urgência de efetuar um trabalho de pesquisa para efeitos de carrei­
ra, encontra então no trabalho isolado possibilidades de realizá-lo com
menores ônus (que geralmente pesam sobre seu próprio bolso) e com
maior rapidez. Esta circunstância pode ter auxiliado a transformação
deste tipo de trabalho em norma geral, nas disciplinas citadas.
Em nossas universidades, as ciências sociais, ao contrário das ciên­
cias da matéria e das ciências da vida, nunca foram bem aquinhoadas
em verbas para pesquisa; os minguados auxílios recebidos foram sem­
pre parcamente suficientes para custear apenas pesquisas de pequena
envergadura, como são às individuais; a obtenção de recursos mais im­
portantes sempre exige rempo e esforços que nem sempre é possível
ao especialista despender. E torna-se assim significativo que seja tão
disseminada entre seus pesquisadores a noção da importância primor­
dial da pesquisa individual, e mais ainda, a noção de que a pesquisa
individual — e não a pesquisa de equipe — seria plenamente adequada
a seu tipo específico de ciência...
O obstáculo real do custo da pesquisa de equipe não é jamais alvi-
trado, como se os pesquisadores não suspeitassem de sua existência.
Omissão também muito significativa: não existindo esta conscientiza­
ção por parte dos cientistas sociais, não exigem maiores verbas, o que
redunda em economia para as universidades e as instituições financia­
doras, que não são assim assediadas por pedidos importantes de auxí­
lio financeiro, de sua parte. As demais ciências não encontram, então,
a competição dos cientistas sociais no que diz respeito a altos pedidos
de verba.
Esta situação tem como corolário falarem os especialistas das ou­
tras ciências e os institutos financiadores, com certo desprezo, da mo­
déstia dos pedidos das ciências sociais, da incapacidade de seus pes­
quisadores em apresentarem orçamentos válidos de pesquisa... Por ou­
tro lado, não sendo habitual a pesquisa de equipe, mais longa e mais
cara, porém também mais ampla e levando a maiores aprofundamen­

44
tos dos problemas, esta situação tem como conseqüência uma lentidão
muito maior na obtenção de novos conhecimentos, no desenrolar do
progresso científico.
A admissão de que a pesquisa individual seria uma forma prefe­
rencial de trabalho, específica das ciências sociais, constituiría, assim,
uma forma velada e inconsciente de afastar a concorrência destes pes­
quisadores no mercado das verbas — destes pesquisadores aos quais
se recusou durante tanto tempo o estatuto de cientistas...

OBRAS CITADAS

Durkheim, Émile, La Division du Travail Social. Paris, Alcan, 1893.


Tõnnies, Ferdinand, Communautéet Société. Paris, Presses Universitaires de France, 1944.

45
III — Proposição de um projeto de pesquisa

A redação de um projeto de pesquisa, isto é, de um primeiro texto


relativo à investigação que se pretende efetuar, exige o conhecimento
das implicações contidas nestes dois termos: pesquisa e projeto.
O termo “ pesquisa” significa um esforço da inteligência, esforço
cuidadoso, constante, atento, aprofundado e conseqüente, no sentido
de chegar-se a conhecer algo. A pesquisa se refere a uma questão que
pesquisador ou equipe se propõe responder e, portanto, encerra difi­
culdades a serem vencidas; todo trabalho visando solucionar algo re­
quer ao mesmo tempo reflexão crítica e ação organizada, requer por­
tanto esforço mental e esforço material. A pesquisa é, por isso, uma
categoria que releva da ação refletida.
O termo “ projeto” , por sua vez, é da ordem das intenções:
pretende-se alcançar um objetivo; por isso sua apresentação obedece
sempre ao condicional, que exprime dúvida, perplexidade, além de de­
sejo. Quem diz perplexidade, diz ignorância a respeito da finalidade
proposta, diz hesitação em caracterizá-la, em ajuizá-la, em interpretá-
la; diz também desejo de ultrapassar a situação embaraçosa que a fal­
ta de conhecimentos engendra.
Todo projeto de pesquisa é, assim, a convergência de três coorde­
nadas: desconhecimento, hesitação e dificuldade, na ação futura. Seu
propósito é esclarecer a dúvida, é descobrir o que está oculto, é conhe­
cer o que se ignora. Além do condicional ser o tempo de verbo que
mais convém ao projeto, também lhe estão afeitas as indagações; sa­
ber formular as perguntas cabíveis à resolução do problema demons­
tra a capacidade dos pesquisadores.
Todo projeto de pesquisa pode se originar em interesses e condi­
ções muito variadas. Em sociologia, pode voltar-se para o esclareci­
mento racional das relações entre indivíduos, entre sociedades; ou en­
tre os produtos sócio-culturais, econômicos, políticos, originados nes­
sas relações; ou entre indivíduos, sociedades, produtos. Também pode
interessar-se de maneira crítica pelo alcance e valor das atividades in­
dividuais e coletivas, assim como dos conhecimentos de variada estir­
pe que lhes estão associados. Ou então formular indagações respecti­
vas aos fundamentos de uma teoria, questionando-a pela comparação
com dados empíricos. Em qualquer destes casos, interrogações adequa­

46
damente construídas são o instrumento fundamental para se circuns­
crever, pouco a pouco, o âmbito dos fenômenos inquiridos e a orien­
tação das informações.
A análise de um caso concreto pode ser esclarecedor de como se
propõe um projeto; é o que se apresentará a seguir. Um concurso espe­
cífico de circunstâncias levou determinado grupo de estudantes a
interessar-se pelo conhecimento de aspectos da realidade paulistana do
passado: 1) haviam elas passado pela experiência de uma pesquisa indi­
vidual na disciplina de sociologia, que lhes despertara a atenção para
o contato com a realidade viva; 2) esta lhes pareceu algo de fugitivo,
que seria necessário registrar antes que de todo se dispersasse; 3) viviam
as estudantes também um momento em que a sociedade paulistana co­
meçava a amedrontar-se com a destruição maciça de vestígios que reve­
lam a fisionomia passada da cidade, e o que teria sido o comportamen­
to de seus habitantes; 4) esta preocupação se inscrevia também em al­
gumas obras recém-publicadas, que polarizavam a atenção do público:
Memória e sociedade: lembranças de velhos, Ecléa Bosi, 1979; Anato­
mia de um bairro: o Bexiga, Hain Gunspun, 1979; Anarquistas, graças
a Deus!, Zélia Gattai, 1980; 5) estas obras mostravam que, entre os vá­
rios aspectos a resguardar, destacava-se a massa de expressivas histó­
rias de um passado não muito longínquo, que estava se perdendo todos
os dias pela morte daqueles que as viveram, apagando-se os detalhes
de suas condições de vida na cidade; 6) nas próprias famílias das estu­
dantes, ou em suas relações de amizade, havia pessoas de idade cujas
recordações pareciam, assim, destinadas ao total desaparecimento.

Como se vê, todo um conjunto de circunstâncias pessoais e coleti­


vas, específicas de um momento histórico definido, despertou nas es­
tudantes a intenção de efetuar uma pesquisa sobre o passado da cida­
de, num período que ainda fosse alcançado pela memória de alguns
de seus habitantes; tema muito amplo, encontrava suas primeiras limi­
tações no próprio contingente de informantes que estava ao alcance
das pesquisadoras. No passado, que constituía o momento de sua ju­
ventude, haviam eles se classificado no que se poderia chamar de ca­
mada de poucos recursos da população urbana. O primeiro cuidado
da equipe foi efetuar um levantamento das pesquisas já efetuadas so­
bre esta camada na cidade de São Paulo e a documentação existente,
a fim de se poder verificar a relevância ou não da coleta de novos ma­
teriais, constituídos pelas informações de depoentes potenciais. Pois,
se houvesse já uma quantidade apreciável de documentos a tal respei­
to, as informações perderíam em importância, embora guardando in­
teresse pelo possível sabor dos relatos.
Ficou averiguado então que pouca documentação existia sobre os
trabalhadores de baixos recursos, que viveram na cidade de São Pau-

47
Io nas primeiras décadas deste século. Excetuando-se os operários, pa­
ra os quais a documentação é abundante, uma vez que possuíam até
jornais, os demais trabalhadores estavam quase ausentes da documen­
tação encontrada. Nos jornais da época, por exemplo, que constituem
excelente fonte de conhecimento sobre a vida da cidade nos primeiros
decênios, registrava-se fartamente a forma de existência das camadas
médias e altas. A imprensa operária, muito utilizada atualmente como
fonte de pesquisa, documentava quase exclusivamente as condições de
vida dos assalariados das indústrias, quase nada registrando sobre aque­
les que tinham incertos meios de sobrevivência. Estes compareciam qua­
se unicamente nas notícias policiais dos jornais de então... Algum es­
clarecimento a respeito era trazido pelas memórias atrás citadas, po­
rém pareciam ser os únicos documentos de que se podia lançar mão.
Diante destas circunstâncias, avultava o interesse de uma pesqui­
sa que apanhasse em suas malhas os trabalhadores de poucos recursos
da cidade de São Paulo nas primeiras décadas do século; ela viria preen­
cher uma falha de documentação, promovendo um conhecimento mais
aprofundado a respeito de faixa da população praticamente ignorada.
Desta forma, antes ainda da formulação do projeto de pesquisa, toda
uma antepesquisa foi efetuada, constituída pela indagação crítica da
documentação existente, para se conhecer o lugar que os resultados
eventuais de uma pesquisa viriam ocupar em seu conjunto.
Como definir a coletividade a ser inquirida? Em primeiro lugar,
havia uma delimitação econômica, representada pela qualificação de
“ trabalhadores de poucos recursos” . Em segundo lugar, não seriam
incluídos os operários; o termo “ operário” significa ligação com uma
fábrica ou usina, à qual o indivíduo está preso por um contrato de tra­
balho, que lhe assegura um salário constante. O conjunto a ser entre­
vistado seria de trabalhadores assalariados, isto é, definidos por uma
relação patrão-trabalhador, porém que não fosse do tipo existente na
fábrica que emprega uma série de trabalhadores de vários níveis; in­
cluía os trabalhadores vivendo de expedientes ou de outros meios de
sobrevivência, grupo cuja amplitude e variedade na época poderíam
talvez ser conhecidos pela pesquisa.
A expressão “ população de baixa renda” , muito utilizada atual­
mente pelo I.B.G.E., por exemplo, em seus recenseamentos, não era
satisfatória para designar aqueles trabalhadores. “ Renda” significa ren­
dimento periodicamente renovado, que se recebe com segurança, e o
termo não era adequado para nomear os ganhos dos informantes, que
provavelmente tinham falta de segurança para auferir ganhos em seu
dia-a-dia. Segundo o conhecimento prévio das pesquisadoras, os in­
formantes pelos quais se interessavam tinham justamente dificuldades
em obter ganhos constantes. Uma das questões seria sobre como asse­
gurariam sua sobrevivência.

48
As discussões críticas efetuadas então pela equipe levaram à defi­
nição do conceito mais amplo do que “ baixa renda” : “ trabalhadores
de baixos recursos” . Nela se poderia abranger tanto os operários rece­
bendo com segurança mensalmente quanto os trabalhadores que viviam
de expedientes; tanto os que nunca haviam sido operários quanto os
que tinham temporariamente se engajado numa fábrica.
Verificado o interesse da pesquisa e definida a coletividade a ser
pesquisada, depois de já ter sido exposto o problema, que era salva­
guardar dados a respeito da vida na cidade de São Paulo, necessitava
ainda o projeto de outras delimitações. Sabia-se já que seriam pesqui­
sadas as fontes vivas constituídas pela memória de homens e mulheres
de baixos recursos, que ainda pudessem dar um testemunho das condi­
ções antigas da cidade, através da memória. O termo “ ainda” ganha
agora nova importância, em seu sentido de “ até agora” , “ até o pre­
sente” , porque manifesta a dúvida de que parte dos informantes tal­
vez não esteja mais capacitada para relatar sua experiência de vida.
Esta dúvida se relaciona com os limites que as dificuldades de existên­
cia impõem à esperança de vida dos trabalhadores de baixos recursos.
Efetuou-se uma sondagem nesta camada e observou-se que difi­
cilmente se encontraria alguém que estivesse em estado de prestar seu
depoimento para data anterior a 1920; era esta a data limite para um
recuo no tempo. Não que não houvesse gente mais velha em condições
de lembrar; porém seriam em número muito pequeno, e para não per­
der esforços e tempo na busca era conveniente reter aquele limite, para
o qual havia certeza de se encontrar informantes suficientes, que te-
riam mais de 70 anos portanto. Se outros mais velhos fossem encon­
trados, seriam naturalmente entrevistados, mas a idade de base seria
aquela.
Para término do período foi escolhido o ano de 1937, depois de
discussão entre as pesquisadoras. Foi neste ano instituído o salário-mí-
nimo, por lei, embora só começasse a funcionar mais tarde; iniciava-
se assim nova fase para os trabalhadores de poucos recursos, nas cida­
des brasileiras, que culminou com a decretação das Leis Trabalhistas.
A mera discussão destas leis, concretizando a necessidade de apoio a
ser dado às camadas inferiores urbanas, por intermédio de uma base
salarial obrigatória e de uma legislação específica, constituía a abertu­
ra de uma nova fase em suas vidas, com uma transformação de vulto
nas relações entre camadas superiores e inferiores, que podia modifi­
car suas concepções e visão do mundo. Urgia conhecer justamente se
estavam conscientes de seu significado, se manifestavam a existência
de diferenças antes destas modificações.
Os limites do período a ser investigado, 1920-1937, partiram, pois,
de constatações empíricas diversas, porém diretamente ligadas às fon­
tes vivas que iam ser inquiridas. A idade dos informantes, para o pri­

49
meiro limite; a modificação possível advinda com a nova legislação e
até mesmo resultante de sua discussão, para o segundo limite, referiam-
se a circunstâncias específicas da coletividade pesquisada, não sendo
portanto ditados por nenhuma cogitação arbitrária das pesquisadoras.
Estabelecidos estes limites, efetuaram as pesquisadoras algumas
leituras sobre o período em pauta, verificando que se tratava de uma
fase extremamente rica em acontecimentos locais e nacionais; era uma
fase de efervescência política, de renovação cultural e de valores, nu­
ma cidade que começava a ser sacudida pelo arranque da urbanização
e da industrialização, e que fisicamente também se modificava.
Com efeito, inicia-se então toda uma transformação do sistema
de habitação, com o aparecimento dos primeiros arranha-céus; com
a extensão de seu antigo centro comercial; com a expansão de sua peri­
feria e aumento do número de fábricas. A antiga fisionomia da cidade
ia-se transmudando pouco a pouco para alcançar o aspecto que hoje
apresenta. As antigas camadas sócio-econômicas se alteravam pela in­
tegração e pela ascensão sócio-econômica dos imigrantes, que se alça­
vam até as camadas superiores, modificando-as e modificando-se. A
antiga política partidária também sofria abalos, expressos nas revolu­
ções de 1924, 1930 e 1932, e igualmente pelas campanhas pelo voto se­
creto, pela participação feminina nas urnas, pelo reconhecimento da
importância das organizações sindicais. O abalo da crise de 1929-1930
alterou, outrossim, o equilíbrio econômico do estado de São Paulo,
com grandes repercussões em sua capital, encaminhando esta para uma
industrialização cada vez mais importante. Desabrocharam também no
período novas orientações culturais, concretizadas nas grandes refor­
mas do ensino público e na Semana de Arte Moderna. A riqueza do
período escolhido, do ponto de vista da variedade de aspectos em mo­
dificação, era patente.
A escolha dos limites da pesquisa equivalia a reconhecer que não
era importante somente conhecer as condições de vida dos informan­
tes em potencial; era importante conhecê-la num momento em que es­
tas condições de vida principiavam a sofrer abalos que as modifica­
riam certamente. E a primeira indagação que se formulava era: tive­
ram os informantes alguma consciência dos momentos históricos que
estavam vivendo? De que forma se manifestava hoje tal consciência,
através de suas recordações? De que forma os trabalhadores de baixos
recursos haviam captado as noções dos acontecimentos dessa época de
que tiveram experiência?
Uma questão importante a ser resolvida ainda, antes de se dar por
encerrada a proposição do projeto de pesquisa, era decidir da validade
ou não de se apelar para informantes com os quais as pesquisadoras
já mantinham relações de parentesco ou de amizade, uma vez que tais
relações se impregnavam de afetividade. A dúvida consistia em se

50
aquilatar até que ponto a influência de um relacionamento pessoal po­
dería desvirtuar a coleta de informações. A escolha de tais informan­
tes decorria das facilidades que seu contato oferecia para a realização
da pesquisa, uma vez que se pouparia o tempo gasto em procurar gen­
te adequada e em estabelecer com esta gente laços de confiança recí­
proca. Tal vantagem era inegável; porém, era possível também que os
parentes nem mesmo fossem informantes satisfatórios, e que as histó­
rias que narravam às jovens parecessem a estas interessantes porque
se tratava de pessoas a elas ligadas pela afeição. Na verdade, esta últi­
ma incerteza só poderia ser convenientemente resolvida depois de efe­
tuada a pesquisa e avaliados os relatos colhidos.
O outro problema diz respeito à famosa questão da objetividade
nas ciências sociais, e à influência talvez perniciosa da subjetividade
dos pesquisadores sobre a coleta efetuada. O termo “ subjetivo” ex­
prime o sujeito pensante em sua individualidade, naquilo que lhe é pró­
prio e que, compondo uma das matrizes de sua experiência de vida,
forçosamente interfere em suas interpretações, em sua imaginação, em
seus julgamentos; todo o conhecimento que adquire ao longo da exis­
tência estaria, assim, fortemente marcado pela contingência e pelo ar­
bitrário de suas condições peculiares. Todo conhecimento captado atra­
vés da subjetividade, isto é, daquilo que compõe o íntimo de um indi­
víduo e a que ele está mais afetivamente ligado, traria a marca do úni­
co e do incomunicável. Não poderia ser objeto de ciência, pois esta,
por definição, lida com o que é recorrente e o que é comunicável. O
grande problema para os pesquisadores das ciências sociais consisti­
ría, pois, em escapar de tal maneira de adquirir conhecimentos, que
por outro lado faz parte inerente de seu ser; e isso porque ela estava
inevitavelmente viciada pela vivência específica de cada pesquisador.
Por outro lado, cumpria reconhecer também que os dados da realida­
de social eram exteriores a todos os indivíduos, sobre eles exercendo
coerção, levando-os à execução de determinados comportamentos. Não
sendo simples produtos do pensamento, os dados da realidade social
pertenceríam ao mundo exterior, da mesma forma que os fenômenos
físicos ou biológicos. A realidade social se apresentava então como al­
go supra-individual, amplamente comunicável, uma vez que se impu­
nha a todos os indivíduos, e era passível portanto de um conhecimento
direto. Era indispensável que o pesquisador, o cientista social, cons­
truísse técnicas que lhe permitissem obter informações objetivas a res­
peito do real, excluindo os aspectos que refletissem sua própria expe­
riência de vida, afastando portanto as formas de conhecer subjetivas.
Alcançar-se-ia assim a objetivação de comportamentos, de fatos so­
ciais, de valores, que se transformariam em “ dados” . Foi esta uma
das primeiras perspectivas definidas em ciências sociais para a análise
da realidade, em que o problema das relações objetividade-subjetivida-

51
de foi resolvido pela tentativa de anulação pura e simples do segundo
termo.
No entanto, na década de 50 deste século, tal solução foi-se apre­
sentando cada vez mais como insatisfatória, à medida que progrediam
as pesquisas sobre a realidade empírica e se refletia criticamente sobre
a posição do pesquisador na aquisição de conhecimentos. Também in­
fluía na reformulação destes problemas a aceitação cada vez mais con­
vencida de que não havia uma divisão insuperável entre espírito, sede
do conhecimento e da razão, e corpo, sede das sensações e da afetivi-
dade, nem a necessidade de se anular corpo e afetividade para se che­
gar a um saber autêntico. Não se tratava mais nem de definir como
alcançaria o homem um conhecimento real, através de técnicas que ga­
rantissem a não-interferência da afetividade, nem de resguardar a ob­
jetividade do real, assim como dos aspectos a serem estudados. A aten­
ção se voltava agora para o relacionamento dos fenômenos entre si —
objetividade/subjetividade, pesquisador/objeto da pesquisa, etc.
Reconhecia-se então que uma relação entre dois fenômenos, ou
uma relação entre o sujeito conhecedor e o objeto do conhecimento,
seria subjetiva todas as vezes que não pudesse ser formulada sob a for­
ma de algo universal e necessário, isto é, válido para todos os indiví­
duos identicamente constituídos quanto à sensibilidade e ao pensamen­
to; e admitia-se que sensibilidade e pensamento, formando-se sempre
numa sociedade dada, em certo momento histórico, variariam forço-
samente no tempo e no espaço. O “ universal” e o “ necessário” não
se definiríam mais como absolutos, mas se encontrariam relativizados,
uma vez que se definiríam como tais numa sociedade dada, num certo
momento histórico. A objetividade se expressaria, portanto, no modo
de proceder para com o objeto ou fenômeno historicamente dado, e
não em qualquer qualidade intrínseca dos mesmos, ou numa capaci­
dade específica do cientista adquirida por meio de qualquer instrumen­
to. Noutras palavras, a objetividade seria encarada então como um pro­
cesso a que é submetido um objeto, um fenômeno, uma sucessão de
acontecimentos, quer se desenrolem na realidade exterior aos indiví­
duos, quer sejam por estes interiorizados; descrevendo-os, verificando-
os experimentalmente quando possível, reintegrando-os numa nova sín­
tese, trazendo-os do particular ao geral, estará o pesquisador operan­
do para obter novos conhecimentos, dando um novo sentido ao que
se conhecia até então somente pelo senso comum.
O processo de objetivação poderia ser desencadeado por meio ou
de operações lógicas ou de um instrumental mecânico (caso em que
também estariam sempre implicadas, naturalmente, operações lógicas),
por meio das quais as observações empíricas iriam se afastando pro­
gressivamente de uma maneira de ver estreitamente ligada ao pesqui­
sador e às suas circunstâncias; em seu refinamento progressivo, iriam

52
também adquirindo maior grau de abstração, tendendo a não se expri­
mir mais em termos de tempo e de espaço. A objetivação teria, pois,
vários graus, expressos em vários níveis de abstração. Porém, o coro­
lário desta maneira de agir estava em que nunca se alcançaria uma abs­
tração pura, todo o conhecimento seria sempre relativo, dependendo
dos recursos operacionais de que os pesquisadores pudessem lançar mão
em sua época, sem esquecer que tais recursos tanto existiríam como
mecanismos de pesquisa, como sob a forma de definições, de concei­
tos, de noções. Os limites da objetivação, em cada momento histórico,
estariam, pois, dependentes tanto dos instrumentos de medida que se
possuísse, quanto da precariedade das definições e dos conceitos, num
momento dado, numa sociedade dada, e também da posição admitida
para o pesquisador diante do objeto de pesquisa. Assim recolocadas
as relações entre objetividade e subjetividade, a recusa de informantes
porque ligados direta e afetivamente às pesquisadoras adquiria o as­
pecto de um falso problema. Não era de seu relacionamento com as
pesquisadoras que derivaria a validade ou não das informações que vei­
culariam; esta seria aquilatada por dois tipos de aferimentos, pelo me­
nos: a comparação dos depoimentos uns com os outros, e a compara­
ção com os documentos e obras já existentes sobre a vida na cidade
de São Paulo na época. O próprio grau de fantasia que apresentassem,
ou que deixassem de apresentar, se transformaria numa característica
a ser recolhida e analisada, permitindo um conhecimento mais amplo
das pessoas de poucos recursos na cidade de São Paulo, e de suas
recordações.
Cumpria, pois, recolher os depoimentos e agir com eles compara­
tivamente, isto é, buscando suas relações de convergência e de diver­
gência a respeito da maneira pela qual eram conservadas as lembran­
ças. A formulação deste problema trazia subjacente a admissão de que
a camada dos indivíduos de poucos recursos não seria monolítica, e
sim diferenciada, tanto em seus comportamentos passados quanto em
seu modo de recordar. Haveria diferenças, provavelmente, segundo o
sexo, segundo a instrução, segundo a etnia, segundo a nacionalidade.
Na pesquisa proposta, os informantes seriam semelhantes em nível dè
recursos e bastante próximos em idade, estas duas qualidades não cons­
tituiríam portanto fatores de diferenciação interna, uma vez que se de­
cidira ouvir gente de poucos recursos e de mais de 70 anos; não seriam
fatores de delimitação interna, e sim de delimitação externa da coleti­
vidade escolhida, separando-a de conjuntos de outra idade e de outras
condições econômicas.
Ora, em geral as pesquisas efetuadas com as camadas mais bai­
xas, urbanas ou rurais, raramente se interessam pelas suas diferencia­
ções internas; parecem sempre partir do pressuposto de que estas ca­
madas seriam maciças, e que todos os indivíduos teriam os mesmos

53
modos de agir e de pensar. Parecem admitir os pesquisadores que no
interior destas camadas as divergências ficariam superadas e mesmo
anuladas pelo determinante econômico, de tal modo que os comporta­
mentos seriam sempre muito semelhantes. Noutras palavras, os “ bai­
xos recursos” são tomados implicitamente, na maioria das vezes, co­
mo um poderoso fator de homogeneização dos indivíduos, impondo-
lhes valores, caracteres e comportamentos uniformes. Verificar se isto
ocorre realmente, identificar os limites que recortam internamente uma
tal coletividade, eis também um importante problema a ser pesquisado.
Assim sendo, procurar-se-ia verificar, por um lado, se o homem
e a mulher, o nacional e o estrangeiro, o branco e o negro, o analfabe­
to e o alfabetizado, diferiríam no anedotário que iriam narrando so­
bre seu cotidiano, sobre sua maneira de se relacionar com a família,
sua maneira de ganhar e empregar o dinheiro, sobre a forma pela qual
ocupariam as horas de lazer, etc.; e, por outro lado, ver-se-ia se diferi­
ríam também entre si, e como, no modo de recordar e na qualidade
das recordações. Estas diferenciações, reconhecidas em geral como im­
portantes, para as camadas superiores, funcionariam realmente na ci­
dade de São Paulo, entre 1920 e 1937, entre os trabalhadores de baixos
recursos, e como? E, se não funcionassem, quais outras determinações
existiríam, separando os indivíduos no interior da coletividade esco­
lhida? Não se afastava também a idéia de que as próprias delimitações
de nível econômico e de idade, que se acreditava traçarem os limites
de contorno da coletividade analisada, pudessem agir no seu interior,
dividindo subclasses de idade e subcamadas econômicas. Ou então que
outras diferenciações ainda, até agora negligenciadas como de some-
nos importância, surgissem como influentes.
Resolvidas estas primeiras críticas, estava assim delineado o pro­
jeto de pesquisa em suas linhas gerais, e definidas as perguntas a serem
colocadas à realidade. Repassando as tarefas até o momento efetua­
das, verificou-se que a reflexão crítica estava avultando como o instru­
mento mais importante que viera sendo utilizado nesta primeira fase
do trabalho. Tomou-se então por norma que todos os passos da pes­
quisa também seriam submetidos à mesma reflexão crítica, a qual se­
ria o instrumento lógico fundamental a ser utilizado; empregado des­
de o início, estava-se evidenciando como base e motor para tudo quanto
se construía. 1

1. O projeto de pesquisa que serviu de exemplo às observações e comentários efetuados


neste trabalho, está no Anexo 1 deste volume.

54
OBRAS CITADAS

Bosi, Ecléa, Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo, T.A. Queiroz, 1979.
Gattai, Zélia, Anarquistas, graças a Deus! Rio de Janeiro, Record, 3? ed., 1980.
Gunspun, Hain, Anatomia de um bairro: o Bexiga. São Paulo, Ibrasa, 1979.

55
IV - Das técnicas

“ Técnica” é procedimento, ou conjunto de procedimentos bem


definidos, transmissíveis, destinados a produzir determinados resulta­
dos; liga-se, pois, diretamente à prática, à ação, mas também, e de ma­
neira fundamental, aos resultados a que se quer chegar. Assim, por
exemplo, uma vez tomada a determinação de conhecer a maneira de
viver, de se comportar, de pensar, dos trabalhadores de poucos recur­
sos na cidade de São Paulo, entre 1920 e 1937, e fixado com precisão
como procurá-los, era necessário decidir qual a melhor forma de che­
gar a resultados válidos, como captar eficazmente as recordações dos
mesmos.
A finalidade sendo recolher e registrar as lembranças destes tra­
balhadores, pareceu às pesquisadoras que a técnica mais adequada se­
ria a da entrevista com gravador, pois este mecanismo permite apa­
nhar com fidelidade os monólogos dos informantes, ou o diálogo en­
tre informante e pesquisador, guardando-os em seguida por longo tem­
po, isto é, por todo o tempo em que a fita se mantiver intacta. Foi esta
a técnica escolhida, afastando-se a utilização de outra, que seria por
meio de registro escrito.
Anteriormente à invenção e disseminação do gravador, eram tam­
bém colhidos longos depoimentos e histórias de vida de informantes
por meio do registro escrito. A maneira de operar podia seguir dois
caminhos: a) a entrevista entre informante e pesquisador, simplesmen­
te; b) a entrevista do informante com dois pesquisadores.
Em ambos os casos, há a observar primeiramente que o pesquisa­
dor é sempre fator de perturbação para o informante, que pode ir ao
ponto de anular a possibilidade da entrevista; quanto maior a distân­
cia social ou qualquer outro tipo de disparidade (idade, sexo), entre
pesquisadores e entrevistados, mais se corre o risco deste obstáculo.
A total inibição dos informantes desencadearia muitas vezes seu mu­
tismo, ou um palavreado tão desconexo que não chegaria a veicular
informações.
Observou-se muitas vezes que esta inibição tinha por foco o lápis
na mão do pesquisador, correndo célere sobre o papel, no afã de nada
perder do que estava sendo narrado. Procurou-se então solucionar o
problema nada escrevendo diante do entrevistado; terminada a entre-

56
vista, o pesquisador rapidamente se dirigia a um local em que pudesse
verter para o papel tudo quanto ouvira. Deste processo resultavam cer­
tamente perdas e lacunas, porém ressalvava-se a espontaneidade e o
à-vontade do informante. Uma segunda solução foi a entrevista ser exe­
cutada por dois pesquisadores a um tempo; enquanto um deles con­
versava com o entrevistado, o outro anotava o que ià sendo narrado.
Com a atenção atraída para o pesquisador que dialogava com ele, o
entrevistado esquecia-se do segundo, o qual com calma podia desem­
penhar a sua tarefa. Desta forma, resultavam depoimentos mais fiel­
mente registrados e também mais despreocupados e espontâneos.
O aperfeiçoamento dos gravadores e seu barateamento, assim co­
mo o barateamento das fitas, trouxe praticamente o abandono do re­
gistro escrito imediato. A demonstração da riqueza de detalhes e da
conservação dos dados que permitia foi largamente comprovada na dé­
cada de 50, quando Oscar Lewis publicou o livro que o celebrizou, Os
filhos de Sanchez, em que apresentava as histórias de vida dos mem­
bros desta família pobre nas malocas da Cidade do México (Lewis,
1970). No entanto, o gravador também é fonte de inibição para deter­
minados informantes que, ao contrário, podem aceitar o registro es­
crito; este, portanto, não é hoje somente relegado aos “ cadernos de
campo” , porém continua existindo para entrevistas que não seria pos­
sível obter de outra forma.
A captação de informações, depoimentos, histórias de vida por
meio do gravador representa, sem dúvida, uma ampliação do poder
de registro dos pesquisadores. Possuir, porém, a fita gravada não cons­
titui solução definitiva, nem para a guarda indefinida do material, nem
para a realização de pesquisas. A inibição do informante não fica anu­
lada; muitos deles “ temem” o gravador, titubeiam, balbuciam, e não
raro somente a partir de uma segunda tentativa o relato flui com mais
segurança. E neste caso não há possibilidade de distrair a atenção do
entrevistado, por meio de uma dupla de pesquisadores... A máquina
inibidora está sempre ali presente.
Além disso, a fita do gravador é produto perecível, que necessita
ser armazenado em determinadas condições específicas para salvaguar­
dar sua durabilidade. É verdade que o papel também é produto perecí­
vel; mas suas condições de reprodução e de armazenamento são muito
mais fáceis e menos onerosas do que as da fita gravada, embora ocupe
muito mais espaço do que esta.
Por outro lado, o manuseio do material escrito para utilização de
pesquisa é mais fácil do que o do material gravado que, se submetido
repetidas vezes à escuta, rapidamente se deteriora. Contraditoriamen-
te, a conservação da fita gravada exige que seja pouco ouvida, enquanto
sua utilização como material de pesquisa exige que seja repetidamente
ouvida... Estas circunstâncias impõem a necessidade da passagem da

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fita gravada à página escrita, tanto como o melhor meio de guardar
por longo tempo o material, quanto em relação às possibilidades de
análise em pesquisa. Por isso, à fase da gravação segue-se sempre a
fase da transcrição.
Apesar destas considerações, a técnica de gravador foi a escolhi­
da, como já se disse, para a realização da pesquisa sobre a memória
dos trabalhadores de poucos recursos em São Paulo.
Esta coleta pode seguir três rumos distintos: 1) entrevista rigoro­
samente orientada por perguntas do pesquisador, numa utilização do
diálogo, em que falam alternadamente o pesquisador e o informante,
este não tendo liberdade de conduzir a conversa, nem tendo iniciativa
de fala; 2) entrevista com roteiro, ou semi-orientada, em que o pesqui­
sador de tempos em tempos efetua uma intervenção para trazer o in­
formante aos assuntos que pretende investigar; o informante fala mais
do que o pesquisador, dispõe de certa dose de iniciativa, mas na verda­
de quem orienta todo o diálogo é o pesquisador; 3) finalmente, entre­
vista realmente livre, em que o pesquisador, depois de um breve diálo­
go inicial, limita ao máximo, realmente, suas intervenções, de tal mo­
do que a fita registre um verdadeiro monólogo do informante, ou ain­
da que a entrevista se aproxime bastante do que seria a fala do indiví­
duo consigo mesmo, o solilóquio.
Estas três formas de entrevistas, tendo características diversas,
não são adequadas às mesmas finalidades. O diálogo entre pesquisa­
dor e informante tem por objetivo a coleta de informações precisas
sobre determinado problema, por meio de perguntas e respostas efe­
tuadas de maneira direta, tanto quanto possível; o pesquisador define
sempre de antemão, em detalhe, o que está procurando, e é ele quem
conduz o jogo, donde sua posição claramente de dominação neste
relacionamento. Da precisão do conhecimento anterior que possui so­
bre o que deseja saber, dependem a acuidade e a objetividade das
perguntas. O emprego desta técnica pressupõe, portanto, que exista
já um conhecimento acumulado a respeito daquilo que se pesquisa,
sendo necessário agora determinar com rigor certos aspectos ou cer­
tos detalhes. É uma técnica essencialmente informativa a respeito de
dados específicos.
Na entrevista com roteiro, o conhecimento anterior sobre os pro­
blemas a serem resolvidos pode ser menor, ou então o pesquisador
deseja ao mesmo tempo ter certo conhecimento de como o informan­
te conduz seu discurso. Deixa-lhe por isso certo grau de liberdade,
trazendo-o novamente aos problemas todas as vezes que percebe uma
divagação para rumos totalmente diversos; trata-se, pois, de dosar
as intervenções. Por outro lado, também neste caso o pesquisador
segue um caminho pré-determinado, e suas intervenções são no senti­
do de impor este caminho ao informante. Atualmente, este tipo de

58
entrevista tem sido preferido ao diálogo, por se reconhecer a vanta­
gem de, ao mesmo tempo, colher os dados desejados com, ao que se
acredita, maior espontaneidade por parte do informante. Aqui tam­
bém a posição do pesquisador é de dominação, porém uma domina­
ção camuflada, que tende a dar ao informante a impressão de que ele
detém pelo menos alguma liberdade na condução da fala.
Na entrevista em que se registra praticamente o solilóquio do in­
formante, deixa-se a este, depois de colocado o problema em sua gene­
ralidade, o direito de tomar os rumos que preferir, de ir e vir no relato.
Não se quer que ele tenha apenas a impressão de que conduz livremen­
te sua fala, como no caso anterior; o que se pretende na verdade é que
narre livremente, pois tanto é importante o que relata quanto o ritmo
de seus pensamentos e de suas recordações. Esta é a técnica apropria­
da para a coleta de narrativas longas, com encadeamento de ações, de
acontecimentos, de circunstâncias, no tempo; também se pretende co­
nhecer de maneira profunda o modo de pensar do informante e, atra­
vés dele, sua visão do mundo.
Esta última forma de entrevista tem sido considerada a mais apro­
priada para a coleta tanto de “ histórias de vida” quanto de “ depoi­
mentos pessoais” . Para ambos, também, a entrevista com roteiro é
apropriada; porém o monólogo parece muito mais eficiente e satisfa­
tório, oferecendo resultados mais ricos, pois se capta melhor a visão
do mundo do informante. “ Histórias de vida” e “ depoimentos pes­
soais” constituem o conjunto de material que tem sido designado ulti­
mamente, em ciências sociais, como “ documentação oral” , ou “ do­
cumentação viva” .
Não se trata de procedimentos novos; antecedem de muito a exis­
tência do gravador. Mesmo no Brasil já davam lugar em 1953, a um
conjunto de reflexões de vários pesquisadores (Bastide, 1953; Morei­
ra, 1953; Pereira de Queiroz, 1953), e vinham sendo utilizados havia
tempo no exterior, principalmente pela antropologia cultural. Tiveram
um desenvolvimento rápido a partir do momento em que os gravado­
res puderam ser utilizados e largamente difundidos, facilitando gran­
demente o trabalho, e dando lugar à organização, no país, dos museus
da Imagem e do Som.
Sem dúvida a obra de Oscar Lewis já citada, que reunia um con­
junto de histórias de vida colhidas numa mesma família mexicana, mar­
cou o início de nova era, com o emprego então do gravador (Lewis,
1970). Definiu-se nesse momento mais claramente o que seria uma “ his­
tória de vida” , isto é, a longa reconstituição e o relato do passado efe­
tuado pelo próprio indivíduo, desde o ponto mais longínquo de que
se recorda, até os dias atuais. Relato autobiográfico, mas do qual a
escrita (que define a autobiografia) está ausente, substituída pela pala­
vra ditada à máquina, ou pela palavra ditada a alguém.

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A “ história de vida” será, portanto, tanto mais longa quanto mais
idoso for o informante e, desta maneira, exige grande seqüência de ses­
sões de gravação. Mesmo no caso de informantes jovens, é trabalho
que requer tempo para a narração integral ser registrada, uma vez que
informante e pesquisador não devem ultrapassar certo período de du­
ração de conversa, devido ao cansaço; duas horas parece ser o máxi­
mo, ou por volta disso, sendo que também as entrevistas devem ser
espaçadas na semana para se manter o ritmo de interesse por parte do
informante. A coleta de histórias de vida, é, portanto, longa, sendo
necessário maior período para esta fase da pesquisa do que para ou­
tras, nos projetos em que é empregada, podendo levar inclusive um
ano ou mais. Por isso, os autores que lidaram com histórias de vida
se concentraram muitas vezes numa apenas, ou numa quantidade mui­
to diminuta, reproduzindo-as em seguida integralmente e fazendo con­
vergir sua análise exclusivamente sobre elas. A passagem delas para
a datilografia é também longa e trabalhosa, dado o volume de infor­
mações, como longa e trabalhosa é a análise posterior. É pesquisa que
absorve a atenção do cientista durante anos.
Os “ depoimentos pessoais” se concentram ou sobre um lapso de
tempo mais reduzido (na pesquisa que serviu de base a estas reflexões,
o período se estendia de 1920 a 1937), ou sobre uma série de aconteci­
mentos marcantes que permita aprofundar informações e aumentar os
detalhes a respeito de algo que foi bastante delimitado (pedir, por exem­
plo, o relato de um político antigo sobre os eventos de 1930). Não abran­
gendo a totalidade da existência do informante, os depoimentos pes­
soais podem ser mais numerosos, multiplicando-se a quantidade de in­
formações. Sendo numerosos, e desde que colhidos sob a forma de
entrevistas-monólogos, também permitem, além de um conhecimento
das mentalidades dos informantes, uma comparação entre eles segun­
do sexo, idade, instrução, etc., a fim de se destacarem convergências
e divergências. Objetivos que dificilmente podem ser alcançados nas
histórias de vida, devido à sua pequena quantidade.
Numerosos, os depoimentos pessoais permitem testar a veracida­
de dos fatos relembrados, o que constitui importante tarefa do histo­
riador. Mas, além deste aspecto, e talvez mais importante ainda, cum­
pre verificar se informantes diversos têm os mesmos comportamentos,
as mesmas maneiras de ser e de pensar e, caso contrário, em que se
distinguem. Noutras palavras, trata-se de tentar descobrir por onde pas­
sam linhas coletivas de diferenciação — separando, por exemplo, a co­
letividade dos homens da coletividade das mulheres; a coletividade dos
que fizeram o primário, dos que não o fizeram; a coletividade dos que
se criaram na cidade, a coletividade dos que se criaram no meio rural etc.
Quer se trate de histórias de vida, quer se trate de depoimentos
pessoais, a gravação permite manter ao máximo as próprias expres­

60
sões dos informantes e a sua maneira de encadear os fatos; às duas
formas de relato é adequada a expressão “ técnica de liberdade” , co­
mo a chamou o prof. Roger Bastide (Bastide, 1953, p. 7). As interven­
ções do pesquisador só ocorrem quando absolutamente necessárias; por
exemplo, quando o informante descreve uma passagem peculiar de sua
vida, pode-se pedir maior precisão sobre algum detalhe. Sobretudo,
não impedir que o informante vá e volte na narrativa como desejar;
pois esta aparente desordem é muito mais reveladora do que quando
se exigem seqüências marcadas e nítidas.
A diferença entre o diálogo (que é um questionário falado,
cabendo-lhe portanto as mesmas observações, praticamente) e o mo­
nólogo é patente. Os questionários — forma extrema do diálogo —
são compostos de séries de questões estandardizadas, efetuadas da mes­
ma maneira a todos os informantes, quaisquer que eles sejam; estão
disciplinados segundo temas que correspondem aos problemas que o
pesquisador visa esclarecer, de tal maneira que correspondem já ao es­
quema do que será o relato final do pesquisador. Muitas vezes, o pró­
prio âmbito das respostas é estritamente delimitado por este. Tudo de­
corre, pois, das preocupações e da formação do pesquisador, nada tendo
a ver com os mecanismos de raciocínios próprios do informante; nou­
tras palavras, este é compelido a responder segundo uma ordem que
não somente lhe é exterior, mas, e principalmente, estranha.
Todo o material assim colhido — inclusive as respostas às perguntas
abertas — se torna portanto muito menos rico, muito menos específi­
co aos informantes, porém muito mais adequado ao que é buscado pe­
lo pesquisador. Pode-se perguntar também, levantando uma questão
de relevo, se o pesquisador estaria mesmo atingindo o real visto pelo
“ outro” , ou se, ao contrário, não estaria captando um conhecimento
que ele mesmo inconscientemente construiu, no quadro de uma teoria
ou de teorias que corresponderíam à sua própria maneira de pensar.
Noutras palavras, por meio de seu questionário escrito, ou de suas per­
guntas no diálogo, não estaria o pesquisador arquitetando um objeto
que correspondesse aos seus interesses? Mesmo quando se considera
que, do ponto de vista cientifico, um objeto de estudo é sempre especi­
ficamente construído pela ciência, a pergunta atrás não perde o seu
interesse, principalmente quando o informante — pessoa humana —
é o repositório dos dados. Nesse caso se estaria levantando a dúvida
de que o conhecimento ou as informações alcançadas fossem plena­
mente autênticas, uma vez que toda a sua conformação teria sido es­
truturada pelo próprio pesquisador.
Por sua vez, as histórias de vida e os depoimentos pessoais, livre­
mente narrados pelos informantes, comporiam objetos cuja constru­
ção releva deles mesmos, depois do impulso inicial dado pelo pesqui­
sador; consubstanciariam suas representações, a sua visão. Mesmo se

61
tratando de dados de caráter fixo e estável, exteriores a eles (como a
revolução de 24, ou a revolução de 30, no projeto de pesquisa que foi
objeto destas reflexões), captar-se-iam não apenas estes dados em si,
porém também o conhecimento, a percepção que os informantes deles
teriam. Talvez neste ponto esteja a diferença entre o procedimento de
questionário e de diálogo, de um lado, e o procedimento das histórias
de vida e dos depoimentos pessoais, de outro: o pesquisador busca cap­
tar os dados, no primeiro caso, como se tivessem uma existência em
si, independente tanto dele mesmo quanto do informante, e por isso
procura formular todas as suas perguntas numa forma direta e percu-
tora que exclua as divagações; enquanto no segundo caso as divaga-
ções se tornam importantes dados de pesquisa também. Porém, a crí­
tica vai mais longe: ao procurar atingir os “ dados em si mesmos” , atra­
vés do questionário e do diálogo, não dará o pesquisador a este a for­
ma que já lhes atribuía no seu próprio pensamento? A dúvida poderia
ser resolvida através do cotejo destas informações com outros docu­
mentos obtidos das mais diversas maneiras.
No caso da pesquisa que motivou estes comentários, tratava-se de
conhecer a vida e o universo de comportamentos e pensamentos dos
informantes num período de 17 anos, período para o qual não haviam
sido delineados temas precisos. Por isso o procedimento dos “ depoi­
mentos pessoais” pareceu mais adequado ao que se buscava alcançar,
desde que mantida, tanto quanto possível, a prática do monólogo por
parte do informante. A utilização do condicional, ao se redigir esta
frase, prendeu-se ao fato de que sempre se manteve a atenção alerta
a fim de verificar se realmente esta seria a técnica mais eficiente e mais
coerente com o que se pretendia alcançar. Pressupunha também que
no decorrer do trabalho, e no seu final, se fariam balanços do desem­
penho técnico, para se expressar os aspectos positivos e negativos, pa­
ra sugerir as melhorias que se poderia trazer a ele.
À gravação de depoimentos pessoais, que utilizava assim a “ téc­
nica da liberdade” , foi acrescentada uma complementação sob duas
formas principais: a ficha do informante e o caderno de campo. Trata-se
de técnicas complementares, que constituem elemento imprescindível
em qualquer pesquisa; e o termo “ complementar” de forma alguma
significa secundário, ou algo que possa ser suprimido sem dano para
a mesma. Ao contrário, “ complementar” deve ser entendido no senti­
do essencial do termo: algo que se deve acrescentar a uma coisa in­
completa para que ela atinja a sua totalidade, para que a ela nada fal­
te. É esta a real importância das duas técnicas apontadas.
A ficha de informante encerra os dados pessoais deste: idade, se­
xo, estado civil, cor, nacionalidade, naturalidade, nível de instrução,
religião, ocupação atual, ocupação já exercida. Registra, portanto, da­
dos que são imprescindíveis para a análise correta das entrevistas. Po-

62
deria talvez ser chamada de “ ficha de identificação” , termo mais abran­
gente e que engloba também tudo quanto se deve saber de um docu­
mento, quando a pesquisa é com este material e não com material hu­
mano; pois é preciso sempre dizer com todos os detalhes qual a fonte
em que se colheu o material, para que possa ser procurado e utilizado
por outros pesquisadores, além de que deve ser também verificada sua
existência e seu valor pelos demais. A “ ficha de identificação” regis­
tra, portanto, dados objetivos, isto é, que não dependem das opiniões
e modos de pensar dos pesquisadores e dos informantes.
Implicitamente se admite que tais informações podem esclarecer
algo a respeito do que se procura saber. Também está implícito o pres­
suposto de que toda coleção de indivíduos, seja ela qual for, é por na­
tureza internamente diferenciada, compondo “ agregados” ; cumpre ve­
rificar até que ponto estas diferenciações pesam sobre seu comporta­
mento e opiniões, estabelecendo, ao nível de comportamentos e de opi­
niões, “ agregados” correspondentes aos “ agregados” de sexo, de ida­
de, de instrução, etc. Noutras palavras, a ficha de informante não é
mero depósito de informações individuais; ela tem um sentido coletivo
dentro da pesquisa, de onde sua importância. Não deve ser tomada,
ou melhor, os dados que encerra não devem ser tomados como evidên­
cias já esclarecidas; colocam sempre pontos de interrogação: “ Será que
homens e mulheres da mesma camada social têm as mesmas opiniões?
Será que a idade é um limite válido entre indivíduos de idades diferen­
tes?” É possível que as respostas sejam negativas, e que as determina­
ções de comportamentos e opiniões passem por outras delimitações,
que é sempre finalidade da pesquisa descobrir; ou é possível que a vali­
dade das diferenciações seja corroborada.
Quando se trata de pesquisas por questionários, esta ficha consti­
tui geralmente o cabeçalho dos mesmos; no entanto, ela tende muitas
vezes a ser esquecida ou considerada sem importância nas entrevistas,
ou então a ser estabelecida muito sumariamente. É para a sua condi­
ção de grande relevância que se quer chamar a atenção. Mesmo que
na pesquisa em curso ela não seja plenamente utilizada, constitui um
armazenamento de dados para outras pesquisas, além de permitir a ou­
tros pesquisadores uma identificação correta do material. Note-se ain­
da que ela é sempre, em si mesma, um questionário; isto é, um conjun­
to de perguntas diretas e muitas vezes fechadas que se dirige ao infor­
mante. E que questionários semelhantes devem ser sempre construídos
também para documentos escritos, quando se trata de pesquisa efe­
tuada com esta documentação, caso em que a preocupação principal
deve ser a de identificação e localização precisas.
No trabalho que serve de base para estas reflexões, figuraram tam­
bém na ficha as condições econômicas dos informantes, embora estas
constituíssem os limites gerais do “ agregado” a ser inquirido (“ traba­

63
lhadores de baixos recursos” ), o que pressupunha a semelhança destas
condições. É que, no caso em pauta, a definição dos “ baixos recur­
sos” passava tanto pela ocupação presente quanto pelas ocupações pas­
sadas, que podiam, ambas, agir como fatores de recortes da coletivi­
dade pesquisada. Justifica-se a pergunta referente à ocupação atual por
dois motivos: primeiramente, porque é indispensável conhecer a con­
dição do informante no momento em que a entrevista é efetuada, pois
toda a sua vida presente estará influenciando as recordações que vai
buscar ao passado: lembrar é uma atividade do presente, diz muito jus­
tamente Ecléa Bosi (1979, p. 17). Em segundo lugar, porque pode re­
velar rapidamente a evolução ou não das posições sócio-econômicas
do informante na escala social, do momento recordado até hoje.
O terceiro instrumento de coleta empregado na pesquisa em foco
foi o “ caderno de campo” , que muitos pesquisadores chamam de “ diá­
rio de pesquisa” . Consta de anotações efetuadas pelo pesquisador, re­
gistrando as condições em que foi feita a entrevista (onde, quando,
quem, o que, como) e contendo todas as observações e reflexões que
ocorreram ao pesquisador durante sua execução. Se várias entrevistas
foram efetuadas com a mesma pessoa, haverá registros referentes a cada
uma delas no caderno de campo, que é efetivamente um diário; pois,
ainda com a mesma pessoa, sempre se modificam, de uma entrevista
a outra, os contextos em que ocorrem; há sempre algo mais a registrar
referente à personalidade e às características do entrevistado. As ob­
servações do caderno de campo esclarecem mudanças perceptíveis das
entrevistas, e atribuíveis às condições específicas em que se realizaram;
também contêm mais detalhes descritivos e pessoais acerca do infor­
mante; encerram as particularidades do relacionamento entre pesqui­
sador e informante; e contêm as observações a respeito da aplicação
da técnica, todas as vezes que esta foi posta em prática, suas facilida­
des e dificuldades, seus aspectos positivos, satisfatórios, negativos. Seja
com referência às características do informante, às condições das en­
trevistas, às relações entre informante e pesquisador, às impressões e
emoções de ambos, aos detalhes da aplicação técnica, seu conteúdo ga­
nha outro significado e importância quando, ultrapassando a simples
descrição, se reveste de um significado crítico. Revela notar ainda que,
muitas vezes, sob uma aparente descrição singela do caderno de cam­
po, a crítica (em seu sentido de colocar em dúvida as afirmações apa­
rentemente irrefutáveis) existe implícita; a segunda, a terceira leituras
do caderno de campo, juntamente com a análise do material, fazem
então com que ela aflore, suscitando um aprofundamento das refle­
xões.
É neste caráter que reside o maior valor do caderno de campo,
pois fornece bases para reflexão, quer sobre o material, quer sobre o
relacionamento informante-pesquisador, quer sobre as técnicas utiliza­

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das, reformulando-as quando necessário, buscando descobrir sua am­
plitude e suas limitações. Muito empregado pela antropologia, o ca­
derno de campo foi negligenciado, ou mesmo omitido, pelos sociólo­
gos como algo de somenos; principalmente os utilizadores de questio­
nários regra geral o desdenham, achando que está muito preso ao sub-
jetivismo do pesquisador. Na verdade, sua falta significa uma concen­
tração da atenção na técnica mecânica da coleta e de interpretação dos
dados, como se estes fossem os únicos pontos merecedores de interes­
se. Suprime-se, assim, toda a reflexão que existiu no decurso da cole­
ta, conseqüência de todas as situações que podem tê-la influenciado,
como também de tudo quanto ocorreu durante a análise subseqüente
dos dados; as peculiaridades de cada momento da pesquisa, os aspec­
tos proveitosos, o interesse ou as inutilidades de certos passos, os deta­
lhes do relacionamento do pesquisador com o objeto pesquisado, dei­
xam por assim dizer de existir. Implicitamente são considerados “ os­
sos do ofício” , que se tem de suportar porque dele fazem parte intrín­
seca, e, sendo “ naturais” , não merecem maior atenção. É fácil depreen­
der o que este desconhecimento do valor do caderno de campo para
o sociólogo tem trazido de nocivo ao aperfeiçoamento das pesquisas,
e de fator de superficialidade para estas. Sua utilização deve então ser
exigida, seja qual for a técnica empregada na coleta, e mesmo que se
trate de pesquisas documentais.
O número de entrevistas por pesquisador, no caso de depoimen­
tos pessoais, é calculado em geral de acordo com o prazo alocado à
realização da pesquisa e o tempo de que dispõem os pesquisadores pa­
ra efetuar suas tarefas e levá-las a termo; pois raramente o pesquisa­
dor em ciências sociais está unicamente encarregado da pesquisa, re­
gra geral divide seu tempo com outras atividades de sua profissão, quan­
do é professor, por exemplo; ou quando é funcionário; ou quando exer­
ce um outro ofício. No caso em foco, os recursos financeiros obtidos
determinaram o prazo do trabalho, que deveria ser de um ano, prorro­
gável somente por mais alguns meses. Tal período de tempo não per­
mitiría mais que três, quando muito quatro depoimentos pessoais para
cada pesquisadora, uma vez que estas só poderíam dedicar meio perío­
do à tarefa: os recursos disponíveis não admitiam que fossem remune­
radas por tempo integral. O cálculo de quantidade de entrevistas é, as­
sim, fortemente determinado pelo orçamento, isto é, por um fator ex­
terior à pesquisa.
No entanto, como se trata de depoimentos pessoais que são rela­
tos mais ou menos longos, o número de três ou quatro por pesquisa­
dora parece suficiente para serem delineadas as primeiras linhas gerais
relativas ao problema. Como se viu, um dos objetivos do trabalho era
preencher uma lacuna de dados, através da memória dos trabalhado­
res de poucos recursos na cidade de São Paulo. Realmente, a quan­

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tidade de depoimentos a serem levantados não podería satisfatoriamente
dar conta dessa finalidade. Tratando-se, porém, de ter apenas um pri­
meiro bloco de informações, o número parecia suficiente; a partir do
que fosse descoberto, tornar-se-ia possível planejar pesquisas futuras,
que descessem a detalhes mais minuciosos e que ampliassem os conhe­
cimentos.
A quantidade de entrevistas é sem dúvida pequena, diante da com­
plexidade dos objetivos. É inútil, porém, pretender executar algo que
ultrapasse as possibilidades materiais e práticas da empresa. Coletar
entrevistas em quantidade, armazená-las, não leva a nenhum aumento
de conhecimentos, a não ser relativamente à utilização mecânica da téc­
nica de gravador; continuar-se-á desconhecendo tudo a respeito da rea­
lidade. Por outro lado, o escopo da pesquisa era também efetuar um
treinamento das pesquisadoras, que se pretendia o mais completo pos­
sível. Deveríam elas, portanto, efetuar a coleta de dados, analisá-los,
chegar à síntese, formular conclusões, estas sob a forma de interpreta­
ção e levantamento de novos problemas. Tal resultado só seria possí­
vel delimitando-se a quantidade de entrevistas por pesquisadora.
Além disso, pode-se também arguir com Émile Durkheim que
“ uma observação só, mas bem feita” , ou “ uma única experiência bem
conduzida” , leva a conhecimentos válidos; não é a quantidade de fa­
tos registrados que conduz a conhecimentos novos, e sim a análise cui­
dadosa de “ fatos decisivos ou cruciais” (Durkheim, 1963, p. 74-75).
O inventário dos fatos é algo de inesgotável, diz ainda este autor; é
sempre necessário efetuar cortes na realidade e, para tal, escolher cri­
térios que, na quantidade infinita dos dados, estabeleçam pontos de
referência eficazes, permitindo balisar as observações.
Os critérios foram, portanto, de duas ordens: uma, referente à fi­
nalidade da pesquisa, que era o critério científico interno a ela; outra,
referente aos recursos financeiros e ao tempo de que se dispunha, e >
que eram critérios de ordem prática, exteriores à pesquisa. Uns e ou­
tros tiveram por base o pré-conhecimento da vida na cidade de São
Paulo, através da experiência pessoal das pesquisadoras, e através da
documentação levantada previamente à formulação da pesquisa. To­
das estas atividades anteriores, todas estas discussões, configuraram
o que em certas pesquisas tem sido denominado “ experiência piloto” ,
ou “ pesquisa piloto” : uma primeira tomada de contato com os pro­
blemas que se quer pesquisar, para verificar sua exeqüibilidade e sua
adequação ao que se deseja conhecer.
Restava, então, iniciar o trabalho. Este constituiría o teste sobre
a validade ou não do que havia sido proposto e, no caso de resposta
positiva, sobre as vantagens e limitações das tarefas empreendidas a
fim de obter novos conhecimentos. Desvendar-se-ia então se as linhas
de diferenciação da coletividade (sexo, ocupação, etc.) haviam sido

66
úteis, ou, ao contrário, se seriam de importância muito menor do que
se supunha. Verificada esta última alternativa, o trabalho efetuado não
quedaria invalidado; pelo contrário, serviría para corrigir as idéias fei­
tas de que determinados fatores são atuantes em todas as camadas so­
ciais. Um resultado negativo faria ressaltar o que havia sido indevida­
mente superestimado, e encaminharia a atenção dos pesquisadores pa­
ra outros fatores que haviam sido negligenciados quando na verdade
eram atuantes. Toda pesquisa bem feita, isto é, que tenha sido acom­
panhada pela reflexão crítica em todos os seus passos, contribui sem­
pre para a expansão do conhecimento, seja pela descoberta, seja pela
correção de falhas e erros.

OBRAS CITADAS

Bastide, Roger, “ Introdução a dois estudos sobre a técnica das histórias de vida.” So­
ciologia, vol. XV, n? 1, São Paulo, março de 1953.
Bosi, Ecléa, Memória e sociedade: lembrança de velhos. São Paulo, T.A. Queiroz, 1979.
Durkheim, Émile, A s regras do método sociológico. São Paulo, Cia. Ed. Nacional, 3?
ed„ 1963.
Moreira, Renato Jardim, “A história de vida na pesquisa sociológica.” Sociologia, vol.
XV, n? 1, São Paulo, março de 1953.
Lewis, Oscar, Os filhos de Sanchez. Lisboa, Moraes Ed., 1970.
Pereira de Queiroz, Maria Isaura, “ Histórias de vida e depoimentos pessoais.” Sociolo­
gia, vol. XV, n? 1, São Paulo, março de 1953.

67
V — Sistematização do referencial
da pesquisa

Terminadas as reflexões a respeito da proposição do projeto, acerca


da escolha dos informantes, da decisão e do significado das técnicas,
é indispensável um apanhado retrospectivo do que foi efetuado, a fim
de, numa última discussão da equipe, serem delineadas com mais se­
gurança as linhas mestras de orientação do trabalho, tentando pene­
trar mais adiante no nível teórico implícito, o qual constitui o quadro
de referências mais geral, base dos passos para a obtenção do que se
deseja conhecer. A sistematização é, assim, um resumo final, em que
são ressaltados os pontos de relevo para a definição do projeto.
Na pesquisa que serviu de base a todas estas observações, preten­
de-se em primeiro lugar conhecer os comportamentos, opiniões, ma­
neiras de ser e de pensar dos trabalhadores de baixos recursos da cida­
de de São Paulo, entre 1920 e 1937, segundo o sexo, ocupações, nível
de instrução, etc., considerando que tais trabalhadores têm sido até
agora “ constantes silenciosos” ; e isso porque a documentação existente,
escrita ou não, sobre esse período da vida urbana paulistana, se refere
às camadas média e alta, predominantemente.
Subjacente a esta formulação, está a noção de que a posição dos
indivíduos na hierarquia sócio-econômica urbana influencia seus mo­
dos de ser e de pensar, levando-os a exprimi-los de forma específica.
Por isso, o conhecimento do modo de pensar de outras camadas pode
nada significar em relação à camada de baixos recursos. Por outro la­
do, esta noção não é tomada como um postulado, ou como uma afir­
mação; constitui um aspecto a ser averiguado através da pesquisa.
Em segundo lugar, admite-se que a camada de baixos recursos,
a ser focalizada na pesquisa, não seria monolítica, embora homoge­
neizada em muitos de seus comportamentos pela semelhança das limi­
tações econômicas. Estas limitações habitualmente compõem uma con­
dição de similitude para os indivíduos inseridos numa mesma camada
sócio-econômica, cuja existência é necessário averiguar no caso em pau­
ta, verificando até onde vai tal homogeneização. Buscar-se-á, pois, no
interior da camada de baixos recursos, se há linhas de diferenciação
segundo o sexo, as ocupações, o nível de instrução, etc., ou se, ao con­
trário, apesar destas diferenciações, os modos de agir e de pensar são
convergentes. É através deste tipo de indagação que se poderá talvez

68
detectar pontos de oposição, de contradição, até mesmo de conflito
no interior dessa camada, além das semelhanças e harmonizações.
Em terceiro lugar, encara-se a história de vida ou o depoimento
pessoal como um “ fato social total” , tal como o definiu Marcei Mauss
(1966, p. 274). Isto é, um fato que apresenta, em síntese, o estado em
que se encontra um grupo, uma camada ou mesmo uma sociedade, fa­
cilitando por um lado a abordagem de seus diversos aspectos — estru­
turais, de sua dinâmica, da sincronia e da diacronia, etc. — e, por ou­
tro lado, a apreensão dos aspectos psicossociais — atitudes, opiniões,
aspirações — dos indivíduos que os experimentam. Noutras palavras,
o testemunho dos informantes de poucos recursos reflete os aspectos
mais importantes da sociedade global em que estão inseridos.
A delimitação de um período de tempo bem determinado e relati­
vamente curto — 1920-1937 — mostra que o ponto de vista adotado
na pesquisa foi o sincrônico: trata-se de investigar comportamentos e
modos de ser de trabalhadores de baixos recursos, pertencentes, por­
tanto, a uma mesma camada social de uma mesma sociedade numa
mesma época; o período curto não permitiría uma clara abordagem
diacrônica, isto é, uma abordagem através do tempo, porém este é tam­
bém um ponto a ser investigado. Isto é, acredita-se que devido ao es­
paço de tempo ser curto, a abordagem ressaltará como sincrônica, e
assim por enquanto é ela caracterizada; porém o resultado final deve­
ria mostrar se tal realmente ocorreu.
Sincronia ou diacronia seriam, neste caso, porém, apenas uma pers­
pectiva de apreensão da realidade, não importando em absoluto em
nenhum elemento explicativo ou de interpretação. Pois, de acordo com
a proposição inicial do projeto atrás apresentada, a explicação dos com­
portamentos e modos de ser e pensar revelados através desta pesquisa,
em parte estaria ligada à primeira observação aqui efetuada, sobre a
posição dos informantes na hierarquia sócio-econômica da cidade de
São Paulo; em parte estaria ligada às circunstâncias históricas do mo­
mento estudado, tanto específicas da cidade de São Paulo, quanto es­
pecíficas dos diversos grupos e camadas nela existentes; em parte se
vinculariam às diferenciações internas da própria camada dos traba­
lhadores de baixos recursos. Condições historicamente dadas, que se
inscrevem no inter-relacionamento das camadas sócio-econômicas de
uma sociedade, ou nas suas diferenciações internas, poderíam ser fun­
damentais na orientação das interpretações, e não simplesmente o fato
de ocorrerem no mesmo período de tempo — isto é, o fato de serem
sincrônicas. Porém, novamente se observa que este é um ponto a ser
investigado; embora admitindo que a sincronia não seria neste caso ex­
plicativa, não se exclui a possibilidade de ela se apresentar como tal,
ao contrário do que seria de esperar. Noutras palavras, será que algu­
mas vezes um conjunto de circunstâncias presentes num momento da­

69
do não se mostrará com mais força explicativa do que o movimento
da história? É o que precisa ser esclarecido.
É este, pois, o quadro teórico geral dentro do qual se desenvolve­
rá a pesquisa que serviu de fundamento aos comentários desta obra.
Sua explicitação ao final, depois de tomadas todas as decisões cabíveis
antes do início da pesquisa, evidencia que não se trata de um conjunto
de princípios axiomáticos ou de postulados, ou de algo evidente por
si mesmo, que foi proposto anteriormente ao projeto de pesquisa, pai­
rando sobre ela do exterior, e a partir do qual se deduzisse logicamente
o problema a ser esclarecido. Todo o conteúdo teórico do pensamento
dos pesquisadores é realmente exterior e anterior à proposição de qual­
quer pesquisa; ele compõe as condições sob as quais os pesquisadores
podem formular o projeto de pesquisa, e por isso constitui sua base
necessária. É porque já foi exercitado na reflexão teórica de determi­
nada disciplina que o pesquisador se capacita a compor um projeto
de pesquisa.
No entanto, não é porque são pontos de partida que tais contex­
tos deveríam adquirir força de axiomas, isto é, de algo que nem pode
nem necessita ser provado, de algo que, pela sua evidência, é univer­
sal. A utilização do contexto teórico não está, portanto, automatica­
mente legitimada pela sua necessidade; pelo contrário, também a seu
respeito se exerce a dúvida, que, explicitada, permite ir mais longe nas
interpretações. Eis porque se considerou a própria condição sincrôni-
ca atrás referida como mais um problema a ser elucidado.
Explicando melhor: o quadro teórico estava presente desde o iní­
cio; existia como parte do acervo de saber que a equipe adquirira du­
rante os anos de sua formação universitária e em suas experiências de
trabalho. Porém, não foram suas proposições que compuseram o con­
teúdo das discussões desde que a equipe decidiu efetuar a pesquisa, e
sim as condições específicas desta, em seus múltiplos aspectos. À me­
dida que estes aspectos emergiam do limbo, iam as reflexões teóricas
se adensando relativamente a este ou aquele ponto, suscitando novas
discussões diretamente orientadas para o esclarecimento dos proble­
mas que surgiam. Toda a reflexão teórica explícita foi, portanto, con­
comitante à construção do projeto, e foi orientada por esta; teve por
função conscientizar as pesquisadoras da teoria implícita, adormecida
no interior do seu próprio saber, e que a execução do trabalho, envol­
vendo determinadas questões, ia despertando. Sistematizando o pro­
jeto, procurou-sé, ao fazer a sinopse dos seus pontos principais, des­
vendar quais os princípios implícitos que tinham acompanhado ou ti­
nham sido suscitados pelo desenrolar do raciocínio.
Como se vê, um outro princípio teórico surge aqui: a noção de
que a direção tomada pelo raciocínio deveria estar sempre intimamen­
te ligada ao objeto de análise, tal direção não se definindo independen­

70
temente, ou previamente, à definição do problema sobre o qual se exer­
ce; noutras palavras, não se acredita que esta direção seja independen­
te, ou possa ser definida de maneira independente, do problema a ser
investigado. O quadro teórico de uma pesquisa não constitui, assim,
algo preliminar e distinto daquilo a que se aplica, e portanto só pode
ser bem compreendido e bem evidenciado ao longo da discussão do
problema, isto é, do objeto direto da pesquisa.
O quadro teórico da pesquisa em pauta não foi, pois, formulado
previamente para, em seguida, servir de programa à composição de uma
série de operações, da qual a primeira seria a formulação do proble­
ma. Se previamente estabelecido, o problema e as operações surgiríam
como deduções a partir do quadro teórico; só seriam aventados depois
de afirmados os princípios constantes do quadro teórico. Na maneira
de agir aqui exposta, ao contrário, o quadro teórico é um ingrediente
indispensável, como ingrediente indispensável é também toda a expe­
riência de vida e de trabalho das pesquisadoras; todo o conhecimento
específico sobre a existência real no período de 1920 a 1937, e os acon­
tecimentos da vida urbana da cidade de São Paulo, assim como a vi­
vência dos informantes. Todos estes ingredientes concorrem igualmente
para a formulação do projeto de pesquisa. Todos eles compõem os pro­
blemas que se deseja esclarecer.
Porém, na proposição destes problemas e no desvendamento de
suas implicações, todos eles caminham juntos. O conhecer, que é ação
e portanto práxis, vai exigindo certas definições a respeito de seu obje­
to; e, plenamente definido este, é possível então buscar a uma profun­
didade maior os delineamentos das linhas gerais que foram seguidas
ao se desenvolver a ação de pensar, formulando-as em palavras e con­
densando-as em sínteses mais e mais abstratas. Eis porque, depois do
detalhamento do projeto, o seu fecho deve ser a sistematização do re­
ferencial teórico.
Estas reflexões denunciam as relações que se admite existir entre
a teoria e a práxis: sem esta, toda teoria é um ingrediente morto que
nada consegue criar; é a práxis, com sua vitalidade, que “ anima” a
teoria no sentido essencial do termo, é a práxis que é criadora e trans­
formadora. Tal admissão se espelha na própria escolha do problema
de pesquisa: buscar, através da memória individual, como seria a vida
de uma camada inferior na cidade de São Paulo do passado; a memó­
ria individual seria como que a abstração do que os indivíduos real­
mente experimentaram e vivenciaram no passado, e constituiría sua
“ teoria” individual sobre a cidade de São Paulo no período estudado,
que, em suas convergências e divergências, revelaria pelo menos algu­
mas das características da coletividade a que pertenciam.

71
OBRA CITADA

Mauss, Marcei, Sociologie et Anthropologie. Paris, Presses Universitaires de France, 1950.

72
VI — Técnica de gravador e registro
da informação viva

As técnicas de registro em ciências sociais tiveram considerável


avanço neste século, por várias razões, entre as quais o aparecimento
de uma multiplicidade de invenções mecânicas, tais como a fotogra­
fia, o cinema, o gravador (continuador do fonógrafo), a televisão, com
o videocassete, que permitem um contacto muito estreito do pesquisa­
dor com o material, ou com os informantes, sem passar pelo interme­
diário muitas vezes incômodo que é a escrita. No entanto, a reflexão
a respeito de sua utilização, que efetue um balanço das vantagens e
perigos, praticamente não foi realizada ainda. Apesar disso, seu em­
prego e o armazenamento dos dados resultantes fez surgir novas insti­
tuições como as “ cinematecas” , os “ museus da imagem e do som” ,
os “ arquivos orais” , que encerram ora o material registrado por vá­
rios daqueles novos mecanismos, ora o material colhido por um deles
apenas. As técnicas que lidam com o relato oral foram as que mais
atraíram a reflexão de especialista, havendo já alguns estudos sobre
elas; as que dizem respeito ao registro da imagem não foram ainda tra­
balhadas praticamente, embora o documentário fotográfico figure co­
mo a mais antiga das técnicas a que estamos nos referindo, e o docu­
mentário cinematográfico tenha conhecido sempre grande voga.
Uma das conseqüências interessantes que teve nas ciências sociais
a utilização de tais técnicas — notadamente a da gravação em fitas —
foi o relevo adquirido pelas histórias de vida e depoimentos pessoais,
isto é, pelas investigações ligadas à memória individual, compondo o
que na França está sendo chamado de “ arquivos orais” , e que tem re­
cebido também noutros países o nome de “ informação viva” . Seu em­
prego chamou a atenção dos pesquisadores quando da publicação dos
célebres estudos de Oscar Lewis sobre a família Sanchez; porém fica­
ram mais ou menos esquecidas as “ histórias de vida” , para desponta­
rem agora com renovado interesse, devendo-se salientar entre nós o
livro pioneiro e modelar de Ecléa Bosi, Memória e sociedade: lembran­
ças de velhos.
Preenchimento de questionários os mais diversos; entrevistas di­
tadas ao pesquisador e por isso mesmo forçosamente limitadas, na
quantidade e qualidade dos dados; documentos escritos, — tinham
constituído até há pouco tempo as técnicas preferenciais de registro

73
de dados em ciências sociais, e prosseguem ainda hoje como as mais
importantes. Os questionários, principalmente, tomaram um relevo sem
par, não somente depois da invenção dos computadores, porém desde
os tempos pioneiros de Le Play; compostos de indagações diretas, li­
mitavam as respostas ao que parecia essencial, definiam com aparente
precisão a coleta a ser efetuada, e já indicavam o roteiro para a con­
fecção de relatórios.
Além dos dados apanhados por essas formas de registro, utilizam
os pesquisadores de ciências sociais toda espécie de documentos escri­
tos; assim, além de abarcar vasta parte da realidade presente, avan­
çam pelo passado afora, tentando conhecê-lo através de incursões pe­
las mais diferentes fontes. Todavia, estes repertórios escritos de dados
não provêm da coleta de um pesquisador que diretamente lidasse com
eles; foram obtidos por razões que muitas vezes nada tinham a ver com
suas preocupações específicas. Tais são os recenseamentos efetuados
com os mais diversos objetivos; os registros de cartórios ou os regis­
tros paroquiais; os arquivos da mais variada espécie, inclusive os de
polícia. Resultantes de objetivos pragmáticos e imediatos, vão servir,
num período recuado ou não do tempo, como material para o estudo
de especialistas, — historiadores, antropólogos, sociólogos. Somente
uma parte da documentação em ciências sociais, representada pelo re­
sultado de aplicação de questionários, ou realização de entrevistas di­
rigidas, tem sua obtenção direta e efetivamente orientada pelos pes­
quisadores, visando o esclarecimento de um problema preciso. Quan­
to mais antigo o documento, menos corresponde, na finalidade que
norteou sua composição, aos objetivos diretamente perseguidos pelo
pesquisador que o analisa.
Já a técnica de histórias de vida e depoimentos pessoais que utili­
za o gravador, não abarca um domínio muito extenso no tempo; cir-
cunscreve-se ao espaço de investigação representado unicamente pelo
presente e pelo passado imediato, isto é, pelo período que possa ser
armazenado na memória dos indivíduos, dependendo da conservação
das faculdades intelectuais pelos mais velhos. Porém seu emprego, no
que diz respeito ao tempo presente, constitui uma abertura às investi­
gações de todos os grupos e camadas sociais pouco atingidos pelos re­
gistros escritos, como os grupos indígenas, o campesinato, as camadas
inferiores urbanas. Não esquecer também que, mesmo as camadas so­
ciais que manuseiam com freqüência a escrita, encerram na memória
conhecimentos e lembranças que se perdem no lufa-lufa cotidiano, e
que, uma vez gravados, enriquecem o acervo de documentos do pre­
sente.
A grande diferença entre o registro da informação viva e o regis­
tro através da escrita, que realça a observação que acaba de ser feita,
está em que a informação viva provém diretamente do informante

74
e de suas motivações específicas. Ao contrário, o questionário (para
apresentar um exemplo), ou a entrevista com roteiro, têm origem nas
preocupações do pesquisador, isto é, são impostos ao informante co­
mo algo exterior a ele, tendo ele de se conformar com um ritmo de
perguntas que não é o seu, com perguntas orientadas por motivações
que não são as suas. Quando, no âmbito da coleta de uma história de
vida, o informante conta um caso em determinado momento, é por­
que este caso tem para ele então um significado específico, que apa­
rentemente pode não se ligar ao momento narrado, nem aos objetivos
do pesquisador, porém não pode ser por este desprezado porque “ faz
sentido” com o restante do relato, numa ligação que precisa ser des­
vendada e que pode levar a tudo quanto estava subjacente à narração.
Verifica-se assim a riqueza de dados que esta técnica permite al­
cançar, uma vez que, além de colher aquilo que se encontra explícito
no discurso do informante, ela abre portas para o implícito, seja este
o subjetivo, o inconsciente coletivo ou o arquetipal. Em qualquer des­
ses casos, são novos rumos que a investigação pode tomar, mas que
se vinculam estreitamente com as próprias condições em que devem
ser efetuados os registros, isto é, com as exigências de uma boa
aplicação.
A primeira exigência é a de diminuição ao máximo de toda inter­
ferência por parte do pesquisador. Este detém uma intervenção preli­
minar de que não se pode fugir: a escolha tanto do tema do seu traba­
lho quanto do informante. As decisões de base são, portanto, suas,
e em função delas assume a direção efetiva da aplicação da técnica —
o que mostra quão ilusório é supor que existam técnicas não dirigidas
e seleções de informantes feitas inteiramente ao acaso. A escolha do
informante provém de duas orientações, uma decorrente do tema em
pauta, a outra decorrente de se saber que determinado indivíduo pos­
sui conhecimentos importantes a respeito do tema. Porém, no caso das
histórias de vida e depoimentos pessoais gravados, aí deve se deter a
intervenção do pesquisador. Embora esta intervenção seja limitada, ela
existe; por isso toda gravação, por mais livre e espontânea, deve ser
considerada semidirigida, mesmo quando adotada a “ técnica da liber­
dade” .
A qualidade do material obtido depende da qualidade do infor­
mante escolhido, em função do que se pretende desvendar. Esta cir­
cunstância postula a existência de um conhecimento prévio do infor­
mante, por parte do pesquisador; quanto mais conhecido aquele, mais
seguro estará o pesquisador de que obterá um relato interessante e apro­
priado ao que está buscando; quanto menos conhecido, maior o peso
do acaso ou da contingência, isto é, da possibilidade tanto de se obter
quanto de não se obter as informações requeridas. De qualquer for­
ma, por mais conhecido que seja o informante, não pode o pesquisador

75
prever com segurança que rumo tomará o relato — rumo que depende
do informante, de sua vivência específica, de sua capacidade de rela­
tar, mas também de uma infinidade de circunstâncias momentâneas,
que também pésam na qualidade da narração.
Na utilização da “ técnica da liberdade” , uma vez ultrapassada a
escolha do tema e a escolha do informante, durante o decorrer das gra­
vações este último passa a ter certa autonomia em relação ao pesquisa­
dor, no que diz respeito à abordagem do tema e ao fornecimento de
informações; ele mesmo governa a escolha do que vai dizer, o seu rit­
mo, a ordenação dos assuntos, com o mínimo possível de influência
exterior visível sobre o que diz e o que faz saber. E é nesta autonomia
do informante que reside o ilimitado potencial do que pode fornecer.
Qualquer informação se torna, então proveitosa, podendo abrir hori­
zontes que o pesquisador não suspeitara. O campo de coleta se apre­
senta, assim, infinito; uma revelação do entrevistado pode fazer deri­
var a entrevista para direções imprevistas e imprevisíveis, num ques­
tionamento que ao mesmo tempo se alarga e se estrutura a partir do
seu próprio desenrolar, dando-lhe o caráter de uma “ pesquisa progres­
siva” .
A segunda exigência para o bom rendimento da técnica de histó­
rias de vida e depoimentos gravados diz respeito às relações que se es­
tabelecem entre o informante e o pesquisador. Que não exista entre
ambos determinado grau de confiança, e as respostas irão se limitando
somente ao que o entrevistado considera suficiente, não permitindo que
o pesquisador penetre muito a fundo em sua vivência. Um relaciona­
mento impregnado de simpatia e amizade constitui condição impor­
tante para uma boa colheita de dados. No entanto, reside aqui tam­
bém uma dificuldade que nem sempre tem sido levada em conta, quando
se trata de pessoas de idade. Os velhos constituem uma parcela desva­
lorizada dos membros em sociedades como a nossa, a qual repousa nu­
ma base econômica de que a produtividade é o critério fundamental:
inaptos a produzir, nada mais se espera deles (ao contrário das crian­
ças pequenas que, também inaptas para a produção, constituem no en­
tanto uma certeza de produção futura); tal desvalorização se expressa
de mil maneiras, uma das quais é a falta de interesse que os rodeia.
Que alguém se disponha a ouvir-lhes as histórias, e ei-Ios se sentindo
realizados, por um lado, e, por outro, compelidos a “ fazer durar” aque­
la relação gratificante. Esta é uma dificuldade já apontada para cuja
solução não existem receitas; o pesquisador a encontrará disfarçada
sob os aspectos mais diversos, dependendo de seu tacto, de sua amabi-
lidade, de seu sentimento de humanidade a forma pela qual consegui­
rá resolvê-la.
A própria autonomia do informante, que deve ser salvaguardada
ao efetuar seu relato, pode resultar numa enorme dispersão de anedotas,

76
num acúmulo de detalhes repetitivos, num aglomerado de problemas
incoerentes e sem ligação entre si, que se revelam praticamente inúteis
para as finalidades do pesquisador. O que mostra a necessidade da “ pre­
sença” deste, a fim de que discretamente reencaminhe o informante
para o rumo que se revelou mais interessante. Esta presença será na
maioria das vezes uma presença física; porém ela pode consistir num
pequeno conjunto de questões, nos casos em que o informante não ti­
ver a necessária capacidade para efetuar sozinho o seu depoimento —
casos, no entanto, que são raros.
A técnica de histórias de vida e depoimentos pessoais gravados fi­
ca limitada no tempo, porque existe um informante cuja memória, em­
bora recuando bastante, não é infinita; e limitada em sua aplicação
porque, por mais apagado que se conserve o pesquisador, ele está pre­
sente e exerce sempre uma espécie de censura, no seu desejo de obter
uma coleta dos dados precisos. Nunca é demais lembrar que estas limi­
tações, que podem parecer muito estreitas, são amplamente compen­
sadas por ser esta uma técnica que desvenda questões inesperadas, e
que permite conhecer por assim dizer do interior toda uma realidade
social, a partir da experiência vivida de indivíduos cuja maneira de ver
e de sentir pode estar muito longe da do pesquisador. Desta forma,
através desta técnica, pode-se também corrigir a própria visão do pes­
quisador em relação ao problema que se propôs esclarecer.
Porque esta visão padece sempre de várias distorções. Em primei­
ro lugar, toda proposição de uma pesquisa se efetua dentro de um uni­
verso muito restrito, — o universo do pesquisador, seja este um histo­
riador, um sociólogo, um antropólogo, um cientista social enfim, —
a partir de seus conhecimentos, de seus raciocínios e da sua visão do
mundo. Problema que não é específico do cientista social, aliás, mas
que existe de modo geral para todo e qualquer cientista. Um dos com­
ponentes de seu raciocínio consiste em considerar implicitamente que
a sua é a forma “ certa” de raciocinar, que a sua é a visão do mundo
“ válida” , devendo por isso ser imposta e aceita pelos leigos. Todo cien­
tista tende, assim, a se considerar “ o ” detentor da verdade.
Em segundo lugar, todo cientista, qualquer que seja sua proce­
dência política, ocupa uma posição de dominação e de prestígio no in­
terior de uma sociedade como a nossa, que lhe outorga certo grau de
autoridade em relação aos não-cientistas. Pode-se dizer que todo cien­
tista, mesmo quando em oposição ao governo, está sempre em posição
de dominação que lhe permite de certo modo contrapor-se aos proje­
tos e realizações situacionistas, e até mesmo ser obstáculo a eles — o
que demonstra alguma autonomia e alguma possibilidade de mando.
Finalmente, todo cientista, seja qual for sua origem sócio-
econômica, por isso mesmo que detém uma soma de prestígio e de po­
der expressa em seus diplomas, passa a fazer parte das camadas sociais

77
dominantes, caracterizando-se como porta-voz, voluntário ou involun­
tário, consciente ou inconsciente, dos poderes econômicos e políticos
vigentes. Nas ciências sociais, especialmente, dadas as características
destas, seus trabalhos são orientados para dirigir os demais indivíduos
segundo rumos pré-traçados, seja pelos próprios cientistas sociais, se­
ja pelos poderes públicos, seja pela oposição — em geral, sem levar
em consideração as maneiras de pensar e as opiniões daqueles que são
assim conduzidos, e fazendo-os até abandonar a estas. Perdem, assim,
de vista os próprios anseios dos setores de população pelos quais jul­
gam trabalhar. Noutras palavras, agem sempre como veículos da ideo­
logia e dos projetos das camadas dominantes, porém mascarados pela
“ neutralidade” aparente de sua posição, assim como pela sua “ com­
petência” de cientistas.
Desta forma, toda pesquisa é uma conseqüência da posição espe­
cífica do cientista numa sociedade, e se torna um prolongamento das
ações dos mesmos — o que é especialmente visível nas ciências sociais.
Estas mazelas, que permeiam toda investigação científica, tornam-se
flagrantes quando o cientista social utiliza a técnica de questionários
fechados. Neste caso, não propõe apenas o tema e escolhe o informan­
te: este fica preso numa rede miúda de questões previamente definidas
e discutidas em suas mínimas particularidades. A informação é tam­
bém solicitada de maneira a não permitir que o informante ultrapasse
o espaço pré-estabelecido para sua resposta; ele não intervém, portan­
to, na condução de suas próprias respostas, é totalmente orientado ne­
las pela visão do pesquisador.
Em contraposição, as histórias de vida e os depoimentos pessoais
que compõem a informação viva, durante as quais a intervenção do
pesquisador deve se reduzir ao mínimo, asseguram ao informante fa­
lar sua própria linguagem e abordar seus próprios problemas. É, pois,
através de uma análise cuidadosa deste material que o pesquisador po­
de se desvencilhar o mais possível de seus próprios vieses, oriundos de
sua posição de superioridade enquanto cientista e enquanto membro
das camadas dominantes, e assim tentar apagar a constante censura,
consciente e inconsciente, que as camadas superiores impõem a tudo
quanto se oponha à consecução de seus fins, censura que em geral se
inscreve fortemente na documentação escrita.
Histórias de vida e depoimentos pessoais, quando cuidadosamen­
te realizados, possibilitam conhecer um grupo e uma sociedade de seu
interior — em oposição às demais técnicas que projetam sobre ambos
esquemas formulados exteriormente, aplicando-lhes categorias defini­
das muitas vezes a partir de teorias que não lhes dizem respeito. As
revelações dos informantes mostram como se relacionam entre si, co­
mo se formam e se inter-relacionam as camadas, como se exprime a
dominação de grupos e camadas, e finalmente como tudo isto com­

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põe a sociedade global, fazendo ressaltar conflitos que podem se agi­
tar sub-repticiamente e por isso quedar ignorados. A categorização uti­
lizada decorre das revelações dos próprios informantes, as distribui­
ções hierárquicas e os princípios que as regem são desvendados por eles,
a lógica da construção e do funcionamento interno da sociedade e do
grupo a que pertencem vem à tona. É possível então uma comparação
destas configurações, que conservam as complexidades do real; com
as teorias existentes, de tal modo que a reflexão teórica possa progre­
dir a partir do confronto com uma vigorosa informação empírica.
A enumeração de tantas virtudes poderia fazer pensar que a técni­
ca de histórias de vida e depoimentos pessoais deveria ser aplicada de
forma preferencial, quiçá única, porque levaria a uma coleta mais pró­
xima do real. Não se exagerem os seus méritos, não se desconheçam
as suas limitações, algumas das quais já foram aqui enumeradas. Suas
maiores qualidades, quando empregadas dentro das limitações de tempo
e da não-intervenção do pesquisador, são: a descoberta de novas face­
tas do real; a crítica aos dados já colhidos por outras técnicas; a auto­
crítica do pesquisador, diante das revelações do discurso do informan­
te. Seja como for, para qualquer trabalho que ultrapasse o levanta­
mento de problemas e apresentação de dados, sua associação com ou­
tras formas de coleta se torna imprescindível.
Quando se acredita estar desvendando, por meio de histórias de
vida e dos depoimentos pessoais, novas facetas do real, este conheci­
mento inesperado da realidade necessita também ser verificado e com­
plementado pela aplicação de outras técnicas. Ao se tratar de dados
já existentes, a submissão dos mesmos a uma verificação através do
registro de histórias de vida e depoimentos pessoais também é de gran­
de utilidade. Num e outro caso, está sendo seguido o preceito mais sa­
lutar das pesquisas em ciências sociais, que é o de assestar sobre o te­
ma pesquisado o foco convergente de técnicas variadas, por um lado,
e por outro lado analisá-lo segundo diferentes eixos teóricos. Através
destes entrecruzamentos de análises, busca-se tanto criticar a validade
da informação viva quanto dar-lhe maior precisão, complementando-
a. No mesmo sentido se efetua a crítica das teorias e a autocrítica do
pesquisador.
O único modo de evitar que, numa sociedade como a nossa, as
ciências sociais se tornem o intérprete por assim dizer único da visão
do mundo das camadas dominantes e do grupo dos cientistas, seria con­
seguir que os próprios interessados, isto é, os integrantes dos grupos
ou das camadas dominadas, noutras palavras, os “ sem-voz” , pudes­
sem eles mesmo orientar ou efetuar os estudos necessários à reformu­
lação do ambiente sócio-econômico, político e ecológico em que vivem.
No entanto, a necessidade de uma formação específica para a realiza­
ção dessas pesquisas dá a esta aspiração um caráter de utopia; as ten­

79
tativas nesse sentido, efetuadas muitas vezes no âmbito da “ educação
permanente” , — tal como a define, por exemplo, na França, Henri
Desroche, que se vem dedicando ao estudo desse problema (Desroche,
1971, 1978), — se encontram ainda na fase de tentativas quase de en­
saio e erro. É preciso, pois, que os pesquisadores se liberem das mar­
cas da dominação para com os informantes, buscando estabelecer en­
tre ambos novas relações que não sejam de superior para inferior, no­
vas relações que não nasçam já configuradas num esquema de poder.
Só assim se pode esperar que os resultados das pesquisas possam re­
verter diretamente aos pesquisados, em lugar de servirem para refor­
çar sua subordinação aos grupos dominantes. A técnica de histórias
de vida e depoimentos pessoais parece dar uma certa abertura nesse
sentido, levando pelo menos à formulação de uma esperança...

OBRAS CITADAS

Desroche, Henri, Apprentissage en Sciences Sociales et Éducation Permanente. Paris,


Les Éditions Ouvrières, 1971.
Desroche, Henri, Apprentissage 2: Éducation Permanente et Créativités Solidaires. Pa­
ris, Les Éditions Ouvrières, 1978.

N o ta : No decorrer de algumas entrevistas, houve a participação inevitável de mais uma ou duas pes­
soas da família ou amigos; suas intervenções deturparam o monólogo e corroboram as observações
efetuadas: 1) quebraram o ritmo do informante; 2) entrelaçaram às vezes uma segunda história de
vida à primeira, com evidente confusão delas; 3) pouco enriqueceram do que estava sendo dito.
Recomenda-se, pois, que o informante esteja sozinho com o pesquisador.

80
VII — Das entrevistas e da sua transcrição

O primeiro problema prático com que se defrontam os pesquisa­


dores é o problema já referido da qualidade dos informantes escolhi­
dos; quando se trata de gente de suas relações imediatas, raramente há
surpresas, pois foram distinguidos aqueles que realmente têm muito o
que relatar sobre o período escolhido; no entanto, quando são indica­
dos por outrem, o resultado pode ser decepcionante, ou pela falta de
informações, ou pela brevidade da narrativa, ou ainda pelas inúmeras
divagações do informante, saindo do período que se desejaria esclare­
cer. Como, no caso analisado, houve informantes que não pertenciam
ao círculo de relações das pesquisadoras, este último problema se colo­
cou, isto é o de entrevistas consideradas insatisfatórias: deveríam estes
informantes ser abandonados, buscando-se outros mais adequados? Das
discussões havidas, chegou-se à deliberação de mantê-los; é que a pró­
pria maneira de ser, falha, breve, ou derramada, também tinha signifi­
cados que era possível esclarecer, ou pelo menos registrar.
O segundo problema prático foi o do encerramento da entrevista
ao redor das duas horas, que se havia convencionado ser o seu tempo
de duração. Pareceu boa praxe deixar que o próprio entrevistado colo­
casse um fim ao seu depoimento, e assim foi feito, sempre que possí­
vel. No entanto, havia interlocutores que, enleados, não conseguiam
formular o ponto final. Outros, ao contrário, em seu entusiasmo por
encontrar um ouvinte atento, se derramavam em relatos cada vez mais
detalhados ou repetitivos, sem reparar no cansaço da pesquisadora...
Não havia regras a seguir para contornar uma ou outra situação; cabia
à pesquisadora solucioná-las com o tato necessário.
O terceiro problema prático foi evidenciado quando, efetuadas al­
gumas entrevistas, se verificou que numa apareciam informes, fatos,
ocorrências, que não haviam aparecido noutras. Estas discrepâncias
as invalidariam? Seria necessário retornar aos informantes e tentar ve­
rificar se estas circunstâncias não teriam realmente existido em suas
vidas, ou se elas teriam sido omitidas, e por quê? Ao se discutir esta
alternativa, ficou evidente que, adotada a solução de pedir uma res­
posta, se estaria traindo o princípio do “ monólogo” , que havia sido
conscientemente adotado como a técnica mais apropriada para os de­
poimentos pessoais.

81
Se a atitude adotada pelas pesquisadoras fora a de deixar livre cam­
po aos informantes em seus depoimentos, não havia porque modificá-
la em função de informações díspares dadas. Seria necessário, isso sim,
no momento da análise, verificar “ quem” havia dito “ o quê” , para
tentar averiguar por que apareceríam certos aspectos em alguns depoi­
mentos e em outros não. A omissão de fatos, de ocorrências, de deta­
lhes pode ser tão significativa quanto sua inclusão nos depoimentos;
nesse caso, o importante não era verificar se o entrevistado conhecia
ou não tal ou qual fato, mas sim buscar saber por que razão ele o ha­
via esquecido, ou o havia ocultado, ou simplesmente dele não tivera
conhecimento. Justamente porque se está lidando com uma camada
social que não é indiferenciada em seu interior, obviamente haverá di­
vergências nos relatos.
Reforçou-se, assim, a opinião das pesquisadoras de que, ao co­
lher histórias de vida e depoimentos pessoais, deveria ser preservada
ao máximo a espontaneidade do relato; por espontaneidade entende-
se o que é feito por seu próprio impulso, em decorrência de um primei­
ro movimento, sem provocação acusada ou influência alheia. Tentar
preservar esta qualidade significa acreditar que, com ela, a qualidade
das informações melhora de nível e de adequação ao real: o indivíduo
não teria tempo para disfarçar ou mascarar deliberadamente sua opi­
nião ou sua informação. É verdade que a simples presença do pesqui­
sador é uma influência, e mais ainda suas indagações, pois estas po­
dem orientar o depoimento num sentido que não teria tomado, se o
entrevistado fosse deixado livre. Fora por esta razão que se optara pe­
la “ técnica da liberdade” .
Repita-se, na coleta de histórias de vida e depoimentos pessoais,
o monólogo do informante deve ser preservado, pois é ele o “ dono”
de suas recordações, que devem ser colhidas segundo o seu próprio rit­
mo e orientação. No caso em que se procura, ao contrário, esclarecer
dados precisos e objetivos, acontecimentos, circunstâncias, bem defi­
nidas, e em que a técnica não pode mais ser o monólogo, e sim o diálo­
go (mesmo quando neste se busca minorar a influência do pesquisa­
dor), então a descoberta, numa das entrevistas, de algo que não surgi­
ra nas demais, exigiría a retomada do encontro com os demais infor­
mantes, para esclarecer: 1) se o informante conhecia aquele dado; 2)
no caso afirmativo, por que o havia esquecido ou omitido; 3) no caso
negativo, por que o desconhecia.
O próprio envolvimento entrevistador-entrevistado pode muitas
vezes ser responsável por essas omissões, conscientes e inconscientes.
No caso de entrevistas com pessoas de idade, por exemplo, a diferença
de gerações pode ocasionar esquecimentos e lacunas de determinados
fatos, ou, ao contrário, ênfase e exagero de determinados pontos, ora
por julgar o velho informante que os jovens não o compreenderíam,

82
ora para não parecer ridículo, ora por desejar mostrar, com detalhes
minuciosos, quão boa é sua memória, ou quão melhor era o seu tem­
po. Tais dificuldades já haviam sido notadas no caso de mulheres en­
trevistadas por homens, ou vice-versa. Estas atitudes variam de indiví­
duo para indivíduo, e podem ser responsabilizadas pelas discrepâncias
entre as entrevistas; ou mesmo, sem variar o informante, de um dia
de entrevista para outro. Habituais, então, em todos os resultados da
técnica de entrevista, devem ser resolvidas previamente a cada pesqui­
sa, com a adoção de um comportamento uniforme por parte de todos
os pesquisadores engajados.
Não esquecer também que, sempre, o pesquisador se encontra em
posição de superioridade para com o informante, pela própria defini­
ção das relações de pesquisa: o pesquisador é quem “ sabe e determina
o que deseja” , e o informante está sempre na situação de quem procu­
ra descobrir “ como agir melhor” para responder condignamente à de­
manda. Desta forma, paradoxalmente, também o entrevistado se en­
contra diante de uma incógnita, durante as conversas, procurando um
meio de se safar o melhor possível de uma situação incômoda, seja pe­
la recusa pura e simples de responder, seja pelo exagero; em situação
de inferioridade, é necessário que consiga ultrapassar o constrangimen­
to, que adquira confiança para, então, chegar a uma narração espon­
tânea. Por isso o conhecimento prévio entre ambos e a simpatia se tor­
nam importantes.
Além destas diferenças, existem também as imagens estereotipa­
das correntes na sociedade global, que influenciam o estabelecimento
das relações entre informante e pesquisador. Se o informante é idoso,
está se defrontando com um jovem, ou uma jovem pesquisadora, tem
em mente a imagem estereotipada dos jovens de sua sociedade, que
imediatamente aplica àquele que tem diante de si; da mesma forma se
se trata de um homem entrevistado por uma mulher; ou um estrangei­
ro inquirido por um nacional, etc. — sendo que também o pesquisa­
dor tem as imagens correntes em sua sociedade, a respeito de seu in­
formante. Há, pois, expectativas de comportamento de uma parte e
de outra, pois todos têm imagens estereotipadas a respeito uns dos ou­
tros, e os relatos obtidos estão sempre influenciados por elas. Noutras
palavras, a autocensura, a autopromoção, ou ambas, estão sempre pre­
sentes no relacionamento, a coleta de histórias de vida e depoimentos
pessoais encontra forçosamente esta limitação e esta fonte de desvios.
É claro que a maneira de agir do pesquisador poderá diminuir ou,
ao contrário, realçar estas limitações. Porém, estabelecido um clima
de confiança, a atitude defensiva será provavelmente muito menos im­
portante, a “ se-mostração” e o desejo de impressionar ficarão mino­
rados. A escolha de informantes entre as pessoas da família pode tam­
bém ser um corretivo de vulto para estes males, a confiança recíproca

83
já estaria de antemão estabelecida. Porém, se aparentemente haveria
esta vantagem, não esquecer que existem problemas de família delica­
dos que não se quererá desvendar, ou então imagens desfavorecidas
que se quererá melhorar, ocorrendo também as autocensuras ou as au­
topromoções.
Finalmente, uma outra característica desta técnica não pode ser
deixada de lado: na medida em que relações confiantes, simpáticas e
amistosas se instalam entre o pesquisador e o entrevistado, todo um
envolvimento afetivo se opera, que freqüentemente desperta proble­
mas. Não se trata mais, por parte do entrevistado, de selecionar histó­
rias que serão narradas e outras que serão omitidas; trata-se agora da
satisfação de contar histórias a um interlocutor que está interessado
por elas, e do desejo de manter um relacionamento cuja possibilidade
e tempo de vigência foram determinados pela pesquisa, e que estaria
por isso mesmo fadado a desaparecer quando terminada a coleta de
dados. Esta circunstância é muito menor ou praticamente inexistente
nas entrevistas por diálogos, ou então na técnica de questionários, po­
rém ela existe sempre, e conforme os casos pode ser uma fonte de an­
gústia, quando se trata de histórias de vida e depoimentos pessoais,
principalmente quando as relações se dão entre pesquisador e infor­
mantes pertencentes a grupos marginalizados ou carentes.
É o caso, por exemplo, como já se disse, das entrevistas com pes­
soas idosas. Nunca é demais lembrar que o velho, na sociedade ociden­
tal, é via de regra um marginalizado, principalmente nas grandes metró­
poles. No contato com o pesquisador, sua boa vontade pode resultar
do entusiasmo por saber que alguém está desejoso de conhecer o mui­
to que sua experiência armazenou. Porém, em entrevistas subseqüen-
tes, tanto pode haver como que um esgotamento da fonte, ou uma cla­
ra rejeição, quanto também pode haver um exagero de lembranças, um
luxo de detalhes, no afã de reter junto de si um ouvinte atento. Como
se desvencilhar sem suscitar mágoas? As receitas não existem; cada ca­
so é “ único” , cabendo ao pesquisador encontrar a melhor solução.
Esta situação, muito visível no caso de velhos, é na verdade habi­
tual em toda coleta de histórias de vida e depoimentos pessoais: a pes­
soa banal se transforma num “ personagem” , isto é, em alguém notá­
vel, importante, numa figura dramática (no sentido de interessante e
comovente), o que a engrandece a seus próprios olhos. Ela deseja en­
tão justificar diante do pesquisador a imagem que ele devia possuir,
uma vez que a escolheu para a entrevista; ou então, tendo o sentimen­
to de que não corresponde ao que se espera, efetua a rejeição, no mo­
mento do convite ou logo depois da primeira entrevista. Estes percal­
ços da utilização das histórias de vida e depoimentos pessoais podem
terminar num profundo sentimento de frustração entre informantes e
pesquisadores; os informantes, insatisfeitos com os pesquisadores por­

84
que o relacionamento termina; os pesquisadores, insatisfeitos consigo
mesmos porque despertaram simpatias e expectativas que sua função
estabelece serem breves.
Uma palavra ainda sobre a transformação da “ pessoa banal” em
“ personagem” e sua influência sobre a informação. Uma certa defor­
mação dos fatos resulta sem dúvida alguma desta circunstância, por
mais sincero e verídico que seja o narrador. Mesmo que este procure
não realçar sua própria participação nos eventos, ou por não ter cons­
ciência clara do que efetivamente realizou, ou por um desejo de não
parecer enfatuado e presunçoso, sua maneira de contar, a atenção que
chama para este episódio e não para aquele outro, os detalhes recorda­
dos, a maneira de apresentar o conteúdo, são deformações que vai pro­
duzindo e que podem chegar a alterações substanciais. Porém, este as­
pecto, que será abordado mais adiante neste trabalho, liga-se ao pro­
blema da “ busca da verdade” sobre determinados acontecimentos, o
que não constitui propriamente o objetivo das pesquisas por meio de
histórias de vida e depoimentos pessoais. Em linhas gerais, o cotidiano
está sempre presente nas narrativas; a brevidade ou o exagero dos rela­
tos, além de permitir o seu conhecimento, levam diretamente ao co­
nhecimento das mentalidades, dos universos de pensamento, que tam­
bém são objeto da pesquisa. Para a verdade histórica dos fatos, é ne­
cessária a aferição dos documentos vivos com outras fontes de dados
— necessária e indispensável; os relatos pessoais, por sua vez, esclare­
cem essencialmente as mentalidades.
Uma vez terminado o registro das histórias de vida e dos depoi­
mentos pessoais, a fase seguinte da pesquisa é a transposição das nar­
rativas, que das fitas passam para a datilografia. Esta primeira trans­
formação do material tem dupla finalidade: a) permitir um manuseio
mais fácil de todo ele, nas consultas, pois torna-o, então, independen­
te da intermediação de uma máquina — o gravador — e dependente
tão-somente da reprodução de um texto; b) permitir uma conservação
mais longa e mais eficiente do documento, dada a fragilidade das fi­
tas, que exige condições específicas e dispendiosas de armazenamento.
Esta etapa do trabalho tanto pode ser efetuada pelos próprios pesqui­
sadores que se desincumbiram da coleta de entrevistas quanto por ou­
tros pesquisadores que não o fizeram, ou mesmo também por profis­
sionais, pois atualmente está aparecendo uma categoria ocupacional
diretamente ligada à transcrição de fitas gravadas.
Qual o termo mais adequado para expressar esta tarefa: transcri­
ção ou tradução? O sentido habitual de “ tradução” é o de reprodução
de um texto, oral ou escrito, de um idioma para outro; como todo idio-
m a4é “ único” , em seu sistema simbólico e em sua estrutura interna,
uma tradução bem feita exige que sejam efetuadas todas as mudanças
impostas pelas diferenças, e não apenas uma substituição de termos de

85
um idioma pelos termos correspondentes da outra língua. A tradução
se preocupa, portanto, com o sentido último dos pensamentos expres­
sos, mas também com sua apresentação na forma que melhor lhe pos­
sa convir na nova linguagem, prendendo-se pouco à reprodução literal
e abandonando os caracteres específicos da linguagem de origem em
que foi composto o texto, que substitui pelos caracteres específicos da
nova linguagem para a qual o texto está sendo vertido.
Por “ transcrição” se entende, por sua vez, a reprodução, num se­
gundo exemplar, de um documento, em plena e total conformidade
com sua primeira forma, em total identidade, sem nada que o modifi­
que; é aplicado tanto a documentos escritos como a documentos orais.
E mais ainda, o termo encerra também, como significado intrínseco,
a noção de que tal reprodução é efetuada com o fim específico da con­
servação dos mesmos em local onde fiquem bem preservados, porém
onde possam também ser facilmente atingidos por quem deseje consultá-
los. Distingue-se de “ cópia” , que significa reprodução idêntica, po­
rém com a finalidade explícita da multiplicação e da divulgação — fi­
nalidades que não contém o termo “ transcrição” . Portanto é este real­
mente o conceito que se aplica à fase em que, da fita gravada, se ob­
tém um documento escrito.
A definição de transcrição indica já como preferencial a execução
da tarefa pelo próprio pesquisador que realizou a coleta da história
de vida ou do depoimento pessoal; pois ele, em princípio, é que está
apto a realizar o trabalho de maneira que a escrita reproduza, o mais
fielmente possível, a gravação. Na sua falta, um outro pesquisador po­
dería substituí-lo, e somente em último caso esta seria entregue a um
mero profissional de transcrição. A utilização do profissional tem o
inconveniente de não estar ele diretamente interessado pelo conteúdo
da fita, e sim pelo salário a receber por motivo da transcrição, pois
é pago por tarefa executada; sendo esta enfadonha e lenta, a tentação
é grande de suprimir o que for considerado muito repetitivo ou inútil,
a fim de abreviar o trabalho e terminá-lo mais depressa.
Aquele que transcreve fitas gravadas como seu ganha-pão, ou co­
mo parte de seu ganha-pão, perde completamente de vista que o mate­
rial com que lida pertence à experiência ativa de um informante, de um
indivíduo concreto, específico; sua relação com a fita é exclusivamente
profissional e econômica. A fita gravada deixa de ser, para ele, o relato
de experiência de vida de um ser consciente, ativo, feito de carne e de
sangue; todo valor humano é dela abstraído, restando apenas o valor
de troca que ela representa, isto é, somente seu valor como mercadoria.
Por isso o profissional não leva em consideração a necessidade de con­
servar o relevo e o sentido que o informante tentou imprimir à narrati­
va, e, mesmo consciencioso, é levado a tratá-la simplesmente como al­
go que, terminado no mais curto prazo possível, representa um salário.

86
Por sua vez, o pesquisador que não efetuou as entrevistas mas foi
encarregado da transcrição, sabe que tem diante de si algo de muito
significativo; porém, sua falta de experiência efetiva com o informan­
te impede-o de conhecer toda a riqueza, todas as implicações constan­
tes do relato que está transcrevendo. Sua falta de conhecimento do in­
formante e das condições da entrevista constituem barreiras para que
se dê conta de tudo quanto é necessário conservar — por assim dizer,
até mesmo os suspiros... — para guardar o contexto em seus mínimos
detalhes. Conscienciosamente procurará reproduzir tudo quanto con­
tém a fita gravada, mas não poderá ir além do que escuta, e até mesmo
poderá não registrar tudo integralmente, inconsciente do valor dos si­
lêncios e da mudança de tonalidade da voz; e isso se dá porque não
tem a possibilidade de recriar na memória a experiência constituída pela
entrevista.
Noutras palavras, sua apreensão da entrevista se opera a partir
de seus próprios conhecimentos, de sua própria vivência. Mesmo que
tente levar em consideração as atitudes, as reações e posicionamentos
do informante em relação aos valores que a narrativa revela, só as capta
através do referencial constituído pelos seus sentimentos e pela sua ex­
periência passada. Não houve entre ele e o entrevistado uma partilha
de emoções que permite um conhecimento muito mais íntimo e do ma­
terial, e do informante a quem se deve o material.
Desta maneira, o ideal, numa pesquisa, é que o próprio pesquisa­
dor que entrevistou o informante seja também o transcritor da fita.
Ouvir e transcrever a entrevista constitui, para ele, um exercício de me­
mória em que toda a cena é revivida: uma pausa do informante, uma
tremura de voz, uma tonalidade diferente, uma risada, a utilização de
determinada palavra em certo momento, reavivam a recordação do es­
tado de espírito que então detectou em seu interlocutor, revelam as­
pectos da entrevista que não haviam sido lembrados quando efetuou
o registro do dia no caderno de campo, ou mesmo dão a conhecer de­
talhes que, no momento da entrevista, lhe escaparam. Cada vez que
re-escuta a gravação, refaz de certo modo o contexto todo da entrevis­
ta na lembrança para explorá-la mais a fundo. Assim, a transcrição
feita pelo próprio pesquisador contraria uma “ despersonalização” da
entrevista, que existe com maior ou menor força nos dois casos ante­
riores e que, mais tarde, será sociologicamente necessária.
A transcrição efetuada pelo próprio pesquisador poderá, pois, en­
riquecer o documento e suas informações. Tudo o que recolhe então,
a partir da fita gravada ou de sua memória, irá transcrito também, ou
no próprio texto da entrevista, ou à parte, se se trata de um episódio
muito longo. O texto, porém, devendo ser o mais fiel e próximo possí­
vel da gravação, é complementado de maneira que se perceba imedia­
tamente que o complemento não estava diretamente nele, ou então

87
estava nele sob outra forma que não a da palavra falada; colocado en­
tre parênteses, ilustra o texto sem quebrar sua unidade. É para evitar
esta quebra de unidade, também, que os complementos longos devem
ir para o caderno de campo, com a data da entrevista e da transcrição,
evitando a interrupção da narrativa, que ocorrería se enxertado nela
entre parênteses.
Transcrever significa, assim, uma nova experiência da pesquisa,
um novo passo em que todo o processamento dela é retomado, com
seus envolvimentos e emoções, o que leva a aprofundar o significado
de certos termos utilizados pelo informante, de certas passagens, de
certas histórias que em determinado momento foram contadas, de cer­
tas mudanças na entonação da voz. Tudo isto é material que o pesqui­
sador obteve, de cuja construção diretamente participou — pois no pro­
cesso de que resultou foi ele parte, numa legítima ação de “ observa­
dor participante” , com todos os riscos que esta posição comporta. É
verdade que não partilhou estreitamente da vida cotidiana do infor­
mante, como quer a expressão “ observador participante” usualmente
empregada em antropologia; porém, se a expressão não pode ser apli­
cada em se tratando do sentido estrito, em sentido amplo houve uma
participação íntima entre eles, uma associação simbólica e não objeti­
va que permitiu, pela instalação de laços de quase-identidade e de co­
munhão entre ambos, o desencadeamento frutífero do processo de re­
memorar. Talvez este dom de partilhar que torne mais eficiente o tra­
balho do pesquisador nas ciências humanas, esta possibilidade de quase-
identidade com o “ outro” ; dom que o revela como “ o mais capaz”
para efetuar os registros, apesar de todas as dificuldades que possa tam­
bém trazer. E sem dúvida é esse relacionamento que estimula vigoro­
samente a memória do informante.
A transcrição efetuada pelo próprio pesquisador tem, também, o
valor de uma primeira reflexão sua sobre a experiência de que parti­
lhou, e que ele cria uma segunda vez ao escutar a fita. Porém, nesta
segunda vez uma distância se estabeleceu entre ele e o informante, re­
presentada pela fita gravada — distância que constitui uma “ coloca­
ção em situação” , que possibilita captar toda a experiência havida a
partir, agora, do exterior, sem a acuidade dos envolvimentos emocio­
nais que o contexto vivo acarretava. E quantas vezes julgar necessário,
poderá retomar a experiência para aprofundar suas observações. Ao
efetuar a transcrição o pesquisador tem, então, a invejável posição de
ser ao mesmo tempo interior e exterior à experiência.
A transcrição da entrevista feita pelo próprio pesquisador consti­
tui, pois, uma tentativa de retardamento da transformação completa
do documento oral, com sua vivacidade, colorido e calor humano, no
documento escrito inerte, passivo, estático, que, além disso, reproduz
somente em parte tudo quanto realmente ocorreu. No documento es-

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crito, o fato social não aparece somente cristalizado, isto é, fixo e imó­
vel, mas também isolado de todo um conjunto de qualidades e circuns­
tâncias para as quais não há registro escrito possível. Excisão, que sig­
nifica a separação pouco volumosa de parte de um corpo, seria o ter­
mo que expressa o que acontece quando a transcrição é efetuada pelo
próprio pesquisador que realizou a entrevista. Quando se trata de al­
gum outro sem a experiência deste, o corte de partes da entrevista po­
de ser mais e mais importante, chegando à mutilação, que trunca e de-
sumaniza, e por isso mesmo desvirtua o texto.
Este último caso é um caso extremo; um profissional dotado de
consciência pode efetuar uma transcrição que, sem atingir os refina­
mentos do trabalho realizado pelo próprio pesquisador, pode ser con­
siderado satisfatório. Tanto mais que se deve ter em mente que todo
trabalho de pesquisa resulta sempre numa cristalização dos dados do
real, no sentido de sua passagem da vivacidade e do movimento para
a fixidez e a passividade, e também numa redução, pois vários aspec­
tos são sempre suprimidos a fim de se possibilitar seu registro. Nesta
perspectiva, nada mais mutilador, sob certos aspectos, do que a técni­
ca de questionário — mutilador no sentido do termo, que significa cor­
tar fora uma parte ou várias partes importantes de um conjunto, de
tal modo que este permaneça alterado e diferente do que era em sua
forma anterior.
A fita gravada pode correr tal risco quando se trata de um trans-
critor bisonho, ou então quando a gravação, mal feita, obriga ao aban­
dono de alguns ou de vários de seus trechos; o risco é maior quando
se trata de um transcritor que não fez a entrevista, ou que nunca fez
uma entrevista. Mesmo no caso de um perito, ela é sempre um empo­
brecimento em relação à totalidade da entrevista. Esta teve lugar em
determinado ambiente, foi acompanhada de determinados gestos, te­
ve um colorido emocional que a gravação não registra. O pesquisador
pode descrevê-lo em palavras, no seu caderno de campo; porém, a vi­
da estará dela ausente. Poder-se-ia argumentar que um documento au­
diovisual seria muito mais adequado para a fidelidade do registro, do
que somente o documento oral. No entanto, o próprio documento au­
diovisual tem sua limitações e suas falhas. O vivido é irrecuperável em-
sua total vivacidade.
O que se quer, com estas reflexões, é chamar a atenção para o sig­
nificado da técnica de gravador, em suas diferentes fases. A primeira
é a do registro, durante a qual a fala do informante é captada com
grande fidelidade, mas que já constitui um recorte do real, uma vez
que a fita registra somente a fala, perdendo todos os demais detalhes
que compõem o contexto total da entrevista. Um primeiro empobreci­
mento tem assim lugar. A segunda fase é a da passagem da fita grava­
da para o documento escrito, na qual, na verdade, se perde muito

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menos do real do que na primeira passagem, mesmo quando esta é
acompanhada de um copioso caderno de campo, porém na qual ainda
se perde algo. O documento escrito, resultado destas duas fases, é uma
pálida cópia da realidade, e é sobre esta pálida cópia que trabalha o
pesquisador.
Os termos utilizados até agora para exprimir a relação entre o do­
cumento e a realidade — corte, recorte, excisão, mutilação, amputa­
ção — exprimiam todos, de maneira mais branda ou mais incisiva, uma
perda de algo, uma alteração, um desvirtuamento em relação à ma­
triz, encarado como negativo em relação a ela. Mas não será esta a
condição necessária e indispensável para se obter qualquer documento
sobre o qual se possa exercer a análise?
Se o conhecimento sensível, através do ato de perceber, constitui
já uma abstração, as fases acima referidas seriam abstrações necessá­
rias à obtenção de um documento que possa ser objeto de um apro­
fundar de reflexões. Dessa forma, toda a ação do pesquisador sobre
o real, a partir do momento em que propõe uma pesquisa, significa
desencadear uma seqüência de abstrações, cujo caráter isolante encon­
tra sua validade no fato de constituir uma etapa para descobrir o que
se oculta sob o imediatismo da evidência empírica. É este raciocínio
que confere validade à ação científica. É neste contexto que as fitas
gravadas com o objetivo de pesquisa diferem das fitas gravadas que
integrarão a coleção de um Museu da Imagem e do Som, que visam
apenas e somente preservar.
Mas se o documento escrito recobra assim sua importância diante
da fita gravada, por que a exigência da fidelidade a esta última, a pon­
to de se encarar como “ ótima” a transcrição efetuada pelo próprio
pesquisador? É que abstrair não é efetuar quaisquer cortes no real; exis­
tem cortes que resultam da falta de instrumentos suficientemente refi­
nados, ou de uma deficiência da habilidade do pesquisador, e são es­
ses cortes que convém evitar para não pôr em risco a viabilidade do
que se pretende fazer. Foi para esses que se quis chamar a atenção.
Cumpre aceitar, pois, a transcrição como a criação de um novo
tipo de documento — o documento escrito — com todas as caracterís­
ticas dos deste tipo habitualmente encontrados. Como documento es­
crito, sua especificidade estará em poder ser confrontado com a ma­
triz (a gravação) todas as vezes que necessário, o que não sucede com
questionários, nem com documentos históricos. Como documento es­
crito, não dispensa o cotejo com outros tipos de documentos, para aqui­
latar a veracidade ou o valor de suas revelações, englobando-se entre
estes outros documentos o caderno de campo e as próprias recorda­
ções do pesquisador. É sobre o documento escrito que passará a traba­
lhar o pesquisador, que entra assim numa nova fase de sua labuta.

90
VIII — Análise de documentos
em ciências sociais

As décadas que se seguem à segunda guerra mundial estão marca­


das pela ampliação de técnicas mecânicas como a fotografia, o cine ­
ma, o gravador, a televisão, com as quais se procura chegar o mais
próximo possível de uma reprodução dos dados, tais quais se apresen­
tam na realidade, numa crença ingênua de que os meios mecânicos pos­
sibilitariam um grau muito elevado de objetividade e, portanto, um
mínimo de interferência da subjetividade do pesquisador. A utilização
deste instrumental foi sendo efetuada quase sem nenhuma reflexão a
respeito das maneiras de agir e de suas implicações, como se o fato
de se tratar de técnicas mecânicas significasse ser necessário somente
um domínio da aparelhagem empregada, seu manejo não exigindo se­
não a habilidade automática dos gestos reproduzidos sem pensar. Já
anteriormente, neste trabalho, foram apresentadas críticas a estas con­
cepções.
Ao lidar com o material por meio do gravador, um aspecto tam­
bém a ser cuidadosamente considerado é o de sua ulterior utilização;
aliás, cada uma das técnicas acima enumeradas deveria suscitar refle­
xões a respeito, à medida que fossem sendo empregadas e no decorrer
das pesquisas — o que não parece ter acontecido até agora. O grava­
dor, por sua vez, exige como um segundo momento a transcrição da
fita para um texto datilografado, passando a constituir um novo do­
cumento, agora um documento escrito. Tal passagem também foi exa­
minada noutra parte deste trabalho, enumerando-se os requisitos para
a transcrição se conservar fiel à gravação; também muito pouco tem
sido até agora realizado quanto à reflexão crítica ligada a este passo,
nas diversas obras existentes.
Finalmente, é preciso encarar outra fase do aproveitamento do no­
vo documento oriundo da fita gravada, em relação às informações que
encerra. Até agora, tal aproveitamento se limitou à apresentação pura
e simples das transcrições, sem que se tenha examinado as diversas for­
mas de interferência, então ocorrentes, por parte do pesquisador que
colheu o material. Nos depoimentos recolhidos por Ecléa Bosi,1 hou­
ve ordenação e cortes para depurar a narrativa de repetições, e uma
escolha de tópicos que se referissem mais de perto aos problemas da
memória. No caso da célebre obra Os filhos de Sanchez, do antro­

91
pólogo Oscar Lewis,2 a intervenção do mesmo foi menor, buscando
ele resguardar a integralidade do que fora exposto pelos informantes,
e buscando o pesquisador somente ordenar de forma congruente a fa­
la destes. Finalmente, no livro Ioiô Pequeno da Várzea Nova, de Má­
rio Leônidas Casanova,3 o pesquisador procurou prender-se ao máxi­
mo às maneiras de dizer, às idas e vindas no tempo efetuadas pelo in­
formante, tal qual ficaram registradas na fita, sem nada mudar de suas
repetições; no entanto, também foi necessária uma escolha de tópicos
e o sacrifício de outros, para que todo o material recolhido fosse pu-
blicável num volume e adquirisse uma forma literária aceitável.
No entanto, apesar das intervenções dos pesquisadores, que pare­
cem ser inevitáveis, o relato de cada informante é, em geral, apresen­
tado como um todo. De acordo com o modo pelo qual foram ofereci­
dos ao público, depreende-se que o estudioso que os colheu acredita
que este tipo de documento só será capaz de veicular informações a
outrem quando se apresentar na sua totalidade. Por esta forma de uti­
lização, que afasta também uma interpretação do material contido nos
depoimentos, parecem aqueles pesquisadores afastar qualquer possi­
bilidade de análise dos depoimentos colhidos. A interpretação ou é ine­
xistente ou é mínima, reportando-se a aspectos como os mecanismos
da memória e não às informações transmitidas pelos depoentes.
Por análise, no sentido operacional do termo, entende-se o recor­
te de uma totalidade nas partes que a formam, que são então apreen­
didas na seqüência apresentada em sua naturalidade para, num segun­
do momento, serem restabelecidas numa nova coordenação. Num e
noutro momento, isto é, na decomposição e na subseqüente recompo­
sição, obedece-se tanto quanto possível às relações existentes entre es­
tas partes. Admite-se que este desfazer de um objeto segundo uma mar­
cha específica, seguido de um refazer em ordem diferente (pois no pri­
meiro momento a ordem é de sucessão e no segundo momento a or­
dem é de simultaneidade), permite chegar a uma compreensão mais pro­
funda de seu sentido, a uma avaliação mais clara de suas qualidades.
Na verdade, na maioria dos trabalhos conhecidos que lidam com
histórias de vida e com depoimentos gravados, o material não foi em
seguida analisado, isto é, recortado para ser utilizado noutra forma.
Na própria obra, em tantos aspectos admirável, de Ecléa Bosi, não
foi utilizado este tipo de aproveitamento. Cada história de vida e de­
poimento pessoal é encarado assim como um documento, cujo valor
de transmissão de informações ou de demonstração residisse na con­
servação da maioria dos detalhes, como se não fosse possível
compreendê-lo senão conservando-o em forma monolítica. Acredita-
se que a divisão em partes, ou a busca de determinados dados com
a exclusão de outros, deturparia e a parte, e o todo. Os.pesquisadores
referidos parecem aceitar implicitamente que o aproveitamento des­

92
tes documentos só seria possível com a conservação integral de forma
e conteúdo.
Estas observações não foram explicitamente formuladas pelos di­
versos pesquisadores. Porém, a maneira constante e única pela qual
foram apresentados os documentos, por estudiosos muito diferentes
e sem contato entre si, leva a estas inferências. Como corolário, con-
clui-se que realmente não caberia ao pesquisador analisar e interpre­
tar, porém sim e somente transcrever, no caso de histórias de vida e
depoimentos pessoais. O pesquisador, munido de seu gravador, se trans­
formaria em mero coletor de material, em mero fabricante de docu­
mentos. Sem dúvida, os bons fabricantes de documentos são necessá­
rios, e noutra parte deste trabalho foi examinado como devem agir,
quais os parâmetros que orientariam sua coleta a fim de alcançar a
maior validade, quando utilizados os gravadores. Porém, deverá esta
finalidade ser a única, afastando-se qualquer aproveitamento ulterior
dos mesmos? E, caso este aproveitamento seja possível, não terá ele
regras que devam ser observadas?
Estas questões são tanto mais pertinentes quanto a intervenção do
próprio pesquisador já se fez sentir na transcrição da fita para o docu­
mento escrito, fazendo-o às vezes escolher o que conservar e o que eli­
minar. Noutras palavras, efetuou recortes no material levantado e con­
servou, como documento escrito, os tópicos que determinados crité­
rios lhe apontaram como válidos. Esta primeira intervenção, quando
inteiramente necessária, permite encarar outras intervenções posterio­
res como possíveis.
Parecia cabível indagar dos especialistas em “ análises de texto”
— estudos da literatura e da filosofia — quais os passos a serem segui­
dos a fim de se apreender o que contém um documento escrito. Ao
que parece, porém, não existiria nenhum esquema, nenhum conjunto
de regras que pudesse ser sistematicamente transmitido aos interessa­
dos em efetuar uma operação desse tipo. Segundo os entendidos, in­
tuição, erudição e experiência compõem o arsenal de que se serve o
estudioso em tal análise, tanto no que diz respeito à literatura e aos
textos filosóficos quanto no que tange às memórias, às autobiografias,
isto é, a textos próximos das histórias de vida e dos depoimentos colhi­
dos por cientistas sociais. Não seria possível formular nenhuma nor­
ma operacional que orientasse o trabalho de um pesquisador, uma vez
que cada pesquisador tem sua própria experiência e sua própria erudi­
ção, que o levarão a um entendimento mais raso ou mais profundo
dos materiais estudados, porém sempre diferente dos demais.
Existiriam, portanto, múltiplas análises possíveis dos documen­
tos, cada qual constituindo a expressão das peculiaridades de um estu­
dioso e de suas intenções num momento dado; análises que poderíam
ser inclusive antagônicas, conflituosas e mutuamente exclusivas. As­

93
sim, os estudiosos que se especializam em “ análises de texto” não uti­
lizam em geral o termo “ análise” em seu significado atual de decom­
posição em partes. O sentido atribuído é outro mais antigo: o de bus­
car os princípios que presidiram à construção do texto e desvendar a
origem do mesmo, pela compreensão em profundidade daquilo que ele
contém. Note-se que, seguindo-se este rumo, realmente o texto deve
ser apreendido em sua totalidade, e o aprofundamento de seu signifi­
cado só é alcançado através da conservação de sua integridade.
Tal maneira de ver parece considerar que os documentos escritos
só teriam uma forma possível de aproveitamento — a que revelasse
a visão do mundo de seus autores nos seus princípios mais recônditos.
Foi esta a perspectiva da chamada “ escola alemã de sociologia” que,
iniciada com Dilthey (1833-1911), teve em Max Weber (1864-1920) seu
mais alto expoente; perspectiva que, dos fenômenos da história, foi
estendida a todos os fenômenos sociais. Tais autores eram de opinião
que os fenômenos sociais só poderíam ser conhecidos através de uma
compreensão intuitiva que atingesse seu sentido intrínseco, essencial­
mente singular. O ato de compreensão era entendido como a captação
empática da intimidade do objeto estudado, em sua individualidade,
porém também em sua totalidade. Recusava-se, assim, nas ciências so­
ciais, a validade de uma análise tanto quanto possível seca, indiferen­
te, fria, como a que habitualmente se exerce nas ciências exatas e
naturais.
A incongruência desta perspectiva com o objetivo que levou à uti­
lização dos meios mecânicos de registro de dados é indiscutível. Os
meios mecânicos são enaltecidos porque permitem um afastamento do
pesquisador e de sua subjetividade na coleta dos dados; possibilitam,
desta forma, dados muito mais próximos da realidade, sem a distor­
ção trazida pelas emoções dos estudiosos. Porém, no momento em que
o estudioso se volta para o aproveitamento do material que colheu,
então a subjetividade e as emoções se tornariam fundamentais... Na
verdade, estamos diante da antiga querela “ ciências da natureza — ciên­
cias da compreensão” , que dividiu os cientistas sociais nos fins do sé­
culo passado, perdurando em todo o início deste; querela que Georges
Gurvitch (1894-1965), na década de 50 deste século, incluiu entre os
“ falsos problemas” da sociologia.4 Como mostrou Gurvitch, não são
posições mutuamente exclusivas; dependem da perspectiva em que se
coloca o pesquisador a fim de efetuar o seu trabalho.
As perspectivas de pesquisa são, pois, múltiplas. No caso das his­
tórias de vida e dos depoimentos pessoais, podem estes ser utilizados
para esclarecer a existência, os processos mentais, as características psi­
cológicas de determinado indivíduo; somente estaria então em causa
a reconstrução daquela existência, ou do fato sobre o qual se solicitou
explicitamente o testemunho do informante. Nestes dois casos, real­

94
mente, o documento deve ser conservado na sua integridade, e deve
ter o seu significado apreendido através da penetração cada vez mais
abrangente que o estudioso puder efetuar. Pode ser que tais documen­
tos tenham sido colhidos exclusivamente com essa finalidade; porém,
mesmo neste caso seu aproveitamento para outros fins não fica em ab­
soluto excluído.
Na verdade, histórias de vida e depoimentos pessoais, a partir do
momento em que foram gerados, passam a constituir documentos co­
mo quaisquer outros, isto é, se definem em função das informações,
indicações, esclarecimentos, escritos ou registrados, que levam a eluci­
dações de determinadas questões e funcionam também como provas.5
A utilização de histórias de vida e depoimentos pessoais — da mesma
forma que qualquer tipo de documento escrito ou registrado — passa­
rá a depender então do interesse e do objetivo da pessoa que o consul­
te, seja ele um pesquisador científico ou qualquer outro profissional.
Como sua utilização está governada pelo problema enunciado pe­
lo consultante, somente através da análise, isto é, do desmembramen­
to dos tópicos que contém, poderá ser aproveitada a informação nele
encerrada. Pode o pesquisador estar interessado em conhecer especifi­
camente quais as informações que o documento guarda; sua busca não
estará orientada então por uma questão específica e delimitada, mas
seguirá em sua indagação o contexto que o mesmo apresenta, porém
também efetuando uma análise, ou, noutras palavras, identificando os
diferentes temas nele existentes, o que significa separá-los uns dos
outros.
De acordo com esta perspectiva, a análise permite infinitas inda­
gações dirigidas aos documentos — desde que estes sejam suficiente­
mente ricos para servirem a uma grande quantidade de pesquisas. Em­
pregando um vocabulário atualmente em moda, múltiplas são as leitu­
ras que qualquer documento permite, porém a atitude dos estudiosos
diante dele são apenas duas; tomá-lo em sua peculiaridade total e le­
vantar os problemas que ele encerra; ou então efetuar a análise depois
de formuladas as questões que julga interessantes, na suposição de que
ele contém todos os elementos que permitem esclarecê-las. Estas atitu­
des se aplicam a todos os tipos de documento, sejam eles escritos ou
gravados.
Uma diferença apresentam os pesquisadores que utilizam a técni­
ca de questionários ou a de entrevistas dialogadas com roteiro (per­
gunta e resposta) para a construção de documentos. Nestes dois casos,
o próprio pesquisador, ao construir seu questionário ou seu roteiro,
efetua nesse momento o primeiro corte da realidade, a primeira análi­
se, assim como delimita, de maneira mais ou menos restrita, o âmbito
das respostas; já está, pois, definindo as seqüências em que devem ser
oferecidos os dados pelos informantes, e, em seguida, basta-lhe reunir

95
as respostas em itens ou capítulos segundo as questões, para alcançar
a síntese que se propôs realizar. Análise e síntese não partem, então,
diretamente dos dados narrados pelo informante; partem dos conheci­
mentos prévios do pesquisador, correspondendo ao que ele “ supõe”
ou “ imagina” encontrar na realidade.
Porém, tal não ocorre quando se deixou aos informantes uma gran­
de latitude na condução do seu discurso e de seus raciocínios, isto é,
quando a intervenção do pesquisador se reduziu ao mínimo possível,
como se dá nas histórias de vida e nos depoimentos pessoais. Eles têm
uma ligação muito menor com o pesquisador, e se aproximam dos do­
cumentos históricos, isto é, dos conjuntos de informação escritas ou
gravadas que, gerados no passado, se criaram sem a mediação dos es­
tudiosos que no presente visam utilizá-los. Se falamos em informações
gravadas, é porque consideramos a pintura, o desenho, a escultura tam­
bém como documentos veiculadores de noções e indicações, ao mes­
mo título que os escritos. Como nos documentos históricos, a indica­
ção dos cortes a serem efetuados não preexiste às histórias de vida e
depoimentos pessoais — a não ser de modo muito amplo, quando se
indaga, por exemplo, o que o informante lembra de sua infância e ado­
lescência predominantemente; no entanto, no decorrer da entrevista,
tem ele a liberdade de enveredar pela idade adulta, se o desejar, sem
que o entrevistador o traga de volta ao rumo sugerido. Como já se dis­
cutiu anteriormente, o documento bem colhido é aquele em que a in­
tervenção do pesquisador foi mínima — quando se trata de histórias
de vida e de depoimentos pessoais.
Estará então o pesquisador diante de um texto que se pretendeu
fosse o mais possível exterior a ele; e, repita-se novamente, diante de
um texto que pode ser encarado como um documento histórico. Exis­
te, porém, uma diferença importante entre ambos, que é a forma de
sua obtenção: o pesquisador conhece o documento desde sua origem,
está a par das situações específicas que rodearam o seu nascimento,
foi o promotor delas, no caso das histórias de vida e dos depoimentos
pessoais — o que tudo foi anotado em seu caderno de campo. Esta
circunstância torna mais significativo o que ele vai retirar do documento,
permite uma análise mais fina, porém não é condição suficiente para
indicar qual o caminho a ser seguido no recorte dos temas que a análi­
se pressupõe.
Diante do texto que assim obteve — isto é, de uma informação
gravada que, depois de transcrita, tomou a forma de uma narrativa
— o pesquisador tem três caminhos a seguir: a) leitura cuidadosa do
mesmo para ajuizar do seu conteúdo e, então, decidir os cortes que
nele poderá efetuar, a partir do material encontrado; b) trazendo já
em seu projeto as questões que lhe interessam, procurar no conteúdo
do texto as informações de que necessita; c) combinar os dois rumos,

96
que não são mutuamente exclusivos, colocando no documento as ques­
tões previamente definidas, e levantando do mesmo outros temas que
não figuravam em seu projeto, porém que de repente se lhe avultaram
como importantes. A segunda via de acesso ao material se aproxima
daquela que é seguida pelo pesquisador que utiliza questionários e en­
trevistas com roteiro, pois, como no caso deste, já haviam sido previa­
mente definidas as questões consideradas mais interessantes; porém,
ao contrário do que ocorre com os questionários, o informante não
foi pressionado no sentido de oferecer quase exclusivamente as infor­
mações ligadas às questões, ao ser efetuada a entrevista.
A combinação das duas atitudes, a e b, contida em c, é a que per­
mite a leitura mais rica do documento, de tal forma que se extraia dele
o máximo de informações, tanto a respeito das questões já formuladas
pelo pesquisador no seu projeto quanto no tocante às informações im­
previstas, que o texto pode veicular. Num e noutro caso, há um corte
importante a ser efetuado logo de início, distinguindo o plano formal
e o plano do significado, como de há muito aconselhava a velha técni­
ca da exegese. Não esquecer, porém, que se trata de dois planos pro­
fundamente imbricados, que se pressupõem um ao outro e cuja sepa­
ração se coloca, pois, como um verdadeiro artifício da parte do
pesquisador.
O plano formal diz respeito ao que, numa obra de arte, se designa
como “ estilo” , isto é, a marca pessoal que o artista impõe ao material
com que lida, a técnica que lhe é peculiar, a forma de escrita que o
distingue dos demais, que é expressão de sua sensibilidade e do seu ca­
ráter. Assim como o artista, cada informante também possui uma ma­
neira específica de conduzir a narrativa, escolhida inconscientemente
de preferência a outras, e que é importante considerar numa pesquisa.
No caso das histórias de vida e dos depoimentos pessoais, a forma se
expressa nos pontos de referência que o informante adotou para apoio
de sua narrativa, e que variam de indivíduo a indivíduo; podem ser
construídos ou pela cronologia, ou pela marca afetiva das comemora­
ções familiares e profissionais, ou pela topografia e localização no es­
paço, etc.
A forma se inscreve também na maneira pela qual se desenrola
a narrativa, — linear, circular, com idas e vindas, — marcha apoiada
nos pontos de referência específicos da fala do informante. Esta apre­
senta, pois, uma estrutura que é preciso reconhecer e nomear; tem, as­
sim, uma configuração que decorre de sua organização interna. De acor­
do com tal configuração será possível classificar os informantes em es­
pécies diversas, e, comparando as espécies com as características cons­
tantes das fichas dos mesmos — sexo, idade, instrução, estado civil,
etc — pode-se indagar da existência ou não de ligações entre estes da­
dos. Por exemplo, terão homens e mulheres da mesma faixa de idade,

97
de instrução e condição sócio-econômica semelhantes, os mesmos pon­
tos de referência e a mesma marcha da narrativa? Ou a diferença de
sexo influencia estes aspectos?
A matéria exposta pelo informante tem um significado, represen­
ta aquilo que ele comunicou ao pesquisador e que deve ser compreen­
dido por este. A maior dificuldade da análise do significado está em
sua multiplicidade, cuja base se encontra, por um lado, na soma de
conhecimentos de que dispõe o informante e, por outro lado, no con­
junto de interesses e de conhecimentos do próprio pesquisador, que,
no acervo coletado, poderá encontrar maior ou menor número de in­
formações. Esta multiplicidade de sentidos tem sido denominada “ ho­
rizontal” , porque ocorre no instante em que é avaliado o documento
pelo pesquisador, ajuizando da simultaneidade de assuntos por este vei­
culados. A variação se dá através do tempo: em épocas diversas, cada
documento será também encarado de maneira diferente, outras infor­
mações serão buscadas nele, porque os interesses e focalizações dos es­
tudiosos variam com o correr dos anos. Variação horizontal e varia­
ção vertical estão associadas: cada momento dó tempo tem a especifi­
cidade de seus interesses, ao qual se associa a multiplicidade de infor­
mações que o documento oferece.
De qualquer modo, é sempre num momento do tempo que o pes­
quisador se defronta com o depoimento, avultando um primeiro dis­
tanciamente entre ambos, entre o sentido que lhe foi dado pelo infor­
mante e o sentido captado pelo pesquisador. No caso de entrevistas
gravadas, o pesquisador se encontra diante do texto em três circuns­
tâncias diversas, pelo menos: na realização do depoimento; na escuta
da gravação para a transcrição escrita; na leitura aprofundada do do­
cumento já escrito. A captação do significado pode variar a cada uma
destas circunstâncias; se tal ocorre, torna-se necessário ouvir a grava­
ção muitas vezes, para a confirmação do significado mais próximo do
que foi veiculado pelo informante. É neste momento, também, que o
confronto com as anotações do caderno de campo do pesquisador po­
dem trazer importantes contribuições, indicando qual o sentido regis­
trado num detalhe ou num gesto, que esclareça qual a orientação mais
correta do significado.
Quando se trata de um trabalho de equipe, em que os depoimen­
tos foram recolhidos por diversos pesquisadores, e em que é necessá­
rio que todos tomem conhecimento dos mesmos para a unidade do tra­
balho, a variação dos significados se torna ainda maior, multiplicada
pela diversidade de apreensão por cada um dos entrevistadores. O cui­
dado deve também aumentar; entre maneiras de ver muito díspares,
deve prevalecer sempre a do pesquisador que colheu o informe, pois
estando presente na gênese do mesmo e em todos os momentos de sua
transformação de oral para escrita, é quem detém sensibilidade e co-

98
nhecimentos maiores a respeito do que encerra. Por estas razões se torna
aconselhável que o próprio pesquisador efetue todos os passos, da gra­
vação até o documento, para garantia da maior proximidade entre a
coleta oral e o resultado escrito; por estas razões, também, um cader­
no de campo redigido com cuidado pode servir de ponto de apoio para
dirimir dúvidas.
A constatação da multiplicidade de sentidos de um mesmo docu­
mento, orientada pela especificidade de interesses de cada pesquisador,
não vai até o ponto de se concluir que cada intérprete chegará forçosa-
mente a compreensões divergentes. Na verdade, as convergências são
sempre maiores e mais importantes do que se poderia supor. No caso
de um trabalho de equipe, em que tais dificuldades poderiam se avolu­
mar ao extremo, deve-se sempre lembrar que todos os pesquisadores
estão unidos pelo delineamento do projeto de que participaram, o que
significa um denominador comum de seus interesses e opiniões. Um
mesmo objetivo, uma mesma visão das questões, uma mesma maneira
de agir na coleta dos dados, reuniram os pesquisadores, diminuindo
as disparidades entres eles.
Se tal sucede com uma equipe, com mais razão quando se trata
do projeto de um único pesquisador. No entanto, tais reflexões mos­
tram o perigo de um projeto ideado por um ou por alguns pesquisado­
res, que utilizaram, na coleta de dados, certa quantidade de “ mão-de-
obra de pesquisa” ; estes elementos se definem simplesmente como gente
que efetua coleta de material, contratada para esta tarefa específica,
possua ou não treinamento para tanto. Também a transformação do
documento oral em documento escrito pode ser efetuada por tais ele­
mentos. Trata-se, portanto, de gente que não participou da proposi­
ção e da organização do projeto, cujos interesses não estão presos a
ele, que não têm unidade de objetivos com os pesquisadores; introdu­
zem, por isso, um novo elemento de variação relativamente ao mate­
rial, tanto no momento da gravação quanto no momento da transcri­
ção, representado pelo desenfoque trazido pelos seus próprios interes­
ses pessoais e pela menor soma de conhecimentos que possuem a res­
peito da pesquisa. Por esta razão é sempre preferível que o próprio pes­
quisador, ou a própria equipe, se encarregue tanto da coleta dos de­
poimentos como da transcrição dos mesmos.
O conteúdo de uma história de vida ou de um depoimento pessoal
deve ser encarado também na qualidade das informações registradas.
À medida que formas mecânicas de registro do cotidiano foram sendo
inventadas (o disco primeiro, o gravador mais tarde para a voz; a fo­
tografia a princípio, em seguida o cinema, para a imagem; a filmagem
falada, depois a televisão para voz e imagem ao mesmo tempo), a com­
paração de seus registros com o que resultava da aparelhagem biológi­
ca humana ressaltou a precariedade desta, em confronto com a minúcia

99
dos resultados dos demais. Chegou-se a admitir que os registros mecâ­
nicos seriam sempre preferíveis aos humanos, devendo-se substituí-los
cada vez mais. No entanto, as experiências efetuadas para a utilização
do cinema como uma técnica sócio-antropológica demonstraram o ar­
bítrio do pesquisador, primeiramente ao construir o projeto e, uma vez
terminada a filmagem, ao determinar os cortes que deveriam permitir
um encadeamento narrativo dos dados que levasse a uma compreen­
são clara. Noutras palavras, a intervenção autocrática do pesquisador
estava sempre presente, orientando a coleta e, em seguida, a concate-
nação das imagens para transmitir as idéias, muito embora se procu­
rasse resguardar a lógica do que se estava assim armazenando. Esta
ilusão de objetividade era semelhante à do pesquisador que empregava
técnicas quantitativas na coleta de seu material, e que se mostrava con­
vencido de que a utilização dos algarismos era garantia de um afasta­
mento de sua própria subjetividade; na verdade, tanto na formulação
do projeto quanto na construção da técnica de coleta, a subjetividade
está presente, e com mais ênfase talvez ainda na análise e na
interpretação.
Todavia, além dos problemas colocados pelos pesquisadores, existe
também, nas histórias de vida e depoimentos gravados, a subjetivida­
de do informante, que muitas vezes substitui ao real aquilo que indivi­
dualmente percebe do mesmo, seja de maneira parcial ou não; lado
a lado com percepções exatas, pode ele afirmar com toda a convicção
uma série de enganos. Quanto mais recuados forem os fatos no passa­
do, ou quanto mais estiverem fora da experiência cotidiana do infor­
mante, mais provável a falha da memória, registrando falsidades ou
nada registrando.
Seria possível pensar que estas lacunas estariam sanadas quando
vários depoimentos fossem colhidos sobre o mesmo fato. A socióloga
francesa Germaine Tillion, ao participar como testemunha nos julga­
mentos de Nuremberg, depois da segunda guerra mundial,6 observou
que depoimentos de vários informantes convergiam para o mesmo en­
gano, todos dando-o com sinceridade como verdadeiro. Efetuou en­
tão um confronto entre tais documentos e os informantes, verificando
que se tratava sempre de indivíduos educados no mesmo grupo, ou em
camadas sócio-econômicas e culturais semelhantes; sua hipótese expli­
cativa foi que tais indivíduos, a partir de uma socialização praticamente
idêntica, formulavam imagens mentais análogas, que orientavam todo
o seu registro da memória. Noutras palavras, não era o fato em sua
autenticidade que se gravava nas recordações, e sim uma interpreta­
ção, uma verdadeira “ tradução” do mesmo. Assim, “ hábitos mentais” ,
adquiridos através de socialização e de experiências de vida homólo­
gas, se substituíam à percepção “ pura” do real. Esses informantes afir­
mavam convictos algo que em seguida se desvendava como sendo um

100
engano. A quantidade de depoimentos colhidos sobre um mesmo fa­
to, todos no mesmo sentido, não era então garantia de que o fato ti­
vesse ocorrido da forma como fora gravado na memória; antes de dá-
lo como verdadeiro, era preciso saber quem tinham sido os informan­
tes, que posições ocupavam na escala social. A segurança do que fora
resgistrado só se evidenciava quando os depoimentos tivessem sido apre­
sentados por informantes muito diferentes entre si quanto à sua expe­
riência de vida, camada sócio-econômica, instrução, etc.
Tais observações poderíam ter levado Germaine Tillion a descrer
profundamente de todos os testemunhos que foi recolhendo, tanto du­
rante seu cativeiro no campo de concentração de Ravensbrück, como
depois de libertada e, mais tarde, quando participou dos julgamentos
de Nuremberg. A quantidade de testemunhas e a convergência ou não
de seus relatos não lhe pareceram, efetivamente, meios seguros de reen­
contrar a verdade do passado; de onde concluir que as estatísticas não
ofereciam nunca meios seguros de verificação do real. O estabelecimento
da verdade objetiva se prendia a outros cuidados, que procurou des­
vendar, valendo-se de sua experiência de socióloga.
O primeiro cuidado era separar, nos documentos existentes, tudo
quanto se referisse a dados institucionais e permanentes; em geral tais
dados são registrados em documentos muito variados, além dos de­
poimentos pessoais; o cotejo entre os outros tipos de documento e os
depoimentos pessoais permitia descobrir certos enganos. O segundo cui­
dado era distinguir, nos depoimentos pessoais, tudo quanto se referis­
se aos “ rituais” da vida cotidiana em seus detalhes, às hierarquias e
à composição interna dos grupos em que estavam inseridos os infor­
mantes; também sobre estes aspectos existia documentação registrada
de outras formas, e seu cotejo com o depoimento efetuava a verifica­
ção desejada.
Restavam então, nos depoimentos, os “ acontecimentos” e sua per­
cepção, assim como as opiniões dos informantes. Germaine Tillion não
define o que entende p,or “ acontecimento” ; porém, a maneira pela qual
emprega o termo indica que o utiliza no sentido da verbalização de tu­
do aquilo que sucede num momento e numa localização determinados,
e que se distingue do curso uniforme de fenômenos da mesma nature­
za; o interesse do “ acontecimento” , seja ele previsível ou imprevisí­
vel, está em que escapa inteiramente do corriqueiro. Este significado
do termo “ acontecimento” coloca imediatamente o problema da per­
cepção dos informantes, os quais, conforme sua experiência e sensibi­
lidade, o enxergarão ou não como divergindo do “ curso uniforme de
fenômenos da mesma natureza” . Assim, cada informante poderá de­
finir ou não como “ acontecimento” os fatos que ocorrem em sua exis­
tência, dependendo tal definição de seu próprio modo de encarar as
coisas. Além do “ acontecimento” , também depende da percepção in­

101
dividual tudo quanto se refere à avaliação da duração, à situação no
espaço físico e social, aos movimentos, às formas, às cores, ao núme­
ro, à quantidade; todas estas percepções trazem o selo do indivíduo
que as formulou, e, através dele, da posição sócio-econômica que ocupa.
É então que se coloca como primordial a escolha dos informan­
tes, que deve ser orientada segundo os problemas delimitados no pro­
jeto de pesquisa; noutras palavras, é preciso escolher informantes váli­
dos para as questões a serem estudadas. Informante válido é aquele
que se supõe de antemão possuir uma vivência do que se procura co:
nhecer. Quando se buscava conhecer, como Germaine Tillion, o desti­
no último de um grupo de mulheres internadas ao mesmo tempo que
ela no campo de concentração de Ravensbrück, tanto eram informan­
tes válidos as suas companheiras de detenção quanto os componentes
da aparelhagem carcerária, burocrática e administrativa do mesmo, co­
mo também podiam ser interessantes os depoimentos dos habitantes
das vizinhanças; mas, além destes, somente os membros da cúpula na­
zista poderíam também ser considerados informantes válidos. Infor­
mantes válidos são, portanto, aqueles que, no momento histórico es­
colhido, tiveram vivência do que se procura conhecer, informantes que,
porém, deveríam ter experiências de vida diversas uns dos outros.
O segundo cuidado com estas informações é definir qual a rela­
ção existente entre o informante e o que se quer conhecer (relação pro­
fissional, relação afetiva, relação acidental, relação interessada ou de­
sinteressada, etc.). A confiabilidade do relato, sua maior ou menor
aproximação do real, repousam no sentido desta relação. Voltando ao
caso de Germaine Tillion, o depoimento dos membros da burocracia
ou da aparelhagem carcerária de Ravensbrück se orientaram em dire­
ção diferente daquela das prisioneiras; a definição de cada “ aconteci­
mento” era diversa numa e noutra situação. Não se tratava de elimi­
nar um conjunto de informantes em função de outro; o procedimento
era confrontar os depoimentos de cada conjunto, a fim de se estabele­
cer divergências e convergências, a serem interpretadas'à luz das rela­
ções dos informantes com os “ acontecimentos” .
O objetivo de Germaine Tillion era chegar à verdade a respeito
do campo de concentração de Ravensbrück e do destino dado às pri­
sioneiras que periodicamente eram dele retiradas — objetivo que ul­
trapassava a sua própria vivência como prisioneira; dos acontecimen­
tos que sua memória havia então gravado, quais os que objetivamente
tinham existido como tal, quais os que resultavam de uma percepção
insuficiente, ou mal orientada, ou enganosa? Assim, a crítica da per­
cepção se iniciava com a da sua própria maneira de ver as coisas. Sua
busca se equipara à dos historiadores em geral, que procuram desven­
dar qual teria sido a realidade concreta de um momento recuado no
passado, através da quantidade de documentos escritos, iconográficos

102
ou outros; para todos eles, reencontrar o passado era a finalidade
principal.
Todas as pesquisas não se orientam forçosamente para este obje­
tivo. Em outras palavras, a curiosidade pelo que ocorreu em tempos
idos recua para um segundo plano, estando em jogo a análise do pró­
prio documento, ou de um conjunto de documentos, a fim de se verifi­
car que temas podem estar ali contidos, ou que problemas encerra. Não
se trata mais de tentar desenredar um ou vários acontecimentos na tra­
ma do texto. Importa verificar o que o informante define como acon­
tecimento, e como se coloca diante dele, o que é revelado pelas opi­
niões e julgamentos que efetua a esse respeito. Não é só o documento
que está em jogo neste segundo tipo de abordagem; o documento é mais
do que o que se encontra escrito, pois através de seu exame revela tam­
bém os mecanismos de percepção e de julgamento do informante, e,
desde que estes se encontrem repetidos num conjunto de informantes
de determinada camada social, ou de determinada profissão, ou de de­
terminada instrução, etc., detecta uma possível relação entre a posição
social-econômica do informante ou do conjunto de informantes e sua
maneira de ver um acontecimento. Deixa-se então o contexto da re­
construção histórica para buscar entender estruturas e organizações so­
ciais, através dos informantes, de suas qualidades, das percepções e
opiniões que exprimem.
Não cabe, neste caso, procurar a existência ou não daquilo que
o informante apresentou como “ acontecimento” ; cabe, isso sim,
registrá-lo como tal, e classificar o informante de acordo com os tipos
de evento que considerou extraordinários, isto é, que de seu ponto de
vista saíram do curso “ normal” dos fenômenos do mesmo gênero. Nes­
ta perspectiva se captará o que é “ normal” e o que é “ extraordinário”
para cada informante ou grupo de informantes.
Antes de entrar na própria matéria veiculada pelo informante, cum­
pre verificar que atitude ele manifesta em sua narrativa, como ele reú­
ne “ acontecimentos” e “ julgamentos” . Três seriam estas atitudes pos­
síveis: a) transmitir simplesmente os acontecimentos passados a que as­
sistiu ou de que teve conhecimento, numa atitude específica de teste­
munha; b) narrar os acontecimentos entremeando em seu discurso, ime­
diata e explicitamente, reflexões de ordem geral ou específica, compa­
rações de uns fatos com outros, manifestar julgamentos e opiniões, nu­
ma atitude em que a testemunha fica inteiramente obscurecida pelo
“ avaliador” ; c) mesclar a atitude de testemunha com a atitude de
avaliador.
É verdade que não serão encontrados nem “ testemunhas” nem
“ avaliadores” puros; a classificação do informante num ou noutro gê­
nero decorre da predominância de uma ou outra destas duas qualida­
des, enquanto no terceiro gênero se torna impossível descobrir uma

103
predominância qualquer. A análise do texto nesta perspectiva leva a
um conhecimento voltado para os informantes e não para o material
veiculado pelo documento. No entanto, a separação entre “ aconteci­
mento” e “ avaliação” é também extremamente importante para se co­
nhecer o material que ele contém e defini-lo quanto ao conhecimento
que permite alcançar.
Se a riqueza dos “ acontecimentos” narrados é maior do que as
“ avaliações” do informante, os conhecimentos se dirigem mais para
o esclarecimento da realidade concreta; na vertente oposta, esclarecem-
se mais os valores, os modos de pensar, as visões do mundo do infor­
mante e, no caso de haver convergências entre vários informantes, a
visão do mundo de um grupo ou de uma parte da sociedade, ou mes­
mo de toda ela. Porém, mesmo quando o informante ou o grupo de
informantes tomam a atitude de testemunhas antes de tudo, a maneira
pela qual definem o que para eles é um acontecimento traz esclareci­
mentos muito importantes a respeito de sua própria visão do mundo.
Separados os “ acontecimentos” e as “ avaliações” no documen­
to, é preciso distinguir os temas principais, tanto da narrativa objetiva
quanto das reflexões e opiniões. Dois tipos de operações são necessá­
rios previamente: a) eliminação de todas as repetições, paráfrases, im­
plicações etc., ou melhor, uma “ limpesa” do texto quanto às reitera­
ções que freqüentemente ocorrem em qualquer narrativa; b) seleção
dos temas que o pesquisador considera de importância para o seu tra­
balho, tanto no que diz respeito aos “ acontecimentos” quanto às “ ava­
liações” , deixando de lado os temas que não digam diretamente res­
peito ao que está efetuando; esta seleção é fundamental. Lembrar, po­
rém, que as repetições, paráfrases, etc., têm muita importância num
outro momento do trabalho, isto é, quando se estudou a forma da nar­
rativa, na sua linearidade ou não, assim como nos pontos de referên­
cia do informante; as repetições e paráfrases são, para tanto, indica­
dores inestimáveis. Porém não apresentam a mesma importância quan­
do se tem por objetivo o estudo do conteúdo.
Quando se inicia este, a seleção dos temas se torna fundamental.
A técnica de escolha leva a uma condensação sistemática dos “ aconte­
cimentos” e das “ avaliações” apresentadas pelo informante. Coloca-
se, pois, como o oposto de um levantamento exaustivo do que contém
um documento;7 este levantamento exaustivo pode ser efetuado como
uma listagem preliminar, da qual serão extraídos os temas fundamen­
tais para o informante e os temas fundamentais para o pesquisador.
Pretender conservar todos os temas encontrados torna impraticável a
análise; querer tudo conservar é simplesmente reproduzir o documen­
to em sua totalidade. Na medida em que a análise se define como a
decomposição de um documento em suas partes, ela se apresenta co­
mo o contrário de tal conservação.

104
Os temas ou tópicos são unidades de identidade diferente que com­
põem a estrutura de uma narrativa. Numa história de vida, vários te­
mas podem ser encontrados, dizendo respeito ao próprio evoluir do
informante (infância, adolescência, etc.), à família, à profissão, etc.
No momento da definição dos temas pelo pesquisador, o projeto de
pesquisa reaparece em cena, pois a identificação deles deve seguir os
propósitos do pesquisador ao construí-lo: se teve por objetivo conhe­
cer a vida de determinada camada social num período do tempo e nu­
ma localidade, seus temas se relacionarão com os acontecimentos his­
tóricos daquele período e daquela localidade; com a família; com a pro­
fissão; e assim por diante. Pode ser, no entanto, que o conteúdo do
documento seja de tal monta que o pesquisador, em lugar de seguir
a ordem dos problemas que colocou no seu projeto, escolha os temas
mais salientes que for encontrando; neste caso, estará efetuando uma
reformulação de seu projeto a partir do material encontrado, devendo
então apresentar a justificativa de sua mudança de orientação.
Uma vez selecionados os temas, tanto no que diz respeito aos
“ acontecimentos” quanto às “ avaliações” de informante (que podem
ser morais, sociais, econômicas, etc., quanto aos valores que as orien­
tam), um outro momento da busca se abre para o pesquisador: rela­
cionar os temas, sua ordem e a freqüência com que aparecem no docu­
mento, com as características dos informantes, como já se fizera com
os aspectos formais (pontos de referência, marcha da narrativa, etc.),
com a maneira de narrar do informante (testemunha, avaliador, ou am­
bos), isto é, com os resultados dos diversos cortes que foram sendo
efetuados no documento. A orientação a ser seguida nestas compara­
ções se aproxima das que são habitualmente utilizadas nas análises de
questionários e de entrevistas com roteiro: verificar se a qualidade dos
informantes que apresentam determinados traços narrativos, por exem­
plo, é a mesma de acordo com o sexo, a idade, a instrução, o nível
sócio-econômico, a profissão, etc. Compara-se, portanto, o resultado
da análise com a composição da ficha dos informantes.
A inserção do informante em camadas, grupos e conjuntos de sua
sociedade torna a ser importante neste passo. A escolha de informan­
tes, num projeto de pesquisa, raramente é deixada ao acaso; eles re­
presentam sempre uma coletividade, e as coletividades são sempre in­
ternamente diferenciadas, estruturadas segundo a idade, o sexo, a ins­
trução, a profissão, etc. O pesquisador delineia sempre, em seu proje­
to, quais os contornos do grupo (em sentido amplo) em que será efe­
tuada a pesquisa; por exemplo, pode escolher fazê-la exclusivamente
entre mulheres de 20 a 50 anos, tendo de levar em consideração então
as faixas de idade, as localidades a que pertencem as informantes, o
nível de instrução, o estado civil, as distinções econômicas. Nenhum
grupo ou parcela de grupo ou coletividade forma um todo monolíti­

105
co. Admitir a importância de tais diferenciações equivale a afirmar que
provavelmente elas influem tanto nos aspectos formais quanto no con­
teúdo das informações veiculadas. Tal afirmação genérica, implícita
na formulação do projeto de pesquisa, necessita ser explicitada sob a
forma de uma questão; por exemplo, influirão as faixas de idade nas
informações prestadas por mulheres entre 20 e 50 anos, de tal localida­
de, ou a diferenciação das informações passará por outra linha, pelo
crivo da instrução, por exemplo? Todos os dados que compõem a fi­
cha do informante se convertem, assim, em indagações a respeito do
que se procura encontrar. As respostas são buscadas nos cotejos entre
as qualificações da ficha e os resultados das análises efetuadas; pois
só assim se alcançará conhecer até que ponto tais distinções realmente
influirão sobre a percepção e o julgamento dos acontecimentos pelos
informantes.
Noutras palavras, os parâmetros observados na escolha dos infor­
mantes contêm o pressuposto de que os critérios escolhidos deveríam
ser os mais eficientes para a obtenção dos informes desejados. A com­
paração entre, de um lado, as diferenciações dos informantes previa­
mente estabelecidas, e, de outro, os resultados da análise dos docu­
mentos, desvendará concomitâncias ou não entre ambos, permitindo
inferir ligações entre eles; as respostas negativas ou positivas destas com­
parações são uma das conclusões da pesquisa, que deve, porém, ser
encarada como hipotética. De fato, a pesquisa realizada se configura
como o levantar da ponta de um véu, demonstrando a existência de
novos problemas — no caso, a existência ou não da ligação entre os
caracteres dos informantes e os caracteres de seus depoimentos. Estas
conclusões, que sugerem novas questões, deverão determinar a formu­
lação de novos projetos de pesquisa.
Os resultados do cotejo acima exposto permitem também avaliar
criticamente se a marcha adotada na realização da pesquisa foi satisfa­
tória em seus diversos passos: a) se as questões propostas pelo pesqui­
sador em seu projeto podem realmente ser esclarecidas pelo procedi­
mento que adotou na realização da pesquisa; b) se a escolha dos infor­
mantes foi válida para os problemas então colocados; c) quais os pro­
blemas não delineados no projeto, mas que as informações dos depoen-
tes mostram existir; d) se as técnicas empregadas foram satisfatórias
para se alcançar alguns resultados, se foram suficientes; é) se a abor­
dagem empregada aponta outras técnicas que seriam igualmente ne­
cessárias a fim de complementar de maneira eficiente as informações
obtidas. O balanço destas questões constitui também uma parte das
conclusões da pesquisa.
Todas as comparações, todos os resultados, todas as críticas, to ­
mam então a forma de um reagrupamento do conteúdo dos documen­
tos, alcançado através das diversas análises, compondo assim uma no­

106
va narrativa. Nesta, as informações a respeito dos dependentes (fichas
de informantes), os acontecimentos e as avaliações de seus depoimen­
tos (gravações transcritas), as condições em que os depoimentos fo­
ram efetuados (cadernos de campo), e as análises efetuadas, foram reor-
denadas segundo as questões colocadas no projeto de pesquisa, for­
mando um todo coerente, isto é, uma síntese. Esta é constituída, pois,
pela exposição de todos os resultados das várias etapas de pesquisa,
que reproduz, sob uma outra forma inteiramente diversa, o conteúdo
do documento. É certo que não se trata da reprodução integral do mes­
mo; para quem quiser conhecê-lo em tudo quanto contém, as fontes
— gravações, documentos escritos — devem ficar à disposição. Aqui
o que se pretende é esclarecer algumas questões.
O pesquisador chegou ao término de seu trabalho quando apre­
sentou, numa narrativa bem ordenada e coerente, tudo quanto se pro­
pôs investigar no documento ou nos documentos de que lançou mão,
mostrando as respostas positivas e negativas às questões que colocara
em seu projeto. O balanço final das respostas configura a interpreta­
ção dada ao que foi encontrado no documento, em seu cotejo com as
perguntas do projeto. Porém, a partir destas conclusões é possível efe­
tuar novos raciocínios e novas indagações, que não seriam alcançados,
se não tivesse havido a síntese narrativa; novos raciocínios e novas in­
dagações que são pontos de partida para outras pesquisas.
No momento em que foram iniciadas as comparações entre, de
um lado, os caracteres dos informantes e, de outro, os resultados das
indagações à forma e conteúdo dos documentos, passou-se da análise
para a síntese. Noutras palavras, os diversos aspectos que haviam sido
considerados separadamente são reunidos para compor um todo, di­
verso do ponto de partida da pesquisa; desvendados os detalhes pela
análise, buscou-se o conjunto coerente que compunham. Muitas vezes
esta passagem é difícil de ser percebida, a análise conduzindo quase
imediatamente a uma síntese interpretativa, mas estes momentos, que
podem ser coexistentes ou sucessivos, existem sempre numa pesquisa
bem conduzida.
Nota-se então que, ao se proceder à solução do problema propos­
to, três situações são configuradas: no primeiro tempo, a proposição
das questões que se pretende resolver, que forma então a “ tese” que
se deseja estudar; o segundo tempo é o da análise, que se configura
como uma antítese, uma vez que, desagregando a tese em diversas par­
tes, e dando nesse momento toda a importância a estas, contradiz a
totalidade; no terceiro momento, a comparação dos resultados da aná­
lise com as questões propostas no projeto configuram uma síntese, is­
to é, uma fusão dos dois primeiros tempos, num conhecimento novo
que, expressando algo diverso em relação ao ponto de partida e à aná­
lise, conserva no entanto elementos dele que forem importantes para

107
o conhecimento do problema, integrando-o num novo conjunto e for­
mando uma nova globalidade.

NOTAS

1. Bosi, Ecléa, Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo, T.A. Queiroz,
1979.
2. Lewis, Oscar, Os filhos de Sanchez. Lisboa, Ed. Moraes, 1970.
3. Casanova, Mário Leônidas, Ioiô Pequeno da Várzea Nova. São Paulo, Clube do Li­
vro, 1979.
4. Gurvitch, Georges, La vocation actuelle de la Sociologie. Paris, Presses Universitai-
res de France, 1957.
5. Mello e Souza, Gilda de, Exercícios de leitura. São Paulo, Livraria Duas Cidades,
1980.
6. Tillion, Germaine, Ravensbrück. Paris, Editions du Seuil, 1973.
7. Ghiglione, Rodolphe, Jean-Léon Beauvois, Claude Chabrol e Alain Trognon, M a­
nuel d ’analyse de contenu. Paris, Armand Colin, Collection U, 1980.

108
IX - Da arte de dividir,
da engenhosidade de construir

A análise do conteúdo das entrevistas, efetuada pelas pesquisado­


ras do trabalho que serve de exemplo a estas observações, apresentou
maiores dificuldades do que a princípio se supusera. A tarefa, de iní­
cio, não se afigurava muito árdua; pensou-se que seria suficiente dis­
tinguir os principais temas, de acordo com o projeto de pesquisa e de
acordo com o conteúdo dos depoimentos, formando um elenco de ques­
tões a serem investigadas em cada um dos depoimentos. O mesmo elen­
co, adotado pelas pesquisadoras, nortearia o que deveria ser buscado
em cada um deles. Em seguida, ordenando-se entre si os temas do elen­
co, chegar-se-ia a construir uma totalidade, que deveria responder às
questões primordiais do projeto. Assim, temas oriundos do projeto de
pesquisa e temas oriundos dos depoimentos comporiam, quando or­
denados, um eixo que organizaria uma narrativa, construindo o traba­
lho final.
Estes temas e a formação do competente eixo constituiríam tam­
bém o instrumento para se operar a passagem dos vários discursos in­
dividuais que representavam os depoimentos para um discurso em que
o individual recuaria diante dos temas, os quais guiariam a exposição
sistemática dos dados. Operar-se-ia assim a passagem do relato indivi­
dual autenticado e nomeado, para o dado anônimo; o conjunto de da­
dos anônimos, ordenados de acordo com os temas do projeto, compo­
riam o relatório final da pesquisa; estes dados anônimos (destacados,
pois, dos depoimentos) estariam interligados pela ordenação dos te­
mas encontrados no interior de cada depoimento, e estes temas que
haviam fluído dos próprios depoimentos, se ordenariam entre si de acor­
do com as questões colocadas pelo projeto. O relatório final daria, pois,
um panorama ordenado do que seria a vida dos habitantes de poucos
recursos da cidade de São Paulo, entre 1920 e 1937.
Ao que tudo indicava, a cronologia deveria ser o guia principal
na exploração de todas as entrevistas, a fim de ordená-las, sobrepu­
jando os outros temas, sendo necessário: á) levantar todas as datas di­
retamente mencionadas pelos informantes, assim como os fatos a elas
referentes, reformulando a cronologia de suas vidas; b) identificar as
datas facilmente discerníveis, porém não diretamente mencionadas pelos
depoentes (por ex., o entrevistado podia dizer o ano e a idade em

109
que se casara, sem todavia mencionar o ano em que nascera, de onde
se deduzia o ano do nascimento), datas que seriam incluídas na crono­
logia, porém com um sinal que as identificasse como indiretamente ob­
tidas (por ex., escritas em cor diferente); c) reordenar todas as entre­
vistas de acordo com as datas direta e indiretamente obtidas, para se
ter o encadeado das histórias através do tempo. Pois raramente se ha­
via obtido narrativas que seguissem a seqüência do tempo; na maior
parte das vezes, caminhavam para a frente, recuavam, ao sabor das
recordações e das associações de idéias.
O segundo guia importante seria geográfico, pois estava em jogo
caracterizar a cidade de São Paulo; ele se expressa na menção de bair­
ros e ruas em que tivesse habitado o entrevistado, com suas descrições
respectivas e acontecimentos. Seria útil, então, construir um mapa da
cidade que registrasse estes bairros e ruas, de modo a ter-se uma visão
geral do âmbito coberto pelas entrevistas, e qual o sentido das peregri­
nações dos informantes no período pesquisado, mudando de moradia
ou de emprego.
Seguindo o relato cronológico e geograficamente ordenado,
construir-se-ia a biografia de cada informante, que conteria descrições
concernentes à família, à vida ocupacional, ao grupo de vizinhança,
aos acontecimentos gerais marcantes que tivesse mencionado. Três cor­
tes seriam então tentados — segundo a cronologia, a geografia, o con­
teúdo — na composição da biografia.
A separação destas partes podia ser efetuada por meio de ficha-
mentos, com um conjunto de fichas para cada informante, diversamente
coloridas segundo os temas, de maneira a poder-se rapidamente com­
por conjuntos do mesmo colorido, originados em depoimentos diver­
sos. Ou então se realizaria um relato corrente e discursivo, que seguis­
se os marcos adrede determinados, sendo coloridos diversamente os
temas de conteúdo (uma cor para a família, uma cor para as ocupa­
ções, etc.) para chamar rapidamente a atenção sobre eles. Esta segun­
da alternativa foi escolhida pelas pesquisadoras depois de discussão em
grupo; argumentou-se que, como se deveria apresentar ao final um re­
latório de tipo narrativo, seria mais eficiente desde o início da análise
seguir a via ligada à forma final. Por outro lado, o fichamento sendo
mais lento, e havendo certa premência de tempo, escolhia-se o cami­
nho mais rápido.
As orientações assim expostas, que decorriam dos problemas exis­
tentes no projeto de pesquisa, constituíam uma forma logicamente vá­
lida de explorar os depoimentos, distinguindo os temas principais. Viu-
se, porém, que realmente a cronologia não podería ser um eixo válido
de reorganização, porque os relatos se afastavam muitíssimo dela, se­
guindo outros caminhos; também as localizações geográficas, embora
existindo muitas vezes com grande precisão, nada tinham a ver com

110
o encaminhamento das narrativas, constituindo realmente detalhes. Se­
guir estes dois rumos seria forçar uma ordem que não existira nos rela­
tos, e que portanto deturparia o sentido dado pelos informantes. Por
outro lado, a visão da cidade estava profundamente entrelaçada com
a família, com as ocupações, com os acontecimentos, raramente res­
saltando como algo em si mesmo, e não podendo ser separada daque­
les tópicos.
Verificou-se igualmente que a variedade dos relatos era muito gran­
de, sendo extremamente difícil distinguir temas gerais; reduzi-los a um
mínimo denominador comum era a única saída válida, caso contrário
se operariam cortes que redundariam em grande perda de detalhes e
até mesmo de partes importantes. Não se conseguiría, assim, chegar
a um conjunto coerente e ordenado de informações sobre a cidade, sem
operar transformações nos textos obtidos, quando do seu ordenamen­
to. A “ grade” que se pensara construir (nome dado à reunião de te­
mas ou de palavras-chave que servem para recortar um texto) defor­
mava as contribuições obtidas.
Além do mais, aparecera uma espécie de descompasso entre en­
trevistas “ ricas” e “ pobres” , com vários graus intermediários entre
os extremos. Noutras palavras, enquanto algumas entrevistas se desta­
cavam pela abundância de acontecimentos e de detalhes, outras pare­
ciam sucintas e secas. Algumas seguiam já uma ordenação espontânea
que facilitava a compreensão, enquanto outras eram marcadas pela de­
sordem da narrativa, colocando dificuldades para se discernir os pró­
prios temas que o informante pretendera abarcar.
Desta forma, o rumo que de início se determinara seguir, isto é,
a formação de uma narrativa final única, ordenada cronológica e geo­
graficamente, composta dos temas mais comumentes encontrados, não
parecia poder ser trilhado. Nas discussões então havidas, voltaram no­
vamente à baila questões que haviam sido discutidas anteriormente e
que se acreditava já solucionadas:
1 — A escolha do informante: seria válido fazê-lo ao acaso, como
se procedera no trabalho, respeitando somente a categoria econômica
e a idade, como se convencionara de início? Não seria necessário efe­
tuar sempre uma seleção prévia, com critérios a serem fixados, que per­
mitisse aproveitar apenas os informantes cuja memória se mostrasse
mais fértil, que apresentassem quantidade maior de lembranças e fos­
sem capazes de desfiá-las de maneira mais organizada? E quais os pa­
râmetros para a escolha destes informantes?
2 — As relações entre informante e pesquisador: a “ pobreza”
de uma entrevista não seria conseqüência da atitude do próprio pes­
quisador, não querendo interferir na fala dos entrevistados? Ou pe­
cando por demasiada simpatia ou, ao contrário, por demasiada indi­
ferença? Como conduzir o relacionamento de maneira a criar entre

111
ambos um clima favorável, que redundasse numa abundante “ hora da
saudade” ?
A volta a estas questões que se acreditava resolvidas podia signifi­
car que os rumos trilhados não haviam sido os mais adequados, resul­
tando num material pouco apropriado ao que se pretendia. Podia sig­
nificar também que depoimentos pessoais e histórias de vida dificil­
mente poderíam ser utilizados para resolver problemas históricos bem
determinados no tempo e no espaço; seriam mais adequados para o
estudo de questões relacionando memória individual e memória coleti­
va, como mostrava o estudo de Ecléa Bosi, ou então para instruir so­
bre relacionamento familiar e de vizinhança, como se depreendia do
trabalho de Oscar Lewis.
Noutras palavras, no caso de se admitir a inoperância dos dados
colhidos para resolver os problemas do projeto de pesquisa, então se
estaria condenando a esta tal qual fora programada, ou melhor: 1)
condenava-se o instrumento escolhido, que não servia para colher da­
dos que respondessem às questões do projeto — isto é, as histórias de
vida e os depoimentos pessoais seriam inadequados para tanto; 2)
condenava-se a forma de escolha dos informantes, que fora deixada
ao acaso; 3) condenava-se o relacionamento adotado entre informante
e pesquisador, que exigira se deixasse o informante livre para efetuar
qualquer associação de idéias, indo e vindo de um fato a outro, sem
seguir nenhuma ordem preestabelecida, e sem a intervenção do pes­
quisador.
Admitindo-se que o rumo não se mostrara frutífero, e que tanto
a escolha do instrumento quanto a do informante — assim como o re­
lacionamento deste com o pesquisador — deveríam ser diversos do que
fora estabelecido, estava-se também admitindo que histórias de vida
e depoimentos pessoais não eram adequados à solução de problemas
histórica e geograficamente determinados. Era o que tinha sido geral­
mente admitido pelos pesquisadores que até então haviam lidado com
esta técnica, os quais simplesmente reproduziam em seus trabalhos as
narrativas, elucidando com elas somente questões muito gerais da so­
ciologia e da antropologia, ou então problemas específicos da psicolo­
gia individual e coletiva. A dificuldade em re-arranjar as entrevistas
obtidas parecia indicar que esta última via era a única a ser seguida:
a recusa em recortá-las, utilizando-as em sua totalidade.
Se as críticas sobre o encaminhamento do trabalho fossem váli­
das, então toda pesquisa com a utilização de documentação oral exigi­
ría um tempo de preparo muito mais longo, pois seria indispensável:
1) estabelecer de antemão normas rígidas para a escolha dos informan­
tes, que seriam buscados rigorosamente de acordo com elas; 2) apro­
fundamento das discussões sobre relações entre pesquisadores e infor­
mantes, buscando o que seria mais apropriado para o tipo de infor­

112
mante que se determinara escolher. A cada novo projeto de pesquisa
estas discussões seriam necessárias, aumentando o tempo de preparo
da mesma a fim de se estabelecer com segurança os parâmetros a se­
rem obedecidos. O tempo de realização da pesquisa se alongaria, im­
portando em maiores gastos, uma vez que novas etapas se adiciona­
vam às que haviam sido previstas, por exemplo, na pesquisa em curso.
Várias discussões em seminário giraram em torno destes assuntos;
porém, o conhecimento que possuíam já as pesquisadoras de todos os
textos obtidos, a riqueza que encontravam neles, mostravam claramente
que as técnicas e a escolha dos informantes não deviam ser postas de
lado como inoperantes. O defeito devia estar na forma pela qual se
pretendera efetuar a divisão dos textos e, talvez, também, na decisão
de transformá-los em conjuntos de dados anônimos a respeito de cada
tema, fragmentando-os de acordo com estes. Tinham razão os pesqui­
sadores anteriores, ao quererem conservar os depoimentos e histórias
de vida em sua totalidade, isto é, conservando-os como documentos
personalisados. Porém, isto não impedia que se recolocasse o proble­
ma de sua distinção por temas.
Reconheciam, pois, as pesquisadoras que os depoimentos colhi­
dos não eram inúteis para o esclarecimento dos problemas propostos,
muito pelo contrário; na verdade, encerravam aspectos importantes e
insuspeitos para o esclarecimento da vida das camadas inferiores da
cidade de São Paulo, em pontos os mais variados. Esta observação vi­
nha mostrar que a escolha ao acaso dos informantes, tal como se efe­
tuara, era perfeitamente válida. Por outro lado, o bom relacionamen­
to entre as pesquisadoras e os informantes, sua não-interferência nos
relatos, e a riqueza destes em geral, mostravam que não se devia tam­
bém recolocar em questão o procedimento adotado desde o início. O
acordo era total quanto à avaliação do material obtido e quando cote­
jado este com o que fora colhido por Ecléa Bosi e por Mario Leônidas
Casanova: os depoimentos colhidos pelas pesquisadoras, com seus apa­
rentes altos e baixos, eram preciosos. Diante desta constatação, não
tinha mais sentido distinguir entrevistas “ ricas” e “ pobres” ; todas e
cada uma constituíam um manancial de dados que era preciso
aproveitar.
O mais indicado era, pois, não recolocar questões que dissessem
respeito ao que já estava efetuado, buscando solucionar um possível
defeito da análise e da síntese, tais como se havia pensado realizar. Era
necessário, então, retomar as entrevistas para descobrir que outras di­
visões temáticas seriam cabíveis. Para tanto, volveram as pesquisado­
ras às transcrições datilografadas, numa quarta leitura das mesmas,
a contar da primeira, que fora a própria transcrição.
Esta nova investigação tornou patente às pesquisadoras o quanto
a busca da distinção temática que haviam efetuado, e que aparente­

113
mente tinha sido desnecessária e falha, lhes permitira penetrar a fundo
nos textos: ao realizarem o desmembramento dos temas, tinham per­
cebido novos detalhes, novos ângulos, novas perspectivas que agora
tomavam vulto e realce. A etapa falha não se constituira em tempo
perdido; ao contrário, o desmembramento em temas se apresentava ago­
ra como uma fase indispensável para ampliar e aprofundar o conheci­
mento, para enriquecer com novas descobertas o acervo de dados de
cada texto. Constituira esta fase, para as pesquisadoras, um verdadei­
ro “ deixar-se possuir” pelo texto da maneira a mais minuciosa e
completa.
Além disso, desta primeira composição temática resultara uma cro­
nologia que tinha utilidade para balizar os eventos (embora não deves­
se constituir um guia fundamental para a reconstituição da síntese) e
um mapeamento do espaço em que se movimentavam os informantes,
mostrando as especificidades dele no período estudado.
A quarta leitura dos textos evidenciou que as linhas temáticas en­
contradas em todos eles eram histórico-sociológicas, isto é, diziam res­
peito a dados específicos da sociologia e da história; eram a família,
o trabalho, os acontecimentos notáveis da vida citadina. Através deles
surgia a cidade, com suas características e peculiaridades. Estes três
temas é que constituíam o mínimo denominador comum perpassando
todos os depoimentos. As lembranças da cidade, geograficamente lo­
calizadas, eram medidas pelos eventos familiares. A cidade propria­
mente dita, com suas diversas ruas e variados bairros, nem sempre im­
primira sua marca nas recordações dos informantes; cenário existente,
não tinha no entanto conteúdo em si. Porém, se eventos familiares,
ocupações, acontecimentos eram realmente o fulcro das lembranças,
ao mesmo tempo que seu conteúdo, não apareciam soltos num espaço
indiferenciado, nem flutuantes no tempo; ligavam-se a bairros, a ruas,
a períodos da existência, que caracterizavam e qualificavam. Era por
seu intermédio que estes se tornavam conhecidos.
Notou-se também como era raro que a cronologia determinasse
a seqüência dos relatos e o fluxo da memória. Por isso não podia ser­
vir de linha mestra orientadora de todos eles, pois somente em alguns
aparecia como viga-mestra. A noção de tempo e de seu fluir não exis­
tia, pois, em si mesma; fazia parte de um conjunto, e era através de
outras balizas que passava a ser recortada. Não se dizia: em tal ano
aconteceu tal coisa. Dizia-se, ao contrário: tal coisa aconteceu assim,
assim, assim, e essa coisa acho que foi em tal ano. Sendo que muitas
vezes nem mesmo aparecia a localização no tempo.
Dois dos temas gerais que haviam sido escolhidos para uniformi­
zar os relatos, dando-lhes certa unidade, ficavam desmentidos desta
função pela prática. Além dos temas gerais serem diversos dos ante­
riormente propostos, também a marcha que fora escólhida não pare­

114
cia adequada. Em lugar de um desmembramento das entrevistas se­
gundo temas, a fim de reduzi-las ao anonimato e com seus dados anô­
nimos construir uma nova narrativa, chegou-se à conclusão de que se
devia manter a integridade de cada uma delas. As condições de vida
dos trabalhadores de poucos recursos na cidade de São Paulo, entre
1920 e 1937, seriam assim captadas por intermédio da leitura de pe­
quenas narrativas autobiográficas completas, formadas cada qual por
um depoimento inteiro.
Não se recusava a necessidade da análise, consubstanciada em re­
cortes de cada depoimento segundo determinados temas; esta se mos­
trava indispensável para a compreensão em profundidade dos mesmos.
A fragmentação que havia sido efetuada não podia ser encarada como
inútil, muito ao contrário; ela devia persistir sempre, como uma fase
intermediária, entre a totalidade da proposição do problema e a totali­
dade da síntese final. Depois desta fase é que cada entrevista podia ser
recomposta numa outra ordem coerente com os temas levantados, por
um lado, e por outro com a ordem de exposição peculiar a cada infor­
mante. Não havia somente uma análise e uma síntese; havia uma aná­
lise ao nível de cada depoimento, seguindo-se uma síntese do mesmo,
segundo a ordem de exposição peculiar a cada informante. Em segui­
da, uma nova análise, verificando-se quais os mínimos denominado­
res comuns a todas as entrevistas, e ordenando-se finalmente a estas
de acordo com estes temas, numa síntese final.
A re-escrita de cada entrevista segundo os temas mais freqüentes
teve como resultado exposições ordenadas e coerentes de fatos, con­
servando o mais possível o que era específico de cada informante, em
termos de forma do relato e particularidades de linguagem. Houve, as­
sim, ao nível de cada depoimento, um recorte e uma recomposição,
em que foram suprimidas repetições muito numerosas de detalhes e de
frases, anedotas recorrentes, etc., a fim de se ter um conjunto de leitu­
ra coerente e expressiva. Neste ponto, seguia-se o caminho indicado
pelos especialistas anteriores, que, a partir de Oscar Lewis e, entre nós,
de Ecléa Bosi, haviam assim agido também. Este re-arranjo, porém,
só parecia possível depois de fragmentação temática e do conhecimen­
to de como se organizavam, na sua aparente desorganização, os de­
poimentos obtidos.
Assim reconstruídas, as entrevistas que haviam sido consideradas
“ pobres” subitamente surgiram com todas as suas potencialidades; sua
aparente “ pobreza” -resultava de um relato mais seco, menos rico em
pequenos detalhes, porém muitas vezes também mais ordenado, seguin­
do uma linha narrativa mais nítida. Tornava-se claro novamente que
não se devia prejulgar os depoimentos depois de uma primeira leitura
e antes de analisá-los em profundidade; só então revelavam tudo quanto
podiam informar. Assim, não era realmente a qualidade dos infor­

115
mantes ou dos relatos que estava em questão, nem o relacionamento
entre entrevistador e informante, e sim o tipo de análise utilizado, e
a forma de passagem da análise para a síntese. Os rumos tomados no
início ficavam, portanto, revalidados.
Não se pense também que o recuo para discutir de novo questões
que pertenciam ao início do trabalho constituía uma falha ou uma perda
de tempo. Ao contrário, a pesquisa bem conduzida exige re-
questionamento de todas as etapas, o que implica voltar atrás, e rede­
finições, mostrando que os pesquisadores estão agindo de maneira cons­
ciente ao tomarem certos caminhos, e buscando incansavelmente to­
dos os pressupostos, todas as conseqüências implícitas do que estão
fazendo. Mesmo que se tenha que alterar por completo a orientação
que o trabalho havia tomado, o reconhecimento de que tal orientação
deveria ser abandonada constituiría também uma descoberta impor­
tante: registrada a tomada de novos caminhos, deveríam ser consigna­
das as reflexões e razões para a iniciativa, a fim de que outros pesqui­
sadores, ao realizar trabalhos semelhantes, ficassem alertados a fim de
não repetir o mesmo percurso inútil. O registro escrito dos questiona­
mentos e das discussões de cada etapa se reveste, assim, de grande
importância.
Admitida a necessidade de se conservar cada depoimento como
uma totalidade, verificou-se em seguida, pelo manuseio constante do
material, que eles se diferenciavam de acordo com certa ordem temáti­
ca; noutras palavras, havia certas semelhanças entre determinados de­
poimentos que permitiam distinguir como que “ famílias” de depoi­
mentos. Era possível, pois, reunir todos os que se assemelhassem, com­
pondo subtotalidades que, justapostas, comporiam o relatório final.
Se este fosse encarado como um livro, cada subtotalidade seria uma
das partes do livro; dentro de cada parte, os depoimentos que a com­
punham formariam seus diversos capítulos. A totalidade final ofere­
cia uma visão das condições de vida na cidade de São Paulo, entre 1920
e 1937, ordenada de acordo com as espécies de depoimentos que se ha­
via obtido. As revelações sobre a vida na cidade, que eles encerravam,
mostravam que se podiam auferir novos conhecimentos sobre a urbe
através da mediação de cada depoimento, e também através da media­
ção de todo o conjunto de depoimentos.
Assim, se por um lado os autores especialistas tinham razão ao
admitir, explícita ou implicitamente, que depoimentos e histórias de
vida não deveríam ser desmembrados e transformados em dados anô­
nimos, por outro lado não tinham razão quando pareciam pretender
que este material não podería esclarecer problemas restritos histórica
e espacialmente. Na pesquisa em curso, os depoimentos colhidos ao
mesmo tempo constituíam documentos que preenchiam um vazio efe­
tivamente existente no acervo sobre a vida na cidade, como também

116
esclareciam aspectos particulares desta. Mantidos como documentos
cuja autoria se conservava, respondiam no entanto a questões de am­
plitude restrita, bem delimitadas no espaço e no tempo. Ficavam à dis­
posição também de outros pesquisadores que, por sua vez, poderiam
utilizá-los parceladamente, de acordo com o tipo de trabalho que pre­
tendessem efetuar
A análise, com suas idas e vindas, tal como havia sido processa­
da, constituía fase obrigatória, levando à descoberta dos temas princi­
pais de cada depoimento, e do conjunto de depoimentos. Porém, em
lugar de se passar diretamente da análise de cada depoimento para uma
síntese construída com a fragmentação dos mesmos, cada tema consti­
tuindo um eixo em torno do qual se concentravam os detalhes toma­
dos às diversas entrevistas — partia-se para uma síntese final construí­
da a partir dos depoimentos conservados em sua integridade e escalo­
nados de acordo com as características de cada um.
De todas estas reflexões, destacava-se uma nova conclusão, refe­
rente à gravação de “ depoimentos orais” , concernentes a um período
de tempo suficientemente largo para abarcar uma faixa de vida dos
informantes, porém sem as pretensões do tamanho e dos detalhes das
histórias de vida: dizia respeito à discriminação das fases sucessivas de
tratamento do material colhido, ou melhor, das fases de interrogató­
rio e recomposição a que o material devia ser submetido a fim de res­
ponder ao problema proposto no projeto de pesquisa. As fases eram:
1 — análise temática das entrevistas, a fim de detectar os tópicos
gerais que continham em comum, destacando-se os mesmos; análise,
que era uma “ terceira leitura” dos textos;
2 — fragmentação (isto é, nova análise) das entrevistas segundo
os temas emanados da análise acima referida, constituindo uma “ quarta
leitura” que permitia penetrar mais a fundo nos depoimentos e retifi­
car, se necessário, a primeira temática levantada;
3 — recomposição de cada entrevista em função de uma ordem
segundo a importância e a seqüência dos temas encontrados — ordem
que poderia não ser forçosamente a mesma em todas as entrevistas,
mas que variaria conforme as características de cada uma delas; quan­
do possível, porém, seguir a mesma ordem;
4 — construção de um conjunto coerente de que cada depoimento
seria uma unidade; a ordenação interna do conjunto também seguiria
uma temática que reunisse em “ famílias” os depoimentos, todos os
da mesma “ família” permanecendo juntos. A temática obedecida de­
veria emanar da análise dos depoimentos, agora cada qual encarado
em sua unidade.
Estas quatro fases exprimem movimentos de análise e de síntese
em dois níveis. Na primeira análise, seriam detectados os temas mais
importantes de cada depoimento, que eram recompostos de acordo com

117
eles, numa primeira síntese. Em seguida foram verificados os temas
gerais (no sentido de que abarcavam vários depoimentos, ou talvez a
totalidade deles), que serviríam de guias para a recomposição do todo;
uma análise, pois, ao nível de todos os depoimentos, seguida de uma
síntese que comporia uma nova globalidade com eles, mas na qual ca­
da um deles conservaria a sua unidade. As duas análises equivaliam
a dois momentos diferentes de leitura do material; as duas sínteses, a
dois momentos diversos de recomposição pela escrita. O primeiro mo­
mento, que era também o primeiro nível, dizia respeito a cada depoi­
mento per se; o segundo momento — o segundo nível — se passava
ao nível do conjunto de todos os depoimentos e da ordenação de uns
em relação aos outros.
Terminada esta última ordenação, estava construído um novo do­
cumento a respeito da vida da cidade — documento composto de uni­
dades formadas pelos depoimentos, cada um destes conservando suas
peculiaridades. O novo documento construía uma fonte de informa­
ções e de dados específicos sobre variados aspectos da vida das cama­
das inferiores, na cidade de São Paulo, isto é, podendo ser utilizado
para elucidar questões muito restritas.
Desta forma, a fragmentação analítica por temas se integra como
parte imprescindível do procedimento de pesquisa. É possível, porém,
que aquilo que se acreditava uma fase importante, venha a se configu­
rar como ufn rumo pouco frutífero ou inútil. No caso aqui exposto,
o engano fora supor que, em seguida à fragmentação por temas dos
depoimentos, seria diretamente realizada uma recomposição global re­
ferente à vida da cidade, reordenada por estes mesmos temas. Pelo que
foi verificado, não seria possível abandonar a mediação dos depoimen­
tos, sem riscos graves de deformação de uma parte das informações
que se pretendia obter.
Na verdade, era possível recolher todos os detalhes da vida na ci­
dade de São Paulo através da fragmentação dos depoimentos. Mas es­
sa não era senão uma parte do problema proposto. A outra era a da
visão do mundo do informantes, e era esta questão que não podia ser
respondida caso a organização final dos dados seguisse os temas, sa­
crificando a unidade de cada depoimento. Pois a visão do mundo só
poderia ser aquilatada pela maneira de ver dos depoentes, cada qual
narrando a sua história, cada qual conservando, em seu relato, a sen­
sibilidade e o temperamento que lhe eram peculiares. A ordenação dos
depoimentos entre si, como unidades reunidas na formação de uma
globalidade, é que resultaria na visão do mundo dos informantes; esta
visão do mundo seria composta de unidades representadas pelos de­
poimentos, — visões do mundo parciais, — as quais se mostraram in­
dispensáveis para a compreensão da amplitude e da variedade das opi­
niões existentes nas camadas de poucos recursos.

118
O encadeamento dos depoimentos em “ famílias” , ordenando uma
globalidade final, compunha, portanto, a resposta final às questões do
projeto de pesquisa. Não formar esta globalidade significaria conser­
var os depoimentos como relatos independentes entre si, que armaze­
nariam informações cuja conexão, visível ou profunda, não se procu­
rara ressaltar. Seu objetivo seria somente o de perpetuar tanto quanto
possível a memória de indivíduos de baixos recursos na cidade de São
Paulo, entre 1920 e 1937, sem inter-relacioná-los tanto em vista de es­
clarecer as condições de vida quanto em vista de revelar as mentalida-
des em seus pontos de convergência. Isto é, desistia-se de responder
às questões do projeto de pesquisa, para somente arquivar informa­
ções sob a forma narrativa. A persistência em querer responder a essas
questões levou as pesquisadoras a descobrir os rumos do procedimen­
to necessário, resumidos nas quatro fases atrás explicadas; estas se en­
cadeiam umas às outras de maneira tal que não seria possível executar
a última sem ter passado pelas três anteriores.
Assim, ao chegar à fase final, estava-se no ápice a partir do qual
se podia descortinar todos os passos que haviam sido percorridos des­
de o início: 1) a proposição do projeto de pesquisa, com todos os seus
problemas de definição; 2) a escolha dos informantes, suas discussões,
a discussão do relacionamento entre informante e pesquisador; 3) a rea­
lização das gravações, em que muitas vezes se recolocavam, conforme
o informante, problemas de relacionamento; 4) a passagem da fita gra­
vada para a datilografia, com suas dificuldades de transcrição e ampu­
tações inevitáveis — parte em que a audição compõe uma “ leitura”
sui generis da fita gravada, estreitamente associada à “ escrita” da gra­
vação; 5) a primeira manipulação dos dados, para se desvendar a te­
mática de cada depoimento — primeira análise, portanto; 6) a frag­
mentação do texto de acordo com os temas, seja sob a forma de ficha-
mento, seja sob a forma de um relato — segunda análise do mesmo;
7) a recomposição de cada depoimento segundo a ordem de temas que
lhe é própria, de modo a reconstruí-lo em sua unidade; 8) a distinção
de “ famílias” de depoimentos, conforme a importância e a ordem dos
temas que os distinguem; 9) a ordenação destas “ famílias” a fim de
compor uma totalidade que responda aos problemas propostos no pro­
jeto de pesquisa.
Todo o procedimento descrito podería ser resumido em poucas pa­
lavras, mostrando as três fases primordiais: da inteligência no propor,
passando pela arte de dividir, a fim de chegar à engenhosidade da cons­
trução. Essas são as etapas pelas quais passa a pesquisa, e nas quais
provam os pesquisadores que estão efetivamente dominando o seu ofí­
cio, tanto no que diz respeito à utilização de um instrumento quanto
ao manuseio do material por este colhido, em função das questões pro­
postas.

119
X — Síntese e avaliação final:
o término de uma pesquisa

Numa pesquisa, a toda análise segue-se uma síntese, pois é ela uma
recomposição original reagrupando, no todo ou em parte, os compo­
nentes que foram desarticulados; quando inexiste, estes quedam espar­
sos. A síntese se opõe à análise como a visão de conjunto se opõe à
visão por partes; enquanto a análise decompõe a realidade para lhe des­
cobrir os elementos formadores, a síntese reconstrói numa nova for­
ma a realidade, a partir dos elementos assim descobertos. É este o sen­
tido geral destes termos, e também o significado que lhes empresta a
filosofia da ciência.
Poderia parecer que a síntese é pura recomposição, não fosse a
utilização do qualificativo “ original” e da expressão “ numa nova for­
m a” ; estão indicando que a síntese é criadora de algo mais do que se
encontrava na forma primeira anterior à análise — análise que, por
sua vez, tem como característica o ser unicamente descritiva. A síntese
é então irredutível aos componentes resultantes da análise, pois,
reagrupando-os e recoordenando-os de maneira diversa da que apre­
sentava a totalidade anterior, desta combinação ou fusão resultou ou
uma qualidade ou um valor, ou elementos que não existiam antes. Di­
versa da análise, ela também é diversa da totalidade primeira; é “ ou­
tra ” em relação a ambas. Por isso mesmo, pode ela incitar uma nova
análise, no afã de se conhecer as novidades que encerra — nova análi­
se que será seguida por uma também nova síntese. E seria este o proce­
dimento do “ conhecer” , e principalmente do “ conhecer científico” .
Análise e síntese serão operações antagônicas, ou ao contrário es­
tarão ligadas intimamente como operações complementares, se bem que
inversas? As duas concepções não se excluem; análise e síntese são an­
tagônicas, se retivermos o sentido de “ direções opostas” , porém, as
“ direções opostas” são complementares desde que se pretenda, termi­
nada a análise, alcançar uma nova visão da totalidade que foi desmem­
brada. Na verdade, quer se procure partir dos detalhes para o conjun­
to, como advogam os historiadores, a síntese sendo então uma recom­
posição que permitirá chegar mais longe no conhecimento da totalida­
de; quer se busque juntar diversas representações desmembradas para
se conceber, a partir de sua multiplicidade, um conhecimento que não
existia antes, e que as engloba num conjunto coerente, como querem

120
os psicólogos que tratam de teorias do conhecimento, — o momento
da síntese pressupõe sempre o momento prévio da análise, sem o qual
o momento da síntese não seria alcançado, — donde a íntima conexão
entre ambos.
A estas duas abordagens seria necessário acrescentar a concepção
das ciências da matéria; na química, por exemplo, a simples reconsti­
tuição de corpos já conhecidos, detalhados através da análise, não sç-
ria uma síntese, uma vez que não existe aqui novidade; a síntese se da­
rá quando, a partir desta reconstituição, se alcança um nível de orga­
nizações que revela problemas de uma outra ordem. Em qualquer des­
tas perspectivas, portanto — no caso da reconstrução histórica, no ca­
so da teoria psicológica do conhecimento, no caso das ciências da ma­
téria — a síntese se apresenta contendo sempre algo a mais do que se
encontrava nos momentos ou nas proposições que lhes foram anteriores.
No entanto, no caso dos historiadores e no caso das ciências da
matéria, é ela concebida como um procedimento sistemático diante
do real, como um preceito metodológico, portanto. No caso da teoria
do conhecimento, é ela tida como a própria marcha do intelecto no
afã de conhecer, reunindo assim várias representações para, a partir
da multiplicidade, compor um conhecimento único, o qual é sempre
algo mais do que a simples reunião dos elementos que o formam. Dever-
se-á escolher entre uma e outra postura? Ou não serão ambas com­
plementares?
Hegel expressou o problema sob a forma do conjunto tese-antítese-
síntese, em que os três termos estão interligados e compõem a lei que
rege a marcha do pensamento, definindo a natureza específica do en­
tendimento humano, o entendimento humano sendo considerado en­
tão diferente do objeto do conhecimento. Retomando o mesmo pro­
blema, Marx e Engels o encaram diferentemente; se tal é a marcha do
pensamento, também existe um “ método dialético” que, adequado à
realidade, permite desvendar, por detrás das aparências, das identida­
des, das harmonias, o que existe em termos de combate subterrâneo
ou pelo menos de divergências. Marcha do pensamento, método dialé­
tico, ambos constituem para estes autores também expressões do pró­
prio movimento da matéria e do universo. Pois o universo seria uma
totalidade em evolução ascendente, atingindo níveis sucessivos, em que
um grau maior de complicação faria necessariamente aparecer o seu
contrário, do confronto de ambos surgindo modificações qualitativas
inteiramente novas. A própria natureza evoluiría então segundo o rit­
mo ternário da dialética, existindo assim laços indissolúveis entre o uni­
verso, a percepção e o procedimento pelo qual se alcança o conheci­
mento. Por ser adequado à realidade, o método dialético seria aquele
que permite ampliar cada vez mais o conhecimento. De acordo com
a perspectiva marxista, método e conteúdo, ciência e seu objeto, reali­

121
dade sócio-histórica e pensamento não estão interconexos simplesmente
por uma metodologia; são intimamente conexos pela sua própria na­
tureza, pela natureza sócio-histórica de que participam, pela realidade
universal de que fazem parte.
A perspectiva em que se realizou a pesquisa aqui acompanhada
parece, pois, se conformar com todo este procedimento: à proposta
inicial da pesquisa seguiu-se a análise da realidade, chegando-se depois
à síntese, isto é, à recomposição da totalidade. Deste modo, tal enca­
minhamento foi concorde com as diversas concepções das relações
análise-síntese aqui observadas, e igualmente com a concepção dialéti­
ca atual que as engloba e ultrapassa; que as ultrapassa porque reúne
num só conjunto a concepção do universo, a concepção da marcha do
pensamento, e o procedimento metodológico por meio do qual ambos
podem ser captados e compreendidos.
Desta maneira, o próprio trabalho de pesquisa em ciências sociais
se desenrolaria segundo aquele ritmo: proposição do problema a ser
esclarecido; desmembramento, em suas partes, da realidade na qual
existe o problema; recomposição nova, através da qual é ele compreen­
dido e explicado. Recomposição nova que, implicitamente abrindo ca­
minho para novas indagações ou explicitamente formulando-as, pro­
põe novas questões que poderão servir de base a outros projetos —
novas teses em relação às quais poderá ser reeditado todo o movimen­
to da descoberta.
A síntese final de uma pesquisa depende, na maneira de ser apre­
sentada, de três ordens de considerações: á) do problema proposto no
projeto; b) da orientação que o pesquisador entendeu dar ao seu pro­
cedimento de pesquisa; c) da análise efetuada. A síntese não é, pois,
arbitrária, nem resulta de uma inspiração que baixasse sobre o pesqui­
sador, uma vez embebido nos dados do problema; muito ao contrário,
está fundamentalmente ligada tanto à própria pesquisa, nos itens a e
c, quanto ao pesquisador, pelo item b.
No exemplo que motivou estas reflexões, a análise descobrira os
eixos que orientavam as recordações dos informantes, e segundo estes
eixos se procedera a uma reformulação das entrevistas, de maneira a
tornar patente a descoberta. Os eixos eram família, trabalho, aconte­
cimentos do período; conforme o caso, o informante orientara sua nar­
rativa segundo um deles preferencialmente: por exemplo, se o eixo era
a família, toda apresentação de acontecimentos ocorridos no período,
ou toda menção das ocupações e do trabalho, envolviam sempre a es­
ta, a qual se encontrava constantemente presente nas historietas e nos
detalhes. Terminada a recomposição das entrevistas, tratava-se de re­
tomar o problema proposto no projeto de pesquisa e verificar como
era ele respondido através das recordações.
Em lugar de se haver recomposto as entrevistas de acordo com os

122
eixos da memória, teria sido possível também conservá-las fragmenta­
das, construindo em seguida a síntese segundo um esquema que seguisse
os eixos das recordações: a) características da família na cidade de São
Paulo no período dado; b) características das formas e condições de
ocupação para trabalhadores de poucos recursos, nessa época; c) os
acontecimentos da época através das recordações. Estes três itens re­
sumiam os temas principais encontrados em todas as entrevistas, e con­
corriam para o esclarecimento de três aspectos fundamentais da vida
dos indivíduos de poucos recursos na cidade de São Paulo, entre 1920
e 1937. Cumpria-se, assim, uma das finalidades da pesquisa.
Cada entrevista seria então tratada como habitualmente se efetua
em ciências sociais com a documentação escrita, seja de cunho históri­
co, seja referente ao presente: o documento é recortado segundo as ques­
tões formuladas pelo pesquisador que, com os retalhos dos documen­
tos, chega à composição de uma nova visão da realidade, coerente e
compreensiva. Esta composição responde às questões inicialmente pro­
postas no trabalho, pois os diversos itens em que o documento é des­
membrado foram construídos de acordo com tais questões. É neste pon­
to que o trabalho das pesquisadoras do projeto em foco se afastara
do que se faz habitualmente com o documento escrito; pois os itens
segundo os quais analisaram cada entrevista não provinham de ques­
tões colocadas no projeto de trabalho (embora estivessem a este dire­
tamente ligadas), mas provinham diretamente da leitura crítica das en­
trevistas, de seu próprio manuseio.
Embora tendo esta vantagem sobre o caminho clássico das sínte­
ses sócio-históricas — vantagem expressa no fato de que os itens cons­
tituíam uma primeira descoberta — relutaram as pesquisadoras em se­
guir tal rumo. No desmembramento que seria efetuado, cada entrevis­
ta perdería sua unidade, seus fragmentos seriam dispersos em três ca­
pítulos diversos; as entrevistas quedariam inteiramente destruídas,
desfazendo-se assim a expressão de uma personalidade que havia nar­
rado suas experiências de maneira individual e peculiar, segundo um
modo de ser que lhe era próprio, num ritmo que era o seu. Anulava-se
a possibilidade de resposta a um dos problemas do projeto, que era
a revelação das mentalidades e de suas diferenças. Estas permanece­
ríam inscritas na fita gravada e no texto datilografado, porém deixa­
riam de existir na síntese final do trabalho, na qual ressaltariam como
preponderantes e únicas a imagem, as especificidades, os detalhes so­
bre as condições de vida e sobre a cidade, abstraídas dos indivíduos
que as haviam apresentados. Fragmentadas as entrevistas, perder-se-
ia toda a noção da totalidade individual, isto é, do conjunto de ele­
mentos que, compondo a pecualiaridade de cada um, o apresentaria
como uma unidade orgânica. Ora, este conhecimento fora um dos ob­
jetivos principais do projeto de pesquisa.

123
Por outro lado, trairíam as pesquisadoras o propósito de respei­
tar tanto quanto possível o modo de narrar de cada entrevistado, que
vieram mantendo desde o início da pesquisa: primeiramente, procu­
rando não intervir nas entrevistas, senão quando absolutamente ne­
cessário, preservando assim a liberdade de cada informante de con­
duzir como quisesse sua narrativa; em segundo lugar, buscando sal­
vaguardar suas maneiras de dizer e de encadear os fatos ao transcre­
verem as fitas em documentos escritos; em seguida, ao decompor as
entrevistas, não segundo temas que elas, pesquisadoras, tivessem ima­
ginado de antemão, e sim segundo aqueles que foram sendo encon­
trados na leitura e reeleitura dos depoimentos; finalmente, na recom­
posição das entrevistas segundo os próprios temas dos informantes,
conservando características que imprimiram à narrativa, respeitando
suas formas de expressão. Partilhar as entrevistas de modo a disper­
sar seus componentes entre capítulos diversos que construiríam o re­
lato final, isto é, construir uma síntese sem respeitar a unidade de
cada depoimento, seria contradizer as normas que haviam sido ado­
tadas em todo o trabalho.
Era preciso, pois, resolver o problema de estruturar uma síntese
sem quebrar a individualidade das entrevistas, isto é, passando pela
mediação de as conservar intactas. A existência de três grandes temas
que haviam orientado a recomposição de cada depoimento indicou o
rumo a ser seguido. Havia-se verificado que alguns informantes viam
todo o seu universo através da família; outros, através do trabalho;
finalmente outros seguiam mais ou menos a seqüência de acontecimen­
tos no período escolhido para a pesquisa, e eram estes que serviam de
marcos para organizar as lembranças familiares e as lembranças ocu-
pacionais. Os três temas serviram agora de pontos de apoio para agru­
par os depoimentos na totalidade de cada um. Voltou-se então aos de­
poimentos, procurando diagnosticar, em cada um, qual dos três temas
tinha exercido o papel de eixo das recordações, separando assim os in­
formantes cujo encadeamento da memória se fazia através da família,
daqueles que utilizavam seu trabalho e ocupações, e finalmente daqueles
que seguiam o fio dos acontecimentos.
Este agrupar de depoimentos podia trazer consigo um novo co­
nhecimento, permitindo discernir quais os marcos de referência seme­
lhantes para todo o conjunto de indivíduos de poucos recursos, quais
os diferentes. Ao contrário do que se supunha, não houve uma linha
de variação nítida separando homens e mulheres; na grande maioria
das entrevistas, o mediador por excelência das recordações era quase
sempre o trabalho, para ambos os sexos. Em poucas entrevistas ele apa­
recia como o mediador único; na maioria delas, surgia associado a um
outro mediador — ora a família, ora os acontecimento marcantes do
período estudado, ora o grupo de vizinhança. Parecia haver, pois,- uma

124
homogeneidade muito grande entre homens e mulheres quanto ao eixo
das recordações.
Esta observação constituía na verdade uma suposição tão-somente.
A pequena quantidade de informantes não permitia nenhuma genera­
lização válida para toda a camada de poucos recursos. Tratava-se, no
entanto, de um novo problema formulado, que deveria ser investigado
mais a fundo num outro projeto de pesquisa: não seriam realmente
sexo e instrução fatores de recortes quanto à memória no interior da
camada de baixos recursos da cidade de São Paulo, entre 1920 e 1937?
Como se tratava agora de um problema muito mais restrito do que aque­
le formulado na pesquisa aqui analisada, e necessitando para sua com­
provação de um número muito maior de depoentes, os depoimentos
pessoais não seriam indicados para resolvê-lo; seria necessário, prova­
velmente, lançar mão de documentação já existente, ou então compor
uma pesquisa de tipo dialogado, com tempo menor de entrevista, a fim
de se poder colher maior quantidade de material. De qualquer forma,
o importante era mostrar como a pesquisa em foco, ao chegar a seu
final, levantava por sua vez outros problemas diferentes.
A solução de agrupar as entrevistas pelos três grandes temas foi
então a escolhida, pois respondia às duas questões mais importantes
do projeto de pesquisa: 1) captar a imagem da cidade de São Paulo;
2) conhecer as mentalidades de seus habitantes de poucos recursos. Foi
composto assim um volume no qual, em seguida à proposição dos pro­
blemas e breve apresentação de dados históricos qualitativos e quanti­
tativos sobre a cidade de São Paulo no período estudado (dados se­
cundários colhidos em trabalhos já existentes), foram apresentados, em
sua unidade e totalidade, os depoimentos colhidos, reorganizados se­
gundo as três mediações que haviam sido distinguidas como fundamen­
tais para orientar as recordações deles: família, trabalho, acontecimen­
tos.
Ao refletir sobre o arranjo final que estavam dando aos depoi­
mentos, percebia a equipe que análise e síntese se haviam combinado
em dois níveis diversos. A primeira análise fora ao nível de cada de­
poimento a fim de encontrar os temas peculiares aos informantes,
efetuando-se o desmembramento das entrevistas segundo esses temas;
a esta primeira análise, seguira-se uma síntese ainda ao nível de cada
depoimento, que consistiu na recomposição de cada um deles, de acordo
com a ordenação dos temas descobertos. Em segundo lugar, foi dada
uma ordenação aos depoimentos refeitos, procurando-se qual a divi­
são que se adotaria para eles, a qual seria também a divisão do volume
em capítulos. Surgiu então novamente o problema da cidade, pois a
memória dos informantes se orientava segundo localizações precisas
no espaço urbano, que tinham sido as suas durante a vida; a divisão
em grandes capítulos se faria segundo as localizações. Os depoimentos

125
conservaram sua totalidade e unidade e se dividiram segundo os bair­
ros a que diziam respeito. Neste novo nível de análise, as categorias
mais amplas foram constituídas pelos bairros, que formaram pontos
de apoio para a classificação dos depoimentos. Neste nível mais abran­
gente do que o dos temas, as divisões disseram respeito, pois, ao co­
nhecimento da cidade.
Em todas estas decomposições e recomposições, o procedimento
para se atingir o conhecimento final fora sempre o mesmo, depois de
efetuada a coleta dos dados. No entanto, a escolha deste procedimen­
to não constituira o resultado de uma reflexão teórica prévia que, a
partir de obras existentes e de resultados de pesquisa já conhecidos,
possibilitasse à equipe preferir um caminho em detrimento de outro.
O encaminhamento foi seguindo, tanto quanto possível e tanto quan­
to se pode perceber, as injunções dos problemas propostos no projeto
de pesquisa, por um lado, e por outro lado as injunções dos documen­
tos colhidos, isto é, dos dados empíricos. De tal forma que as refle­
xões teóricas e tecnológicas foram sendo efetuadas à medida que o tra­
balho avançava e as tarefas se sucediam, sempre em reuniões de dis­
cussão. A falta de uma bibliografia suficientemente extensa sobre a con­
dução de pesquisas em geral, e sobre este caso particular, foi sem dúvi­
da uma das razões pelas quais a análise e a síntese se deram sem maio­
res informações sobre os rumos possíveis. Porém, sua falta não foi obs­
táculo para que se alcançasse um resultado que se acredita válido.
Cabe ainda uma observação sobre essa lacuna. Preocupam-se os
pesquisadores em oferecer o mais depressa possível a seus pares o re­
sultado das investigações que levaram a efeito, com as interpretações
que julgam cabíveis. Apresentam também, às vezes com luxo de deta­
lhes, todos os passos da proposição do problema e da escolha das téc­
nicas. Porém, uma vez esclarecidas estas etapas, conservam na som­
bra todas as demais, com os percalços e sucessos que foram encontrando
pelo caminho, com os rumos seguidos que se mostraram inadequados
e foram abandonados, com os rumos proveitosos e suas vantagens, is­
to é, todas as etapas das análises e das sínteses. Estes aspectos que cor­
rem ao longo de qualquer pesquisa já têm sido denominados “ andai­
mes” , “ estruturas de apoio” , etc., mostrando que são considerados
secundários e, como tais, desdenhados no computo final. Perde-se as­
sim uma experiência que poderia servir aos pesquisadores novatos, sem
dúvida, mas que também faria refletir mais profundamente muito pes­
quisador experimentado, ao decidir que tomaria uma orientação e não
outra, no decorrer de sua pesquisa.
Para que os procedimentos de pesquisa sejam devidamente apre­
ciados, aproveitados, criticados, cumpre procurar uma forma de inte­
grar estes passos também nos relatórios dela, seja como anexos, seja
como um texto à parte, para que todas estas discussões e experiências

126
não se percam mas venham enriquecer o encaminhamento de outras
pesquisas, contribuindo assim para o aceleramento dos conhecimen­
tos metodológicos e tecnológicos. Foi o que se procurou fazer nesta
pesquisa, de que resultou o texto ora apresentado.
Efetuada a síntese final que reúne num grande conjunto todos os
dados levantados pela pesquisa, uma outra questão se coloca: pode ela
ser considerada o fecho da pesquisa, a sua conclusão? Questão que me­
rece alguns comentários.
É comum entre os pesquisadores das ciências sociais, principal­
mente entre aqueles que seguem os rumos traçados pelos norte-
americanos, a confusão entre “ resumo” e “ conclusão” de uma pes­
quisa: acreditam que, chegando ao final das análises e das sínteses, uma
apresentação resumida de tudo quanto foi encontrado constitui a me­
lhor maneira de se terminar, dando uma idéia dos novos conhecimen­
tos obtidos a cada passo. O ponto final é colocado, então, depois de
uma repetição em breves palavras do que já existe no corpo do texto.
Tal resumo é entendido como uma recapitulação, em que se retoma
ponto por ponto o que foi tratado, de maneira precisa, porém agora
sem os detalhes; recapitulação que se apresenta muitas vezes de manei­
ra enfadonha, como uma enumeração de itens. Toda recapitulação é
essencialmente descritiva, no sentido de reprodução estrita de partes
do texto, sem nenhuma tentativa de, utilizando-a como um apoio, jo ­
gar a reflexão para as extrapolações e generalizações possíveis, para
o levantamento de novos problemas. Desse modo, tal recapitulação na­
da tem de uma síntese, uma vez que nada de novo nela existe, consis­
tindo somente numa repetição.
Nem mesmo existe, nesta forma de concluir, uma tentativa de ava­
liação do que foi realizado, isto é, uma tentativa de rever o conjunto
de passos dados a fim ou de ajuizar sua adequação e seus limites ou
defini-lo em sua especificidade — sendo estes os dois rumos que pode
tomar uma avaliação. O procedimento de avaliação final é em geral
descartado sob a justificativa de que, ao efetuá-lo, o pesquisador aban­
donaria a objetividade com que vinha executando seu trabalho: no pri­
meiro caso, porque toda avaliação é tentativa de estimar o grau de per­
feição de algo, em função de normas que são juízos de valor; no se­
gundo caso, porque definir a especificidade do que se fez é uma busca
das essências, embora disfarçada; em ambos os casos, enveredar-se-ia
para o subjetivismo e o arbitrário. Porém, mesmo que a avaliação possa
se configurar sob esta forma, por que não ajuizar o que foi feito, dan­
do um balanço final, uma vez que este fecho em nada prejudica a mar­
cha anterior do trabalho desde que mostrando os parâmetros do
julgamento?
Ao contrário destas maneiras de resumir tão habituais, a conclu­
são deveria ser entendida como a última etapa do trabalho intelectual

127
que termina os raciocínios efetuados, na qual se responde às questões
colocadas na proposição do projeto de pesquisa, de uma maneira críti­
ca, e que se configura como uma avaliação de todo o procedimento
seguido, avaliação que justifica os resultados oferecidos. A conclusão
enfatiza o novo conhecimento obtido; ou retifica o problema propos­
to ao iniciar-se a pesquisa; ou demonstra que o caminho seguido não
havia sido plenamente adequado, propondo conseqüentemente um novo
caminho a ser explorado; ou, finalmente, traz o descortínio de novos
problemas, possibilitados justamente pelos conhecimentos adquiridos
no decorrer da pesquisa; ou mesmo apresenta uma reunião de todas
estas ilações. Trata-se, portanto, de tirar todas as conseqüênciaspossí­
veis tanto das orientações tomadas no decorrer da pesquisa, quanto
das descobertas efetuadas, e não de repetir, esquematicamente ou em
resumo, estas descobertas.
É verdade que o termo “ conclusão” , quando aplicado a uma pes­
quisa, está sempre carregado de ambigüidade. Em relação à pesquisa
terminada, ela é um resultado final, no sentido definitivo do termo;
no entanto, ela é também uma exposição das conseqüências daquilo
que se descobriu, das conseqüências do conhecimento novo que se ad­
quiriu, e como tal levanta pontas de véu, abre as portas para novas
pesquisas. É neste sentido que a conclusão adquire conotações de ava­
liação, referindo-se tanto aos dados obtidos quanto aos raciocínios efe­
tuados, e também aos procedimentos e técnicas adotados: que corre­
ções apresenta, que novos caminhos abre, que outras questões coloca?
No caso da pesquisa que foi o centro das preocupações destes co­
mentários, seria desnecessário efetuar um levantamento dos aspectos
imprevistos e das revelações insuspeitadas que os dados trouxeram em
relação à cidade; estas descobertas são parte integrante do texto, não
há porque repeti-las. Porém, as descobertas efetuadas, a separação que
se notou entre depoimentos de homens e depoimentos de mulheres, entre
depoimentos dos que tinham um pouco mais de instrução e os demais,
levam a perguntar, diante da pequena quantidade de depoimentos co­
lhidos: tais diferenciações se manteriam se, em lugar de uma pequena
quantidade de dados, se pudesse efetuar uma pesquisa com grande
quantidade de informantes, visando especificamente esclarecê-las? Além
disso, caberia também indagar se estas diferenciações seriam específi­
cas das camadas de poucos recursos ou se, ao contrário, permeariam
toda a estrutura sócio-econômica, distinguindo sempre homens e mu­
lheres, maior e menor instrução, dentro de cada uma das camadas. Es­
tas seriam algumas das conseqüências a serem tiradas dos resultados
obtidos, que abriríam campo para novas pesquisas, inteiramente dis­
tintas daquela apresentada neste trabalho; pesquisas focalizando ago­
ra a estrutura da memória dos informantes, recuando a cidade de São
Paulo para um segundo plano.

128
No entanto, estas sugestões não esgotam a possibilidade de se for­
mularem outras questões concernentes à cidade, ou ainda em relação
aos próprios informantes. Os novos conhecimentos adquiridos nesta
pesquisa seriam, então, o ponto de partida para outras indagações. Nes­
tes aspectos se evidencia a ambigüidade da conclusão: ponto final de
uma pesquisa, ela constitui também o ponto de partida para a busca
de novos conhecimentos.
Ação de fechar, de chegar ao término do trabalho, a conclusão
constitui a última etapa de um encaminhamento intelectual demons­
trativo em que, a partir de casos individuais, se chegou à formulação
de um conjunto com suas propriedades específicas, e não mais de cada
caso; das particularidades se chegou a uma totalidade geral. Porém,
é ela também uma abertura, o ponto inicial de um novo trabalho, um
transbordamento daquilo que realmente se verificou com os dados co­
lhidos, analisados e sintetizados, para formular enunciados que ante­
cipam outras descobertas, que apontam para outros caminhos a serem
percorridos por outras pesquisas. A conclusão, na plenitude de suas
potencialidades, deve ultrapassar o conhecimento adquirido para, a par­
tir dele, formular novos problemas, aventurar novas possibilidades.
Desse modo, a generalização contida nas conclusões de uma pesquisa
não é nem definitiva nem universal, é apenas um passo adiante na aqui­
sição de conhecimentos, que devem sempre e constantemente ser sub­
metidos ao princípio crítico de uma verificação cada vez mais ampla.

129
ANEXOS
ANEXO I

1 — São Paulo, 1920-1937: depoimentos de


trabalhadores de baixos recursos*
MARIA ISAURA PEREIRA DE QUEIROZ
ANTONIA ALVES DE OLIVEIRA
DIRCE SPEDO RODRIGUES
MARIA LUCIA PEREIRA
VIVIANE GALISTEU MACERON*

A preocupação com o passado da cidade de São Paulo vem-se avo­


lumando de alguns anos a esta parte, suscitando trabalhos de pesquisa
por parte de vários estudiosos, assim como a publicação de várias me­
mórias e a reedição de algumas obras literárias que constituem reposi­
tórios de dados. Citamos especialmente essas obras na bibliografia.
Queremos destacar, porém, um trabalho recente que foge ao que
comumente tem sido feito, por utilizar uma técnica ainda muito pouco
empregada, seja em sociologia, seja em psicologia social, seja em his­
tória, embora muito conhecida dos antropólogos culturais: a coleta de
histórias de vida e de depoimentos pessoais. Trata-se do livro de Ecléa
Bosi, Memória e sociedade: lembranças de velhos (São Paulo, T.A.
Queiroz, 1979), o qual vem mostrar que u’a massa de histórias vivas
estão se perdendo todos os dias por não serem registradas. E, mais ain­
da, não estão sendo utilizadas como fontes pelas ciências humanas.
Ecléa Bosi colheu histórias de vida tanto entre informantes de ní­
vel médio para superior, quanto entre informantes de baixas camadas
sociais; sua documentação se refere principalmente à infância, adoles­
cência, juventude dos informantes, cobrindo o período do início do
século atual até os nossos dias. O que se depreende, ao folhear a obra,
é que seus informantes se detêm com muito mais detalhes na história
da vida mais afastada, rareando os informes sobre a atualidade. Esta
peculiaridade — muito explicável em pessoas que já ultrapassaram os
75 anos — demonstra que esse tipo de informante é especialmente
(*) Estamos utilizando este termo para nomear todo um conjunto de indivíduos de pou­
cas posses, de salários baixos, cuja ação apreciada em função das necessidades para
a sobrevivência se mostra desequilibrada entre um máximo de trabalho que pode rea­
lizar e uma remuneração mínima. O termo ultimamente consagrado tem sido “Po­
pulação de Baixa Renda” (ver I.B.G.E., na bibliografia). “Renda” significa um ren­
dimento periodicamente renovado, que se recebe com certa segurança, o que nem
sempre é adequado para caracterizar a receita dos indivíduos que pretendemos
entrevistar.
(**) Pesquisadores do C.E.R.U. Projeto de 1980, pesquisa realizada em 1981/1982.

133
indicado para se coletar conhecimentos a respeito de períodos mais
recuados.
Algumas pesquisas ora em curso1 no Centro de Estudos Rurais
e Urbanos têm demonstrado que, enquanto se conhece com algum
detalhe o modo de vida na cidade de São Paulo de camadas de baixos
recursos em períodos mais recuados, o que existe relativamente ao
período que nos propomos estudar é muito falho. Até 1930, mesmo
quando a documentação é abundante, há quase que absoluta falta
de estudos. A pesquisa ora apresentada visa trazer esclarecimentos
e pontos de apoio aos trabalhos em curso e, mais ainda, promover
um conhecimento primeiro a respeito de uma faixa da população pra­
ticamente ignorada.
Assim, o objetivo principal é concorrer para aumentar o acervo
de noções válidas a respeito da sociedade paulistana. O segundo obje­
tivo, que se nos afigura também da maior importância, é proporcio­
nar as possibilidades de um treinamento integral de pesquisa a um
grupo de jovens que colaram grau recentemente em história, e que,
durante o curso, revelaram acentuado pendor e dedicação para a pes­
quisa.
É sabido que as universidades brasileiras poucas vezes proporcio­
nam a seus estudantes um treinamento de pesquisa que lhes seja útil
em sua futura profissão. Essa crítica tem sido muitas vezes feita à Fa­
culdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. No entanto,
pelo menos alguns professores procuram desenvolver nos alunos o gosto
pela investigação sistemática, e ao mesmo tempo discernir quais aque­
les que poderão mais tarde realizar trabalhos úteis. Foi o que fizemos
em nosso curso do 2? semestre de 1980, em que tivemos a satisfação
de descobrir algumas vocações para a pesquisa. É o caso das compo­
nentes da equipe que vai trabalhar conosco, e que conosco assinam o
projeto de trabalho.
Não se trata meramente de assinar o projeto; este pertence à equi­
pe, tanto quanto à coordenadora dos trabalhos. Em primeiro lugar pela
proposição do tema, que foi formulada pela equipe; portanto, foram
estas jovens que, ao escolhê-lo, se mostraram sensibilizadas pela falha
existente que apontamos acima e desejosas de contribuir para saná-la,
pelo menos em parte. Em segundo lugar, porque o projeto ora apre­
sentado foi delineado e discutido em comum, pela equipe e pela coor­
denadora. Trata-se, portanto, de um trabalho coletivo, numa forma

(1) As pesquisas são: 1?) estudo sobre a evolução das vilas operárias, a partir de fins
do século passado e até a atualidade, efetuado pela Profa. Eva Alterman Blay, Dep.
de Ciências Sociais, USP; 2?) estudo sobre o carnaval paulistano e suas transformações,
de 1850 aos nossos dias, efetuado pela Profa. Olga Rodrigues de Moraes võn Simson,
Centro de Estudos Rurais e Urbanos, USP.

134
bastante rara, em que equipe e coordenadora se empenham de manei­
ra idêntica, não podendo então ser apontada uma autora, porque a
autoria é de todas. Se a coordenadora chama para si a responsabilida­
de da realização da pesquisa, é porque seu maior grau de experiência
lhe permite orientá-la no sentido de evitar certos desacertos que entra­
vam a fluência da realização e podem até comprometê-la.
O projeto tem, portanto, grande originalidade, porque se apre­
senta como uma continuidade e uma complementação de um curso,
concorrendo para o aperfeiçoamento das alunas nele formadas.

2 — A contribuição específica do projeto


para o conhecimento do tema
O período focalizado — 1920 a 1937 — é muito importante para
a cidade de São Paulo, do ponto de vista sociológico e cultural (sem
falar do ponto de vista econômico e político, que não constituirão
o foco principal de nosso trabalho). Nele se tornaram visíveis as pri­
meiras transformações físicas da cidade (modificação no sistema de
hábitat, com o aparecimento dos primeiros arranha-céus; extensão de
seu centro comercial, etc.), encaminhando-a para a fisionomia que
hoje apresenta; nele se operou em apreciável grau a ascensão sócio-
econômica de imigrantes, que se integraram nas camadas média e su­
perior da sociedade, modificando-se e modificando-as; nele se enrai­
zaram transformações políticas de vulto, expressas tanto nos objeti­
vos das revoluções de 1924 e 1932 quanto nas campanhas pelo voto
secreto e pela participação feminina nas urnas, assim como pela pro­
mulgação das leis trabalhistas no fim do período; nele têm origem,
com o abalo da crise de 1929, transformações econômicas que se en­
caminham para uma industrialização cada vez mais importante; nele
desabrocharam novas orientações culturais, concretizadas na Semana
da Arte Moderna e nas reformas gerais do ensino. A riqueza do pe­
ríodo escolhido, do ponto de vista das questões que nele se colocam,
é patente.
Todo um conjunto de indivíduos das camadas inferiores da popu­
lação participou de alguns desses acontecimentos ou deles teve conhe­
cimento, como o demonstra a pouca literatura existente sobre o perío­
do. Tratava-se em geral de imigrantes ou de filhos de imigrantes, que
se reuniam em sindicatos e associações de variado credo político, ou
em outras agremiações, para participar das reivindicações e dos deba­
tes que se travavam entre diversos grupos de variada localização na
hierarquia sócio-econômica. E os demais? Tiveram eles alguma cons­
ciência dos momentos históricos que estavam vivendo? De que forma
tal consciência se manifesta hoje em suas recordações?

135
O pouco que conhecemos da vida desse gupo social está relatado
em algumas memórias;2 em poucos romances, que não se preocupa­
vam em ser totalmente fiéis à realidade, como obras literárias que
eram;3 em algumas pesquisas.4 A grande imprensa da época, que tem
sido fonte de dados para certos trabalhos, só relatava a vida cotidiana
da elite social, praticamente.5 Já a imprensa operária, muito utilizada
atualmente como fonte de pesquisa, foi o veículo de comunicação e
registro que mais se aproximou dos trabalhadores de baixos recursos,
mas com muitas limitações, na medida em que se peocupava apenas
com os assalariados da indústria e atingia somente os operários mais
próximos da militância política.6 Pouco há sobre a cidade de São Pau­
lo nesse período.7
Pode-se dizer que, embora a documentação ligada aos movimen­
tos operários da época seja abundante, como é abundante a documen­
tação cultural, existe uma documentação não aproveitada e uma com­
pleta falta de estudos sobre o período que pretendemos abarcar. Mes­
mo quem se preocupou com os movimentos operários, voltou-se so­
bretudo para o período anterior a 1920. Trata-se, assim, de um perío­
do bastante obscuro, esse que propusemos no trabalho, apesar de se
mostrar muito interessante por tudo quanto já foi dito, cabendo res­
saltar mais uma vez que as raízes de muitos aspectos, que se desenvol­
veram depois, nele se encontram.
Cumpre lembrar ainda que o Centro de Pesquisa de Arte Brasilei­
ra do IDART — Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo vem
desenvolvendo pesquisas ligadas a esse período, como se vê da pesqui­
sa recentemente publicada sobre Teatro Operário na Cidade de São Pau­
lo.8 O trabalho que pretendemos realizar trará sem dúvida subsídios
para essas investigações.

3 — A relação do projeto com a literatura


sobre o assunto
Esta relação pode ser encarada de vários ângulos: 1?) a relação
do projeto com os trabalhos e documentos sobre a cidade de São Pau­
lo na época; especificando melhor, que mostrem o gênero de vida que
então se levava, e a fisionomia da cidade; 2?) a relação do projeto

(2) Gattai, 1980; Gunspun, 1979; Dias, 1962; Chaves Neto, 1977; Linhares, 1977.
(3) Alcântara Machado, 1927; Schmidt, 1954; 1955; 1980.
(4) Amaral, 1975; Carone, 1979; Fausto, 1976; Simão, 1971.
(5) Capelatti e Prado, 1980.
(6) Ferreira, 1978; Pinheiro, 1975.
(7) Boudoy, 1979; Vargas, 1980.
(8) Vargas, 1980.

136
com as pesquisas que tratem dos habitantes de baixos recursos, nesse
período, e que indiquem não apenas como viviam, e sim também quais
as suas idéias e maneiras de pensar; 3? a relação do projeto com a lite­
ratura dizendo respeito à técnica de história de vida e depoimentos pes­
soais, a fim de se aquilatar qual a sua contribuição para o aperfeiçoa­
mento dos procedimentos de pesquisa.
São muito poucas as obras que retratem ou analisem a cidade de
São Paulo na época escolhida, de uma forma sistemática, não consti­
tuindo então nem livros de memórias, nem crônicas. Estes dois últi­
mos tipos de publicação são bastante numerosos, mas devem ser con­
siderados como outros tantos repositórios de dados, a serem também
analisados de forma sistemática.
No caso específico da cidade, destaca-se a tese de doutoramento
de 3? ciclo defendida em Paris por Maryvonne Boudoy, em 1979: “ La
ville de S. Paulo dans 1’oeuvre de Mario de Andrade” . A autora pro­
curou reconstituir o que era a cidade de São Paulo na primeira metade
do século XX, especialmente nos períodos importantes para a vida de
Mário de Andrade, que foram a Semana de Arte Moderna (1922) e a
criação do Departamento de Cultura da Prefeitura Municipal (1935);
a fisionomia urbana e suas transformações em curso; a estrutura sócio-
econômica; as relações das diversas camadas sociais e a importância
dos imigrantes na formação de uma classe média; a vida cultural. Uma
vez delineado o cenário a partir de dados do real, procura ela verificar
como tudo isto ecoa na obra do grande escritor, de que forma ele cap­
tou o dia-a-dia, a variedade dos inter-relacionamentos, de que forma
ele os transferiu para a sua poesia e a sua prosa. Neste trabalho, depa­
ramos com a imagem da cidade tal qual a viu um dos integrantes da
intelectualidade da época, que era ao mesmo tempo um paulista de ve­
lha cepa.
De que forma os trabalhadores de baixos recursos captavam essa
mesma realidade? As lembranças que pretendemos registrar visam es­
clarecer esta questão, e encontrarão na tese de doutoramento de Mary­
vonne Boudoy um ponto de contraste para se penetrar mais a fundo
na análise.9
Um segundo trabalho que tem por fulcro a cidade de São Paulo
é o de Richard Morse, Formação histórica de São Paulo, cuja 3? parte
trata da evolução da cidade no século XX, que é o momento de sua
passagem de “ cidade” a “ metrópole” .10 Operando com grande quan­
tidade de dados de variada origem, delineia um pano de fundo que
Maryvonne Boudoy (tratando de um período específico) utilizou com
propriedade. Nosso intuito é esclarecer de que modo uma parcela es­

(9) Boudoy, 1979.


(10) Morse, 1970.

137
pecífica dos habitantes viveu e registrou na memória as transforma­
ções então em curso.
Também em relação a um outro conjunto de obras a pesquisa que
realizaremos trará uma complementação útil: são as que investigam a
população trabalhadora da cidade, nesse período. Deixamos de lado
as memórias, sejam elas de operários ou não, para tratarmos somente
de estudos de alguns pesquisadores que tentaram colocar de forma sis­
temática algumas questões e respondê-las.
A maior parte deles diz respeito aos assalariados da indústria, e
muitos não fazem mais do que apresentar, de forma generalizada, al­
gumas partes da documentação existente.11
Numa perspectiva diferente, Ecléa Bosi trouxe inestimável contri­
buição com seu livro Memória e sociedade: lembranças de velhos; ne­
le, porém, não se limita exclusivamente aos trabalhadores, incluindo
também elementos da classe média e da classe média alta. Todavia,
quando reproduz as entrevistas de trabalhadores de baixos recursos,
a comparação que podemos estabelecer entre elas indica diferenças con­
forme se trate de homens ou de mulheres, de operários ou de trabalha­
dores não-operários. Ecléa Bosi chama principalmente a atenção para
as diferenças entre os modos de pensar dos trabalhadores manuais e
dos que tinham outros tipos de trabalho; e, entre os primeiros, dife­
renciando aqueles que foram operários daqueles que foram artesãos
ou empregados. O que a leva a observar que no caso dos primeiros,
a vivacidade da “ biografia social” que vão delineando apresenta uma
“ continuidade linear” , não encontrada noutros depoimentos.1112
O que pretendemos fazer difere do que fez Ecléa Bosi. Dentro da
área da psicologia social, essa autora se preocupou com o funciona­
mento da memória, com a busca do sentido das relações entre memó­
ria coletiva e memória individual, nos velhos. “ Não pretendí escrever
uma obra sobre memória, tampouco sobre velhice. Fiquei na interse­
ção dessas realidades: colhi memórias de velhos.” 13 Nosso intuito é
nos fixarmos mais no conteúdo sociológico dos depoimentos registra­
dos do que no significado dos mesmos do ponto de vista da memória,
seja individual, seja coletiva, já que nosso interesse é conhecer a vida
e o modo de pensar do grupo social de baixos recursos, na cidade de
São Paulo, no período 1920-1937, e através dele esclarecer certos as­
pectos da própria cidade, fixados nas lembranças.
Existem hoje certas coordenadas que são reconhecidas como im­
portantes na diferenciação dos comportamentos dos indivíduos: sexo,
nível econômico, etnia, cultura. A idade não está aqui englobada por­

(11) Simão, 1971; Pinheiro, 1975; Carone, 1979; Ferreira, 1978.


(12) Bosi, 1979, p. 394.
(13) Bosi, 1979, p. 3.

138
que ela constitui o critério fundamental na busca, na escolha de quem
deverá ser entrevistado, uma vez que procuraremos contactar indiví­
duos que tenham sido jovens ou adultos no período de 1920 a 1937.
As demais diferenciações serão também levadas em conta na escolha,
definindo assim a abordagem sociológica.
Finalmente, esta pesquisa tem também uma terceira dimensão e
se relaciona, então, com um tipo específico de literatura, não mais li­
gado ao tema escolhido, porém integrado num aspecto fundamental,
que é o do procedimento escolhido: a colheita de histórias de vida e
de depoimentos pessoais. Não se trata de uma técnica nova; ela havia
sido utilizada pela antropologia sócio-cultural, e aqui mesmo no Bra­
sil deu lugar a um conjunto de reflexões publicadas em 1953,14 o que
demonstra sua falta de novidade.
Estas técnicas conheceram um desenvolvimento rápido a partir do
momento em que gravadores puderam ser utilizados para o registro
das entrevistas, o que facilitava grandemente o trabalho. E sem dúvi­
da a obra de Oscar Lewis, Os filhos de Sanchez, realizada graças ao
gravador e reunindo um conjunto de histórias de vida dentro de uma
mesma família mexicana, marca o início de uma nova era no emprego
deste método de trabalho;15 não era “ uma” história de vida que se co­
lhia, e sim várias. O gravador permitiu dissociar em dois tempos a co­
leta (a gravação, a datilografia), permitindo maior rapidez e maior apro­
fundamento da mesma, e conseqüentemente da análise.
No entanto, depois desta experiência não se procurou mais levar
adiante reflexões e estudos de tal procedimento, que tem sido pouco
utilizado para coleta de material de pesquisa. Recentemente, no Brasil
e na França, duas pesquisadoras, que não se inter-relacionam pois não
se conhecem, lançaram mão do mesmo, empregando-o em perspectiva
semelhante: Ecléa Bosi16 e Fernande Schulmann.17 Recolheram histó­
rias de vida de personagens múltiplas para esclarecimento de determi­
nados problemas — personagens que não pertencem nem à mesma fa­
mília, nem à mesma faixa sócio-econômica, nem à mesma cultura, e
que por isso mesmo, comparadamente, podem esclarecer aspectos di­
versos de uma mesma realidade. O problema de Ecléa Bosi é verificar
como age o mecanismo da memória em indivíduos de sexo diferente
e de origem sócio-econômica diversa, desvendando também certos da­
dos da vida paulistana do passado. Fernande Schulmann, recolhendo
histórias de vida de judeus idosos, de poucos recursos, refugiados em
Paris desde longa data, procurou conhecer como estes homens e mu­

(14) Bastide, 1953; Moreira, 1953; Pereira de Queiroz, 1953.


(15) Lewis, 1970.
(16) Bosi, 1979.
(17) Schulmann, 1980.

139
lheres, nascidos ou não na França, ashkenazes ou sefarades,18 enca­
ram sua própria existência e seu relacionamento com os não-judeus.
Nestas duas obras já se apela para aquelas coordenadas a que nos
referimos atrás. Porém, se elas serviram para determinar a variedade
da escolha dos informantes, não foram utilizadas no momento da aná­
lise como linhas orientadoras desta; seu papel se esgotou na própria
escolha. Nosso intuito é ir mais além; é utilizar os critérios de diferen­
ciação, numa perspectiva que Roger Bastide chamava de “ múltiplos
refletores” , para iluminar um problema de vários ângulos dissemelhan-
tes. Desta forma, os critérios de escolha dos informantes serão conser­
vados na análise a ser efetuada em seguida, de maneira a poder diag­
nosticar similitudes e diferenças. Nossa pesquisa pretende, pois, se in­
serir no conjunto da literatura sobre a técnica das histórias de vida e
dos depoimentos pessoais, como um complemento àquilo que já tem
sido feito.
Esperamos ter, assim, relatado com clareza como nosso projeto
se liga a três acervos diversos — a cidade de São Paulo na época, a
vida e as maneiras de pensar de seus habitantes de baixos recursos, a
utilização das técnicas de história de vida — trazendo a todos eles uma
complementação necessária.

4 — A s hipóteses que orientarão a pesquisa


Todo o relacionamento do projeto de pesquisa com a literatura
sobre o assunto — portanto, com os estudos que despertaram o inte­
resse do pesquisador para determinado tema — contém o que se cha­
ma de “ hipóteses” , se tomarmos o termo no sentido utilizado por Pla­
tão, isto é, tudo aquilo que antecede uma construção.19 Foi a partir
dos conhecimentos existentes que nos propusemos a completá-los, sa­
nando o que nos parece uma falha.
Além disso, a própria determinação das coordenadas que orienta­
rão a escolha dos informantes e a análise dos depoimentos se constitui
nessas “ conjecturas duvidosas, mas verossímeis, por meio das quais
a imaginação antecipa o conhecimento, e que se destina a ser ulterior-
mente verificada, seja por uma observação direta, seja pelo acordo de
todas as suas conseqüências com a observação” , tal qual define André
Lalande.20 Se transcrevemos aqui esta citação é porque nos parece que

(18) É muito importante o relacionamento deles com os não-judeus.


(19) Para estas definições, ver Lalande, 1972, p. 428-429.
(20) Lallande, 1972, p. 429

140
o termo “ hipótese” tem sido utilizado em ciências sociais de maneira
extremamente restrita, numa cópia que pretende ser o mais fiel possí­
vel do que se passa nas ciências exatas e naturais, com evidente empo­
brecimento das perspectivas específicas das primeiras.
Não podemos antecipar quais serão as formas de agir e de pensar
dos indivíduos qiie comporão o grupo entrevistado, nem conjecturar
sobre suas aspirações e desejos. Nossas conjecturas se colocam num
plano muito mais geral: o de supor que homens e mulheres de mais
de 70 anos, brancos uns e outros pretos, de origem brasileira ou de
origem estrangeira, poderíam manifestar comportamentos e aspirações
diversas, associados a essas divergências. Noutras palavras, a questão
é descobrir, a partir dessa diferenciação que hoje é reconhecida como
importante em ciências sociais para determinar comportamentos e ma­
neiras de ser, se ela realmente funcionava na cidade de São Paulo, en­
tre os trabalhadores de baixos recursos, no período de 1920 a 1937,
e como, desvendando também quais outras determinações existiríam,
separando os indivíduos no interior desse grupo. Muito mais do que
o termo “ hipótese” , parece-nos válido utilizar o conceito de “ proble­
ma” para a investigação que se pretende, pois esta se configura na rea­
lidade como tarefa consistente em “ determinar uma coisa segundo as
relações que ela deve ter com outras coisas dadas” .21
A escolha deste problema não provém apenas do desconhecimen­
to que se tem a respeito da maneira de viver da população de baixos
recursos na cidade de São Paulo, nesse período; origina-se também no
fato de que esta camada inferior é em geral considerada homogênea
em seu modo de ser, como se no seu interior as diferenciações quedas­
sem superadas e mesmo apagadas pelo determinante econômico. Nou­
tras palavras, os “ baixos recursos” são tomados implicitamente, na
maioria das vezes, como um poderoso fator de homogeneização dos
indivíduos, impondo aos componentes do grupo investigado caracte­
res e valores uniformes. Verificar se isto ocorre, identificando os limi­
tes que recortam internamente o grupo, eis o problema a ser pesquisado.

5 — A metodologia da pesquisa
No seu sentido mais adequado, metodologia é a exposição lógica
e sistemática dos princípios que orientam a pesquisa que se quer cientí­
fica; no entanto, esta definição (que se aplica justamente ao item ante­
rior) tem sido cada vez menos utilizada, e o termo passou a ser empre­
gado principalmente no sentido da totalidade dos procedimentos de

(21) Lalande, 1972, p. 836-837.

141
investigação de um problema, e das técnicas que parecem pertinentes
— num sentido, portanto, inteiramente descritivo. É nesse sentido que
o empregamos aqui.
Três instrumentos de coleta de material serão utilizados por nós:
o depoimento gravado; a ficha do informante; o diário de pesquisa.
Já vimos como a técnica de histórias de vida e depoimentos pes­
soais tem sido utilizada em ciências sociais, e qual a contribuição que
nossa pesquisa podería trazer para o seu manuseio. Queremos justifi­
car agora a preferência outorgada ao “ depoimento pessoal” sobre a
“ história de vida” , delineando uma diferenciação entre estas técnicas,
que no entanto é essencialmente fluida. Já havíamos discutido o as­
sunto em trabalho anterior, de que apresentamos aqui os tópicos
pertinentes.22
A “ história de vida” , como o nome indica, é uma biografia regis­
trada pelo pesquisador, do ponto mais antigo de lembranças do infor­
mante até a atualidade. É um trabalho que requer muito tempo para
se conseguir a narração integral; e tempo maior ainda para se conse­
guir várias delas. Sua análise será também mais trabalhosa, tanto mais
que, no nosso caso, a história se desenrola por mais de 70 anos, e as
recordações, dispersando-se por esse vasto período, arriscam-se a se
diluir e perder detalhes muitas vezes importantes.
Os “ depoimentos pessoais” , concentrados num lapso de tempo
mais reduzido, permitem aprofundar o número de informações e de
detalhes a respeito desse espaço preciso. Sendo mais curtos, é possível
multiplicar o número de entrevistados para conseguir uma quantidade
de material que permita comparações, a fim de se destacarem conver­
gências e divergências. Não que se procure testar a veracidade dos fa­
tos relembrados, o que seria tarefa antes histórica; mas tentar verifi­
car, principalmente, por onde passam linhas de diferenciação que se­
riam coletivas — por exemplo, separando a coletividade dos homens
da coletividade das mulheres, a coletividade dos operários da coletivi­
dade dos não-operários. Aos aspectos históricos, que serão focaliza­
dos, vêm se somar como parte de primeira plana as convergências e
divergências nos comportamentos, nas maneiras de ser e de pensar.
No que diz respeito a esta técnica, o primeiro passo será colher
depoimentos através de entrevistas gravadas, mantendo com a máxi­
ma fidelidade as próprias expressões dos informantes e sua maneira
de encadear os fatos, portanto, entrevistas livres. Segundo Roger Bas-
tide, a “ técnica da liberdade” revela muito mais a realidade, mesmo
que sob aparente desordem, do que entrevistas muito dirigidas ou ques­
tionários.23 As intervenções das pesquisadoras serão feitas somente

(22) Pereira de Queiroz, 1953, p. 14-15.


(23) Bastide, 1953, p. 7.

142
quando se mostrar necessário; por exemplo, quando o informante des­
creve uma passagem peculiar de sua vida, poderemos pedir maior pre­
cisão sobre a época do acontecimento, ou sobre as pessoas envolvidas,
etc.
Cada depoimento é acompanhado de uma ficha de informante,
na qual devem constar seus dados pessoais: idade, sexo, estado civil,
cor, nacionalidade, naturalidade, religião, ocupação atual e já exerci­
da. A importância dessa ficha deve-se ao fato de que ela registra a si­
tuação atual do informante, que sempre influencia sua memória dos
fatos. Lembrar, diz Ecléa Bosi, é uma atividade do presente, por isso
é fundamental conhecer o presente do informante.24
O terceiro instrumento de coleta é o diário de pesquisa ou, como
chamam alguns, caderno de campo. Consta de anotações feitas diaria­
mente pelo pesquisador, registrando as condições em que foi feita a
entrevista (onde, quando, quem, o que), isto porque todo estímulo fí­
sico, psicológico e social poderá alterar o encaminhamento do depoi­
mento. O diário de pesquisa é importante porque fornece materiais para
que se reflita criticamente sobre a técnica utilizada. Conforme já tive­
mos ocasião de observar, só se aperfeiçoarão as técnicas de pesquisa,
em ciências sociais, quando se refletir a fundo sobre experiências acu­
muladas e devidamente registradas, e principalmente sobre o instru­
mental então utilizado.25
Além das técnicas de coleta de material, é preciso dizer algo sobre
as técnicas de análise que serão empregadas. Este aspecto é raramente
abordado em ciências sociais, nas quais tem sido dada muito mais aten­
ção às técnicas de coleta; pressupõe-se assim que a parte delicada da
pesquisa, sobre a qual é preciso acumular as garantias de confiabilida­
de, é aquela na qual se operam òs cortes do real para permitir o estu­
do. Na verdade, a parte de análise do material colhido não é menos
importante, muito ao contrário; é nesta parte que se evidenciarão as
qualidades de sistematização e de diagnóstico dos pesquisadores.
Duas técnicas de análise serão principalmente empregadas. A pri­
meira é a recuperação das entrevistas através da datilografia dos tex­
tos gravados. Efetuada pelas pesquisadoras da equipe, constitui uma
retomada de contacto com os dados, em maior profundidade, e uma
primeira identificação de temas que forem aflorando. A segunda é a
análise de conteúdo, entrevista por entrevista, para reconfirmação dos
temas e encaminhamento da síntese que será objeto do relatório final.
São essas, a nosso ver, as técnicas que serão aplicadas tanto na
coleta quanto na análise do material, as quais são as mais adequadas
ao tipo de trabalho que pretendemos efetuar.

(24) Bosi, 1979, p. 17.


(25) Pereira de Queiroz, 1953, p. 23-24.

143
6 — A s fontes e a natureza dos dados
a serem coletados
Os dados que serão analisados são de natureza essencialmente qua­
litativa, referindo-se à vida na cidade de São Paulo no período
1920-1937, sendo pesquisadas as fontes vivas constituídas pela memó­
ria de homens e mulheres de baixos recursos que ainda possam dar tes­
temunho desse período através da memória.
Já expusemos atrás (item 2) a importância deste período histórico
na vida brasileira e na cidade de São Paulo. Queremos agora explicar
por que as datas-limite de 1920 e 1937. Com relação à primeira, é ela
justificada pelos próprios limites que as dificuldades de existência im­
punham à esperança de vida. Com relação à segunda, porque ela defi­
ne um marco histórico importante para os trabalhadores de baixos
recursos.
No primeiro caso, dificilmente encontraremos pessoas de baixos
recursos, que viveram e trabalharam em São Paulo anteriormente a
1920, que se conservem lúcidas ou mesmo vivas para prestar seus de­
poimentos. Portanto, em termos práticos, a escolha do ano de 1920
nos parece a mais recuada possível para tornar viável o trabalho. Isto
não quer dizer que se encontrarmos gente se lembrando de anos ante­
riores a deixaremos de lado; ao contrário. Porém, achamos esta possi­
bilidade pouco provável.
O ano de 1937 para término do período recai num fator de máxi­
ma importância para o grupo pesquisado: a instalação do Estado No­
vo, em que Getúlio Vargas abre nova fase de existência para os traba­
lhadores, inaugurando a legislação trabalhista. A partir daí as caracte­
rísticas da vida destes são alteradas (salários, horas de trabalho, apo­
sentadoria, etc.), e este fato é patente em muitas histórias de vida, no
livro de Ecléa Bosi; baseando-nos nesta constatação é que estabelece­
mos tal limite.
Como já observamos, o período marca uma fase de efervescência
política, de renovação cultural e de valores, numa cidade que começa
a ser sacudida pelo arranque da urbanização e da industrialização, ad­
quirindo novos aspectos. O intuito é procurar distinguir quais fatos
marcaram a memória dos indivíduos de baixos rendimentos então nela
residentes. Para tanto serão escolhidos: 1?) informantes homens e mu­
lheres, supondo-se que, numa sociedade como a nossa, em que se dis­
tinguem claramente atividades e comportamentos masculinos e femi­
ninos, tal distinção possivelmente influenciará as recordações; 2?) ori­
gem nacional e estrangeira, pois a socialização e a educação sendo em
geral diferentes conforme as sociedades, provavelmente agirão sobre
a orientação de comportamentos e modos de pensar; 3?) diversidade
de cor (brancos e pretos), pois ela indica uma diferença cultural que

144
pode se revelar importante, o contingente negro conservando talvez tra­
ços e atitudes de origem africana, que os distinguem dos brancos; 4?)
diversidade de ocupação, o trabalho operário e sua disciplina podendo
influenciar maneiras de ser e atitudes.
Os entrevistados serão primeiramente buscados entre as relações
das pesquisadoras, por vários motivos: a maior facilidade de descobri-
los sem grande dispêndio de tempo; a maior facilidade de marcar en­
contros, por estarem nas vizinhanças das pesquisadoras; a maior faci­
lidade de estabelecer contactos, por serem pessoas com as quais elas
já estão familiarizadas, não necessitando de uma fase de adaptação re­
cíproca. No caso de o número de informantes nestas condições não
perfazer a quantidade que se resolveu pesquisar, serão eles buscados
em círculos diversos dos das relações das pesquisadoras.
As quatro pesquisadoras que compõem a equipe, interessada em
efetuar este trabalho, são já dotadas de experiência de entrevistas, de­
vendo no entanto efetuar um treinamento prévio sob a forma de entre-
vistas-piloto. Foi calculado um número de três (3) informantes por pes­
quisadora, perfazendo assim o número de doze (12) depoimentos. A
escolha desta quantidade de entrevistas se baseou no prazo que se quer
dar à pesquisa — um ano, prorrogável — e no tempo de que dispõem
pesquisadoras e orientadora para realizá-la.
A quantidade de depoimentos parece suficiente para se obter as
linhas gerais relativas ao problema, uma vez que teremos também três
depoimentos para cada um dos critérios estabelecidos. A partir do que
for descoberto será possível planejar pesquisas futuras, que desçam a
detalhes mais minuciosos.
Poder-se-ia argüir que a quantidade de entrevistas é pequena e os
problemas a serem analisados bastante complexos. O procedimento aqui
adotado encontra apoio na advertência de Émile Durkheim sobre a im­
portância de “ uma observação só, mas bem feita” , ou de “ uma única
experiência bem conduzida” , para se chegar a conclusões válidas; e is­
so porque não é a quantidade de fatos registrados que leva ao conheci­
mento, e sim a análise cuidadosa de “ fatos decisivos ou cruciais” .26
O inventário dos fatos, diz este autor, não pode nunca ser esgotado;
é sempre necessário efetuar cortes na realidade e, para tal, determinar
critérios que, na quantidade infinita dos fatos, estabeleçam pontos de
referência, permitindo balisar as observações. É devido a tais reflexões
que uma técnica como a das histórias de vida e depoimentos pessoais
pode ser empregada em sociologia.
A escolha desses conjuntos de critérios, como explicamos atrás,
soma-se à escolha de informantes de mais de 70 anos e ao limite do

(26) Durkheim, 1963, p. 74-75.

145
período 1920-1937; todos eles se basearam no conhecimento que se
possui da sociedade urbana de São Paulo, tanto atual como na época
pesquisada. Porém, mesmo o quadro aqui traçado para a pesquisa
não foi pensado em termos de afirmações, e sim em termos de ques­
tões, para as quais a análise possivelmente nos dará algumas respos­
tas.
As respostas poderão confirmar que as linhas de diferenciação es­
colhidas foram úteis, ou então que elas seriam de menor importância.
Esta alternativa não invalida o trabalho efetuado; ao contrário, servi­
rá para corrigir aqueles critérios que, em grande parte, se basearam
em ilações a partir dos trabalhos citados, ou em deduções a partir do
senso comum, isto é, da experiência de vida na própria cidade. Ao se
desvendar um resultado negativo, ressaltarão também, como pode ocor­
rer em qualquer pesquisa, quais os critérios de diferenciação mais ade­
quados ao real, específicos das camadas de baixos recursos na cidade
de São Paulo, entre 1920 e 1937, e que deverão substituir os anteriores
em futuras pesquisas.

7 — O quadro de referência
no qual se situa a pesquisa
Ao terminar a apresentação do projeto, e procurando-se penetrar
no nível teórico nele implícito, cumpre ressaltar as linhas mestras que
orientam sua construção e que constituem o quadro de referências ge­
ral, no qual foram sistematizados os passos para a obtenção do que
se deseja conhecer.
Em primeiro lugar, acredita-se que a posição dos informantes na
hierarquia sócio-econômica da cidade de São Paulo influencia seus mo­
dos de ser e de pensar; por isso, a documentação existente, escrita ou
não, sobre o período 1920-1937, referindo-se em grande maioria às ca­
madas média e superior da população urbana, não permite conhecer
os comportamentos, opiniões e aspirações dos trabalhadores de bai­
xos recursos.
Em segundo lugar, admite-se que a camada de baixos recursos não
seria monolítica, embora homogeneizada em muitos de seus compor­
tamentos pela limitação econômica, comportamentos que compõem
uma atmosfera de similitude de condições para os indivíduos nela in­
seridos; cumpre, então, procurar no seu interior quais as linhas de di­
ferenciação, se elas revelam condições, contradições, conflitos, de que
ordem, como se manifestam.
Em terceiro lugar, admite-se a história de vida ou depoimento
pessoal como um “ fato social total” , tal como o definiu Marcei

146
Mauss.27 Isto é, fatos que apresentam em síntese o estado em que se
encontra uma sociedade ou um grupo dados, facilitando, por um la­
do, a abordagem de seus diversos aspectos institucionais — econômi­
cos, morais, religiosos, culturais, etc. — e, por outro lado, a apreen­
são dos aspectos psicossociais (atitudes, opiniões, aspirações) dos in­
divíduos que os vivem.
A delimitação de um espaço de tempo relativamente curto
(1920-1937) mostra que o ponto de vista adotado foi o sincrônico: in­
vestigar comportamentos e modos de ser de trabalhadores de baixos
recursos inseridos numa mesma camada social, de uma mesma socie­
dade, num mesmo momento de tempo. Perspectiva de análise apenas,
que não implica nenhum elemento explicativo ou de interpretação. Pois
acreditamos que a explicação dos comportamentos e modos de ser e
pensar revelados através desta pesquisa em parte estará ligada à pri­
meira observação feita neste item, sobre a posição dos informantes na
hierarquia sócio-econômica da cidade de São Paulo; em parte estará
ligada às circunstâncias históricas, tanto específicas à cidade de São
Paulo quanto específicas aos diversos grupos e camadas nela existen­
tes. Condições historicamente dadas, que se inscrevem no inter-
relacionamento das camadas sócio-econômicas de uma dada socieda­
de, são elas que orientarão as interpretações que se tomarem necessárias.
Deixamos para o final a exposição do quadro de referências teóri­
cas no qual foi delineado o trabalho, para que ele não se apresente co­
mo um conjunto de princípios pairando do exterior, a partir do qual
se deduziu logicamente o problema a ser proposto. Ao contrário, o pro­
blema surgiu de pesquisas em curso e do conhecimento de toda uma
literatura referente à realidade da época; foi a falha sentida na prática
daquelas pesquisas e no manuseio daquela literatura que sugeriu o pro­
blema a ser investigado. E, uma vez estruturado o procedimento a ser
seguido para seu esclarecimento, a reflexão sobre a prática do encami­
nhamento da mesma levou ao diagnóstico mais profundo do quadro
de referências de base.
Não que estas não estivessem presentes desde o início; porém, a
proposição da pesquisa não partiu delas, e sim das condições específi­
cas de outras pesquisas e da literatura existente; partiu, portanto, das
representações concretas e efetivas que se possuía a respeito da reali­
dade, da soma de casos descritos e analisados. Uma vez construído o
projeto, foi que se procurou distinguir quais os princípios mais gerais
que tinham servido de base ao raciocínio.
Nossa maneira de agir decorre de aceitarmos que a direção toma­
da pelo pensamento está sempre intimamente ligada ao objeto de aná­

(27) Mauss, 1966, p. 274.

147
lise; não acreditamos que esta direção possa ser definida independen­
temente da matéria sobre a qual vai se exercer; noutras palavras, não
acreditamos que esta direção seja independente, ou possa ser definida
de maneira independente do problema a ser investigado. Ao contrá­
rio, ela se liga ao problema, intimamente. O quadro teórico não cons­
titui, assim, algo que seja distinto daquilo a que vai ser aplicado, e por­
tanto só pode ser bem compreendido depois de definido o objeto direc­
to da pesquisa.
O quadro teórico não deve, pois, ser formulado previamente para
em seguida servir como que de programa a uma série de operações (da
qual a primeira seria a formulação do problema) — operações que não
se poderia distinguir senão depois que os princípios do quadro teórico
fossem avançados. Na nossa maneira de ver, ambos caminham jun­
tos; o conhecer, que é ação, e portanto práxis, vai exigindo certas defi­
nições que se vão fazendo no decorrer da proposição do problema. E
plenamente proposto este, então se busca em sua profundidade os de-
lineamentos das linhas gerais que o englobam, e que constituem gran­
des sínteses abstratas, nas quais ele se insere juntamente com uma gran­
de quantidade de outros fatos.
É porque acreditamos na enorme influência da práxis sobre a teo­
ria que nos pareceu possível pesquisar, através da memória individual,
toda a vida de uma camada da cidade de São Paulo, no passado: da
memória que seria como que uma “ abstração” do que os indivíduos
realmente viveram, e constituiría as bases de suas “ teorias” individuais
sobre suas vidas.

Equipe:
ANTONIA ALVES DE OLIVEIRA
DIRCE SPEDO RODRIGUES
MARIA LUCIA PEREIRA
VIVIANE GALISTEU MACERON

148
OBRAS CONSULTADAS

1 — Referentes ao tema da pesquisa e às técnicas empregadas

Bosi, Ecléa, Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo, T.A. Queiroz, 1979.
Boudoy, Maryvonne, La ville de S. Paulo dans Toeuvre de Mario de Andrade. Paris,
Thèse pour le Doctorat de 3e. Cycle. Univ. de la Sorbonne Nouvelle (Paris III),
1979, mimeografada.
Bastide, Roger, “ Introdução a dois estudos sobre a técnica das histórias de vida.” São
Paulo, Sociologia, vol. XV, n? 1, março, 1953.
Carone, Edgard, Movimento operário no Brasil (1877-1944). São Paulo, DIFEL, 1979.
Ferreira, Maria Nazareth, A imprensa operária no Brasil (1880-1920). Petrópolis, Vo­
zes, 1976.
Lewis, Oscar, Os filhos de Sanchez. Lisboa, Moraes Ed., 1970.
Moreira, Renato Jardim, “A história de vida na pesquisa sociológica.” São Paulo, So­
ciologia, vol. XV, n? 1, março de 1953.
Morse, Richard, Formação histórica de São Paulo, DIFEL, 1970.
Pereira de Queiroz, Maria Isaura, “Histórias de vida e depoimentos pessoais.” São Paulo,
Sociologia, vol. XV, n? 1, março de 1953.
Schulmann, Fernande, Memoiresjuives: Penfance ailleurs. Paris, Glancier-Guénaud, 1980.

2 — Outras obras de apoio

Alcântara Machado, Antonio de, Braz, Bexiga e Barra Funda. S. Paulo, Ed. Helios, 1927.
Amaral, Aracy, Tarsila, sua obra e seu tempo. São Paulo, Ed. Perspectiva/Edusp, 2
vols., 1975.
Capelatto, Maria Helena, e Lygia Prado, O bravo matutino. S. Paulo, Alfa-Omega, 1980.
Chaves Neto, Elias, Minha vida e as lutas de meu tempo. São Paulo, Alfa-Omega, 1977.
Durkheim, Émile, As regras do método sociológico. São Paulo, Nacional, 3f ed., 1963.
Fausto, Boris, Trabalho urbano e conflito social (1890-1920). S. Paulo, DIFEL, 1976.
Gattai, Zélia, Anarquistas, graças a Deus. Rio de Janeiro, Record, 3? ed., 1980.
Gunspun, Hain, Anatomia de um bairro: o Bexiga. São Paulo, Ibrasa, 1979.
I.B.G.E., Condições de vida da população de baixa renda nas regiões metropolitanas
do Rio de Janeiro e Porto Alegre. Departamento de Estudos Sociais — Divisão
de Estudos Sociais, s.d., mimeografado.
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Schmidt, Affonso, A locomotiva. São Paulo, Zumbi Ed., 1959.
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do I Encontro Internacional de Estudos Brasileiros. São Paulo, Instituto de Estu­
dos Brasileiros, U.S.P., 1971.
Vargas, Maria Thereza, Teatro operário na cidade de São Paulo. Departamento de In­
formação e Documentação Artística, Secretaria Municipal de Cultura, Prefeitura
do Município de São Paulo, 1980.

149
A N E X O II

Introdução a dois estudos


sobre a técnica das histórias de vida*
ROGER BAST1DE

Se bem que a história de vida seja uma técnica relativamente re­


cente em sociologia, sua bibliografia já é suficiente para encher um pe­
queno volume. Este, no entanto, incluiria sobretudo livros de aplica­
ção da técnica mais do que estudos críticos sobre seu funcionamento.
Além disso, os autores que a utilizaram diferem profundamente quan­
to ao objetivo e à finalidade de sua aplicação no domínio da sociologia.
Nestas condições, as experiências feitas pelos alunos, aplicando-
as a um problema determinado, parecem-nos atualmente de grande im­
portância. As dificuldades que encontram, a falta de livros básicos que
os auxiliem de uma maneira satisfatória, os esforços pessoais que são
obrigados a fazer para ultrapassar os obstáculos encontrados, tudo is­
so pode fornecer aos teóricos do método elementos para uma reflexão
salutar, orientando-os nas suas futuras construções técnicas. Foi por
essa razão que pedimos a dois de nossos antigos alunos, Maria Isaura
Pereira de Queiroz, assistente técnica da 1? Cadeira de Sociologia da
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Pau­
lo, e Renato Jardim Moreira, auxiliar de ensino junto à cadeira de An­
tropologia da mesma Faculdade, que nos dessem por escrito seu teste­
munho e sua experiência de pesquisadores, baseando-se nas histórias
de vida que recolheram no ano passado para uma pesquisa patrocina­
da pela Unesco. Estamos certos de que esses dois artigos serão uma
contribuição de grande valor para os leitores de Sociologia que se inte­
ressam pelo problema.
Lendo-os podemos notar que, se as soluções encontradas são di­
ferentes, o ponto de partido é idêntico. Num caso como no outro, a
dificuldade foi a mesma; a técnica da história de vida ainda permanece
muito presa às suas origens psicológicas, preocupando-se antes com
o desenvolvimento da personalidade na sua relação com o meio social
ou cultural do que com os fatos sociais propriamente ditos. Trata-se

(*) Sociologia, Vol. XV, março de 1953, n° 1, São Paulo.

150
sempre da oposição tradicional entre o indivíduo e o coletivo. Ou, me­
lhor, entre o fato social considerado como uma “ coisa” e o fato social
considerado como uma “ vida” . É verdade que a “ reciprocidade das
perspectivas’’ de Gurvitch nos fornecería uma solução teórica à dificul­
dade. Mas esta solução teórica ainda é muito geral, muito conceituai
para auxiliar o pesquisador na utilização da história de vida. Portanto,
como será possível manejar a história de vida para que esta se transfor­
me num método realmente sociológico, deixando de ser, como aconte­
ce no mais das vezes, um método de psicologia social? Se os critérios
de Dollard nos parecem insuficientes, como completá-los e qual o novo
caminho a seguir? Não pretendemos, é claro, com os dois artigos em
apreço, solucionar definitivamente esta dificuldade. No entanto, acha­
mos que podem servir como um começo de elucidação.
Maria Isaura Pereira de Queiroz tentou solucionar o problema, de
uma maneira aparentemente paradoxal, utilizando-se ao mesmo tem­
po da comparação de diversas histórias de vida, a fim de depreender
o comum do individual, o geral do particular — e de uma técnica em
que se deixa a maior liberdade à pessoa interrogada. Se usamos o termo
paradoxal é porque a comparação só parece possível através da estan-
dardização das histórias de vida: portanto, através de uma técnica orien­
tada com o auxílio de um questionário, o qual permite à comparação
generalizar com mais segurança e mais facilidade os resultados encon­
trados. Mas o paradoxo só é aparente. Pois a estandardização ou a orien­
tação do pesquisador arriscaria, como bem via Maria Isaura Pereira de
Queiroz, relegar para a sombra os fatos importantes e desvirtuar o va­
lor da experiência. Talvez o resultado mais feliz da técnica da liberdade
tenha sido, justamente, o de revelar num caso particular — o da classe
“ mais baixa” de cor — o papel exato que a “ cor” desempenha na vida
dessa classe, não explicando à pessoa interrogada as razões do questio­
nário, mas deixando-a contar sua vida ao acaso das lembranças sem pro­
curar retê-la ou dirigi-la. Pois, como já tivemos ocasião de observar,
as experiências negativas realizadas pelo homem de cor não passam de
“ momentos” de uma “ duração” ; não é toda a sua vida que se cristali­
za em torno da “ cor” , pois para o negro, como para o branco, a vida
é uma sucessão de pequenas alegrias ou de pequenas dores marcadas
por uma infinidade de coisas além da “ raça” : o nascimento de um fi­
lho, a corte amorosa, o orçamento que se tenta equilibrar, etc. Ora, es­
te é um fato de grande valor sociológico posto a nu pela própria técnica
da liberdade. A comparação tornará possível, em seguida, ampliar ou
limitar este fato a todo o conjunto do grupo de cor, ou a uma classe
determinada, a “ classe baixa” , ou talvez mesmo, no interior dessa classe,
a uma certa categoria social: a das “ famílias de negros protegidos pelas
grandes famílias tradicionais brancas” . Como vemos, o paradoxo que
nos poderia sugerir uma leitura superficial é apenas aparente. Quanto

151
a nós, temos certa predileção por essa técnica da liberdade, que já ape­
lidamos de “ técnica proustiana” , pois que a pessoa interrogada, ne­
gligenciando a cronologia dos astrônomos, se abandona, como o me­
nino Proust, às “ intermitências do coração” infinitamente mais reve-
ladoras que as outras, sob a desordem aparente das datas.
Renato Jardim Moreira procura solucionar o problema tomando
outra direção; fazendo da história de vida uma técnica verdadeiramente
sociológica. O erro de Dollard consiste em pensar que a história de vi­
da é sociológica na medida em que é feita através de um sistema de
referências de conceitos sociológicos: no entanto, desse modo não se
vai além do problema da personalidade. A história de vida só se trans­
forma em instrumento realmente sociológico na medida em que nos
faz atingir os fatos sociais e não a simples reflexão dos mesmos através
da personalidade — uma realidade objetiva, e não sua “ individualiza-
ção” , ou, como diria Kardiner, a zona de suas variações e desvios. Ora,
a história de vida permite justamente a Renato Jardim Moreira desco­
brir essa realidade social objetiva, num duplo ângulo complementar:
o da própria dinâmica das relações sociais, e do social in statu nascen-
di (fora de toda re-construção experimental, como na sociometria de
Moreno). Eis, aí, uma sugestão do mais alto interesse e que, tecnica­
mente, podia traduzir-se por um conjunto de regras orientando os fu­
turos pesquisadores.
Vemos, portanto, que diante da mesma dificuldade, nossos dois
pesquisadores reagiram de maneira diversa. Aliás, estas diferenças se
explicam pelas condições peculiares a cada uma das duas experiências.
Maria Isaura Pereira de Queiroz estudava uma pessoa da “ classe bai­
xa” , pedia-lhe que lhe contasse a vida; mas esta vida era uma vida iso­
lada (ou ligada apenas a uma “ grande família” ). Renato Jardim Mo­
reira estudava um líder, cuja vida se misturava à dos grupos que fun­
dara ou dirigira ou aos a que se opusera pela luta; sua vida era, assim,
menos um conjunto de acontecimentos (onde a cor desempenhava um
papel) que a história de um pensamento, de uma ideologia, e de uma
racionalização, determinada sem dúvida pela cor, mas agindo como
força “ dinâmica” na modificação das relações sociais, dotada de uma
potência criadora, manifestando-se através da formação de grupos.
Compreende-se como deste modo foram nossos dois pesquisadores le­
vados pelas próprias respostas recebidas a orientar suas soluções em
direções diferentes — o método comparativo e a dinâmica social.
Diferentes, mas não contraditórias. E esta seria a última lição que
teríamos de reter deste confronto de experiências. Talvez a técnica de
história de vida deva se amoldar à própria natureza dos meios sociais
estudados. Talvez os teóricos desse método devam partir da estrutura
social e, em vez de fornecer regras ou critérios gerais, — sempre infru­
tíferos, — devam amoldar a técnica à sua finalidade sociológica, con­

152
forme se trate de grupos isolados ou em interação, deste ou daquele
estrato da sociedade, de meios de vida fixos ao solo ou móveis, de co­
letividades tradicionais ou em transição. Assim, a história de vida, pa­
ra poder atingir o fim sociológico e não as personalidades socializa­
das, deveria forjar para si seu próprio instrumento de apreensão do
social. Não haveria assim uma e sim várias histórias de vida, que os
teóricos do método deveríam ligar a uma classificação preliminar dos
grupos sociais.

153
A N E X O III

Histórias de vida e depoimentos pessoais*


MARIA ISAURA PEREIRA DE QUEIROZ

Uma das técnicas mais fascinantes da sociologia é a das histórias


de vida e depoimentos pessoais. A coleta de tais documentos parece,
à primeira vista, coisa fácil e ao alcance de qualquer um; pois não bas­
ta simplesmente chegar a uma pessoa, pedir-lhe que conte sua vida ou
dê sua opinião, anotando cuidadosamente o que ela diz? Ao executar
o trabalho, todavia, as dificuldades e os problemas ressaltam; não só
problemas de escolha do informante e obtenção do material, como de
preparo do pesquisador.
Foi a psicologia que primeiro se serviu das histórias de vida; ulti­
mamente, a sociologia tomou consciência do partido que delas pode
tirar; mas a atitude de cada uma é diferente. Para a psicologia, é o
indivíduo como tal o centro de interesse; mesmo considerando que a
personalidade resulta da interação indivíduo-grupo, toda a ênfase é dada
ao primeiro; através da história de vida busca-se compreender como
a personalidade se formou e as vicissitudes que atravessa devido ao con­
tato com o grupo; como, a partir de um núcleo de qualidades inatas,
se desenvolveu e absorveu os valores que o grupo ora lhe oferece, ora
lhe impõe; ou então busca-se estudar o indivíduo e suas reações em
determinada situação, considerados como parte do ambiente e influin­
do sobre o ambiente; em ambos os casos, é sempre o “ indivíduo” que
interessa; a história de vida, nos dois casos, apresenta ótimas possibili­
dades de estudo.
A sociologia tem por objeto o fato social, que a princípio foi con­
siderado como exterior aos indivíduos e estudado nos comportamen­
tos visíveis dos mesmos e nas cristalizações institucionais; o interesse
que apresentam a história de vida e o depoimento pessoal, para este
tipo de sociologia, é limitado; servem como ilustração daquilo que ou­
tras técnicas permitiram estudar. Foi a partir do momento em que se
admitiu que valores e opiniões tinham base coletiva, não eram produ­
to essencialmente individual, que as histórias de vida ganharam impor-

(*) Sociologia, Vol. XV, n? 1, março de 1953, São Paulo.

154
tância para a sociologia; ao seu primeiro ponto de vista puramente
objetivo e exterior seguiu-se outro, o de “ compreender o social não
apenas como o que se realiza por meio dos homens, mas como o que
é vivido e agido por eles” ,1 isto é, o estudo do fato social humani­
zado, encarado na sua matriz que é o indivíduo, criador e criatura
do grupo. A história de vida permite justamente estudar o fato social
de seu interior, na fonte. O que os homens pensam, sentem e fazem,
constituindo fatos sociais tanto quanto, por exemplo, as técnicas que
empregam em seus trabalhos, a história de vida os mostra ao vivo;
ela permite uma abordagem interior de fatos que antes só eram ob­
servados do exterior.
Tome-se, por exemplo, a afirmação da inexistência de diferenças
de cor entre nós, que pode ser estudada em seus aspectos objetivos —
quando mais não seja, na lei que proíbe sua manifestação; são esses
fatos sociais frios e desumanizados. Mas a atitude de um brasileiro bran­
co diante seja da comunidade negra, seja de um negro em particular;
ou a atitude do negro para com os brancos: tudo quanto se oculta por
detrás desta frase comuníssima: “ Eu não tenho preconceito, m as...” ;
o significado que para negros e brancos se prende ao elemento cor; o
preconceito que se manifesta em certas situações e noutras não — fa­
tos sociais, pois resultam da vida em grupo — só podem ser alcança­
dos através do comportamento e das opiniões dos indivíduos, e a his­
tória de vida é um dos bons auxiliares para sua investigação. O pre­
conceito será assim estudado em função do membro do grupo; será
estudado dentro da comunidade, que não será encarada como uma reu­
nião de indivíduos a que se impõe uma coleção determinada de insti­
tuições, de valores e de hábitos, mas sim como uma realidade palpi­
tante, isto é, levando-se em conta o grupo de indivíduos vivendo, sen­
tindo, agindo dentro da armadura das instituições, à qual o viver, sen­
tir e agir afrouxa, dá elasticidade, modifica.
Consideradas sociologia e psicologia como o estudo de duas faces
complementares e inseparáveis de uma mesma realidade, a história de
vida do ponto de vista psicológico, estudando a integração do indiví­
duo em determinada cultura, a formação de sua personalidade pela in­
teração entre suas qualidades individuais e o meio em que vive, se com­
pleta com a história de vida do ponto de vista sociológico, que mostra,
dentro da rigidez do esqueleto estrutural da sociedade, em suas insti­
tuições e “ mores” , as linhas “ fáceis” de conduta, os “ arranjos” , a
flexibilidade do comportamento humano, que não são individuais por­
que seguidos por muitos.

(1) Mikel Dufrenne, “ Coup d’oeil sur 1’anthropologie culturelle américaine” . Cahiers
Internationaux de Sociologie, Ed. du Seuil, Paris, 1952, vol. XII, 7e. année.

155
Desta compreensão da história de vida decorrem duas conseqüên-
cias: primeiro, que psicologia pode encontrar seu material em uma his­
tória de vida, pois seu objetivo é o indivíduo (mesmo que deste indiví­
duo se generalize para os restantes, sendo então necessária a escolha
de um indivíduo representativo); segundo, que a sociologia não pode
se contentar com uma história de vida, pois, mesmo que tenha escolhi­
do um indivíduo característico do grupo estudado, não poderá nunca
afirmar, a partir de um, que os maneirismos que ele manifesta diante
das instituições sejam coletivos.
Na verdade, qualquer história de vida tem em si seu problema e
seu interesse para a psicologia; uma vez que se trata da interação per-
sonalidade-meio, a questão a formular é interior, imanente à história
de vida; o psicólogo pode abordá-la sem ter em mente quesito algum,
ela própria os fornece (o que não impede, é claro, que ele proponha
anteriormente uma questão e utilize a história de vida para seu conhe­
cimento). Para o sociólogo não; o problema sociológico em relação
à história de vida tem o mesmo caráter do fato sociológico em relação
ao indivíduo: é-lhe ao mesmo tempo exterior e interior, enquanto em
relação ao fato psicológico é apenas interior. A biografia de um negro
que demonstra sentimentos de rancor contra brancos explica, para o
psicólogo, como estes sentimentos se desenvolveram a partir do conta­
to e experiências com brancos, mostra em que situação tais sentimen­
tos aparecem e as reações que o indivíduo apresenta então; o proble­
ma psicológico é interior à vida desse negro, não existe fora dela, a
não ser na medida em que ele seja membro de uma comunidade onde,
entre as instituições, figure a da animadversão entre as raças; mas aqui
saímos do campo da psicologia porque o problema não depende mais
do negro como indivíduo nem de sua vida particular, e sim do meio;
quando o negro penetra naquele meio, o problema podia já existir, e
mesmo que não existisse, desde que surja, aparece como linha de con­
duta de muitos, resultante de um complexo de fatores sociais; é de cer­
ta maneira imposto ao negro do exterior. Eis porque dizemos que, na
história de vida encarada do ponto de vista sociológico, o problema
é ao mesmo tempo exterior e interior — exterior porque é um modo
de agir coletivo, que se inscreve nos costumes do grupo; interior por­
que o indivíduo o absorve, tornando-o parte de sua personalidade.
O relato de uma história de vida pode sugerir problemas ao soció­
logo, e sempre possui elementos que o interessam, pois nunca se viu
um homem que existisse completamente só, sem inscrever em sua vida
os aspectos da comunidade em que se criou e habita; todavia, diante
de uma história de vida, como ter certeza de que o problema nela
encontrado é de fato sociológico e não peculiaridade individual? Duas
soluções se apresentam: acumular as histórias de vida para delas dedu­
zir o que é coletivo e o que é individual, ou formular o problema an­

156
tes de iniciar a história de vida, de acordo com o que se observou na
comunidade que se pretende estudar, pressupondo-se então um estudo
ou um conhecimento prévio do grupo, da cultura, da comunidade em
foco. Sabendo-se, por exemplo, que em certa comunidade, que reúne
indivíduos de raças diferentes, existe a “ linha de cor” , pode-se investi­
gar qual o valor e o significado atribuído por brancos e negros à cor
e como reagem diante dela.
A formulação prévia da questão é uma das regras mais importan­
tes na colheita da história de vida para fins sociológicos; de acordo com
a questão escolhida se orientarão as diferentes fases do trabalho: pre­
paro do pesquisador, escolha do informante, entrevistas, análise dos
dados. Regra, aliás, básica em toda pesquisa sociológica atualmente;
foi-se o tempo em que se confundia prenoção com hipótese de traba­
lho ou com problema e em que se encarecia que o pesquisador devia
ser como uma tabula rasa, ao qual a simples observação revelaria a
estrutura íntima dos fatos sociais. A coleta cega do material foi substi­
tuída pela colheita dirigida, sendo a direção exercida pelo problema
que o sociólogo tem em mente.
Tocamos então o preparo do pesquisador; para que este possa for­
mular o problema, é preciso que conheça sociologia em geral e o gru­
po que pretende estudar em particular; quanto maior a familiaridade
com este grupo, maior a facilidade para a formulação da questão, que
ganha em sutileza e agudez. Será muito mais fácil formular problemas
a respeito da sociedade em que vivemos do que a respeito de socieda­
des bantus ou indígenas.
Se o sociólogo é, porém, um membro do grupo, que assim conhe­
ce do interior, ele mesmo terá uma opinião, uma atitude, da qual pode
não ter muita consciência, diante do problema que pretende estudar.
Analisar sua atitude pessoal por meio de um depoimento honesto, em
que sejam expostas não somente sua própria opinião, experiências e
comportamentos, como também as opiniões, experiências e compor­
tamentos das pessoas em cujo círculo vive, é alcançar, por meio do me­
lhor conhecimento de si mesmo, maior objetividade para a pesquisa
em vista; a análise permite-lhe desvendar tendências que ignorava ou
que não levava em conta; consciente da existência delas, poderá vigiá-
las e evitar que deformem os dados no ato da colheita. Por outro lado,
este depoimento enriquecerá o acervo de dados sobre o problema que
estuda.2
A escolha do informante também está diretamente presa ao pro­
blema pré-formulado. O informante tem de ser alguém em cuja vida
e atitudes se possa estudar a questão; no caso do preconceito de cor,

(2) É um preparo que o Professor Bastide vem exigindo dos alunos de sociologia, sem­
pre que os encarrega de obter uma história de vida.

157
por exemplo, de nada adianta obter a história de vida de um indivíduo
que não tenha contatos com outros de cor diferente. Coloca-se aqui,
outrossim, a questão da escolha do “ indivíduo representativo” ; dian­
te de muitos indivíduos desconhecidos que fecham em si mesmos o se­
gredo de seus comportamentos e opiniões, como descobrir o tipo mé­
dio? O pesquisador, ou conhece tão intimamente o grupo, seus com­
ponentes e seus “ mores” que lhe é fácil escolher o informante repre­
sentativo da média ou cuja vida seja especialmente interessante para
a hipótese a investigar, ou então terá de operar uma sondagem prévia.
Esta seria feita pedindo-se a vários informantes em potencial que redi­
jam curtas biografias, ou que dêem seu depoimento pessoal sobre o
problema visado; aos que fornecerem os relatos mais interessantes,
pedir-se-á a história de vida completa e detalhada, sendo de bom aviso
figurarem entre os escolhidos tanto representantes do comum quanto
aberrantes. As restantes biografias são outros tantos dados, servindo
como meio de verificação de que as atitudes manifestadas pelos infor­
mantes são de fato coletivas e não produtos inteiramente pessoais.
Nota-se mais uma vez o afastamento do “ um” pelo sociólogo; por­
que mesmo que só um indivíduo seja escolhido, ele o é como represen­
tante da coletividade, como amostra de como agem todos; e para sua
escolha, ou para a verificação dos dados que forneceu, recorre-se sem­
pre à pluralidade. Para um estudo sociológico em que se queiram utili­
zar unicamente histórias de vida, muitas delas devem ser buscadas; não
sendo assim, ficamos na psicologia. Se considerarmos que, para a ob­
tenção de histórias de vida, é necessário o preparo prévio do pesquisa­
dor (mesmo que ele possua conhecimentos sociológicos e familiarida­
de com a sociedade a estudar, é preciso sempre um pequeno preparo
teórico peculiar ao assunto escolhido, assim como a auto-análise a que
nos referimos atrás), a escolha cuidadosa do informante, a entrada em
relações com este para que se estabeleça um clima de confiança sem
o qual o trabalho é impossível, a grande quantidade de colóquios para
se conseguir uma narração integral, vemos que esta técnica de estudo
é das que consomem tempo e das que mais vagar e paciência reque­
rem; o trabalho não pode ser feito de maneira intensiva — longas en­
trevistas para esgotar rapidamente o assunto — porque os detalhes se
perdem e o cansaço do pesquisador e do informante deforma o relato.
A história de vida, para o sociólogo, dificilmente poderá então consti­
tuir um único instrumento de trabalho. O meio de remediar esta difi­
culdade é recorrer a depoimentos pessoais, a fragmentos de histórias
de vida, que são fáceis de obter em maior quantidade.
Toda história de vida tem de ser um depoimento, isto é, não ape­
nas um relato cronológico de acontecimentos, mas trazer em si a ri­
queza de sentimentos, opiniões e atitudes da pessoa que a relata; a não
ser assim, revelar-se-á pobre, incolor, pouco significativa e pouco útil,

158
tanto para a psicologia quanto para a sociologia. Para o psicólogo que
estuda uma personalidade, porém, depoimentos pessoais ou apenas
fragmentos de história de vida não são de muito valor porque incom­
pletos; ele precisa conhecer não só como o indivíduo reagiu numa de­
terminada circunstância, mas também que motivos o impeliram a isso,
o que deve ser buscado geralmente no passado, porque é o desenvolvi­
mento individual em interação com o grupo e a cultura que dá esses
motivos. Para o sociólogo, desejoso de conhecer como se comporta
a coletividade, os depoimentos e os fragmentos de história de vida têm
grande interesse porque focalizam justamente o comportamento a co­
nhecer, indicando a quantidade de material, se ele é coletivo ou não;
depoimentos, opiniões e fragmentos de histórias de vida abundantes
completar-se-ão uns aos outros, agindo também como correção e con­
trole não só em relação uns aos outros como em relação às poucas his­
tórias de vida que se obtiverem.
Diante da necessidade de utilização desses depoimentos, ressalta
novamente a importância da formulação do problema antes de inicia­
da a pesquisa; sem uma questão precisa, que depoimentos buscar? E
mesmo quando se trata do relato de uma história de vida, em que a
maior quantidade possível de dados e de informações deve ser solicita­
da, o pesquisador não pode perder de vista seu problema porque corre
o risco de deixar vagos e obscuros os lances que mais de perto lhe inte­
ressam, enquanto lhe são fornecidos com abundância dados de some-
nos importância para seu objetivo; com maior razão ainda em se tra­
tando de depoimentos que são buscados tendo em vista determinado
fim, que devem focalizar determinado comportamento ou determina­
da opinião, isto é, que se deve colher visando o problema formulado
anteriormente.
Colhidos os dados, é óbvio que a análise será feita de acordo com
o problema. Não só a análise, mas antes dela as pesquisas sobre a con­
fiança que o documento pode merecer, a verificação dos dados, serão
também orientadas pelo problema. No caso, por exemplo, de o docu­
mento ser confrontado com outros diferentes, estes também devem ter
sido coligidos de acordo com o problema central e o confronto será
diretamente influenciado por ele, pois o que se procura verificar é jus­
tamente a confiança que pode merecer o documento em relação ao pro­
blema.
Toda esta exposição parece concorrer para a conclusão de que só
um sociólogo ou indivíduo que conheça bastante sociologia será capaz
de coligir uma história de vida com os requisitos necessários; de fato,
um sociólogo ou um estudante de sociologia serão a pessoa melhor in­
dicada para a tarefa, porque só eles terão o preparo especial para ob­
ter o documento mais rico e mais preciso do ponto de vista do proble­
ma a estudar, pois têm consciência muito mais aguda desse problema e

159
das dificuldades da obtenção do material. Isso não quer dizer que da­
dos colhidos sem a orientação de um foco especial de interesse devam
ser desdenhados como inúteis; no caso, por exemplo, de uma biogra­
fia escrita por qualquer autor, dela pode e deve lançar mão o sociólo­
go, para seu estudo; mas os dados assim obtidos são menos precisos
e necessitam de uma análise muito mais delicada e cuidadosa, como
nota Robert Angell.3 Podemos esculpir madeira com qualquer cani­
vete; mas o trabalho será muito mais fácil, rendoso e perfeito se usar­
mos o instrumento apropriado.
Pode-se argüir que os autobiógrafos embelezam-e a si mesmos,
ou que os escritores tendem sempre a dar uma idéia simpática ou anti­
pática de seu biografado, criando uma imagem fictícia das ações, ati­
tudes, reações, emoções. O mesmo, porém, acontece quando o indiví­
duo conta sua história ao pesquisador; todos somos levados, às vezes
de maneira inteiramente inconsciente, a nos mostrar como queremos
ser idealmente e não como realmente somos. Mas o psicólogo é quem
sofre mais com isto, ele é que está lidando com uma personalidade em
sua formação e vicissitudes; quanto ao sociólogo, pode sanar a falha
pela comparação com outras autobiografias e depoimentos, se lida com
documentos frios, ou pelo interrogatório de pessoas da família sobre
o informante, em se tratando de histórias de vida. Neste último caso,
o próprio conhecimento do informante, à medida que as entrevistas
vão-se acumulando, permitirá de certo modo ao pesquisador uma ati­
tude de confiança ou de desconfiança para com a narração que está
ouvindo. Aliás, a falta de veracidade em relação a certos acontecimen­
tos ou detalhes (desde que descoberta e constatada pelo sociólogo) po­
de até constituir um dado suplementar; conhecido o grupo social do
informante, a falha indica a existência, nesse ponto, de uma valoriza­
ção ou de uma desvalorização social que o indivíduo voluntária ou in­
voluntariamente pretende ignorar, exagerar ou contradizer. Todos es­
tes cuidados que requer a obtenção de uma história de vida, estão a
repetir que somente um estudioso de psicologia ou de sociologia deve
se encarregar do trabalho; os leigos ou os poucos treinados fornecem
documentos imprecisos ou deformados e, dada a dificuldade de se ob­
ter uma história de vida completa devido ao tempo que toma, o risco
não deve ser corrido.
*
* *

(3) Louis Gottschalk, Clyde Kluckhohn e Robert Angell, The use o f personal documens
in history, anthropology and sociology. Social Science Research Council, Nova York,
Boletim 53, 1945.

160
Colhi, o ano passado, fragmentos de uma história de vida que es­
pero completar mais tarde, e alguns depoimentos pessoais.
O problema que norteou a escolha de meus informantes foi o das
relações entre brancos e pretos em São Paulo, de princípios do século
até 1930, isto é, no período em que, libertados havia pouco, tiveram
os negros de se haver com a concorrência dos imigrantes melhor pre­
parados do que eles para a luta no terreno do trabalho livre.
Minha informante para a história de vida é pessoa de cor, nascida
em 1900; passou sua infância e mocidade na cidade de São Paulo; em­
pregada doméstica desde os 26 anos, tem vivido quase exclusivamente
no meio de brancos, suas amizades são, em grande maioria, com gente
branca. Conheço-a há tempo; estava, assim, afastada a primeira difi­
culdade das relações entre informante e pesquisador, que é a conquis­
ta da confiança para que a narração seja feita com a maior franqueza.
Outra dificuldade é a perda de interesse por parte quer do pesquisa­
dor, quer do informante; muitas vezes, colóquios começados com to­
do o entusiasmo vão adquirindo um aspecto de obrigação que acelera
o relato para acabar depressa ou que lhe abate a vivacidade; ora, mi­
nha informante não só tem decidido pendor para contar histórias co­
mo as narra com vivacidade e sabor; sabia de antemão que nosso inte­
resse não diminuiría, antes tendería a aumentar com o correr das en­
trevistas, dadas as suas qualidades de narradora.
Aqui intervém o perigo do “ bovarysmo” que sói ocorrer quando
se trata de pessoa de muita imaginação: a criação de um personagem
fictício pela informante para se revelar, a meus olhos, interessante co­
mo uma heroína de romance; dadas, porém, as relações antigas entre
nós duas, o conhecimento que tenho dela e de uma parte de sua vida,
com relativa facilidade descobriría os exageros.
Havia uma terceira vantagem na escolha desta informante, e que
não era de desdenhar: as entrevistas podiam ter lugar no ambiente o
mais normal possível, sem afastá-la de suas atividades e obrigações co­
tidianas, sem criar para ela um “ clima” diferente e sem dar aos coló­
quios nenhum aspecto formal ou fora do comum. Ela leva a passeio,
todas as manhãs, a criança de quem é pajem; várias vezes eu já a tinha
acompanhado, conversando. As entrevistas tiveram, assim, caráter nor­
mal dentro de seus hábitos e de nossas relações mútuas, realizando-se
nesses passeios matinais.
Outro perigo era o de ela não se mostrar inteiramente franca por
ocupar em relação a mim posição subalterna e temer me desgostar; es­
te perigo também não existiu no caso: houve uma época, a de minha
infância, em que ela, apesar de empregada, ocupou em relação a mim
a posição contrária; como adulta e minha pajem, representava a auto­
ridade superior a quem eu devia obediência; dessa autoridade ficou um
resíduo que impossibilita o estabelecimento, entre nós, de relações de

161
superior para inferior; a afeição proveniente de um longo conhecimento,
o respeito que despertaram seu caráter e inteligência, concorrem para
destruir qualquer diferença de nível que tenda a se estabelecer; ela sa­
be que pode ser franca comigo na exteriorização de suas opiniões e es­
pera de mim a mesma atitude.
Todavia, estas condições, que acreditei no começo serem “ condi­
ções ótimas” para a obtenção de uma história de vida, tinham o in­
conveniente da própria amizade que nos liga. Se o interesse de nós am­
bas, no desenrolar da narrativa, não diminuía; se, pelo fato de eu
conhecê-la bem e de longa data, era menor o perigo de ela construir
para mim um personagem fictício, por outro lado eu mesma, de ma­
neira insensível (percebi um dia, quando relia o que acabara de escre­
ver imediatamente após a entrevista), era levada a atenuar ou acentuar
certos traços pelo uso de determinadas expressões, sempre tendendo
a dar uma impressão favorável do personagem. A imparcialidade, que
é difícil de ser conservada diante de outrem — é raro sermos inteira­
mente indiferentes, reações de antipatia ou simpatia norteiam tanto nos­
sas atividades em relação a outro indivíduo quanto nossa maneira de
representá-lo aos olhos do público — torna-se mais difícil quando está
em jogo a amizade. Mesmo no caso de não existir a amizade entre in­
formante e pesquisador, o perigo da afetividade, menor no início das
entrevistas, vai avultando, pois os encontros amiudados, o conhecimen­
to mais íntimo vão minando a indiferença inicial no sentido da simpa­
tia ou da antipatia. O perigo, maior no meu caso, existe sempre. E a
escolha de um informante inteiramente desconhecido e indiferente é
solução precária que funciona somente no início dos colóquios, mas
que deixa de ser solução à medida que o trabalho vai desenvolvendo
entre pesquisador e informante relações amistosas ou não.
Há duas maneiras de sanar o inconveniente. O primeiro é o siste­
ma de anotar tudo, palavra por palavra, à medida que o informante
vai falando (sendo então de grande utilidade a taquigrafia), o que eli­
mina as reações do pesquisador. Ou então tomar plena consciência da
deformação acarretada pela afetividade e estar sempre em atitude de
desconfiança em relação a nós mesmos ao redigirmos as entrevistas.
A mais segura é sem dúvida a solução de anotar, no próprio momento
em que a pessoa fala, tudo quando conta.4 Adotei, porém, a segun­
da; a primeira tendería justamente a formar o clima de exceção e de
artificialismo que tentei eliminar, colocaria a informante numa situa­
ção fora do comum para ela — a de ditar qualquer coisa a alguém —
diminuiría sensivelmente a espontaneidade do relato, que é uma das
preciosidades da história de vida.

(4) Esta história de vida foi colhida era 1951, antes da vigência do gravador.

162
Deixei, pois, minha informante falar livremente; raramente lhe per­
guntava uma ou outra coisa, fazendo-o apenas quando havia dúvidas
a esclarecer, detalhes a acrescentar concernentes à questão que mais
me preocupava. Apesar dos inconvenientes — depender muito da me­
mória do pesquisador, sofrer a história de vida duas deformações, pri­
meiro da pessoa que conta e em seguida da pessoa que anota — esta
maneira não só é mais suave para informante e pesquisador como eli­
mina a atitude natural de defesa que sentimos diante do lápis e do pa­
pel, a qual levaria insensivelmente o informante a fornecer um relato
“ expurgado” no sentido de se dar a conhecer tal qual deseja ser visto
pelos outros e não tal qual realmente é.
Também não mencionei que meu problema central era o do pre­
conceito de cor. Não sabendo qual a questão que preocupava o pes­
quisador, o informante conta sua história naturalmente, tal como a
compreende, sem dar maior importância a determinado aspecto, exa­
minando o passado sem idéias preconcebidas. Conhecendo o proble­
ma, será levado, insensivelmente embora, a acentuar uma ou outra pas­
sagem a que não daria maior importância em situações normais. No
caso da minha informante, por exemplo, se eu dissesse que estava es­
tudando as relações entre brancos e pretos, imediatamente ela busca­
ria em sua memória tudo quanto a isso se referisse, relatando os acon­
tecimentos sem a isenção de ânimo com que o fez. O inconveniente
está em que o informante pode se perder numa quantidade de detalhes
que não interessam de perto ao pesquisador. Todavia, o material que
parece não se ligar ao problema central não é de desdenhar; muitas
vezes o que num relance se acredita desligado da questão revela, num
reexame, raízes profundas que o prendem sutilmente a ela; por outro
lado, como a obtenção de histórias de vida requer tempo, o que limita
sua quantidade, quanto mais rica em dados de toda a espécie, melhor,
porque permitirá que pesquisadores do mesmo ou de diferentes ramos
das ciências sociais a possam aproveitar também.
Não pedi que respeitasse a cronologia; minha informante avança­
va e recuava na história como bem entendia, contando os episódios
de acordo com associações que ia espontaneamente estabelecendo. O
abandono da cronologia — que só deve ser empregada para esclarecer
a situação dos acontecimentos mais importantes no tempo, nunca pa­
ra dirigir o fio da narrativa — é interessante porque aproxima a histó­
ria de vida das associações livres da psicanálise, permitindo ao pesqui­
sador uma penetração mais funda na mente do informante.
São estas as melhores maneiras de se obter um material vivo, ob­
jetivo, espontâneo: deixar ao informante toda a liberdade no relato,
sem o conhecimento do problema do pesquisador que influiría na orien­
tação de sua narrativa, sem lápis nem papel que o constrangeríam, sem
a cronologia que o obrigaria a uma ordenação dos fatos de sua vida

163
que lhes tiraria o sabor de aparecerem associados da maneira que ele
os vê associados. Mas estas regras (e nenhuma outra) não devem ser
erigidas em dogma; como sempre, a situação, os temperamentos de pes­
quisador e de informante, as relações entre ambos, o tipo de problema
a investigar ou outros fatores podem tornar preferível a entrevista em
que funcionem intensamente lápis e papel, em que a cronologia seja
respeitada e em que o informante esteja a par do objetivo do pesqui­
sador.
Ao redigir a narrativa que ouviu, deve o pesquisador anotar quais
as perguntas que fez e em que ponto as formulou. Se, por exemplo,
os pontos que necessitavam de esclarecimento foram sempre os mes­
mos, indicarão por parte do informante um desejo, consciente ou não,
de fugir diante deles, o que muitas vezes é significativo para o proble­
ma estudado.
Quanto ao tempo que deve durar cada entrevista, variará de pes­
quisador para pesquisador, de informante para informante, estando
não somente na dependência do temperamento e do vigor de cada um
deles quanto da relação que entre ambos se estabelece; numa relação
de simpatia, a duração da entrevista poderá ser maior do que se a anti­
patia se for desenvolvendo entre pesquisador e informante. Assim, so­
mente a experiência poderá estabelecer o tempo ótimo para cada caso.
Em se tratando do meu, verifiquei que mais de hora e meia era dema­
siado para minha memória; no dia em que a conversa se prolongou
por duas horas — não só não quisera quebrar o fio de um episódio
que apaixonava minha informante, como também tentei experimentar
quanto tempo eu agüentaria — tive muita dificuldade em lembrar de
tudo na ordem em que fora contado; minha informante não se mos­
trava cansada depois de duas horas de entrevista; tive a impressão de
que poderia continuar ainda por mais duas...
*

* *

Ao mesmo tempo que trabalhava nesta história de vida, obtive vá­


rios depoimentos de outras pessoas sobre a questão do preconceito de
cor em São Paulo, ora colocando diretamente o problema diante do
indivíduo, pedindo sua opinião e o relato de sua experiência pessoal,
ora sondando por perguntas que o levassem, sem perceber, a formular
um parecer. Neste último caso, por exemplo, conversando com o en­
carregado dos arquivos de um jornal paulista, obtive, indagando do
aumento ou da diminuição da criminalidade negra em São Paulo, da­
dos sobre as relações entre brancos e pretos, sem que o informante ti­
vesse notado da minha parte qualquer interesse maior por esta última
questão. A mesma abordagem que usara na obtenção da história de

164
vida — deixar o informante na ignorância do problema central —
utilizei-a desta vez; porém, como também no caso das histórias de vi­
da, depende do problema, do pesquisador, do informante, do encon­
tro entre ambos, a adoção desse sistema ou do sistema de pedir direta­
mente a informação.
A tarefa do sociólogo é mais ingrata na obtenção dos depoimen­
tos. As questões devem ser muito claras e objetivas para que rapida­
mente o informante dê um parecer preciso. No caso da obtenção indi­
reta, a dificuldade aumenta; não se trata, como na história de vida li­
vremente obtida, de deixar o indivíduo falar como queira, mas sim de
dirigi-lo veladamente, com segurança e presteza, para determinado fim.
Não basta o pesquisador consignar os depoimentos obtidos; sol­
tos, nada significam. É preciso que anote cuidadosamente tudo quan­
to sabe a respeito do depoente, de sua vida, profissão, nível social, am­
biente em que vive, para que a opinião dele se situe dentro de determi­
nado contexto e queira dizer qualquer coisa. Também as condições em
que se realizou a entrevista devem ser relatadas. Mesmo na história de
vida, em que a situação grupai e o ambiente estão explícitas e visíveis
através da narrativa, é muito útil completar o trabalho com tudo quanto
o pesquisador sabe a respeito do informante; os dois documentos se
completam: a história de vida de um lado, o informante visto pelo pes­
quisador, de outro. As condições das entrevistas, os momentos de maior
interesse do informante pela narrativa, os de maior emoção, tudo isso,
quando anotado, enriquece o material.

* *

Em resumo, a obtenção de uma história de vida requer: que o pes­


quisador possua, além do preparo sociológico, um preparo especial em
relação ao problema que vai abordar e à técnica da história de vida;
a formulação prévia do problema; a escolha judiciosa do informante;
entrevistas que sejam o menos possível artificiais e diferentes dos hábi­
tos do informante; descoberta do tempo “ ótimo” de trabalho para am­
bos; narrativa livre; desconhecimento, por parte do informante, do pro­
blema que preocupa o pesquisador; anotação, por este, das condições
das entrevistas, das perguntas que formulou no correr da conversa, de
tudo quanto sabe a respeito do informante.
Queremos frisar mais uma vez que não são regras absolutas, mas
que se nos afigura ser este o melhor caminho a seguir. Regras precisas
em relação à técnica de obtenção de histórias de vida não podem ser
.formuladas, não só porque podem variar de caso para caso, como por­
que, sendo técnica relativamente recente, não houve ainda número su­
ficiente de experiências para bem desenvolvê-la. Para que isto se dê,

165
é necessário não só que a técnica seja abundantemente utilizada como
que o pesquisador, além de dar os resultados de seu trabalho, conte
como agiu na obtenção dos dados e quais as dificuldades que encon­
trou.
É muito útil narrar o sociólogo suas peripécias ao utilizar qual­
quer técnica. Têm razão os que se queixam de que, em sociologia, a
maioria dos pesquisadores exibe o material obtido, analisa-o, interpreta-
o, sem descrever como agiu para obtê-lo. Torna-se necessário que se
prestem contas, aos outros estudiosos da matéria, não só do critério
usado na escolha dos dados mas também de como estes foram conse­
guidos e manipulados; contar se o lápis e o papel funcionaram ou não
enquanto o narrador falava não é detalhe de somenos importância, co­
mo parecem pensar os que se contentam em fornecer o resultado de
seus estudos. Somente o acumular da experiência em relação às técni­
cas e ao seu modo de emprego permitirá o aperfeiçoamento delas; aper­
feiçoamento que só será alcançado por meio da comparação da maior
quantidade de casos semelhantes ou diferentes entre si; a comparação
não é possível quando se silencia sobre a maneira pela qual foi obtido
e tratado o material. Por outro lado, mostrar o caminho que se seguiu
é permitir que outros o aproveitem, critiquem, aperfeiçoem ou o refu­
tem em proveito de um sistema melhor.
Poder-se-á argumentar que os problemas sociológicos são em ex­
tremo variáveis e que a abordagem necessariamente se modificará de
acordo com cada caso e cada pesquisador, de tal modo que nunca se
conseguirá fixar normas para o tratamento dos diferentes problemas.
A variabilidade existe sim; porém também existe o elemento comum;
o que é variável, o é dentro de certos limites que somente a apresenta­
ção de muitos casos permitirá perceber. Isto é, dentro da variabilidade
há uma constância que poderá ser alcançada desde que se acumule gran­
de número de casos. Os problemas sociológicos não fogem a esta cons­
tatação; dentro de sua variabilidade há que procurar a constante, a qual
irá se desprendendo e afirmando com o amontoar da experiência e com
o relato minucioso das diferentes técnicas empregadas no seu estudo,
até permitir a sua classificação em várias categorias e o afinamento dos
melhores meios de se pesquisar cada uma delas.

166
ANEXO IV

A história de vida:na pesquisa sociológica*


RENATO JARDIM MOREIRA

Este artigo tem suas origens numa pesquisa sobre relações raciais
em São Paulo, realizada em 1951-52, ocasião em que fui encarregado
de colher duas histórias de vida de negros. Como os trabalhos sobre
o assunto, em geral por uma questão de perspectiva, não me valeram
de muito frente a certos problemas surgidos no decorrer da pesquisa,
pareceu-me oportuno relatar minha experiência, assim como algumas
reflexões que me suscitou sobre a técnica de coleta de material para
a elaboração de uma história de vida.
Em geral, os autores entendem por história de vida a coleta e or­
denação das experiências de um indivíduo com o fim de conhecer e ex­
plicar o desenvolvimento de sua personalidade, sendo visível a conota­
ção psicológica de suas definições. Dollard, por exemplo, compreende
a história de vida “ como uma tentativa deliberada de definição do cres­
cimento de uma pessoa num meio cultural” .1 De outra parte, a socio­
logia, enquanto ciência da realidade social, toma o indivíduo (biológi­
co e psíquico) como um dado em suas construções sobre a sociedade.
Certamente, não se pode ignorar as tentativas de síntese que procuram
fazê-la uma “ ciência do comportamento humano” , mas estas orienta­
ções recentes não autorizam o abandono do que se pode chamar de
“ posição tradicional” da sociologia: a explicação do social pelo so­
cial. A sociologia, nestes termos, interessa-se pela história de vida na
medida em que ela possibilita o conhecimento do meio social em que
vive o indivíduo,2 mas como é impraticável a realização de trabalhos

(*) Sociologia, vol. XV, n? 1, março de 1953.


(1) John Dollard, Criteria for the life history. New Haven, Yale University Press, 1935.
(2) Assim colocada a questão, ficam de lado problemas tais como: validade e objetivida­
de dos dados, ‘‘critérios” (no sentido de Dollard), psicologia do entrevistado e do entre­
vistador. Para uma visão geral dessas questões, consulte-se: George W. Allport, The use
o f personaldocuments inpsychoiogicalscience. Nova York, Social Science Research
Council, 1942; Herbert Blumer, Critics o f research in the social Sciences: I —AnAprai-
sal ofThomas and Znaniecki’s The Polish peasant in Europe and America, Nova York,
Social Science Research Council, 1939; Ernest W. Burgess, “Discussion” (in Clifford
Shaw e Maurice E. Moore, The natural history o f a delinquentcareer, Chicago, Univer-

167
baseados em um número de histórias de vida suficiente para fornecer
base empírica à interpretação sociológica, elas se apresentam como um
elemento de controle das interpretações feitas através de dados conse­
guidos por outras técnicas.3
Esta exposição apresenta, inicialmente, minha experiência de cam­
po e as dificuldades que enfrentei ao coligir o material necessário para
a elaboração das histórias de vida; propõe em seguida o modo pelo
qual penso ter superado essas dificuldades, isto é, indica uma técnica
de coleta de material capaz de fornecer uma história de vida da qual
constem os dados necessários à pesquisa sociológica e que possa ser
aplicada por pesquisador de formação sociológica, sem que se torne
preciso uma equipe de especialistas nas diversas ciências humanas co­
mo, em última análise, o exigirá a natureza dos dados usualmente con­
siderados necessários para a elaboração de uma história de vida.4

sity of Chicago Press, 1938) e “Editor’s preface” (in Clifford R. Shaw, The Jack-
Roller, Chicago, The University of Chicago Press, 1938); G.A. Lundberg, Técnica
de ia investigación social, trad. esp. de Social Research por Jose Miranda, México,
Fondo de Cultura Economica, 1949, esp. p. 447-457; Oracy Nogueira, “A história
de vida como técnica de pesquisa” . Sociologia, v. XIV, n? 1 (março de 1952), p.
3-16; Kimball Young, Personality andproblems o f adjustment, Nova York, Crofts,
1941, esp. p. 250 e segs.; Pauline V. Young, Scientific social surveys and research,
Nova York, Prentice-Hall, 1939. Sobre a aplicação da técnica de coleta e elaboração
dos materiais de uma história de vida, veja-se: John Dollard, Criteria for the life
history, op. cit., e Caste and class in a Southern town, Nova York, Yale University
Press, 1937; Henry A. Murray e outros, Explorations in personality, Nova York,
Oxford University Press, 1945; Clifford Shaw, The natural history o f a delinquent
career, op. cit., in The JackRoller, op. cit.; W.I. Thomas e Florian Znaniecki, The
Polish peasant in Europe and America, v. III, Boston, Gorham Press, 1918.
(3) Este papel de controle, entretanto, não é aceito por todos os sociólogos. Mesmo Tho­
mas e Znaniecki, que pretendem que as histórias de vida constituem o “tipo perfeito
do material sociológico” (op. cit., v. III, p. 6), reconhecem sua limitação ao consta­
tar a impossibilidade de realizar trabalhos com dados fornecidos somente por histó­
rias de vida, considerando esse fator como um “defeito do atual metódo sociológi­
co” (op. cit., v. III, p. 7). Lundberg entende que elas são muito úteis para a formu­
lação de hipóteses de trabalho, levantando problemas cuja análise e interpretação
devem ser feitas à base de outros dados, fornecidos por outras técnicas e suscetíveis
de tratamento estatístico. Clifford Shaw as usa como documentos que devem ser in­
terpretados com auxílio de dados obtidos por outros meios, a fim de se conhecerem
as interpretações que o próprio pesquisado faz dos diferentes fatos, passo esse de
importância na “terapêutica do caso” . Dollard considera a história de vida como
capaz de fornecer o sistema de referência para a integração dos conhecimentos obti­
dos isoladamente pelas diversas ciências que se preocupam com o homem, pois a
vida do indivíduo é o resultado de reações e estímulos biológicos, psíquicos e sociais.
Limito-me a indicar em nota os diferentes papéis atribuídos à história de vida por­
que sua discussão escapa aos limites deste artigo.
(4) Aliás, isto está implícito na análise feita por Dollard em Criteria for the life history
(op. cit.). Constata-se aí que as histórias de vida pecam, de modo geral, pela ausên­
cia dos critérios mais ligados ao social, quando realizadas por psicólogo, e cios rela­
cionados mais diretamente ao psíquico, quando feitas por sociólogo; a preocupação
de um e outro é conseguir material completo no tocante à sua especialidade.

168
Na pesquisa já referida, um dos problemas consistia em determi­
nar quais as barreiras opostas à ascensão do negro, para conhecimen­
to das condições de ajustamento entre negros e brancos em São Paulo,
sendo utilizada para isso, juntamente com outras, a técnica de história
de vida.5 Iniciadas as entrevistas, verifiquei não ser possível levar a ca­
bo com êxito as histórias de vida, obedecendo a todas as exigências
prescritas pelos autores e, em particular, aos “ critérios” formulados
por Dollard. Tendo em vista os interesses da pesquisa, passei a orien­
tar a entrevista no sentido de obter a maior quantidade possível de da­
dos sobre as relações entre brancos e negros, tomando estas últimas
como o eixo em torno do qual girava a vida do pesquisado.
Um dos entrevistados, pessoa de evidência nos movimentos sociais
surgidos no meio negro, procurou narrar objetivamente os aconteci­
mentos de que participou, tendo daí resultado uma verdadeira história
dos movimentos negros. Fatos de ordem pessoal só apareciam na me­
dida em que suas atitudes explicavam algo desses movimentos; por ou­
tro lado, surgiam constantemente dados sobre a estrutura social do meio
negro. O sucesso obtido no caso presente, em que houve por iniciativa
do pesquisado uma focalização nos fatos de ordem social, está a indi­
car uma possível seleção nos dados necessários para uma história de
vida no sentido de registrar aqueles com interesse sociológico e capa­
zes de fornecer elementos que esclareçam os problemas colocados pela
pesquisa.
O outro entrevistado não me forneceu elementos que permitissem
a elaboração de sua história de vida. Depois de algum tempo, realiza­
das cerca de dez entrevistas, no decorrer das quais cheguei a estabele­
cer com ele uma certa intimidade e a perceber alguns traços de sua per­
sonalidade, fui obrigado a desistir de levar avante a coleta de dados,
uma vez que ficou patente que o pesquisado fazia uma escolha dos da­
dos que me narrava, com o fito de tornar suas ações passadas coeren­
tes com seus ideais e atitudes atuais. Sem dúvida, para o pesquisador
preocupado com problemas de personalidade, este caso poderia apre­
sentar interesse; mas como meu objetivo era esclarecer determinadas
questões ligadas à evolução das condições de contato entre brancos e
negros, para o que as informações do pesquisado não traziam contri­
buição, fui levado a abandonar sua história de vida. Esta experiência,
confirmando a anterior, embora de modo negativo, no que concerne
à natureza dos dados que interessam a uma história de vida tendo em
vista a análise sociológica e a pesquisa que se realiza, evidencia tam­
bém ser possível controlar a objetividade dos fatos narrados através

(5) Cf. Roger Bastide e Florestan Fernandes, O preconceito racial em São Pauto (Proje­
to de estudo), São Paulo, Publicações do Instituto de Administração da Universida­
de de São Paulo, n? 118, 1951, esp. p. 34-35.

169
do conhecimento prévio de alguns traços da personalidade do pesqui­
sado, tornando ainda patente a necessidade de o pesquisador orientar
as entrevistas no sentido que o interessar, sob pena de não chegar a
obter material adequado aos fins da pesquisa.
O procedimento adotado na elaboração dessas duas histórias de
vida trouxe, a par de uma dupla delimitação, uma ampliação que leva
a ultrapassar os limites usualmente estabelecidos para uma história de
vida. A dupla delimitação está em restringir a coleta dos dados que
interessam particularmente à explicação sociológica e, em seguida, no
plano específico da sociologia, ao esclarecimento dos problemas foca­
lizados pela pesquisa. A ampliação consiste em libertar a história de
vida da ênfase posta no desenvolvimento da personalidade, com o fim
exclusivo de explicar sua organização. Conseqüentemente, as experiên­
cias individuais, em qualquer fase da vida, ganham significado para
a explicação sociológica e o campo de interesse do pesquisador abran­
ge a totalidade dos fatos ocorridos ao pesquisado.
O interesse central do pesquisador desloca-se da reconstrução e
explicação de uma personalidade, levando em consideração os estímu­
los recebidos do grupo, para referir-se aos próprios estímulos, isto é,
procura conhecê-los através das situações que a sociedade ofereceu ao
indivíduo. A personalidade deixa de ser objeto de conhecimento, trans-
formando-se num meio valioso de controle da objetividade dos fatos
mais significativos para o sociólogo. Deste modo, fica superado para
a sociologia um prejuízo estreitamente ligado às origens psicológicas
da técnica em questão. Realmente, do ponto de vista das condições de
ajustamento entre brancos e negros, por exemplo, é tão significativo
o fato de o pesquisado, um negro, não ter sido correspondido em sua
mocidade no amor que dedicava a uma branca, ouvindo dela “ você
é muito bom... só tem um defeito, é meio escurinho” — de profundas
repercussões nas suas atitudes em relação a brancos — como o fato
de ter sido preterido, por ser negro, numa promoção em seu emprego,
já homem feito — sem repercussões em suas atitudes, já definidas
anteriormente.
Do ponto de vista da técnica de coleta de dados para a história
de vida, esta reviravolta implica orientar as entrevistas no sentido de
obter material de interesse para a análise sociológica e capaz de contri­
buir para a interpretação dos dados levantados mediante outras técni­
cas; permite também uma verificação das informações obtidas, uma
vez que torna possível extrair delas, usando a personalidade como fa­
tor de controle, os elementos devidos à perspectiva pessoal do entre­
vistado. Praticamente, o pesquisador conseguirá isto, procurando co­
nhecer, de início, os interesses e ideais do pesquisado, seja dedicando
as primeiras entrevistas a conversas sobre assuntos gerais, seja discu­
tindo sua pessoa com outras pertencentes aos grupos em que convive.

170
Viu-se, nessa exposição, como a história de vida, tendo o papel
específico de fornecer dados para o controle de interpretações feitas
à base de materiais colhidos através de outras técnicas, assume carac­
terísticas diferentes das que lhe são comumente atribuídas. Assim, a
referência das situações sociais vividas pelo indivíduo aos períodos su­
cessivos de sua existência permite uma ordenação cronológica do ma­
terial; a sociologia e o objeto específico da pesquisa limitam o interes­
se do pesquisador a determinados fatos; a personalidade deixa de ser
o objeto central de conhecimento para transformar-se num elemento
de controle das informações recebidas; todas as experiências individuais,
na medida em que possibilitam o conhecimento de situações sociais,
ganham significado, alargando-se o campo de interesse do pesquisa­
dor para abranger o curso de toda a vida do indivíduo.
Encarada nos termos deste artigo, a história de vida do ponto de
vista da sociologia é o relato das situações sociais vividas por um indi­
víduo, ordenadas cronologicamente. A ênfase posta nos estímulos so­
ciais recebidos pelo indivíduo não implica no desconhecimento dos as­
pectos biológicos e psíquicos, mas os transforma de objeto em meio
de conhecimento.
Finalmente, a intenção deste artigo é, em última análise, ressaltar
a necessidade de reelaboração de uma técnica quando tomada de ou­
tra ciência. E se implicitamente contém uma crítica a Dollard, ela se
explica em razão da diversidade entre os objetivos desse autor e os meus,
pois sua preocupação era a de usar a história de vida numa “ ciência
do comportamento humano” e não na sociologia, como acontece no
caso presente.

171

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